DA POLARIZAÇÃO SOCIAL À POLARIZAÇÃO AFETIVA
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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.17644174
Nilton Pereira da Cunha1
RESUMO
A transição de uma sociedade de polarização social, marcada por respeito às divergências de ideias, para outra de polarização afetiva, em que as diferenças ideológicas passaram a comprometer os próprios vínculos emocionais. Isso é uma marca da sociedade híbrida, o avanço da lógica algorítmica e da mediação onipresente do mundo virtual, em que, o dissenso passou a atingir o terreno afetivo. As redes sociais amplificaram a exposição a conteúdos polarizados, reforçando circuitos cerebrais ligados à ameaça e à hostilidade, enquanto fragilizam os circuitos da empatia e da convivência. Esse fenômeno, que se intensifica pela retroalimentação emocional dos algoritmos, promove o colapso neuroafetivo, ou seja, o outro deixa de ser alguém que se pode discordar e passa a ser percebido como uma ameaça identitária. O texto reflete sobre as consequências dessa transformação, que fragmenta famílias, amizades e comunidades, evidenciando um empobrecimento do tecido emocional coletivo. Por fim, o artigo convida à reflexão sobre a urgência de restaurar a empatia, a escuta e o diálogo como caminhos para reconstruir os laços humanos superando a lógica binária: nós/eles, esquerda/direita, amigo/inimigo, que transforma diferenças em abismos afetivos, inclusive, entre pessoas que se amavam: pais, filhos, irmãos e amigos de longas datas. Na verdade, tal processo está causando uma verdadeira erosão emocional na sociedade contemporânea.
Palavras-chave: Colapso Neuroafetivo. Polarização Social. Polarização Afetiva.
ABSTRACT
The transition from a society of social polarization, marked by respect for differing ideas, to one of affective polarization, in which ideological differences have begun to compromise emotional bonds themselves. This is a hallmark of the hybrid society, the advancement of algorithmic logic and the omnipresent mediation of the virtual world, where dissent has begun to reach the affective realm. Social networks have amplified exposure to polarized content, reinforcing brain circuits linked to threat and hostility, while weakening the circuits of empathy and coexistence. This phenomenon, intensified by the emotional feedback of algorithms, promotes neuroaffective collapse; that is, the other ceases to be someone with whom one can disagree and begins to be perceived as an identity threat. The text reflects on the consequences of this transformation, which fragments families, friendships, and communities, highlighting an impoverishment of the collective emotional fabric. Finally, the article invites reflection on the urgency of restoring empathy, listening, and dialogue as ways to rebuild human obligations, overcoming the binary logic: us/them, left/right, friend/enemy, which transforms differences into affective abysses, even between people who loved each other: parents, children, siblings, and long-time friends. In fact, this process is causing a true emotional erosion in contemporary society.
Keywords: Neuroaffective Collapse. Social Polarization. Affective Polarization.
1. INTRODUÇÃO
A polarização sempre existiu como expressão natural dos conflitos humanos – sejam eles ideológicos, religiosos ou morais. No entanto, a partir das primeiras décadas do século XXI, o que antes se limitava ao campo das ideias e das divergências racionais começou a migrar para o terreno das emoções.
O que era debate transformou-se em antagonismo; o que era diferença tornou-se ameaça. Essa transição marca o nascimento de uma nova era sociopsicológica: a da polarização afetiva, um fenômeno que desestabiliza os vínculos sociais, fragmenta a percepção da realidade e corrói o tecido emocional coletivo.
Até meados de 2010, a polarização ainda mantinha um caráter predominantemente político e discursivo. As redes sociais, em sua fase inicial, funcionavam como espaços de expressão, e não como instrumentos de manipulação emocional em larga escala.
Mas, a partir de 2015, com a universalização dos smartphones e o avanço dos algoritmos de personalização, inicia-se uma transformação silenciosa: o engajamento para ser medido não mais pelo conteúdo racional, mas pela capacidade de provocar reações emocionais intensas. Ódio, medo, indignação e ironia tornaram-se as moedas mais valiosas da atenção digital.
Assim, o que era divergência política se metamorfoseou em identidade emocional, em pertencimento tribal mediados por telas.
