TERAPIA GÊNICA COM CRISPR/CAS9 NO TRATAMENTO DA ANEMIA FALCIFORME

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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.16945414


Maria Inez de Santana1
Nelson Pinto Gomes2
Thais Gisele Bastos Gonçalves3
Isabela Formiga Nogueira4
Ítalo Carneiro de Oliveira5


RESUMO
A anemia falciforme é uma doença genética monogênica caracterizada pela mutação no gene HBB, que resulta na produção de hemoglobina anormal e na deformação das hemácias, provocando manifestações clínicas graves como crises vaso-oclusivas e anemia hemolítica crônica. Diante das limitações dos tratamentos convencionais, a edição gênica por meio da tecnologia CRISPR/Cas9 tem se destacado como uma estratégia terapêutica inovadora, especialmente por sua capacidade de modular a expressão gênica e reativar a produção de hemoglobina fetal. Este estudo realizou uma revisão narrativa da literatura, com dados coletados entre 01 de junho e 15 de julho de 2025, analisando dezesseis obras selecionadas, entre elas artigos científicos internacionais e livros acadêmicos. A metodologia envolveu análise crítica integrativa do conteúdo, com foco nos aspectos clínicos, moleculares e bioéticos da aplicação do CRISPR/Cas9 no tratamento da anemia falciforme. Os resultados evidenciam que a edição do gene BCL11A e dos promotores HBG1/HBG2 demonstrou eficácia clínica, promovendo aumento sustentado da hemoglobina fetal e redução significativa das manifestações clínicas da doença, sem efeitos adversos graves relatados até o momento. Conclui-se que a tecnologia CRISPR/Cas9 representa um avanço promissor no campo da terapia gênica, oferecendo perspectivas reais de cura para doenças hereditárias como a anemia falciforme, embora sejam necessários estudos adicionais para validação em larga escala e avaliação de riscos de longo prazo.
Palavras-chave: Anemia falciforme. Terapia gênica. CRISPR-Cas9. Hemoglobina fetal.

ABSTRACT
Sickle cell anemia is a monogenic genetic disorder characterized by a mutation in the HBB gene, resulting in the production of abnormal hemoglobin and deformation of red blood cells, which leads to severe clinical manifestations such as vaso-occlusive crises and chronic hemolytic anemia. Given the limitations of conventional treatments, gene editing using CRISPR/Cas9 technology has emerged as an innovative therapeutic strategy, particularly due to its ability to modulate gene expression and reactivate fetal hemoglobin production. This study conducted a narrative literature review, with data collected between June 1 and July 15, 2025, analyzing six selected works, including international scientific articles and academic books. The methodology involved integrative critical analysis of the content, focusing on the clinical, molecular, and bioethical aspects of CRISPR/Cas9 application in the treatment of sickle cell anemia. The results show that editing the BCL11A gene and the HBG1/HBG2 promoters demonstrated clinical efficacy, promoting sustained increases in fetal hemoglobin and a significant reduction in clinical manifestations of the disease, with no serious adverse effects reported so far. It is concluded that CRISPR/Cas9 technology represents a promising breakthrough in the field of gene therapy, offering real prospects for curing hereditary diseases such as sickle cell anemia, although further studies are needed to validate large-scale use and assess long-term risks.
Keywords: Sickle cell anemia. Gene therapy. CRISPR-Cas9. Fetal hemoglobin.

1 INTRODUÇÃO

A anemia falciforme (AF), é uma hemoglobinopatia hereditária causada por uma mutação no gene HBB, responsável pela síntese da cadeia beta da hemoglobina. Essa alteração leva à formação de hemácias com morfologia anormal, que se tornam mais rígidas e têm maior tendência a obstruir os vasos sanguíneos, impedindo a boa oxigenação do tecido sanguíneo. Como consequência, a circulação dessas células fica comprometida, provocando episódios recorrentes de dor intensa, anemia crônica e diversas complicações que impactam significativamente a qualidade de vida dos pacientes (Jorde, 2017).

