A FRAGILIDADE CONTEMPORÂNEA DOS VÍNDUCLOS NAS CRIANÇAS: A EMERSÃO DA CRISE EMOCIONAL DA INFÂNCIA
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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.17254521
Nilton Pereira da Cunha1
RESUMO
O respectivo artigo, analisa como as transformações culturais, sociais e tecnológicas têm impactado o desenvolvimento infantil. Em substituição, discute-se a fragilidade das relações na infância na contemporaneidade, marcada pela substituição das interações presenciais por estímulos digitais. Essa mudança enfraquece laços afetivos essenciais e compromete a construção de vínculos sólidos. A seguir, aborda-se a transformação geracional da infância, ressaltando que, nas últimas décadas, a experiência de ser criança mudou radicalmente: antes centrada no convívio direto, hoje é mediada por telas e conectividade constante. Outro ponto centra são os impactos neurológicos da infância desconectada do real, em que a ausência de experiências concretas fragiliza processo como a poda neural, a neuroplasticidade e o equilíbrio dopaminérgico, comprometendo linguagem, cognição, controle emocional e interação social. Por fim, o texto relaciona a dimensão individual ao coletivo e da crise individual à crise social: o reflexo da infância e da pré-adolescência na coletividade, evidenciando que fragilidades emocionais precoces reverberam em aumento da violência, dificuldades escolares e sobrecarga dos sistemas de saúde e educação. O artigo conclui que compreender e enfrentar essa crise é urgente para assegurar o desenvolvimento humano integral.
Palavras-chave: Fragilidade. Crianças. Pré-adolescência. Desenvolvimento Infantil. Crise individual. Crise Social.
ABSTRACT
The article analyzes how cultural, social, and technological transformations have impacted child development. Instead, it discusses the fragility of childhood relationships in contemporary times, marked by the replacement of in-person interactions with digital stimuli. This shift weakens essential emotional bonds and compromises the development of strong relationships. Next, it addresses the generational transformation of childhood, highlighting that, in recent decades, the experience of being a child has changed radically: previously centered on direct interaction, it is now mediated by screens and constant connectivity. Another central point is the neurological impacts of a childhood disconnected from reality, in which the lack of concrete experiences weakens processes such as neural pruning, neuroplasticity, and dopaminergic balance, compromising language, cognition, emotional control, and social interaction. Finally, the text links the individual dimension to the collective dimension and the individual crisis to the social crisis: the impact of childhood and pre-adolescence on the collective, highlighting that early emotional fragility reverberates in increased violence, school difficulties, and overloaded health and education systems. The article concludes that understanding and addressing this crisis is urgent to ensure integral human development.
Keywords: Fragility. Children. Pre-adolescence. Child development. Individual crisis. Social crisis.
1. INTRODUÇÃO
A infância, historicamente, sempre foi um espaço de construção de vínculos, aprendizagem sociais e desenvolvimento afetivo. No entanto o século XXI trouxe uma mudança abrupta nesse processo: a fragmentação das relações interpessoais tornou-se um dos sinais mais visíveis da crise contemporânea da infância.
Essa crise não se manifesta apenas no campo educacional, mas atravessa a família, saúde mental, socialização com pares, consequentemente, da formação moral, do neurodesenvolvimento e da própria formação da identidade.
Um dos fatores centrais dessa fragilidade é a substituição das relações presenciais e mediadas pelo afeto por interações digitais e rápidas, frequentemente reguladas pela lógica da dopamina e da atenção fragmentada.
As crianças são expostas precocemente a telas que, embora ofereçam estímulos intensos não oferecem a complexidade necessária para o desenvolvimento da empatia, negociação de regras, tolerância à frustração, espera e da alteridade.
Ao invés de construir laços consistentes, a criança aprende a viver sob um regime de gratificação imediata, fragilizando a capacidade de sustentar vínculos duradouros.
Esse processo tem levado a um crescente aumento de problemas de aprendizagem, de dificuldade e desenvolver empatia e enfraquecimento os vínculos no clã familiar, inclusive, com violência e crueldade.