No Brasil, o marco mais visível dessa virada ocorreu a partir de 2018, quando o debate público é inteiramente capturado pela lógica algorítmica. A campanha eleitoral daquele ano inaugurou uma nova forma de sociabilidade política: a comunicação em rede substituiu o diálogo: os grupos virtuais substituíram as praças; e as bolhas informacionais substituíram a convivência plural.
Passou a não se tratar apenas de opiniões diferentes, mas de realidades cognitivas distintas, cada grupo acreditando viver em um mundo próprio, com suas verdades, seus heróis e seus inimigos.
Esse processo coincidiu com uma mutação mais profunda: a migração da polarização social para o campo afetivo. Deixou-se de discutir ideias para passar a sentir raiva, repulsa e medo do outro. O que era um conflito de narrativas passou a ser um colapso relacional, um rompimento da empatia que sustentava o diálogo social.
Famílias se dividiram, amizades se desfizeram e a convivência passou a ser mediada por ressentimentos. O espaço público transformou-se em um campo de guerra emocional, em que a razão passou a ser substituída pela reação.
A partir desse ponto, o que antes era um fenômeno político tornou-se neurossocial. O ambiente digital passou a atuar diretamente sobre os circuitos cerebrais do afeto e da ameaça, reforçando constantemente estados de alerta, antagonismo e pertencimento identitário.
As pessoas passaram a viver dentro de um estado de permanente tensão emocional, semelhantes ao que Thomas Hobbes descreveu, séculos atrás, como a condição natural do homem é em guerra consigo mesmo, o “homem é lobo do homem”.
De 2018 até o presente, essa condição se aprofundou. A pandemia de 2020 acelerou ainda mais o isolamento físico e afetivo, confinando as interações humanas ao ambiente virtual.
A partir daí, as fronteiras entre o real e o virtual tornaram-se quase indissociáveis. O contato humano foi substituído por uma comunicação mediada por telas, muitas vezes filtrada por algoritmos que ampliam aquilo que mais desperta reação emocional.
Essa retroalimentação contínua da indignação criou o que poderíamos chamar de colapso neuroafetivo, no qual a capacidade de empatia e convivência vai sendo suprimida por circuitos de ameaças e antagonismo.
Hoje, não vivemos apenas numa sociedade polarizada, mas em uma sociedade emocionalmente fragmentada, na qual a identidade se constrói mais pela negação do outro do que pela afirmação de si.
O debate público foi substituído pela performance emocional; o pensamento, pelo impulso, o diálogo, pelo cancelamento. E é nesse ponto que a polarização deixa de ser apenas um fenômeno social e passa a ser um problema civilizatório, com implicações éticas, políticas e neurobiológicas.
Compreender essa transição, da polarização social à polarização afetiva, é essencial para entender o nosso tempo.
Pois, o que está em jogo não é apenas a saúde da democracia, mas a saúde emocional da sociedade inteira que, progressivamente, vai perdendo sua capacidade de sentir o outro, de reconhecer a alteridade e de construir pontes onde hoje há muros invisíveis, erguidos dentro do próprio cérebro.
2. O COLAPSO NEUROAFETIVO
O colapso neuroafetivo emerge como consequência direta da crescente polarização social e emocional que caracteriza a sociedade hiperconectada. Trata-se de um fenômeno em que o sistema nervoso, submetido a estímulos constantes, binários e polarizadores, perde gradualmente sua capacidade de regulação afetiva.
As redes sociais e os algoritmos, ao reforçarem respostas emocionais extremas, desestabilizam o equilíbrio entre razão e emoção, ampliando a reatividade e reduzindo a empatia e o controle dos impulsos.
O resultado é uma erosão das funções neuroafetivas, aquelas que sustentam o vínculo, escuta e compreensão mútua, conduzindo a sociedade cada vez mais a se tornar fragmentada e incapaz de sustentar relações saudáveis, seja no campo individual, familiar ou coletivo.
É importante destacar que a sociedade está começando a manifestar um segundo nível de desregulação social: não mais apenas a polarização ideológica, mas a polarização afetiva.
Polarização social é quando apenas discordamos de ideias.
Polarização afetiva é quando passamos a rejeitar o outro apenas por causa da diferença de ideias.