Embora haja avanços no manejo clínico da AF, como o uso de medicamentos como a hidroxiureia e a transfusão sanguínea em crises, a busca por métodos curativos ainda é um desafio. Atualmente, o transplante de células-tronco hematopoiéticas é a única alternativa de cura, porém é um procedimento complexo, limitado por questões de compatibilidade e pelos riscos envolvidos, o que restringe seu acesso à maioria dos pacientes (Barbosa, 2025).

Com os avanços da medicina de precisão, a terapia gênica usando a tecnologia CRISPR/Cas9 tem ganhado destaque como uma alternativa promissora para tratar a anemia falciforme. Essa técnica permite editar o DNA de forma precisa, corrigindo diretamente a mutação S, no gene HBB, que causa a produção da hemoglobina ou reativando a produção da hemoglobina fetal (HbF). A HbF, que normalmente está presente só no período fetal, quando volta a ser produzida em adultos, evita a falcização das hemácias e diminui as complicações da doença (Machuca; Bianchi, 2022). Diante do exposto, este trabalho visa explorar como a terapia gênica com CRISPR/Cas9 pode revolucionar o tratamento da anemia falciforme, destacando seu impacto nas células sanguíneas.

2 METODOLOGIA

O presente estudo caracteriza-se como uma revisão narrativa da literatura, com abordagem qualitativa, cujo objetivo central foi identificar e analisar os principais avanços científicos relacionados à aplicação da tecnologia CRISPR/Cas9 como estratégia terapêutica para o tratamento da anemia falciforme.

A coleta de dados foi realizada no período de 01/06/2025 a 15/07/2025, por meio de buscas nas plataformas SciELO, PubMed e Minha Biblioteca Virtual. Para a identificação dos materiais relevantes, foram utilizados descritores controlados e não controlados, com base no vocabulário MeSH (Medical Subject Headings), aplicando-se os operadores booleanos “AND” e “OR” para refinar os resultados. As combinações de busca incluíram os seguintes termos: "CRISPR/Cas9" AND "sickle cell anemia"; "gene therapy" AND "sickle cell disease"; "genome editing" AND "molecular treatment"; e ("CRISPR" OR "genome editing") AND ("β-thalassemia" OR "sickle cell").

Foram adotados os seguintes critérios de inclusão: artigos e livros publicados entre 2006 e 2025, disponíveis na íntegra, redigidos em português ou inglês, que abordassem especificamente a aplicação terapêutica da edição gênica por meio da tecnologia CRISPR/Cas9 em hemoglobinopatias, com foco na anemia falciforme. Como critérios de exclusão, foram desconsiderados materiais duplicados, artigos que não tratavam da edição gênica, publicações sem revisão por pares e textos opinativos sem respaldo científico.

Após a aplicação dos critérios, foram selecionados seis materiais para análise. A triagem e leitura crítica desses materiais possibilitaram a realização de uma análise interpretativa e integrativa dos dados, considerando a relevância científica, os mecanismos moleculares envolvidos, os benefícios clínicos, as limitações técnicas e os possíveis desdobramentos da aplicação da tecnologia CRISPR/Cas9 no tratamento da anemia falciforme.

A metodologia adotada está sintetizada no fluxograma apresentado na Figura 1.

Figura 1: Fluxograma Metodológico da Revisão sobre CRISPR/Cas9 e Anemia Falciforme

3 RESULTADOS

Foram selecionadas dezesseis obras, sendo oito artigos científicos internacionais e nacionais e oito livros e publicações acadêmicas, que fundamentaram a análise crítica deste estudo. Destacam-se os trabalhos de Frangoul et al. (2021) e Sharma et al. (2023), publicados no New England Journal of Medicine, que apresentam resultados clínicos da aplicação da tecnologia CRISPR/Cas9 em pacientes com anemia falciforme. Também foram incluídas publicações brasileiras que abordam aspectos clínicos, bioéticos e terapêuticos da doença (Barbosa et al., 2025; Batista et al., 2023; Machuca & Bianchi, 2022), além da obra de referência Genética Médica (Jorde, 2017), utilizada para embasar os conceitos genéticos fundamentais.

