O IMPACTO DA ERA DIGITAL NA FAMÍLA E ESCOLA E NA RECONTEXTUALIZAÇÃO DA PEDAGOGIA CONSTRUTIVISTA

PDF: Clique aqui


REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.16898310


Nilton Pereira da Cunha1


RESUMO
O artigo analisa o impacto da era digital na família, na escola e na necessária recontextualização da pedagogia construtivista. Parte de uma contextualização histórica, destacando que, no século XX, o construtivismo se consolidou a partir de interações diretas, nas quais o egocentrismo infantil era compreendido como etapa natural do desenvolvimento e favorecido por experiências simbólicas, por exemplo, como o faz de conta e os contos de fadas. No século XXI, ocorre uma mudança significativa: as interações presenciais cedem espaço às virtuais, inclusive entre as crianças, que passaram a vivenciar um mundo mediado por telas, onde tudo lhes é apresentado pronto. Essa substituição reduz a oportunidade de experimentação, imaginação e construção coletiva do conhecimento, gerando empobrecimento afetivo, cognitivo e emocional. Tal cenário impõe novos desafios à família e à escola, que precisam compreender as implicações dessa transformação e buscar estratégias para preservar e estimular interações reais e ricas em significado. O texto propõe uma reflexão crítica e defende a recontextualização do construtivismo para responder às demandas da era virtual, garantindo o desenvolvimento integral da criança e a manutenção de vínculos essenciais para a aprendizagem e formação humana.
Palavras-chave: Pedagogia Construtivista. Família. Escola. Egocentrismo Infantil.

ABSTRACT
This article analyzes the impact of the digital age on families, schools, and the necessary recontextualization of constructivist pedagogy. It begins with a historical contextualization, highlighting that, in the 20th century, constructivism was consolidated through direct interactions, in which childhood egocentrism was understood as a natural stage of development and fostered by symbolic experiences, such as make-believe and fairy tales. In the 21st century, a significant shift occurs: face-to-face interactions give way to virtual ones, including among children, who now experience a world mediated by screens, where everything is presented to them ready-made. This shift reduces the opportunity for experimentation, imagination, and the collective construction of knowledge, leading to affective, cognitive, and emotional impoverishment. This scenario poses new challenges for families and schools, which must understand the implications of this transformation and seek strategies to preserve and encourage real, meaningful interactions. The text proposes a critical reflection and defends the recontextualization of constructivism to respond to the demands of the virtual era, ensuring the integral development of the child and the maintenance of essential bonds for learning and human formation.
Keywords: Constructivist Pedagogy. Family. School. Childhood Egocentrism.

1 Introdução

A pedagogia construtivista é, muitas vezes, alvo de interpretações equivocadas. Uma das mais recorrentes é a crença de que, segundo essa abordagem, a criança constrói o conhecimento sozinha, de maneira espontânea, bastando deixá-la livre para aprender.

Essa leitura deturpada ignora um princípio fundamental: a construção do conhecimento é um processo ativo que exige mediação, interação social e contato constante com diferentes formas de linguagem, pensamento e experiência.

A aprendizagem não acontece no vazio. Ela se dá na relação com o outro, no diálogo entre o que a criança já sabe e aquilo que lhe é apresentado, no confronto de ideias, na resolução de problemas reais e na cooperação com seus pares.

É nesse movimento de trocas e desafios que a compreensão se aprofunda e se consolida.

Entretanto, no contexto atual, a vida infantil tem sido profundamente transformada pela presença constante do mundo virtual. Interações que antes aconteciam de forma presencial e espontânea são, cada vez mais, mediadas por telas, aplicativos e algoritmos.

Esse fenômeno altera não apenas as oportunidades de aprendizagem, mas também a própria forma como a criança experimenta, interpretar e se apropria do conhecimento.