Quando essas crianças chegam à pré-adolescência, diante das primeiras frustrações, não encontram recursos emocionais para lidar com elas. Em muitos casos, acabam direcionando sua impulsividade contra aqueles que deveriam ser a base de proteção e pertencimento – os próprios pais, irmãos e avós.
Trata-se de um fenômeno novo, que se distancia da lógica tradicional da delinquência juvenil, pois não se volta prioritariamente contra a sociedade em geral ou contra a autoridade pública, mas contra o núcleo íntimo e sagrado da vida familiar.
É uma ruptura profunda, tanto pela idade precoce em que ocorre quanto pela natureza das vítimas: o próprio clã que deveria ser sustentáculo de afeto, segurança e identidade
Diante desse contexto, é importante destacar que a crise contemporânea da infância, portanto, não é apenas psicológica, mas também social e cultural. A escola se vê diante de crianças com maiores dificuldades de atenção, de convivência e de regulação emocional; as famílias enfrentam um desafio inédito em impor limites e oferecer vínculos seguros; e o poder público precisa responder a uma geração que cresce com menos resiliência emocional e maior vulnerabilidade psíquica.
Superar essa fragilidade exige um movimento coletivo de reconstrução da infância, que vá além do discurso e envolva práticas concretas: limitar o uso precoce de dispositivos digitais, reforça o espaço do brincar, valorizar os vínculos familiares e comunitários, e resgatar a noção de infância como tempo de preparação, cuidado e amadurecimento. Para podermos mitigar a crise infantil, diante do deslocamento da delinquência tradicional para um fenômeno intrafamiliar inédito, com base na geração Alpha (2010-2024) e que pode se agravar ainda mais na geração Beta (2025-?).
Se a sociedade falhar nessa tarefa, corremos o risco de consolidar uma geração incapaz de sustentar relações profundas, perpetuando uma crise que ameaça não apenas as crianças, mas o próprio futuro humano.
2. A FRAGILIDADE DAS RELAÇÕES NA INFÂNCIA NA CONTEMPORANEIDADE
Segundo autores, entre esse Nilton Pereira da Cunha, enfatizam que a crise contemporânea da infância não pode ser entendida apenas com um fenômeno comportamental, mas como um processo estrutural de fragilização dos vínculos em uma sociedade marcada pela lógica da distração infinita.
Segundo Nilton Cunha2, a criança, ao invés de construir laços consistentes, passa a ser moldada por um regime de gratificação imediata, o que compromete sua capacidade de sustentar vínculos duradouros. Essa mudança estrutural é diretamente associada à imersão precoce em dispositivos digitais, que colonizam a atenção e reconfiguram a arquitetura da infância.
De acordo com o autor, quando a criança é exposta desde cedo a estímulos digitais constantes, a dopamina é acionada de maneira semelhante ao efeito de drogas – o que a ensina a viver no imediatismo e no consumo emocional instantâneo.
Esse processo impede a vivência da espera, do limite e da frustração, elementos fundamentais para o amadurecimento psíquico e social. Como consequência, há um déficit na capacidade de lidar com relações humanas reais, que exigem negociação, paciência e empatia.
Maryanne Wolf3, em seus estudos sobre leitura e atenção, aponta que o cérebro humano é plástico e se molda de acordo com os estímulos recebidos. Essa constatação reforça a tese de Cunha: se a infância é colonizada pela ótica digital, haverá um reordenamento das conexões neurais que privilegiam o rápido, o fragmentado e o superficial, em detrimento da profundidade e da construção de vínculos.
Aric Sigman4 também alerta que a exposição precoce às telas está diretamente associada a dificuldades de atenção, aprendizagem e socialização, colocando em risco o próprio desenvolvimento da empatia.
O impacto desse processo torna-se ainda mais grave quando observamos a transformação do núcleo familiar. Nilton Cunha5 defende que a família, tradicionalmente o primeiro espaço de socialização e transmissão de valores, encontra-se enfraquecida diante da intermediação tecnológica.
