EDUCAÇÃO INFANTIL: A CHAVE PARA A EFICÁCIA DA LEI 15.100/2025
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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.16945433
Nilton Pereira da Cunha1
RESUMO
O artigo analisa a Lei 15.100/2025, que proíbe o uso de celulares nas escolas, enfatizando que sua eficácia depende diretamente da educação infantil. Argumenta-se que a primeira infância é a etapa decisiva para consolidar hábitos escolares como atenção, concentração, frustração criativa e interação social real. Nesse sentido, a educação infantil deve ser compreendida como fundação do hábito escolar, prevenindo que as crianças se tornem reféns da lógica digital antes mesmo de aprenderem a conviver e a aprender no espaço físico da escola. O texto também apresenta a noção de “tábula saturada”, evidenciando que, diferentemente da concepção clássica de Locke, “tábula rasa”, as crianças já não chegam à escola como folhas em branco, mas carregam um repertório sobrecarregado pelo uso precoce e massivo das telas. Diante disso, a escola assume papel compensatório resgatando experiências de interação humana e promovendo o equilíbrio entre o virtual e o real. O artigo defende a educação infantil como política pública estratégica, indispensável para transformar a Lei, não em um instrumento de punição, mas em um instrumento de prevenção, conscientização e fortalecimento do desenvolvimento saudável e equilibrado das novas gerações.
Palavras-chave: Educação Infantil. Lei 15.100/2025. Tábula Saturada. Tábula Rasa.
ABSTRACT
The article analyzes Law 15.100/2025, which prohibits the use of cell phones in schools, emphasizing that its effectiveness depends directly on early childhood education. It argues that early childhood is the decisive stage for solidifying school habits such as attention, concentration, creative frustration, and genuine social interaction. In this sense, early childhood education should be understood as the foundation of school habits, preventing children from becoming hostages to the digital logic before they even learn to coexist and learn in the physical space of the school. The text also introduces the notion of a "saturated slate," highlighting that, unlike Locke's classic "blank slate" conception, children no longer arrive at school as blank slates, but rather with a repertoire overloaded by early and widespread screen time. In light of this, schools take on a compensatory role by restoring experiences of human interaction and promoting a balance between the virtual and the real. The article advocates for early childhood education as a strategic public policy, essential for transforming the law not into an instrument of punishment, but into a tool for prevention, awareness, and strengthening the healthy and balanced development of new generations.
Keywords: Early Childhood Education. Law 15.100/2025. Saturated Tabula. Blank Tabula.
1 Introdução
A escola sempre foi concebida como o espaço privilegiado de encontro entre a infância em processo de expansão e o mundo estruturado do conhecimento.
Durante séculos, ela recebeu crianças que chegavam com suas experiências ainda limitadas, abertas à mediação do professor e às interações sociais que constituíam a base da aprendizagem.
A imagem da tábula rasa, proposta por John Locke no século XVII, sintetizava essa percepção: o aluno como uma página em branco, sobre a qual a experiência e a educação inscreveriam os traços da cultura, moralidade e saber.
Contudo, o cenário do século XXI deslocou radicalmente esse ponto de partida. As crianças não chegam mais à escola como tábula rasa, mas como tábula saturada. Saturada não de saberes profundos, mas de estímulos digitais fragmentados, de repertórios emocionais moldados pela gratificação instantânea e de interações sociais mediadas por algoritmos e dispositivos eletrônicos.
O que antes era um espaço de encontro com o novo, o inédito – o livro, a escrita, a convivência coletiva –, hoje precisa competir com um universo de imagens, sons e interações velozes que já colonizaram a atenção e o imaginário infantil antes mesmo do ingresso escolar.
Esse fenômeno da sobreposição do virtual sobre o real não é apenas um detalhe contemporâneo: ele redefine a função social da escola. Se antes a instituição se dedicava primordialmente a transmitir o conhecimento sistematizado, hoje ela é convocada a desempenhar um papel compensatório – reconstruindo habilidades cognitivas e socioemocionais que foram enfraquecidas pelo uso precoce e massivo das telas.