Essa mudança de cenário exige uma reflexão urgente: como garantir a construção efetiva do conhecimento quando a experiência do real cede espaço a estímulos prontos e artificiais, que reduzem a participação ativa da criança e empobrecem a diversidade de interações necessárias ao seu desenvolvimento?

2 Contextualização histórica do construtivismo

No século XX, o debate educacional foi profundamente influenciado por teorias que colocaram a criança no centro do processo de aprendizagem. Entre essas contribuições destacam-se as formulações de Piaget, Vygotsky, Wallon, Bettelheim e outros estudiosos, que sustentaram a ideia de que o conhecimento não é simplesmente transmitido de forma passiva, mas construído ativamente pelo sujeito em interação constante com o mundo que o cerca.

Essa perspectiva rompeu com modelos pedagógicos baseados na memorização mecânica e na mera repetição de conteúdos. A ênfase passou a recair sobre a ação da criança sobre o meio, ação esta que é física, social e simbólica.

No construtivismo, a manipulação de objetos concretos, a resolução de problemas, a vivência de jogos simbólicos e a negociação de regras são elementos indispensáveis à aprendizagem.

Não se trata de uma construção isolada, mas, o importante papel do professor, dos pais e dos pares é o de mediadores, provocadores de reflexão, incentivadores da dúvida e facilitadores da compreensão.

O desenvolvimento cognitivo, nessa abordagem, está ancorado no mundo real. É no contato direto com situações concretas e na experiência compartilhada que a criança amplia seu repertório, reorganiza esquemas mentais e adquire novas formas de compreender a realidade.

Esse processo não se limita à dimensão intelectual: envolve também aspectos morais, afetivos e sociais. Ao estudar, por exemplo, o egocentrismo infantil, observou-se que a superação dessa postura ocorre gradualmente, à medida que a criança é exposta a interações com seus pares, em que precisa lidar com perspectivas diferentes da sua, aprender a cooperar e respeitar regras construídas coletivamente vai aprendendo a respeitar regras morais.

Até a Era Digital, a psicologia do desenvolvimento era, então, a principal lente para compreender a aprendizagem. Essa lente permitia enxergar a criança como um ser em constante transformação, cujo crescimento intelectual estava intrinsecamente ligado às condições de sua vida concreta e às relações humanas que estabelecia.

A ênfase recaía sobre o percurso de desenvolvimento e sobre a experiência que favoreciam a emergência de novas capacidades, e não sobre diagnósticos e classificação.

Piaget já destacava que “o conhecimento não é uma cópia da realidade, mas uma construção do sujeito em interação com o mundo2”. Vygotsky reforçava que essa construção é mediada pela cultura, pela linguagem e pelo outro, afirmando que o “aprendizado desperta vários processos internos de desenvolvimento que só ocorrem quando a criança interage com pessoas em seu ambiente e quando está em cooperação com seus companheiros3”. Wallon4, por sua vez, insistia na indissociabilidade entre emoção, motricidade e cognição, defendendo que o desenvolvimento é um processo integrado, no qual o social está presente desde os primeiros momentos da vida. Bettelheim5 lembrava que o brincar, além de prazeroso, é um instrumento fundamental para a elaboração de conflitos e para a compreensão do mundo.

Assim, o construtivismo no século XX foi pensado para uma infância profundamente imersa no real, para um mundo em que o brincar livre, as conversas frente a frente e a manipulação de objetos tangíveis constituíam o terreno fértil no qual a aprendizagem e a formação moral floresciam.

Esse cenário, no entanto, encontra-se radicalmente alterado no século XXI, exigindo uma reflexão urgente sobre como preservar os princípios que deram sentido a essa pedagogia diante de um cotidiano cada vez mais mediado pelo virtual.

3 Mudança de cenário no século XXI

O século XXI marca uma transformação profunda no modo como a infância se desenvolve. A consolidação de uma sociedade híbrida, na qual o real e o virtual se entrelaçam, gerou um fenômeno inédito: a sobreposição do virtual sobre o real.