Antes, quando as famílias eram maiores, a criança aprendia a negociar não apenas as familiar eram maiores, a criança aprendia a negociar não apenas com os pais – ouvindo o “não” e lidando com regras e limites –, mas também com os irmãos, em constantes disputas que ensinavam a compartilhar, esperar e ceder.
A grande “prova de fogo” vinha das ruas, onde, junto aos pares, a criança se deparava com desafios sociais mais amplo, enfrentando frustrações, diferenças e conflitos que a preparavam para a vida adulta.
Hoje, contudo, esse ciclo de socialização está se perdendo: em vez de lidar com o real, a criança se refugia no universo digital, onde tudo é imediato, personalizável e sem resistência, minando a função socializadora da família e enfraquecendo a construção de vínculos consistentes.
O resultado desse quadro é uma geração que apresenta dificuldades crescentes em lidar com frustrações e vínculos. Cunha observa que, ao ingressarem na pré-adolescência, muitos jovens, diante das primeiras tensões relacionais, optam por eliminarem o conflito antes de sustenta-lo, seja através de um delete, no mundo virtual, seja pelo afastamento abrupto, inclusive com manifestações agressivas.
Essa lógica tem se refletido também em ambientes escolares e sociais, com aumento de episódios de violência, intolerância e rupturas emocionais precoces.
Byung-Chul Han6, ao tratar da sociedade do desempenho, mostra que a pressão por gratificação imediata e pela ausência de limites gera sujeitos fragilizados emocionalmente, incapazes de lidar com o peso da alteridade.
Ao dialogar com esse pensamento, Nilton Cunha amplia a análise para a infância, defendendo que a colonização digital não apenas acelera esse processo, mas o antecipa, produzindo infâncias exaustas, mas carentes de vínculos consistentes.
Portanto, o que se vive hoje não é apenas uma dificuldade pontual de aprendizagem ou um conjunto de sintomas clínicos diagnosticáveis: é uma crise estrutural da infância.
Como destaca Cunha: “Ela não pode ser reduzida a um problema educacional ou médico, pois envolve dimensões sociais, ao dissolver os vínculos comunitários e familiares; políticas, ao desafiar o poder público a formular respostas preventivas e regulatórias: culturais, ao transformar os modos de relação, linguagem e construção de sentido; e neurológicas, ao interferir diretamente nos processos de poda sináptica, neuroplasticidade e desenvolvimento do córtex pré-frontal7”.
Trata-se, portanto, de um fenômeno multidimensional, que redefine não apenas a infância, mas o próprio futuro da sociedade, exigindo respostas urgentes, integradas e de longo alcance, é uma verdadeira mutação antropológica, que afeta não só a infância mais todas as faixas etárias e cada uma de uma forma diferente, com impactos mais profundos na primeira infância.
3. A TRANSFORMAÇÃO GERACIONAL DA INFÂNCIA
Inicialmente, poderemos compreender a mutação antropológica mediante a transformação geracional da infância: olhar para as diferenças entre gerações não é apenas um exercício demográfico, é uma chave hermenêutica para ler como se reconfiguraram os modos de sentir, vincular-se a prender desde o final do século XX até hoje.
Cada geração carrega um sistema simbólico e prático de socialização – espaços, ritmos, tecnologias, modelos parentais formas de trabalho e de educação – e é essa trama entre o corpo, o ambiente e as instituições que modela as capacidades afetivas e cognitivas das crianças.
A crise que hoje chamamos de “fragilidade dos vínculos” só se torna inteligível quando a colocamos em diálogo com essa sucessão histórica de transformações: não se trata de um colapso repentino, mas de um processo acumulativo que desloca os pontos de ancoragem da infância.
Na infância das gerações anteriores – pensemos naquelas que hoje são adultas maduras, nascidas entre as décadas de 1965 e 1979 (geração X) – prevaleciam arquiteturas sociais que favoreciam vínculos encarnados e multissituados: famílias maiores ou mais próximas, vizinhanças com vida própria, brincadeiras de rua, encontros intergeracionais e formas de disciplina mais ritualizadas.