Ou seja, não é mais: “eu penso diferente de você”, mas é: “eu não suporto você porque pensa diferente”.
Esse deslocamento é emocional, relacional e neurobiológico.
A hiperestimulação digital e o engajamento baseado em antagonismo reforçam circuitos de ameaça, competição e tribalismo emocional. Com o tempo, vínculos sociais se fragilizam, empatias se reduz e o “diferente” passa a ser percebido, como ameaça, risco à identidade, e não como parte legítima da pluralidade humana.
O cérebro treinado apenas para reagir e não a refletir, esperar passa a considerar o outro como inimigo e não como alguém que compartilha pensamentos e opiniões diferentes.
A passagem da polarização política à polarização afetiva torna-se um fenômeno especialmente preocupante. Não estamos mais diante de divergências de ideias ou projetos de sociedade, mas de um processo em que o outro passa a ser percebido como ameaça existencial, independentemente do vínculo emocional ou familiar.
Quando membros de uma mesma família começam a ver seus próprios parentes como inimigos, não estamos apenas diante de um conflito social. Estamos diante de um indicativo claro de uma mudança neurobiológica profunda, em que circuitos cerebrais ligados à empatia, convivência e pertencimentos passaram a ser fragilizados, enquanto aqueles associados ao estado de alerta, à ameaça e ao antagonismo se fortalecem. Na verdade, isso deve nos levar a uma reflexão de que estamos diante de uma regressão à ótica hobbesiana de que o “homem é o lobo do homem”.
E isso é profundamente preocupante, pois revela uma sociedade em que o vínculo humano cede espaço ao instinto de defesa e à lógica do conflito, o que não podemos ter como o normal e não pode ser naturalizado.
O que está em curso não é somente uma disputa ideológica; é uma reconfiguração afetiva e cognitiva induzida pelo ambiente, capaz de remodelar a forma como percebemos o outro, como processamos emoções e como construímos vínculos humanos.
Quando a diferença se converte em perigo e o familiar em adversário, não estamos apenas perdendo o debate, estamos perdendo a capacidade de convivência.
Essa transformação não surge espontaneamente: ela é moldada por estímulos digitais que recompensam antagonismo, inflamam respostas emocionais e constroem bolhas de confirmação, alterando progressivamente o modo como o cérebro interpreta relações sociais.
Quando um pai passa a ver seu filho como inimigo por pensar diferente, quando irmãos passar a evitar participar do almoço de família aos domingos, isso não é política, mas é neurobiologia em colapso.
A erosão do vínculo familiar e comunitário diante da discordância revela um processo de reconfiguração cerebral no qual circuitos responsáveis por empatia, cognição social e manutenção de vínculos afetivos estão sendo gradualmente suplantados por redes neurais associadas à vigilância, ameaça e defesa identitária.
3. A SOCIEDADE HÍBRIDA COMO AGENTE MODULADOR DAS EMOÇÕES SOCIAIS
Vivemos, pela primeira vez na história, em uma sociedade híbrida: um espaço no qual o real e o virtual não apenas coexistem, mas eles se co-constroem e se retroalimentam.
A subjetividade contemporânea é formada simultaneamente pela interação humana e pela lógica algorítmica, o cérebro, como órgão adaptativo, reponde reorganizando suas conexões sinápticas para atender às demandas desse ambiente, e o que cada pessoa passa mais tempo, sua influência na formação dessa subjetividade será predominante.
Entretanto, enquanto o mundo físico ainda se estrutura por ritmos humanos, o ambiente digital opera por lógicas mecânicas, métricas e pulsos dopaminérgicos, mais próximas da engenharia do que da experiência emocional orgânica, humana.
As crianças que nasceram nessas duas últimas décadas, estão nascendo em um ambiente neuroquimicamente intoxicado de estímulos, e os adultos encontram-se submetidos a mecanismos contínuos de reforço comportamental.
Resultado: uma subjetividade moldada para reagir, não para compreender; para pertencer a grupos homogêneos, não para dialogar com a diferença; para buscar validação, não para construir vínculo. No caso das crianças, o mundo digital prepara neurologicamente não para a atenção sustentada, a espera, a pausa, mas para a fragmentação, impulsividade e de querer tudo rápido e sem a frustração e o tédio criativo.