A análise dos dados foi conduzida de forma interpretativa e integrativa, permitindo compreender os avanços científicos, os mecanismos moleculares, os benefícios clínicos, as limitações técnicas e as perspectivas futuras do uso do CRISPR/Cas9 no tratamento da anemia falciforme. Esse método possibilita uma visão ampla, articulando evidências internacionais e experiências nacionais, e contribuindo para o entendimento aprofundado das potencialidades e desafios da terapia gênica.

No estudo de Frangoul et al. (2021), a modificação do enhancer eritroide do gene BCL11A em células-tronco hematopoiéticas autólogas resultou em aumento significativo e sustentado da hemoglobina fetal (HbF), associado à redução de crises vaso-oclusivas e à menor necessidade de transfusões. Já Sharma et al. (2023) propuseram a edição dos promotores HBG1 e HBG2, promovendo um aumento seletivo e duradouro da HbF sem comprometer a eritropoiese normal. Essa abordagem evita interferências em fatores de transcrição multifuncionais, reduzindo riscos celulares e ampliando as possibilidades de combinações terapêuticas.

Os estudos brasileiros reforçam esses achados, demonstrando que o aumento da HbF contribui não apenas para o controle de crises agudas, mas também para a prevenção de complicações crônicas, incluindo lesões renais, hepáticas e cardiovasculares (Barbosa et al., 2025; Machuca & Bianchi, 2022). Publicações adicionais destacam a importância do diagnóstico precoce, do aconselhamento genético e da educação em saúde para otimizar o manejo clínico da anemia falciforme no contexto brasileiro (Costa et al., 2024; Diniz et al., 2005; Guimarães & Coelho, 2010).

O acompanhamento clínico nas pesquisas incluiu monitoramento de parâmetros hematológicos, frequência de crises vaso-oclusivas, função orgânica e possíveis efeitos adversos. Embora os resultados iniciais apontem para a segurança da técnica, recomenda-se vigilância a longo prazo para avaliar efeitos tardios e assegurar a eficácia sustentada da intervenção. Além disso, a literatura indica que a integração de terapias baseadas em edição gênica com cuidados clínicos tradicionais pode potencializar os benefícios terapêuticos e melhorar a qualidade de vida dos pacientes Lima et al., 2019; Silva et al., 1993; Sousa et al., 2021).

4 DISCUSSÃO:

4.1 Aspectos clínicos da doença

A doença falciforme caracteriza-se por alterações estruturais nas hemácias devido à presença da hemoglobina S, que sofre polimerização sob baixas pressões de oxigênio, ocasionando a deformação das células vermelhas e encurtando sua vida média. Esses processos provocam crises vaso-oclusivas recorrentes, que estão associadas a dor intensa, lesão de órgãos e maior risco de complicações crônicas, como disfunções renais, hepáticas e cardiovasculares (Lima et al., 2019). A capacidade funcional dos pacientes é significativamente reduzida, limitando a execução de atividades diárias e a participação em atividades sociais e escolares. Além disso, a dor crônica e a fadiga impactam não apenas a saúde física, mas também os aspectos emocionais e psicológicos, podendo gerar ansiedade, depressão e sensação de isolamento social (Lima et al., 2019).

O histórico clínico evidencia que indivíduos com formas homozigotas (anemia falciforme) apresentam manifestações mais severas em comparação aos heterozigotos, que frequentemente são assintomáticos ou apresentam sintomas leves (Lima et al., 2019). Assim, o acompanhamento médico contínuo é fundamental, não apenas para o manejo das crises e prevenção de complicações, mas também para a orientação quanto ao estilo de vida, adesão ao tratamento e suporte emocional, de modo a minimizar os impactos da doença sobre a qualidade de vida dos pacientes (Lima et al., 2019).

4.2 Epidemiologia da anemia falciforme no Brasíl

A anemia falciforme é a doença hereditária de maior prevalência no Brasil e representa um relevante problema de saúde pública, dado seu impacto clínico, social e econômico (Silva et al., 1993; Sousa et al., 2021). Trata-se de uma hemoglobinopatia decorrente da homozigose do gene da hemoglobina S, caracterizada pela falcização das hemácias, que provoca anemia hemolítica crônica, crises dolorosas recorrentes e obstrução de vasos sanguíneos, afetando órgãos como ossos, articulações, baço, pulmões e rins. A doença é mais comum em indivíduos negros, embora a miscigenação brasileira tenha expandido sua ocorrência em populações de outras origens étnicas (Silva et al., 1993).