Essas práticas ofereciam redundância afetiva: a criança aprendida a negociar o “não”, a construir reciprocidade, a testar limites em múltiplos contextos (irmãos, primos, escola, rua). O aprendizado emocional ocorria como um tecido – lento, poroso, repetido – e as redes de cuidado eram, ainda que imperfeitas, difusas e resilientes.
A geração Y, também chamada de millenials, inaugura uma transição radical na experiência da infância. Nascidos entre o início da década de 1980 até 1994m viveram uma infância que ainda guardava resquícios da experiência analógica – brincadeiras na rua, interações presenciais, convívio escolar menos mediado por dispositivos –, mas já marcada pela entrada da informática doméstica, dos videogames e dos primeiros contatos com a internet discadas.
Se a geração X conheceu a infância como território essencialmente comunitário e presencial, a geração Y experimentou a transição: uma infância ainda socializada por laços diretos, mas uma adolescência já seduzida pelas primeiras redes digitais.
Essa duplicidade deu a essa geração a possibilidade de comparar mundos: ainda sabem o que é o silêncio da casa sem celular, mas já entraram, no início da vida adulta, na avalanche das redes sociais.
Com a geração Z (1995-2009), a balança se desequilibra definitivamente. A infância e a adolescência passam a ser marcadas pela polarização dos celulares, pela onipresença da internet de banda larga e, sobretudo, pelo advento das redes sociais como principal espaço que a lógica da “economia da atenção” se consolida: as interações deixam de depender apenas da presença física e passam a ser orientadas por algoritmos que premiam engajamento rápido, fragmentado e emocionalmente intenso.
Os jovens da geração Z já não experimentaram plenamente o “antes”, cresceram em um ambiente em que as telas começaram a disputar com vigor o papel que antes era exclusivo das famílias, das escolas e das comunidades locais.
Como consequência, observamos já no fim da adolescência, observamos já no fim da adolescência dificuldades maiores na manutenção da atenção, aumento da ansiedade social, mais conflitos ligados à autoimagem e à comparação constante, além do início de quadros de isolamento.
A geração Alpha, nascida a partir de 2010 até 2024, leva essa transição ao extremo. Essa é a primeira geração a nascer em um mundo em que o dispositivo digital não é novidade, mas condição básica de existência.
São crianças cujas interações, desde os primeiros meses de vida, foram mediadas pro telas, aplicativos, plataformas de vídeo e jogos interativos. Muitos conheceram o contato com celulares e tablets antes mesmo de falar ou andar.
O brincar tradicional foi substituído pelo brincar digital; a conversa com familiares, por estímulos audiovisuais infinitos; e a construção da paciência e da espera, por gratificações imediatas proporcionadas pelo toque na tela.
Em 2025, os primeiros representantes da geração Beta estão apenas iniciando a adolescência, mas já observamos fenômenos que não eram comuns nas gerações anteriores: explosões de impulsividade, dificuldades acentuadas no controle emocional, baixa resiliência frente às frustrações e, em alguns casos, desinteresse profundo por interações humanas que não sejam mediadas por tecnologias.
Do ponto de vista neurológico, as atitudes de agressividade de adolescentes da geração Alpha, são sinais que não surpreendem. O córtex pré-frontal – responsável pela tomada de decisão, planejamento, empatia e controle dos impulsos – se desenvolve lentamente, a partir de experiências relacionais ricas, que exigem espera, negociação e contato humano direto.
Uma infância moldada quase exclusivamente por estímulos digitais, que oferecem gratificação imediata e previsível, compromete a construção dessas funções. Não poderemos esperar, portanto, que adolescentes da geração Alpha apresentem, em sua totalidade, um desenvolvimento robusto do córtex pré-frontal, como se fosse imune ao ambiente em que se formou.
O que está em jogo não é apenas comportamento, mas estrutura: um cérebro treinado por estímulos repetitivos, rápidos e individualizados desenvolve circuitos de recompensa diferentes daquele que é treinado por vínculos reais, frustrações e experiências presenciais.