Se, no passado a experiência cotidiana da criança era predominantemente física, concreta e enraizada em relações humanas diretas, hoje ela é, desde muito cedo, mediada por dispositivos digitais.

O contato precoce e massivo com telas e aplicativos introduziu uma mediação constante da experiência pela lógica dos algoritmos. Plataformas e sistemas digitais não apenas organizam os conteúdos a que a criança tem acesso, mas também filtram, priorizam e moldam o que é visto, sentido e aprendido.

Nesse processo, as interações humanas presenciais cedem espaço para interações programadas e previsíveis, onde a reciprocidade e a negociação, tão essenciais ao desenvolvimento cognitivo e social, tão defendidas no construtivismo, estão sendo substituídas por respostas automáticas e gratificações compensatórias dopaminérgicas instantâneas.

Ao contrário do mundo real, em que o aprendizado se constrói na imprevisibilidade – na necessidade de lidar com contradições, ambiguidades e resistências –, o universo virtual apresenta um ambiente controlado, no qual as experiências são pré-formatadas, simplificadas e frequentemente reduzidas a estímulos visuais e sonoros rápidos.

Como observa Nilton Cunha: “Na infância contemporânea, a vivência da complexidade do real é substituída pela simplicidade programada do virtual, onde o esforço cognitivo é mínimo e a recompensa emocional é imediata6”.

Esse cenário impacta diretamente os fundamentos do construtivismo. A construção do conhecimento, segundo essa abordagem, depende do corpo em ação, da manipulação de objetos concretos, do uso de diferentes sentidos e do diálogo com o outro em contextos imprevisíveis.

A escola, nesse paradigma, é um espaço que propõe desafios cognitivos e sociais, que exige tempo de elaboração, paciência para lidar com o erro e perseverança para alcançar a compreensão.

No entanto, quando a maior parte do tempo da criança é ocupada por experiências digitais, ocorre um descompasso: a mente se habitua a respostas imediatas e a estímulos fragmentados, tornando mais difícil sustentar a atenção, tolerar frustrações e lidar com tarefas que demandem raciocínio contínuo.

O resultado é que a construção de significados – processos lento, interativo e cumulativo – passa a ser substituída por consumo de significados prontos, elaborados por terceiros e entregues em formatos sedutores, porém pouco desafiadores.

Além disso, o espaço físico e as interações face a face, que eram a base do desenvolvimento moral e cognitivo, tornam-se secundários. A imprevisibilidade social – negociar regras em um jogo, lidar com opiniões divergentes, interpretar gestos e expressões faciais – é substituída pela previsibilidade das interações com máquinas, nas quais não há risco de conflito real nem necessidade de negociação genuína. Essa perda empobrece a formação de habilidades socioemocionais e compromete a própria capacidade de aprender com o outro.

Dessa forma, a infância do século XXI enfrenta um dilema: de um lado, uma pedagogia – o construtivismo – pensada para um mundo de interações reais, que exige tempo, corpo, espaço e relações humanas; de outro, uma rotina moldada por dispositivos que priorizam a velocidade, a gratificação imediata e a ausência do esforço.

Entre esses dois polos, instala-se um vazio que nem a escola sozinha, nem a família isoladamente conseguem preencher.

4 Do construtivismo à lógica neurológica e diagnóstica

Ao observarmos a trajetória educacional e psicológica das últimas décadas, percebe-se uma transição silenciosa, mas profunda, na forma como a infância é compreendida e tratada.

A pedagogia construtivista, sustentada por uma psicologia do desenvolvimento que reconhecia a criança como sujeito ativo, criador de significados e participante de seu processo de aprendizagem, vai gradualmente cedendo espaço para uma lógica neurológica e diagnóstica.

Se realizarmos uma análise geracional, veremos que essa mudança ocorre justamente no momento em que a vida cotidiana das crianças se torna cada vez mais mediada por experiências virtuais em detrimento das reais.