Ao professor, que antes podia iniciar sua prática pedagógica a partir de uma base relativamente homogênea de desenvolvimento, cabe agora a tarefa árdua de reorganizar a atenção, fortalecer a linguagem, cultivar a tolerância à frustração e resgatar a experiência concreta de convívio e aprendizado.
Na educação infantil e nos anos iniciais, isso significa trabalhar antes para compensar déficits do que para ensinar conteúdos formais. E nas séries posteriores, o desafio se transforma em enfrentar alunos que já não apenas convivem com as telas, mas delas dependem para estruturar sua vida social, suas formas de lazer e até mesmo sua identidade.
Nesse contexto, torna-se evidente que a escola do nosso tempo, na Educação Infantil, precisa assumir uma função estratégica: gerar desde cedo uma cultura escolar do uso das telas. Mais do que proibir ou permitir indiscriminadamente, trata-se de formar, no cotidiano pedagógico, um conjunto de práticas, reflexões e limites que ajudem a criança a compreender a tecnologia como ferramenta, e não como extensão de sua própria subjetividade.
Se essa cultura for consolidada na infância, aumentam as chances de que o adolescente chegue à juventude com maior autonomia, criticidade e cpacidade de autorregulação frente ao mundo digital.
Assim, o desafio da escola, juntamente com o poder público na atualidade corresponde: que a maioria dos educandos já chega como tábula saturada, e isso impõe ao professor o árduo trabalho de reconstruir bases cognitivas e socioemocionais antes de avançar no ensino formal. Já para as crianças que ainda estão por vir, o papel central, especialmente do poder público, é o da conscientização das famílias, para que as crianças voltem a ingressar na escola como pensava Locke, próximas da tábula rasa e não da saturação precoce gerada pelas telas.
Nesse sentido, a Lei 15.100/2025, que proíbe o uso de celulares nas escolas, não deve ser vista como medida punitiva, mas como um instrumento educativo essencial para instaurar uma cultura de uso equilibrado das telas, sobretudo pelo não uso na primeira infância, garantindo que a escola recupere seu espaço privilegiado de interação real, atenção sustentada e construção profunda do conhecimento.
2 A educação infantil como fundação do hábito escolar
A educação infantil é, historicamente, o primeiro espaço social estruturado que a criança frequenta fora do núcleo familiar. É nela que se inicia a construção daquilo que podemos chamar de hábito escolar, isto é, um conjunto de disposições, rotinas e valores que orientam a forma como a criança se relaciona com o conhecimento, com o outro e com o próprio ambiente de aprendizagem. Essa etapa não é apenas introdutória: é fundamental. Tudo o que se estabelece nesse período ecoa ao longo da vida acadêmica e até mesmo para além dela.
Na era digital, em que a infância é marcada pela presença constante das telas, a função da educação infantil assume um caráter ainda mais decisivo. A escola primária precisa se tornar o primeiro contrapeso estruturado ao universo de estímulos digitais fragmentados e acelerados que invadem precocemente a vida da criança.
Isso significa criar um espaço intencionalmente marcado pela interação direta, pela atenção sustentada, pelo tédio criativo e pela aprendizagem mediada pela frustração – elementos fundamentais para o amadurecimento cognitivo e socioemocional.
Nesse ambiente que a criança deve compreender que a escola não é um prolongamento das lógicas digitais, mas sim um lugar de concentração, convivência real e construção de significativos compartilhados.
O celular e demais dispositivos digitais não devem ser utilizados como ferramentas pedagógicas na primeira infância, pois a introdução precoce de telas nessa fase compromete a maturação neural e emocional, segundo as pesquisas mais recentes.
Ao propor momentos de tédio criativo, a escola ensina que não é preciso um fluxo incessante de estímulos para que a imaginação floresça. O brincar simbólico, a interação com pares, o desenho livre e as narrativas orais são formas de preencher o vazio com invenção e significado.