Se o cenário a geração Alpha já preocupa, pelo que já estamos vendo, a geração Beta – recém-nascidos de 2025 em diante – aponta para um horizonte ainda mais desafiador. Esses bebês estão chegando a um mundo em que a inteligência artificial já se tornou parte do cotidiano das famílias, da escola e até do lazer doméstico.
A mediação tecnológica não será apenas ocasional, mas estrutural: assistentes digitais, brinquedos conectados, sistemas educativos baseados em logaritmos, além de pais e cuidadores cada vez mais absorvidos por suas próprias telas.
Se nenhuma mudança for feita, a infância Beta corre o risco de nascer sem o território humano do vínculo sólido, mergulhada desde os primeiros meses em uma sociabilidade intermediada por máquinas.
É nesse ponto que podemos compreender a mutação antropológica em curso. A infância deixou de ser apenas uma etapa biológica, previsível em suas estruturas, e passou a ser um campo moldado intensamente pelos estímulos ambientais e tecnológicos.
Cada geração recente recebeu uma dose maior de mediação digital, reduzindo progressivamente os espaços de convivência face a face, a diversidade de estímulos sensoriais e a riqueza das frustrações reais que forjam a resiliência.
Da geração Y à Alpha, e agora projetando a Beta, vemos não apenas mudanças culturais, mas alterações neurológicas e afetivas profundas.
Se a plasticidade cerebral permite esperança, o alerta não pode ser ignorado: quando mais cedo o cérebro infantil for colonizado por estímulos artificiais, mais difícil será recuperar a densidade relacional perdida.
A geração Alpha já nos mostra os primeiros sinais dessa transformação; a geração Beta poderá consolidar uma infância em que vínculos sólidos, empatia, autocontrole e toma de decisão não sejam mais a regra, mas a exceção.
Os casos estarrecedores, mais recentes, envolvendo adolescentes da geração Alpha – com explosões de violência, crises emocionais abruptas e dificuldades graves de convivência social – já estão chocando famílias, escolas e a sociedade em geral.
Contudo, é preciso compreender que o que estamos testemunhando pode ser apenas um prenúncio: a geração Beta, que agora ainda está em seus primeiros meses de vida, poderá manifestar fenômenos ainda mais intensos e em um quantitativo muito maior se não assumirmos desde já uma postura preventiva.
Isso implica compreender que se trata de um processo neurobiológico e social em curso, que exige atuação antes mesmo do nascimento, com pais mais conscientes e mães ainda no período gestacional, de modo a reduzir a exposição precoce e excessiva às telas e fortalecer práticas relacionais desde a primeira infância.
Se não cuidarmos preventivamente, corremos o risco de não conseguirmos oferecer às crianças da geração Beta um desenvolvimento equilibrado da parte social do cérebro, condição indispensável para o bom convívio humano, para a empatia e para a construção de uma sociedade minimamente ajustada e saudável.
4. OS IMPACTOS NEUROLÓGICOS DA INFÂNCIA DESCONECTADA DO REAL
O desenvolvimento cerebral da criança ocorre em um contexto de intensa plasticidade, em que experiências concretas desempenham papel fundamental na formação da arquitetura neural.
Durante os primeiros anos de vida, o cérebro humano produz um excesso de conexões sinápticas, que posteriormente passam pro um processo seletivo conhecido como poda neural.
Essa etapa é essencial para a eficiência do sistema nervoso, pois elimina conexões pouco utilizadas e fortalece aquelas que são reiteradamente ativadas por experiências significativas8.
Em outras palavras, aquilo que não é vivido, sentido ou experimentado no plano real corre o risco de ser eliminado, comprometendo funções cognitivas, emocionais e sociais futuras.
A infância marcada pela imersão precoce em dispositivos digitais reduz o espaço para vivências encarnadas – como o brincar criativo, o contato físico, as negociações no seio familiar, o olhar atento e a experiência da frustração.
Como observa Damásio9, a formação do eu e das emoções é inseparável da experiência corpórea e relacional. Quando a criança se vê privada desses encontros, as sinapses responsáveis pela empatia, pela autorregulação e pela construção de vínculos afetivos deixam de ser suficientemente estimulados, tornando-se alvos prováveis da poda neural.