É nesse cenário que se intensificam dificuldades atencionais, autorregulatórias e socioemocionais, não apenas como fenômenos clínicos isolados, mas como consequências de uma reorganização das interações humanas e das condições de desenvolvimento.

Como observa Byung-Chul Han: “A sociedade da transparência e da positividade elimina a alteridade, a negatividade e a profundidade, instaurando a tirania da mesmice7”, e essa homogeneização também afeta a maneira como compreendemos a infância, reduzindo sua pluralidade e indicadores e métricas.

A psicologia do desenvolvimento, que orientava práticas pedagógicas pela valorização de estágios cognitivos e socioafetivos, perde progressivamente sua centralidade.

O espaço antes ocupados pela compreensão qualitativa das experiências infantis passa a ser dominado por uma matematização da infância: laudos, percentis, níveis de funcionamento, escalas e protocolos.

Essa virada desloca a narrativa do potencial construtivo para uma patologização das diferenças, em que o foco deixa de ser o que a criança pode construir e passa a ser aquilo que ela “não alcançou” segundo parâmetros normativos.

Essa mudança também reflete uma reconfiguração social mais ampla. Em uma sociedade hiperconectada, a avaliação da criança deixa de privilegiar o contato direto, a escuta e a interpretação contextualizada para priorizar ferramentas padronizadas que prometem objetividade e precisão.

Piaget, já alerta que o principal objetivo da educação é criar homens capazes de fazer coisas novas, não simplesmente repetir o que outras gerações fizeram, mas o predomínio do diagnóstico sobre a observação pedagógica tende a produzir o defeito contrário: enquadrar a criança em categorias predefinidas e limitar sua margem criativa.

Assim, o egocentrismo infantil, entendido por Piaget como uma etapa natural e necessária para o desenvolvimento moral e cognitivo, deixa de ser visto como um processo evolutivo para ser tratado como sintoma. A escuta infantil – antes um pilar para compreender seu universo simbólico – cede espaço a formulários e checklists que traduzem comportamentos em escores.

Essa padronização, embora possa ser útil em contextos clínicos específicos, quando se torna a lente predominante para olhar a infância, reduz a complexidade da experiência humana a um conjunto de “falhas” a serem corrigidas.

Eva Illouz destaca que: “O modo como classificamos as emoções e os comportamentos altera a própria maneira como eles são vividos8”. Ao transformar a infância em um campo de mensuração contínua, alteramos também a forma como a criança se percebe, como se relaciona e como projeta seu futuro.

Essa mudança não é apenas técnica ou metodológica: é cultural, social, política, e exige que repensemos o equilíbrio entre a necessária atenção às dificuldades e a preservação da visão construtiva que reconhece a criança como sujeito em desenvolvimento, e não como um dossiê de déficits.

Há que se promover uma reflexão cuidadosa sobre como a substituição da escuta e da observação qualitativa por instrumentos padronizados vem modificando a relação entre família, escola e profissionais da saúde.

No passado, as conversas sobre desenvolvimento infantil eram permeadas por relatos de experiências, vivências e interações concretas; hoje, com maior frequência, elas são acompanhadas de laudos e pareceres que tendem a assumir papel central na compreensão da criança.

Embora esses instrumentos possam trazer contribuições importantes, é preciso atentar para o risco de que sua utilização excessiva reduza a percepção da infância a dados e classificações, enfraquecendo o olhar contextual e afetivo que é essencial para compreender o desenvolvimento humano.

Essa tendência é reforçada por uma cultura que valoriza a certeza numérica em detrimento da complexidade interpretativa. Um escore padronizado oferece a sensação de objetividade e segurança, mas é incapaz de capturar as nuances da aprendizagem e do desenvolvimento emocional.

A pedagogia construtivista, ao contrário, parte do pressuposto de que a criança constrói conhecimento a partir de experiências concretas e da interação com os outros, num processo que é, por natureza, não linear, mas, repleto de variações individuais.