O diagnóstico precoce é um elemento central na redução da mortalidade infantil e na melhoria da qualidade de vida. Estudos demonstram que a identificação da doença no período neonatal, aliada a intervenções preventivas simples, como vacinação contra bactérias encapsuladas e penicilinoterapia profilática, aumenta significativamente a sobrevida dos pacientes (Sousa et al., 2021). Apesar disso, muitos casos no Brasil são diagnosticados tardiamente, apenas na adolescência ou início da idade adulta, limitando a eficácia de medidas preventivas e intensificando os impactos da doença sobre a vida cotidiana (Silva et al., 1993).

Além das implicações médicas, a anemia falciforme interfere de maneira significativa na vida social e econômica dos portadores. A limitação das oportunidades profissionais, o absenteísmo escolar e a dependência financeira são recorrentes, sobretudo entre mulheres, refletindo a necessidade de políticas públicas que integrem suporte médico, psicossocial e aconselhamento genético não diretivo (Silva et al., 1993). Programas comunitários de orientação, acompanhamento terapêutico e inserção no mercado de trabalho podem mitigar essas dificuldades, promovendo maior autonomia e melhor qualidade de vida (Sousa et al., 2021).

A literatura indica que, mesmo com tratamento médico adequado, muitos pacientes enfrentam desafios significativos relacionados à integração social, ao casamento, à reprodução e à estabilidade financeira. Isso evidencia que estratégias de saúde pública não devem se limitar à intervenção clínica, mas também incluir educação em saúde, aconselhamento genético, suporte psicossocial e programas de inclusão laboral (Silva et al., 1993; Sousa et al., 2021).

4.3 Avanços da edição gênica na anemia falciforme

A aplicação da edição gênica por CRISPR/Cas9 no tratamento da anemia falciforme, conforme demonstrado por Frangoul et al. (2021), representa um avanço expressivo na medicina de precisão e no tratamento de doenças monogênicas do sangue. No estudo, foi avaliada a modificação do enhancer eritroide do gene BCL11A em células-tronco hematopoiéticas autólogas, com o objetivo de reativar a produção de hemoglobina fetal (HbF).

A expressão elevada de HbF é capaz de inibir a polimerização da hemoglobina S, reduzindo a falcização das hemácias e, consequentemente, atenuando os sintomas clínicos da doença. Estudos complementares indicam que o aumento da HbF também melhora a função endotelial e diminui a incidência de complicações crônicas, como danos renais e hepáticos (Barbosa et al., 2025).

4.4 Estratégias terapêuticas e resultados clínicos

O estudo Frangoul et al. (2021) iniciou-se com a coleta de células-tronco hematopoiéticas autólogas dos próprios pacientes. Essas células foram posteriormente submetidas a uma modificação genética ex vivo utilizando a tecnologia CRISPR/Cas9 para alterar o enhancer eritroide do gene BCL11A. Depois da modificação, as células geneticamente corrigidas foram reinseridas nos pacientes através de um transplante autólogo.

Durante o acompanhamento clínico, os níveis de hemoglobina fetal (HbF) forammonitorados periodicamente, assim como os parâmetros hematológicos gerais e a frequência das crises vaso-oclusivas. Os pacientes foram avaliados quanto à segurança do procedimento, com monitoramento rigoroso para identificar qualquer evento adverso relacionado à edição gênica. A análise demonstrou que, após o transplante das células editadas, houve um aumento significativo e sustentado da HbF, o que se traduziu em melhora clínica e ausência das crises características da anemia falciforme.

Além disso, estudos complementares indicam que o aumento da HbF promove não apenas a redução das crises, mas também melhora a função endotelial e diminui a incidência de complicações crônicas, como danos renais e hepáticos, associados à anemia falciforme (Barbosa et al., 2025). A tecnologia CRISPR/Cas9, portanto, não atua apenas sobre os sintomas agudos, mas também oferece potencial para prevenção de complicações a longo prazo.