Outro ponto crítico está no sistema dopaminérgico. O contato repetitivo com telas, sobretudo em conteúdos rápidos e fragmentados, ativa mecanismos de gratificação instantânea que geram descargas elevadas de dopamina10. Essa lógica de recompensa imediata contrasta com os processos naturais é liberada de modo gradual diante de conquistas, interações ou superações de desafios.
Segundo Haidt11, essa discrepância cria cérebros treinados para a dependência emocional do estímulo fácil, enfraquecendo a capacidade de lidar com frustrações e de investir em laços de longo prazo.
O vínculo humano, ao contrário da tela, exige paciência, tolerância e reciprocidade – habilidades que se desenvolvem justamente no enfrentamento das pequenas frustrações do cotidiano.
A neuroplasticidade, conceito que expressa a capacidade do cérebro de se moldar de acordo com as experiências, é aqui central. Como argumenta Pascual-Leone12, a plasticidade é tanto uma oportunidade quanto um risco; os circuitos reforçados pelas experiências tendem a se consolidar, enquanto os negligenciados se enfraquecem.
Nesse sentido, a infância hiperconectada, mas pobre em interações reais, gera uma plasticidade distorcida, em que se fortalecem redes ligadas à dispersão e ao imediatismo, em detrimento das redes voltadas à atenção sustentada, à memória afetiva e à empatia.
Han13 já advertia que a sociedade da aceleração e da positividade radical cria sujeitos incapazes de suportar o tédio e a negatividade, aspectos indispensáveis para a formação do caráter e da profundidade relacional.
Portanto, a infância desconectada do real não constitui apenas uma questão comportamental, mas uma verdadeira crise neurológica. O cérebro infantil, privado de experiências de alteridade e de convivências de alteridade e de convivência densa, cresce fragilizado em suas bases afetiva.
O resultado é uma geração que encontra dificuldade em sustentar vínculos sólidos, justamente porque sua arquitetura cerebral foi moldada pela volatilidade e pelo excesso de gratificação imediata.
Como sintetiza Nilton Cunha: “A ausência de experiências presenciais sólidas deixa marcas profundas na construção do cérebro infantil, comprometendo a capacidade de formar vínculos consistente e de lidar com os limites impostos pela realidade14”.
Se, no passado, a infância se estruturava no seio das famílias numerosas, na convivência com irmãos, vizinhos e amigos, hoje assistimos a um isolamento mediado por telas que redefine a própria gramática dos laços humanos.
Não se trata apenas de uma mudança cultural ou educativa, mas de uma mutação neurológica silenciosa, que ameaça a capacidade das futuras gerações de sustentar comunidades coesas, baseadas em vínculos duradouros.
Reconhecer a gravidade desse fenômeno é o primeiro passo para promover políticas preventivas que restituam à infância seu direito ao real, ao corpo e ao encontro.
5. DA CRISE INDIVIDUAL À CRISE SOCIAL: O REFLEXO DA INFÂNCIA E DA PRÉ-ADOLESCÊNCIA NA COLETIVIDADE
Quando os vínculos afetivos, cognitivos e sociais das crianças e pré-adolescentes são fragilizados, o impacto reverbera em toda a coletividade, transformando-se em um fenômeno estrutural.
Erik Eriksom15, ao analisar os estágios psicossociais do desenvolvimento, já advertia que as fragilidades não resolvidas nas primeiras fases da vida se acumulam e se manifestam em dificuldades de confiança, autonomia e identidade.
O que se vive hoje é a materialização desse alerta em larga escala, uma vez que a infância desconectada do real compromete a base psíquica sobre a qual se ergue a vida comunitária.
O isolamento digital e a carência de experiência presenciais sólidas corroem a capacidade de cooperação, negociação e empatia. Como firma Bronfenbrenner16, o desenvolvimento humano é inseparável do contexto ecológico das relações interpessoais quando esse contexto se empobrece, a própria tessitura social se enfraquece.