No caso da polarização afetiva, não é um problema isolado nem um “excesso de opinião”. É a expressão social de um cérebro sobrecarregado, que passou a ser mal regulado e mal treinado para antagonismo e desconexão.
Sim embargo, a convivência humana sempre dependeu da pausa, do intervalo emocional que permite ao cérebro avaliar, interpretar, regular e elaborar respostas. Esse intervalo, de acordo com Roberto Lent2, que é mediado pelo córtex pré-frontal é o espaço da civilidade, escuta, compreensão, ética e elaboração simbólica.
Entretanto, a lógica do mundo virtual, que se tornou onipresente pelas telas, está deixando a pausa e o intervalo psíquico em erosão. O ritmo algorítmico acelera a experiência emocional e comprime o tempo mental necessário à reflexão. Isso é um colapso para o desenvolvimento adequado e equilibrado das emoções.
Como afirma Byung-Chul Han3, vivemos sob o regime da “aceleração psíquica” e da “imunidade emocional reduzida”, onde a velocidade corrói a profundidade da experiência humana.
É importante que tenhamos em conta que a aceleração tecnológica não apenas nos apressa, mas ela também nos remodela neurobiologicamente.
Assim, menos pausa significa menos elaboração, já que, menos elaboração resulta em maior impulsividade, reatividade e ruptura afetiva, condição propícia para a polarização emocional e identitária, e é isso que estamos vivendo no atual cenário da sociedade híbrida, segundo Nilton Cunha4.
A lógica algorítmica, emocionalmente, desorganiza o sentir humano sob a métrica da previsibilidade e da reação imediata. O que antes brotava da experiência viva agora é moldado por códigos que antecipam desejos e calibram afetos.
Assim, o coração passou a pulsar no ritmo dos algoritmos, e já não sabemos se o que sentimos é nosso, é natural ou é programado.
4. EROSÃO DA EMPATIA E ENCURTAMENTO DA DISTÂNCIA EMOCIONAL
A empatia é sustentada por circuitos fronto-límbicos e pelos neurônios-espelho, e requer convivência, ambiguidade e observação humana real5.
Mas o ambiente híbrido e algorítmico, ao privilegiar estímulos rápidos e respostas emocionais reativas, atrofia gradualmente o exercício empático.
Turkle6 denomina esse fenômeno de “solidão conectada”: relações tecnicamente próximas, mas emocionalmente fragilizadas. Bauman complementa ao afirmar que vínculos rápidos tendem à fragilidade emocional e ao descarte afetivo7.
Nesse cenário, a empatia não desaparece, ela perde musculatura neural por desuso, como argumenta Cunha8.
“Um cérebro que não treina vínculos perde vínculos”.
No ambiente analógico, ideias eram posições; no digital, tornam-se identidade. McLuhan9 já previa que o meio reorganizaria a percepção e criaria novos formatos de relação. Segundo Byung-Chul Han, hoje, o algoritmo amplifica essa fusão, em que, discordar não ameaça apenas opiniões, mas pertencimento emocional e identidade social10.
No entanto, quando o pensamento se funde ao pertencimento digital, discordar deixa de ser argumento e vira expulsão afetiva.
Esse deslocamento inaugura o terreno da polarização afetiva, onde o afeto é instrumentalizado pela lógica do conflito e da validação tribal.
De acordo com o neurocientista António Damásio11, a capacidade de convivência com a diferença é um marcador de maturidade social e neurobiológica. Quando a hiperrestimulação digital fragiliza circuitos de empatia, autocontrole e negociação social, produzimos uma sociedade emocionalmente inflamável e cognitivamente binária.
Como descreve Cunha12: “A crise da convivência não é moral é sináptica”.
As interações digitais, filtradas por bolhas de afinidades e recompensas imediatas, reduzem a empatia e respostas automáticas.
A capacidade de sentir com o outro, que exige tempo, presença e escuta, é substituída por reações impulsivas e binárias, o “curtir” ou “câncelar”, o “estar junto” ou “bloquear”.
Esse encurtamento da distância emocional, onde tudo é vivido em intensidade e superficialidade ao mesmo tempo, dissolve os espaços de reflexão e diálogo. O outro deixa de ser um sujeito com história e complexidade, tornando-se apenas um ponto de vista a ser validade ou combatido.