4.5 Mecanismo de ação da terapia por CRISPR/Cas9

Figura 2: Esquema ilustrativo da transição da hemoglobina fetal para a hemoglobina adulta, do alvo da edição gênica no gene BCL11A, do aumento da hemoglobina fetal após a edição e da análise de possíveis efeitos off-target.
Fonte: Frangoul H, et al. New England Journal of Medicine. 2021;384(3):252-262.

A imagem ilustra o mecanismo de ação do CRISPR/Cas9, que utiliza um RNA-guia para direcionar a enzima Cas9 ao enhancer eritroide do gene BCL11A, promovendo sua inativação e, consequentemente, a reativação da produção de HbF nas células editadas.Os dados experimentais apresentados demonstram um aumento significativo dos níveis de hemoglobina fetal após a edição gênica, em comparação ao grupo controle, evidenciando a eficácia da abordagem.

4.6 Estratégias alternativas de edição gênica

Sharma et al. (2023) propuseram uma estratégia inovadora para o tratamento da anemia falciforme baseada na edição dirigida dos promotores dos genes HBG1 e HBG2, utilizando CRISPR/Cas9 para interromper elementos regulatórios repressivos. Essa alteração específica tem como objetivo liberar a expressão da hemoglobina fetal (HbF), promovendo um aumento seletivo e duradouro da sua produção nos glóbulos vermelhos, sem afetar funções essenciais do desenvolvimento eritrocitário.

Ao evitar a interferência em fatores de transcrição com múltiplas funções, como o BCL11A, a edição dos promotores HBG1/HBG2 preserva a eritropoiese normal e minimiza os riscos relacionados à disfunção celular. Dados pré-clínicos e clínicos iniciais indicam que essa abordagem é segura e eficaz, promovendo melhorias hematológicas significativas e redução das crises vaso-oclusivas, abrindo caminho para terapias mais específicas e com potencial para combinação no tratamento da anemia falciforme.

Além disso, essa estratégia tem mostrado potencial para aplicações pediátricas, sugerindo que a ativação precoce da HbF pode prevenir o aparecimento de complicações crônicas da doença, contribuindo para melhor prognóstico a longo prazo (Machuca & Bianchi, 2022). A possibilidade de intervir precocemente na expressão gênica reforça a necessidade de programas de triagem neonatal e acompanhamento longitudinal de pacientes, garantindo que a terapia seja aplicada antes que danos irreversíveis se instalem.

No contexto da tecnologia CRISPR/Cas9, existem diversas estratégias para a edição genética das células-tronco hematopoiéticas. Por exemplo, Wu et al. realizaram a edição do intensificador eritroide +58 do gene BCL11A, interrompendo o sítio de ligação do fatormde transcrição GATA1. Essa modificação levou à redução seletiva da expressão de BCL11A em células eritroides, resultando na indução da hemoglobina fetal (HbF) em níveis terapêuticos. Além disso, a edição não afetou a capacidade de autorrenovação nem o potencial de enxerto das células-tronco, e não apresentou efeitos fora do alvo ou toxicidade significativa, configurando uma estratégia promissora para terapias genéticas na anemia falciforme.

É importante destacar que, além da eficácia, os estudos enfatizam a segurança a longo prazo e o acompanhamento rigoroso como fatores essenciais. Embora até o momento não tenham sido relatados eventos adversos graves, a vigilância contínua é necessária para monitorar efeitos off-target, mutações imprevistas e possíveis complicações hematológicas ou imunológicas. Ensaios clínicos futuros devem incorporar sequenciamento genômico de alto desempenho e monitoramento imunológico detalhado para assegurar a estabilidade das células editadas e a ausência de riscos genotóxicos.

Por fim, considerando aspectos bioéticos, é fundamental avaliar a disponibilidade e acessibilidade da terapia, especialmente em populações vulneráveis, garantindo que avanços científicos não se restrinjam a um grupo limitado de pacientes (Batista et al., 2023). O alto custo, a complexidade do procedimento e a necessidade de infraestrutura especializada impõem desafios significativos. Portanto, políticas públicas de inclusão, treinamento de profissionais de saúde e estratégias de financiamento são indispensáveis para que a CRISPR/Cas9 cumpra seu potencial de reduzir desigualdades no tratamento de hemoglobinopatias.