Como destaca Piaget2, é na ação concreta da criança sobre o mundo que se constrói o conhecimento, e não na recepção passiva de imagens prontas.
Da mesma forma, o aprendizado de lidar com a frustração – esperar a vez, respeitar regras, aceitar o “não – é essencial para o desenvolvimento da autorregulação emocional. Diferentemente das telas, que oferecem recompensas instantâneas e limitadas, a escola deve propor situações em que a criança experimente limites. É a partir deles que se desenvolvem competências como resiliência, paciência e capacidade de resolução de problemas.
A educação infantil, portanto, não é apenas um espaço de iniciação escolar, mas o alicerce do hábito escola em uma sociedade marcada pela sobreposição do virtual sobre o real.
Cabe a ela consolidar uma cultura de atenção, interação real e limites, elementos que, se não forem estabelecidos nesse início, dificilmente serão recuperados em fase posteriores. Ao não permitir o uso de celulares e ao reforçar a centralidade da experiência concreta, a escola assume um papel civilizatória: o de preparar a criança para habitar o mundo real antes de ser absorvida pelo virtual.
Assim, a função do hábito escolar na educação infantil torna-se, mais do que nunca, um ato de resistência pedagógica. Resistência à lógica da distração, aceleração do tempo digital e fragmentação da experiência.
A escola primária não pode se confundir com uma extensão das telas; precisa ser, pelo contrário, o primeiro espaço que ensina a criança que aprender exige concentração.
Somente assim será possível garantir que, ao longo da vida escolar, os estudantes estejam equipados não apenas para acumular informações, mas para formar pensamento crítico, vínculos sociais sólidos e uma identidade equilibrada diante da avalanche tecnológica.
3 Tábula saturada e o papel compensatório da escola
Durante séculos, a metáfora da tábula rasa de John Locke serviu como referência central para pensar o processo educativo: a criança seria como folha em branco, pronta para receber, por meio da experiência, os traços do mundo, cultura e aprendizagem. Locke afirmava que “não há nada no intelecto que antes não tenha passado pelos sentidos3”, reforçando a ideia de que a educação tem um papel formativo essencial no preenchimento desse quadro inicial.
No entanto, na contemporaneidade, essa metáfora já não é suficiente para descrever a condição em que a criança chega à escola. O contexto da sociedade híbrida, no qual o virtual se sobrepõe ao real, faz com que a infância já não seja marcada pela ausência, mas por um excesso: não uma tábula rasa, mas por uma tábula saturada.
A saturação que as crianças carregam não correspondem, todavia, a um repertório de experiências consistentes, mas a uma avalanche fragmentada de estímulos provenientes do contato precoce e massivo com os dispositivos digitais.
Trata-se de uma espécie de “hiperinformação vazia”, em que sons, imagens e recompensas rápidas se acumulam sem possibilitar a construção de significados mais profundos. Postman4, ao analisar o desaparecimento da infância, já advertia que a exposição antecipada a informações midiáticas rompe a temporalidade própria do desenvolvimento, privando a criança do direito ao tempo da maturação, do brincar e da descoberta progressiva do mundo.
Esse cenário impõe à escola infantil um desafio inédito: antes mesmo de iniciar plenamente o trabalho acadêmico, ela precisa assumir uma função compensatória, destinada a lidar com déficits emocionais, sociais, linguísticos e atencionais.
Crianças que chegam ao espaço escolar após anos de imersão precoce em telas apresentam, muitas vezes, dificuldade de manter a atenção sustentada, em se engajar em diagnósticos espontâneos, em regular suas emoções e em construir vínculos de reciprocidade.
Estudos recentes apontam que a exposição excessiva a dispositivos digitais na primeira infância está associada à redução do vocabulário expressivo, à dificuldade em lidar com frustrações e ao empobrecimento das interações sociais presenciais.