Assim, o que se instala é um processo crescente de polarização afetiva, no qual os laços sociais se rompem não por divergências racionais, mas por um colapso da sensibilidade compartilhada.
O cérebro exposto continuamente onde o outro deixa de ser percebido como presença real. As sinapses responsáveis pela leitura das expressões, pela compreensão emocional e pela tolerância à frustração deixam de ser suficientemente ativadas.
Em seu lugar, predominam os circuitos ligados à resposta imediata, ao prazer instantâneo e à autoproteção emocional.
Com o tempo, essa reorganização sináptica forma um sujeito mais reativo e menos reflexivo, que interpreta o mundo sob a ótica da confirmação e do confronto. A empatia exige pausa, exige demora, e é justamente a demora que o ambiente digital elimina.
Assim, o laço social perde espessura e a emoção coletiva se fragmenta, gerando uma sociedade em que as pessoas se tornam cada vez mais incapazes de sustentar a diferença sem transformá-la em hostilidade.
Essa transformação atinge de modo ainda mais grave as novas gerações, cuja formação afetiva e cognitiva ocorre dentro desse ambiente híbrido.
As crianças aprendem desde cedo a reagir antes de sentir, julgar antes de compreender. Crescem com uma percepção truncada da alteridade, que é o estado ou qualidade que se constitui através de relações de contraste e com uma afetividade moldada pela lógica binária das telas, o “gosto” ou “não gosto”, o “sigo” ou “bloqueio”.
Assim, a polarização afetiva não é um fenômeno social isolado, mas o reflexo de uma mudança profunda na arquitetura emocional e cerebral da sociedade contemporânea.
Se prestarmos a atenção necessária. Então, observaremos de forma clara o poder dos algoritmos: nos adultos, silenciosamente, domina comportamentos e emoções: nas crianças, agem de forma mais grave, pois molda o próprio alicerce de suas conexões neuronais e, altera a forma como aprenderão a sentir, pensar e a se relacionar com o mundo.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Chegamos a um ponto em que a polarização deixou de ser um sintoma social e passou a ser um sinal clínico da nossa condição emocional coletiva.
O que antes se restringia ao campo das ideias, onde a discordância era parte da construção em um abismo afetivo, onde a diferença não apenas incomoda, mas ameaça.
Deixamos de divergir para passar a rejeitar. E quando uma sociedade começa a rejeitar o outro apenas por pensar diferente, ela começa a rejeitar também a própria humanidade que a sustenta.
Estamos atravessando um tempo em que discordar tornou-se sinônimo de romper. As conversas foram substituídas por confrontos, os debates por cancelamentos e o diálogo pela fuga. O que deveria ser um espaço de encontro, como as redes, lares, grupos de amigos, tornou-se um campo minado emocionalmente.
As rupturas não se dão apenas nas praças públicas ou nas arenas digitais, mas dentro das casas, nas mesas de jantar, nos grupos de WhatsApp que antes eram espaços de afeto e agora são zonas de tensão.
Vínculos familiares e amizades construídas ao longo de décadas se dissolvem diante da incapacidade de lidar com a diferença.
Esse processo revela algo muito mais profundo do que um conflito de opiniões: revela uma erosão emocional, um desgaste silencioso das estruturas que sustentam o pertencimento humano.
Estamos nos tronando emocionalmente frágeis para o dissenso, incapazes de suportar o desconforto da alteridade. O outro, que deveria ser o espelho que amplia nossa compreensão do mundo, passou a ser visto como ameaça, e essa inversão é devastadora.
Quando a emoção se sobrepõe à razão de forma crônica, o resultado é uma espécie de doença neuroafetiva silenciosa, que se manifesta na incapacidade de empatia, na rigidez cognitiva e na redução da escuta.
O cérebro, ao ser constantemente exposto a ambientes de tensão, medo e hostilidade, passa a reforçar os circuitos ligados à defesa e à agressividade, ao passo que enfraquece os circuitos ligados à empatia, compaixão e convivência plena.