Em suma, a tecnologia CRISPR/Cas9 representa não apenas um avanço clínico e terapêutico, mas também um desafio ético, social e econômico. A combinação de estratégias de edição, o acompanhamento clínico rigoroso e a promoção de acesso equitativo constituem pilares para que essa abordagem seja consolidada como uma ferramenta transformadora na anemia falciforme, com impacto real sobre a sobrevida e qualidade de vida dos pacientes.

4.7 Desafios e perspectivas futuras

Apesar dos avanços expressivos da edição gênica por CRISPR/Cas9 no tratamento da anemia falciforme, ainda existem desafios significativos a serem enfrentados para que essa tecnologia seja amplamente aplicada na prática clínica. Um dos principais pontos é a segurança a longo prazo, especialmente no que se refere a mutações fora do alvo (off-target) e alterações estruturais complexas do DNA, como deleções ou rearranjos inesperados, que podem comprometer a integridade celular e gerar efeitos adversos imprevisíveis.

Outro desafio relevante é a eficácia em diferentes perfis genéticos e faixas etárias. Embora estudos iniciais tenham mostrado resultados promissores, a variabilidade genética entre pacientes pode influenciar a resposta ao tratamento. Além disso, a aplicação pediátrica requer atenção especial, considerando a necessidade de intervenções precoces para prevenir complicações crônicas, sem comprometer o desenvolvimento normal das células hematopoiéticas.

A disponibilidade e acessibilidade da terapia constituem outro aspecto crítico. O custo elevado, a complexidade do procedimento e a necessidade de infraestrutura especializada podem limitar o acesso, especialmente em regiões de baixa renda ou em sistemas de saúde públicos. Nesse contexto, políticas públicas de inclusão, treinamento de profissionais de saúde e estratégias de financiamento são essenciais para democratizar o acesso à terapia gênica.

A ética e a regulação da edição gênica permanecem como questões centrais. É necessário estabelecer diretrizes claras que equilibrem os benefícios clínicos com a minimização de riscos, além de garantir que os avanços científicos não se restrinjam a um grupo limitado de pacientes. A transparência no acompanhamento clínico, o consentimento informado rigoroso e a avaliação contínua de impactos sociais e econômicos são pilares para a implementação responsável dessa tecnologia.

Em perspectiva futura, espera-se que o aprimoramento das técnicas de CRISPR/Cas9, aliado a abordagens combinadas de terapia gênica, melhore ainda mais a segurança, eficácia e especificidade da edição genética. Paralelamente, programas de triagem neonatal e acompanhamento longitudinal poderão potencializar os benefícios da intervenção precoce, transformando a anemia falciforme de uma doença crônica debilitante em uma condição manejável com impacto positivo na qualidade de vida e longevidade dos pacientes.

4.8 Aconselhamento Genético na Anemia Falciforme

O aconselhamento genético é uma estratégia fundamental no manejo da anemia falciforme, pois permite identificar portadores do traço falciforme e orientar decisões reprodutivas de forma consciente, contribuindo para a prevenção da doença em futuras gerações. A detecção precoce de indivíduos em risco possibilita intervenções preventivas e acompanhamento médico adequado, evitando complicações graves decorrentes do diagnóstico tardio (AL ZEEDI; AL ABRI, 2021; SÁNCHEZ-VILLALOBOS et al., 2023). Dessa forma, o aconselhamento genético promove diretamente a melhoria da qualidade de vida de pacientes e familiares.

Programas de triagem neonatal têm se mostrado eficazes para identificar precocemente a presença de hemoglobina S, permitindo que medidas preventivas e educativas sejam aplicadas desde os primeiros meses de vida. Esses programas incluem orientações sobre cuidados domiciliares, prevenção de infecções e manejo de crises álgicas, reduzindo internações hospitalares e complicações associadas à doença (THAKER et al., 2022; SÁNCHEZ-VILLALOBOS et al., 2023). O acompanhamento inicial adequado possibilita intervenções médicas oportunas, garantindo melhor prognóstico aos pacientes.