Nesse sentido, o enfraquecimento dos vínculos primários – família, escola, vizinhança – resulta em um tecido social mais vulnerável a rupturas e conflitos.
Zygmunt Bauman17 descreve nossa época como uma “modernidade líquida”, marcada pro relações frágeis e descartáveis. Essa fluidez, quando transplantada para a infância, significa que meninos e meninas crescem sem aprender a sustentar a permanência e a continuidade nos vínculos, replicando na sociedade adulta uma lógica de vínculos efêmeros.
O resultado é um coletivo onde prevalece a desconfiança, incapacidade de projetar o futuro e a erosão da solidariedade.
O reflexo da crise da infância na esfera pública também pode ser analisado pela ótica de Émile Durkeheim18, que já identificava a anomia como um dos maiores perigos sociais: a perda de referências coletivas leva a um estado de desorientação moral e emocional.
Quando a infância é marcada pela ausência de limites claros, pela dependência da gratificação imediata e pela fragilidade da experiência comunitária, a sociedade futura tende a apresentar índices mais elevados de violência, isolamento e doenças mentais.
Guy Debord19, em A sociedade do espetáculo, apontava que, quando a mediação das telas substitui a experiência direta do mundo, a realidade torna-se fragmentada e espetacularizada.
Essa lógica, aplicada à formulação de crianças e adolescentes, produz indivíduos treinados e reagir a estímulos visuais e imediatos, mas com baixa tolerância à espera, ao esforço e à alteridade. Tal padrão não permanece no plano íntimo: ele se projeta nas instituições, na política e na cultura, gerando uma coletividade mais instável e suscetível a manipulação.
Assim, a crise da infância é também a crise da cidadania. O que se fragiliza no seio familiar e escolar reaparece no espaço público sob a forma de desagregação social, polarização e adoecimento coletivo.
Como observa Cornelius Castoriadis20, a sociedade é constantemente recriada pela imaginação de seus indivíduos: quando essa imaginação está empobrecida, colonizada pela lógica do consumo e da tela, a própria capacidade de reinventar instituições e significados coletivos fica comprometida.
Portanto, compreender o drama da infância e da pré-adolescência atuais não é apenas uma tarefa de pais ou educadores, mas um desafio político, social e civilizatório.
Cada criança que cresce privada de vínculos sólidos e de experiências concretas representa, no futuro, um elo fragilizado da cadeia comunitária. É nesse ponto que a crise individual se converte inevitavelmente em crise social.
6. CONCLUSÕES FINAIS
A fragilidade contemporânea dos vínculos nas crianças revela-se como um dos maiores desafios da sociedade híbrida em que vivemos. Ao mesmo tempo em que a infância deveria ser um período marcado por segurança afetiva, experimentação simbólica e convivência formadora, observa-se que ela tem sido atravessada pela lógica da gratificação imediata, pela redução das interações presenciais e pelo predomínio de estímulos digitais que moldam o cérebro em fases críticas do desenvolvimento.
Essa nova configuração impacta diretamente a capacidade de sustentar laços consistentes, desenvolver empatia, elaborar frustrações e construir uma identidade sólida diante do mundo.
Não se trata, portanto, apenas de um problema individual ou familiar, mas de uma questão estrutural que envolve a educação, saúde mental e o futuro da própria vida social.
Crianças que crescem sem vínculos consistentes carregam marcas emocionais que se prolongam na adolescência e na vida adulta, traduzindo-se em dificuldades de aprendizagem, instabilidade emocional, maior propensão a transtornos psicológicos e redução da capacidade de convivência comunitária.
É importante destacar que a sociedade atual tende a produzir indivíduos isolados e exaustos, e essa dinâmica já se mostra presente na infância, corroendo as bases do coletivo.
Diante desse cenário, é urgente resgatar o papel insubstituível da família e da escola como núcleos formadores de vínculos. A família deve recuperar a consciência de que oferecer a espera, presença, convivência real é mais valioso para o desenvolvimento da criança do que qualquer dispositivo eletrônico ou excesso de estímulos.