Ao transformar essa diversidade em “desvios” e “déficits” mensuráveis, corremos o risco de produzir uma educação que mais corrige do que constrói, e que mais classifica do que emancipa.

A análise geracional torna essa mudança ainda mais evidente: crianças da geração Z e, de forma mais acentuada, da geração Alpha, cresceram em um ambiente no qual a mediação digital ocupa um lugar central desde os primeiros anos de vida.

Isso significa que seu desenvolvimento cognitivo, emocional e social ocorreu em um cenário inédito, com estímulos, ritmos e padrões de interação que não existiam nas gerações anteriores.

A lógica diagnóstica, porém, muitas vezes, ignora essa mudança e contextos e aplica critérios desenvolvidos em uma era pré-digital, tratando como patologia aquilo que pode ser, em parte, resultado de um ambiente profundamente alterado.

Assim, a sobreposição do virtual sobre o real não apenas transforma a infância, mas também redefine as lentes pelas quais a interpretamos – e, consequentemente, as intervenções que consideramos necessárias.

5 Impactos para a escola e a família

Historicamente, a escola foi concebida como um espaço privilegiado de interação, mediação cultural e construção de sentido, onde o conhecimento emergia da relação dialógica entre sujeitos e do encontro com diferentes perspectivas de mundo.

No entanto, na sociedade contemporânea, marcada pela sobreposição do virtual sobre o real, a escola vê-se desafiada a lidar com crianças cujo repertório cognitivo, emocional e social já chega marcado por interações fragmentadas, aceleradas e, muitas vezes, desprovidas de profundidade.

Assim, a instituição que antes recebia sujeitos em pleno processo de expansão simbólica passa, cada vez mais, a ser convocada a compensar déficits estes agravados pelo contato precoce e massivo com dispositivos digitais.

Essa transformação desloca a função da escola para um campo ambíguo: de um lado, a exigência de atenção, autocontrole e linguagem; de outro, a pressão por atender a indicadores externos de desempenho, cada vez mais matematizados, que tendem a reduzir a criança a um conjunto de métricas cognitivas.

A visão “neurocorretiva” começa a substituir a visão “formativa”, e o aluno deixa de ser compreendido como sujeito que constrói sentido em interação com o mundo para ser tratado como um cérebro a ser calibrado.

Como adverte Martha Nussbaum: “Quando a educação é reduzida a uma ferramenta de crescimento econômico, as artes da cidadania e a imaginação moral correm o risco de se atrofiar9”.

No campo familiar, esse deslocamento repercute de forma igualmente intensa. Pais e cuidadores, pressionados pela rotina acelerada e pela sedução das tecnologias como pacificadores instantâneos, terceirizam para a escola responsabilidades que pertencem à esfera da formação integral, acreditando que a instituição, sozinha, possa reparar lacunas emocionais e cognitivas.

Essa expectativa desmedida fragiliza a vínculo entre família e escola, criando um jogo de transferência de culpa: de um lado, a escola reclama da falta de suporte em casa; de outro, a família acusa a escola de não atingir resultados rápidos.

Como afirma Paulo Freire: “Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo10”. Uma advertência que, no cenário atual, exige a recuperação da corresponsabilidade educativa.

A lógica matematizada e a pressão por resultados imediatos também afetam a própria compreensão do que significa aprender, mediados pelo mundo virtual. O cérebro da criança tende a priorizar conteúdos mensuráveis e habilidades padronizadas, em detrimento de experiências ricas de construção simbólica, afetiva e social, como se defende no construtivismo.

Nesse sentido argumenta Edgar Morin, para quem “o conhecimento pertinente deve enfrentar a complexidade e não reduzi-la11”. Quando a criança é vista apenas pelo prisma da eficiência cerebral, perde-se a dimensão do humano como ser que sente, cria e ressignifica.