O aconselhamento genético também exerce papel crucial na orientação de jovens adultos sobre a transmissão da anemia falciforme aos filhos. Fatores sociodemográficos e clínicos, como genótipo, escolaridade, renda e influência familiar, influenciam a percepção de risco reprodutivo, tornando o aconselhamento pré e pós-triagem essencial para decisões conscientes sobre paternidade ou maternidade (ALDOSSARY et al., 2022). Assim, famílias recebem suporte para planejamento familiar seguro e redução da perpetuação da doença.

Além de prevenir a transmissão, o diagnóstico precoce aliado ao aconselhamento genético possibilita acompanhamento clínico mais eficaz. Pacientes identificados precocemente recebem orientações sobre nutrição, vacinação, prevenção de infecções e manejo de crises dolorosas, diminuindo a incidência de anemia grave, pneumonia, necrose óssea e outras complicações (KAMAL et al., 2021; POMPEO et al., 2022). O aconselhamento genético, portanto, funciona como um instrumento de prevenção e promoção da saúde integral.

5 CONCLUSÃO

O sistema CRISPR-Cas9 representa um avanço exponencial na edição genética, oferecendo novas perspectivas para o tratamento de doenças hereditárias monogênicas. No entanto, seu uso também exige cautela devido aos riscos associados, especialmente as mutações fora do alvo que podem ocorrer em regiões não intencionadas do genoma. Essas alterações inesperadas têm o potencial de comprometer células sem mutação, gerando consequências imprevisíveis para a célula e o organismo. Além disso, evidências indicam que a edição pode induzir modificações estruturais maiores no DNA, como deleções e rearranjos complexos, destacando a importância de avaliações rigorosas de segurança antes da aplicação clínica dessa tecnologia.

Com os avanços da genética médica, a terapia gênica por meio do CRISPR-Cas9 surge como uma abordagem eficaz para o tratamento da anemia falciforme, proporcionando melhorias relevantes na expectativa e qualidade de vida dos indivíduos afetados. Entretanto, estudos com um uma maior amostra de pessoas deve ser realizada, a fim de identificar a sua eficácia e segurança no manejo da anemia falciforme.

Além disso, a integração dessa tecnologia ao contexto clínico exige considerar aspectos éticos, logísticos e econômicos, como o acesso equitativo ao tratamento, a infraestrutura necessária para edição ex vivo de células-tronco e o treinamento especializado de equipes médicas. A aplicação responsável do CRISPR-Cas9, portanto, depende não apenas da comprovação científica da eficácia, mas também do desenvolvimento de protocolos clínicos seguros e de políticas públicas que assegurem a disponibilidade do tratamento a diferentes populações.

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1 Pós-graduada em Biomedicina Estética pela Faculdade Ibeco – São Paulo, São Paulo, Brasil, e Pós-graduanda em Hematologia Laboratorial e Clínica pelo Instituto Nacional de Medicina Laboratorial – Londrina, Paraná, Brasil. E-mail: [email protected] | ORCID: https://orcid.org/0009-0005-5541-1362

2 MD, MSc, PhD, Médico Especialista em Psiquiatria pela Ordem dos Médicos, portador da cédula profissional nº 59515, Membro do Conselho Científico da European Medical Association, em Bruxelas, como Expert em Psiquiatria, Membro Associado da World Medical Association (WMA), Mestre em Peritagem Médica e Avaliação do Dano Corporal, Mestre em Medicina Forense e Legal, Associado da Associação Portuguesa de Avaliação do Dano Corporal (APADAC) nº 1017, PhD em Medical Science pela Université Catholique de Louvain (UCL), Bélgica.

3 Médica formada em 2012 pela Universidade Federal do Pará (UFPA). E-mail: [email protected]

4 Enfermeira, Especialista em Urgência e Emergência. ORCID: https://orcid.org/0009-0007-4627-5041

5 Estudante de Medicina pelo Centro Universitário de Ciências e Emprendedorismo (UNIFACEMP).