É justamente nesse momento da educação infantil que a escola pode intervir com maior eficácia. O cérebro da criança, nos primeiros anos de vida, encontra-se em plena fase de neuroplasticidade, em que as sinapses são formadas e eliminadas pela poda neural conforme a qualidade e a frequência das experiências vividas.
Nesse sentido, a escola se apresenta como um espaço privilegiado par reequilibrar esse desenvolvimento, oferecendo interações reais, jogos simbólicos, atividades coletivas e estímulos que favoreçam a linguagem, empatia e concentração.
Como defende Vygotsky5, o desenvolvimento humano é inseparável das interações sociais: é o encontro com o outro que a criança constrói suas funções psicológicas superiores.
Contudo, para que esse papel compensatório se concretize, é fundamental que os professores compreendam a mudança de paradigma em curso. A criança não chega mais “como uma folha em branco” à escola; ela chega preenchida por padrões cognitivos e emocionais moldados pela lógica da economia da atenção digital.
Isso significa que o trabalho docente não se limita à transmissão de conteúdos acadêmicos tradicionais, mas precisa incluir práticas que fortaleçam o autocontrole, o convívio, a escuta, a paciência e a capacidade de lidar com a frustração. Sem essa base socioemocional, qualquer aprendizagem formal ficará comprometida.
Da mesma forma, a conscientização das famílias torna-se indispensável. Muitos pais ainda acreditam que os dispositivos digitais são ferramentas educativas ou de entretenimento inofensivo, sem perceber os impactos que causam sobre o desenvolvimento neurológico e afetivo da criança.
A escola e o poder publico, portanto, deve assumir também o papel de mediadores nesse diálogo, orientando os pais sobre os riscos da exposição precoce e sobre a importância de experiências concretas, interações presenciais e tempos de ócio criativo.
Como lembra Wolf6, a leitura, a conversa e o brincar são insubstituíveis para a construção de circuitos cerebrais saudáveis, algo que nenhuma tela pode replicar.
Dessa forma, a eficácia da Lei 15.100/2025 depende não apenas da proibição do celular dentro da escola, mas, sobretudo, da capacidade da educação infantil de assumir sua função compensatória diante de uma geração que chega já saturada pelo virtual.
É necessário devolver às crianças, não apenas na escola, a experiência do real, do contato humano, do brincar simbólico e da imaginação criadora, para que o cérebro encontre condições de se desenvolver plenamente.
Só assim será possível transformar a tábula saturada em solo fértil para o florescimento do aprendizado significativo, da convivência ética e da cidadania ativa.
4 A lei e sua eficácia: um processo educativo
Para que uma lei, imposta dentro do ambiente escolar, possa conseguir produzir efeitos duradouros, por mais bem intencionada que seja, ela necessitar de ser acompanhada por um processo educativo que lhe dê sustentação.
A lei 15.100/2025, ao proibir o uso de celulares nas escolas, representa um avanço importante na tentativa de resgatar a centralidade da atenção, da interação real e da concentração no espaço escolar.
No entanto, se for aplicada de forma isolada, sem preparação prévia das crianças, famílias e da própria comunidade escolar, corre o risco de ser percebida como uma medida meramente punitiva, enfrentando resistência tanto de pais quanto dos próprios estudantes.
É justamente na educação infantil que se encontra a chave para a eficácia dessa legislação. Sem uma base bem construída nessa etapa, a lei terá de se impor contra hábitos já cristalizados, o que poderá gerar tensões entre a escola e a família, como também, entre os alunos .
A primeira infância constitui o terreno mais fértil para consolidar uma cultura de convivência real, de ludicidade e de experiências concretas que naturalmente se colocam em contraposição ao excesso de estímulos digitais.
Piaget7 já destacava que o desenvolvimento cognitivo se organiza em estágios progressivos que exigem a manipulação concreta de objetos, a ação e a experimentação direta com o mundo real. Quando esses processos são substituídos por interações digitais, a criança perde oportunidade fundamentais de construção ativa de conhecimento.