Diante desse cenário, torna-se urgentemente necessário repensar o pacto educativo entre escola e família e não uma ficar colocando a culpa uma na outra, é entender o que está por trás desse processo e juntas agir conjuntamente e harmonicamente.

Mas, compreender o papel da escola e da família na era da sobreposição do virtual sobre o real, o desafio é restaurar o equilíbrio entre a dimensão cognitiva, emocional e social do desenvolvimento.

A escola precisa voltar a ser espaço de encontro e diálogo, e a família precisa resgatar seu papel de mediadora do mundo real, oferecendo experiências concretas, tempos de qualidade e limites claros.

Caso contrário, correremos o risco de consolidar uma geração que não apenas apresenta déficits de atenção ou linguagem, mas que internaliza uma visão empobrecida de si mesma: não como sujeito ativo de sua aprendizagem, mas como sistema a ser constantemente ajustado.

Para que a escola e família retomem seu papel formador diante desse cenário, é preciso reconhecer que o que está em jogo não é apenas a aquisição de habilidades acadêmicas, mas a preservação da própria condição humana na infância.

Uma criança que cresce com interações predominantemente mediadas por telas não apenas perde oportunidade de experimentar o mundo concreto, mas também de construir referências emocionais, éticas e culturais que só emergem no contato vivo com o outro. Sem essa base, o ensino se torna mero adestramento de funções, e a convivência, um exercício superficial de troca de informações.

A urgência, portanto, é recolocar no centro da educação – seja no lar, seja na escola – a experiência compartilhada, a escuta atenta e o diálogo significativo, pois é nesses espaços que o cérebro em desenvolvimento se torna, de fato, mente que pensa, sente e constrói sentido.

6 Reflexão crítica e recontextualização necessária

A promessa do construtivismo permanece tão válida quanto no momento em que ganhou força como paradigma educacional, mas o contexto histórico e social em que vivemos exige uma recontextualização urgente.

Não basta repetir que a criança constrói o conhecimento: é preciso garantir as condições concretas para que essa construção ocorra. Isso significa criar tempos e espaços para experiências reais, não mediadas por telas, que permitam à criança explorar, interagir, errar, experimentar e atribuir significado ao que vivencia.

Sem esse chão de experiências vivas, o construtivismo corre o risco de ser reduzido a um discurso bonito, porém desconectado das práticas e das necessidades da infância contemporânea.

Nessa reinterpretação, o diálogo com os pais trona-se imprescindível. É no ambiente familiar que a criança tem o primeiro e mais poderoso campo de experiências – e, portanto, é ali que se decide, em grande medida, se seu desenvolvimento será rico em interações humanas ou saturado por estímulos digitais fragmentados.

Pais e cuidadores necessitam compreender que oferecer à criança o tempo de brincar com outras crianças, conversar com adultos, participar de atividades cotidianas e enfrentar pequenas frustrações não é um luxo, mas uma necessidade neurobiológica para o desenvolvimento de funções cognitivas e socioemocionais.

A ausência dessas experiências não é compensada pela tecnologia, por mais “educativo” que um conteúdo do mundo digital possa parecer e oferecer.

Ao mesmo tempo, a escola deve se comprometer em combater a desinformação sobre a pedagogia construtivista. Isso significa esclarecer que não se trata de “deixar o aluno aprender sozinho”, ou de ignorar a necessidade de instrução direta, mas de reconhecer que o conhecimento se constrói na interação entre sujeito, objeto e contexto – uma interação que requer mediação intencional, desafios adequados e a construção de sentido coletivo.

Quando se reduz a criança a dados de desempenho e gráficos de progresso, substitui-se o processo vivo de aprender por um acompanhamento técnico que, embora útil para diagnósticos e planejamento, não pode ser o eixo central da prática pedagógica.

Essa nova abordagem também exige que os avanços da neurociência sejam incorporados sem cair no reducionismo biológico. O entendimento do funcionamento cerebral pode enriquecer e potencializar a pedagogia construtivista, mas não deve transformá-la em uma simples aplicação de protocolos baseados em métricas neurais.