A escola, por sua vez, precisa se assumir como espaço de socialização estruturante, onde a cooperação, a escuta e a construção de regras comuns substituam a lógica da dispersão e da fragmentação da atenção.
Todavia, a resposta não pode se limitar a iniciativas privadas: é indispensável que o poder público atue de forma preventiva, promovendo campanhas de conscientização, regulando a exposição precoce às telas, apoiando famílias vulneráveis e fortalecendo políticas educacionais e de saúde mental que reconheçam a infância como etapa decisiva do desenvolvimento humano.
Nesse sentido, já existem mecanismos legais importantes que sinalizam esse movimento, como a Lei nº 15.100/2025, recentemente sancionado, que regulamento a proteção de crianças e adolescentes frentes aos riscos do ambiente digital.
Essas legislações representam passos concretos na direção de uma política de precaução e prevenção diante dos impactos da sociedade digital sobre a infância.
Portanto, a crise emocional da infância é também uma crise social e civilizatória. Não se restringe ao espaço doméstico nem às dificuldades escolares, mas se projeta sobre o futuro das próximas gerações e sobre a qualidade do tecido social que sustentará a vida em comunidade.
Cuidar dos vínculos das crianças é, em última instância reconhecer que essa fase é uma fase crítica no desenvolvimento humano, onde: a capacidade de criar laços afetivos, desenvolver a parte social do cérebro, que é o córtex pré-frontal, para poder desenvolver sentimento pelo outro, se encontrar na posição do outro, ter compaixão e de construir coletivamente um mundo que ainda valha a pena ser habitado.
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1 Nilton Pereira da Cunha é Professor, Pesquisador, Escritor e Coordenador Educacional do Instituto Nacional de Evolução Humana. Graduado e Pós-graduação Lato e Stricto Sensu na área da Educação, também graduado e pós-graduado em Direito, com artigos e livros publicados em português e castelhano em vários países: Brasil, Argentina e Colômbia, tais como: O autismo e a interação social: Como desenvolver uma criança saudável na Era Digital; El autismo y la interacción social: como desarrollar una crianza saludable en la Era Digital; Educação, Família e Geração Digital: os desafios e perspectivas da pós-modernidade. @nilton.cunha.900. WhatsApp: +54 11 4989-3292.
2 CUNHA, Nilton Pereira da. A violência nas escolas: o sintoma de uma infância em crise. Consultado em: VIOLÊNCIA NAS ESCOLAS: O SINTOMA DE UMA INFÂNCIA EM CRISE. Consultado em: 22/09/2025.
3 WOLF, Maryanne, Reader, Come Home: The Reading Brain in a Digital World. New York: Harper, 2019.
4 SIGMAN, Aric. Time for a view on screen time. Archives of Disease in Childhood, v. 97, n. 11, p. 935-942, 2012.
5 CUNHA, Nilton Pereira da. Educação Infantil: a chave para infância da Lei 15.100/2025. Disponível em: EDUCAÇÃO INFANTIL: A CHAVE PARA A EFICÁCIA DA LEI 15.100/2025. Consultado em: 22/09/2025.
6 HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.
7 CUNHA, Nilton Pereira da. Violência nas escolas: o sintoma de uma infância em crise. Disponível em: VIOLÊNCIA NAS ESCOLAS: O SINTOMA DE UMA INFÂNCIA EM CRISE. Consultado em: 22/09/2025.
8 WOLF, Maryanne. O cérebro no mundo digital: os desafios da leitura na nossa era. São Paulo: Contexto, 2016.
9 DAMÁSIO, António. O erro de descartes: emoção, razão e o cérebro humano. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
10 SIGMAN, Aric. Idem, 2012.
11 HAIDT, Jonathan. The anxious Generation: how the freat rewiring of childhood is causing na epidemic of mental illness. New York: Pequin Press, 2024.
12 PASCUAL_LEONE, Alvaro. The platic human brain cortex. Annual Review of Neuroscience, v. 28, p. 377-401, 2005.
13 HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.
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