Assim, a eficácia da lei, que chegou de forma abrupta, não vai ser compreendia, mesmo em circunstâncias necessárias, como simples obediência normativa, mas como parte de um processo de conscientização social.
Esse processo necessita envolver a família, já que o uso precoce e massivo de dispositivos digitais começa, na maioria das vezes, dentro de casa. Como lembra Bronfenbrenner8 o desenvolvimento humano é inseparável dos sistemas ecológicos em que a criança está inserida, sendo a família o primeiro e mais determinantes deles.
Se pais e cuidadores não compreenderem os riscos da exposição precoce às telas, a escola será vista apenas como “repressora” em vez de parceira no cuidado com a infância.
Winnicott9 ressalta que é no brincar que a criança experimenta a criatividade, integra suas emoções e constrói um sentido de realidade compartilhada.
Sem esse espaço transicional de experiências reais, a criança fica refém de estímulos artificiais que, embora atrativos, não alimentam sua vida emocional nem sua maturidade social.
A escola também necessita reconhecer que a lei só terá êxito se os professores forem preparados para lidar com esse novo cenário. Não basta proibir o celular; é preciso formar docentes capazes de criar ambientes pedagógicos ricos, que devolvam à criança a atenção, curiosidade e disposição para o convívio humano.
Como afirma Goleman10, o aprendizado só acontece de forma plena quando há envolvimento emocional e atenção focada, condições cada vez mais raras em uma sociedade dominada pela economia da distração infinita.
Nesse sentido, a Lei 15.100/2025 deve ser vista menos como um ponto de chegada e mais como um ponto de partida. Sua verdadeira eficácia dependerá do quanto conseguirmos, como sociedade, transformar a percepção coletiva sobre a infância, substituindo a lógica do “entretenimento digital” por uma cultura de experiências humanas autênticas.
A legislação pode oferecer o arcabouço normativo, mas somente um processo educativo profundo, iniciado na educação infantil e fortalecido pela parceria com as famílias, poderá garantir que ela se traduza em benefício real para o desenvolvimento das novas gerações.
A educação infantil, portanto, não é apenas a base da escolarização, mas o alicerce da eficácia da respectiva lei. É nesse espaço que se deve semear a valorização da interação face a face, do brincar concreto e da construção conjunta do conhecimento.
A criança que aprende, desde cedo, ou seja, desde a educação infantil, a viver experiências significativas no mundo real, ela não sentirá, a respectiva lei, como proibição, como privação do uso do celular, mas com naturalidade. Ela irá compreender perfeitamente que a escola é o lugar do encontro humano e do florescimento da inteligência compartilhada – e é nesse reconhecimento que reside a força transformadora da Lei 15.100/2025.
5. A educação Infantil como política pública estratégica
A Lei 15.100/2025 surge como resposta a uma realidade cada vez mais preocupante: crianças que chegam à escola com hábitos, repertórios e expectativas já moldados pelo uso precoce e excessivo das telas. Sua implementação foi abrupta, em certa medida, e ao mesmo tempo inevitável, diante da gravidade da situação, diante da invasão do digital nas rotinas infantis, que já havia ultrapassado os limites do razoável, comprometendo o desenvolvimento cognitivo, emocional e social adequado e equilibrado das crianças.
No entanto, a velocidade da medida não foi acompanhada por uma preparação paralela que garantisse sua eficácia plena: faltou e ainda está faltando aos professores uma formação fundamentada nos conhecimentos científicos mais atuais, com também às famílias um processo de conscientização sobre os reais efeitos do uso precoce das telas.
A ciência do desenvolvimento humano mostra, de forma cada vez mais clara, que o impacto das telas na infância não é apenas comportamental, mas estrutural. O cérebro, em fase de intensa poda neural e formação de circuitos, é moldado pelo tipo de estímulo que recebe.
Nesse contexto, o ambiente digital, desenhado para capturar a atenção por meio de recompensas dopaminérgicas rápidas, entra em conflito direto com as necessidades adequadas e saudáveis para o desenvolvimento infantil pleno.