Assim, o colapso afetivo não é apenas simbólico ou social, é também neurológico. A sociedade vai adoecendo por dentro, e o sintoma mais visível é a perda da capacidade de se colocar no lugar do outro.
É preciso, portanto, uma pausa. Uma pausa coletiva para compreender que o problema não está apenas nas diferenças, mas na forma como aprendemos a reagir à elas.
A convivência humana sempre foi construída sobre tensões, mas o que nos diferenciava de estados primitivos era justamente a capacidade de transformar o conflito em aprendizado, a divergência em diálogo, o contraste em harmonia. Ao perder isso, estamos regredindo emocionalmente.
Talvez esse seja o grande desafio do nosso tempo: reaprender a discordar sem se desumanizar, reaprender a ouvir sem precisar excluir. Enquanto persistirmos em tratar o outro como inimigo, estaremos alimentando o ciclo da desconfiança e da dor emocional.
Se quisermos reconstruir o tecido social, será preciso começar pela reconstrução do tecido afetivo, que hoje se encontra esgarçado. E essa reconstrução não se fará por decretos e nem por algoritmos, mas por gestos pequenos, humanos e cotidianos.
Um olhar que escuta, um silêncio que acolhe, uma palavra que não fere. São esses atos simples que podem reverter o colapso neuroafetivo em que estamos imersos.
O que está em jogo é muito mais do que a estabilidade política ou a harmonia social: é a própria saúde emocional da espécie humana. No entanto, se continuarmos permitindo que a diferença nos separe, logo não restará mais nenhum laço que nos una.
A verdadeira evolução não está em pensar igual, mas em sentir junto, mesmo quando pensamos diferente. E talvez, quando compreendemos isso, possamos começar a curar a ferida silenciosa que hoje corrói o coração da convivência humana.
A passagem da polarização social à polarização afetiva é uma dessas feridas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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TURKLE, Sherry. Reclaiming Conversation. New York: Penguin, 2016.
1 Nilton Pereira da Cunha é Professor, Pesquisador, Escritor e Coordenador Educacional do Instituto Nacional de Evolução Humana. Graduado e Pós-graduação Lato e Stricto Sensu na área da Educação, também graduado e pós-graduado em Direito, com artigos e livros publicados em português e castelhano em vários países: Brasil, Argentina e Colômbia, tais como: O autismo e a interação social: Como desenvolver uma criança saudável na Era Digital; El autismo y la interacción social: como desarrollar una crianza saludable en la Era Digital; Educação, Família e Geração Digital: os desafios e perspectivas da pós-modernidade. @nilton.cunha.900. WhatsApp: +54 11 4989-3292.
2 LENT, Roberto. Cem bilhões de neurônios. São Paulo: Atheneu, 2019.
3 HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2021.
4 CUNHA, Nilton Pereira da. Da sociedade analógica à sociedade híbrida: seus ecossistemas e o impacto no desenvolvimento infantil. Disponível em: https://revistatopicos.com.br/artigos/da-sociedade-analogica-a-sociedade-hibrida-seus-ecossistemas-e-o-impacto-no-desenvolvimento-infantil. Consultado em: 01/11/2025.
5 RIZZOLATTI, Giacomo; SINIGAGLIA, Corrado. The Mirror Mechanism. Oxford: Oxford University Press, 2016.
6 TURKLE, Sherry. Reclaiming Conversation. New York: Penguin, 2016.
7 BAUMAN, Retrotopia. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
8 CUNHA, Nilton Pereira da. As emoções e o desenvolvimento infantil na sociedade híbrida. Disponível em: https://revistatopicos.com.br/artigos/as-emocoes-e-o-desenvolvimento-infantil-na-sociedade-hibrida. Consultado em: 01/11/2025.
9 McLUHAN, Marshall. A mensagem é o meio. A extensão do homem. São Paulo: Ubu, 2018.
10 HAN, Byung-Chul. Idem. 2021.
11 DAMÁSIO, António. Sentir e saber: a construção do espírito humano. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
12 CUNHA, Nilton Pereira da. A sociedade híbrida: e suas implicações no desenvolvimento infantil. Disponível em: https://revistatopicos.com.br/artigos/a-sociedade-hibrida-e-suas-implicacoes-no-desenvolvimento-infantil. Consultado em: 01/11/2025.