Como lembra Catherine L’Ecuyer: “A infância precisa de experiências autênticas para nutrir a imaginação e a atenção profunda, não de estímulos artificiais que saturam os sentidos sem gerar sentido11”. Sem esse entendimento, a lei pode ser interpretada apenas como restrição, e não como proteção.
Do ponto de vista pedagógico, a educação infantil deve ser compreendida como a base estratégica capaz de transformar a Lei 15.100/2025 em política pública duradoura. É nesse período da vida escolar que a criança aprende a conviver, lidar com frustração, esperar, compartilhar atenção do adulto com os outros colegas e absorver regras para o resto da vida.
Tais experiências são insubstituíveis para o desenvolvimento do autocontrole e da empatia. Como afirmava Vygotsky: “O aprendizado adequadamente organizado resulta em desenvolvimento que, de outra forma, seriam impossíveis de acontecer12”.
Isso significa que, a escola não pode apenas proibir o uso das telas: mas necessita organizar experiências reais que despertem curiosidade, fortaleçam vínculos sociais e ofereçam sentido ao aprender.
Além disso, há uma dimensão política fundamental: a escola não pode estar isolada na tarefa de formação de hábitos saudáveis. A família precisa ser envolvida de forma ativa nesse processo, compreendendo que a lei não é uma arbitrariedade do Estado, mas uma proteção ao desenvolvimento infantil.
Neil Postman já alertava que “a infância é um conceito cultural que precisa ser protegido, pois pode desaparecer quando a lógica da tecnologia a invade precocemente13”. O que está em jogo, portanto, não é apenas uma regra escolar, mas a preservação da própria infância como etapa distinta da vida humana.
É nesse ponto que a Lei 15.100/2025 mostra-se necessária, mas não suficiente. A norma estabelece um limite, mas quem pode dar consistência a esse limite é a educação infantil, ao criar uma cultura alternativa ao digital. Isso significa oferecer atividades que cultivem o tédio criativo, a atenção sustentada, a brincadeira livre e a experiência concreta.
Como destacar Maryanne Wolf: “A atenção profunda é a chave para a leitura profunda, para a empatia e para o pensamento crítico; se perdermos a capacidade de atenção, perderemos as funções da democracia e da humanidade14”.
Assim, a escola precisa ser mais do que o espaço que proíbe: deve ser a instituição que forma, orienta e previne, mostrando às crianças que há um mundo rico e significativo além das telas.
Dessa forma, investir na educação infantil como política pública estratégica significa abrir cominho para que a Lei 15.100/2025 não se reduza a um texto legal, mas se converta em um processo civilizatório.
Ao atuar na base, garantimos não apenas o cumprimento da lei, mas a formação de uma geração mais consciente, mais empática e mais consciente, mais saudável em sua relação com o mundo digital.
É a oportunidade histórica de construir uma infância que não seja colonizada pelo virtual, mas que reencontre no real as condições para florescer plenamente como humanidade.
É necessário também compreender que a eficácia da Lei 15.100/2025 não será medida apenas pelo número de celulares desligados dentro da escola, mas pela capacidade de a sociedade reconstruir um imaginário coletivo sobre à infância.
Como já mencionado, hoje, a criança não chega mais à sala de aula como um tábula rasa, aberta a experiências educativas, mas como uma tábula saturada, já preenchida por estímulos digitais intensos que moldam sua atenção, sua forma de se relacionar e atém mesmo sua identidade.
A educação infantil, nesse sentido, tem o papel de esvaziar o excesso e resgatar o essencial: a experiência do brincar, da atenção compartilhada, do silêncio criativo e da relação olho no olho.
Essa construção não é apenas pedagógica, mas civilizatória, porque envolve repensar que tipo de humanidade estamos cultivando em meio ao domínio do digital.
A educação infantil deve ser fortalecida com política pública estratégica, então a lei deixará de ser vista como proibição e passará a ser reconhecida como um ato de proteção e cuidado coletivo, capaz de gerar uma geração menos colonizada pelo digital e mais consciente de sua própria humanidade.
6 Considerações finais
A Lei 15.100/2025, ao proibir o uso de celulares nas escolas, representa um marco histórico no esforço de resguardar o ambiente educativo das pressões da sociedade digital.
Contudo, sua eficácia dependerá menos da imposição normativa em si e mais da capacidade de construir, desde a educação infantil, uma cultura pedagógica que valorize a interação real, o desenvolvimento das funções cognitivas superiores e a formação de vínculos afetivos autênticos. Sem essa base, a lei corre o risco de ser interpretada como medida punitiva, gerando resistência de pais, alunos e até mesmo professores.
É nesse sentido que a educação infantil se revela não apenas como a primeira etapa da escolarização, mas como o pilar estratégico de toda a política pública que visa enfrentar os impactos da sociedade híbrida15 sobre o desenvolvimento humano.
Se compreendermos que a plasticidade cerebral das crianças, na primeira infância, torna esta fase particularmente sensível, entenderemos também que ela é a chave para prevenir danos provocados pelo uso precoce e massivo de telas, preservando os circuitos de atenção, linguagem, imaginação e empatia.
Assim, garantir práticas educativas consistentes nessa etapa é preparar terreno fértil para que a Lei 15.100/2025 se torne efetivamente emancipadora, e não apenas regulatória.
Portanto, o desafio que se coloca diante do poder público, das escolas e das famílias é o de transformar a lei em oportunidade pedagógica. Isso exige investimento em formação docente, campanhas de conscientização voltadas aos pais e, sobretudo, a consolidação da educação infantil como política de Estado, e não apenas de governo.
A lei inaugura uma nova etapa, mas seu êxito depende do compromisso coletivo de reconhecer que a infância não pode ser terceirizada às telas. Essa meta só será alcançada se, desde cedo, criarmos as condições para que as crianças possam viver em experiência plena do real, do humano e do encontro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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1 Nilton Pereira da Cunha é Professor, Pesquisador, Escritor e Coordenador Educacional do Instituto Nacional de Evolução Humana. Graduado e Pós-graduação Lato e Stricto Sensu na área da Educação, também graduado e pós-graduado em Direito, com artigos e livros publicados em português e castelhano em vários países: Brasil, Argentina e Colômbia, tais como: O autismo e a interação social: Como desenvolver uma criança saudável na Era Digital; El autismo y la interacción social: como desarrollar una crianza saludable en la Era Digital; Educação, Família e Geração Digital: os desafios e perspectivas da pós-modernidade.
2 PIAGET, Jean. A formação do símbolo na criança. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
3 PIAGET, Jean. Ensaio sobre o entendimento humano. São Paulo: Abril Cultural, 1999.
4 POSTMAN, Neil. O desaparecimento da infância. Rio de Janeiro. Graphia, 1999.
5 VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
6 WOLF, M. O cérebro no mundo digital: os desafios da leitura na nossa era. São Paulo: Contexto, 2019.
7 PIAGET, Jean. Idem. 1978.
8 BRONFENBRENNER, U. A ecologia do desenvolvimento humano: experimentos naturais e planejados. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
9 WINNICOTT, D. W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
10 GOLEMAN. Daniel. O cérebro e a inteligência emocional: novas perspectivas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011.
11 L’ECUYER, C. Educar na realidade. São Paulo: Palavra e Prece, 2017.
12 VYGOTSKY, L. S. Idem. 2001.
13 POSTAMAN, Neil. Idem. 1999.
14 WOLF, M. Idem. 2019.
15 CUNHA, Nilton Pereira da. As emoções e o desenvolvimento infantil na sociedade híbrida. Disponível em: https://revistatópicos.com.br/artigos/as-emocoes-e-o-desenvolvimento-infantil-na-sociedade-hibrida. Consultado em: 20/08/2025.