A criança não é apenas um cérebro em desenvolvimento; é um ser inteiro, imerso em uma rede de relações, significados e contextos culturais. O risco de uma educação guiada exclusivamente por relatórios e testes padronizados é perder de vista a dimensão subjetiva, afetiva e social que sustenta a aprendizagem duradoura.

Se essa recontextualização não acontecer, a educação infantil caminhará para um cenário cada vez mais guiado por gráficos, checklists e metas numéricas, em detrimento das experiências vivas e significativas que formam o pensamento crítico, a autonomia e a capacidade de lidar com a complexidade do mundo.

Essa é uma preocupação ainda mais urgente quando olhamos para a geração Beta (2025-?), que será a primeira viver em um mundo onde a inteligência artificial (IA) estará plenamente integrada à tecnologia cotidiana.

Se já nos preocupamos com a geração Alpha (2010-2024), marcada por índices alarmante de déficits de aprendizagem e saúde mental, a geração Beta nos convoca a uma responsabilidade muito maior: garantir que, diante de um ambiente hiperconectado e regido por algoritmos e IA, que as crianças mantenham o vínculo com a experiência humana concreta, com a empatia e com a capacidade de construir sentido de forma ativa.

Essa é uma tarefa que não cabe apenas à escola ou à família, mas à sociedade como um todo – e cujo sucesso ou fracasso definirá a qualidade humana das próximas gerações.

7 Considerações finais

Ao revisitar o percurso histórico da pedagogia construtivista, é impossível ignorar que sua força teórica e prática esteve sempre vinculada à experiência concreta, à interação social presencial e à construção ativa do conhecimento pela criança em contato com o mundo real.

Entretanto, no início do século XXI, esse alicerce foi tensionado por uma transformação profunda: a forma de interação humana deslocou-se progressivamente para ambientes mediados por dispositivos digitais.

Cabe ressaltar que, a sobreposição do virtual sobre o real não apenas modificou o cotidiano infantil, mas também alterou as condições sobre as quais se apoiava a própria viabilidade da pedagogia construtivista.

Nesse cenário, a escola e a família passaram a lidar com um novo paradigma: a criança, antes vista prioritariamente como um sujeito em desenvolvimento cognitivo e emocional, passou a ser observada e interpretada cada vez mais pela ótica neurológica e diagnóstica.

Esse deslocamento, embora tenha raízes na preocupação legítima com dificuldades de aprendizagem e desenvolvimento, consolidou uma lógica de “neurocorreção”, em que a intervenção se volta para a reparação de déficits detectados, muitas vezes negligenciando a dimensão relacional, social e construtiva do aprender.

Assim, o diálogo entre educação e saúde se fortalece, mas corre o risco de reduzir a complexidade da infância a protocolos de ajuste, deixando em segundo plano o papel da vivência e da interação real na formação integral da criança.

Diante desse quadro, torna-se imperativa uma recontextualização do construtivismo. A sua promessa original – a de formar sujeitos críticos, autônomos e socialmente engajados – permanece válida, mas exige hoje um compromisso renovado da família e da escola em criar espaços e tempos para experiências não mediadas por telas. É preciso resgatar a centralidade da presença física, do olhar, da escuta e do toque como fundamentos da aprendizagem.

Tal urgência se intensifica ao olharmos para os dados da geração Alpha, que já apresenta índices preocupantes de diagnósticos de transtornos do neurodesenvolvimento, e para a geração Beta, que crescerá em um ambiente de tecnologia ainda mais imersiva e onipresente.

Se não tiver uma ação consciente e articulada, corremos o risco de consolidar um modelo de infância onde a dimensão humana e social da aprendizagem se perca, tornando o construtivismo uma teoria ancorada em um mundo que já não existe, quando, na verdade, necessitamos recontextualizá-lo para reconstruir, de forma humanizada, as gerações futuras – capazes de viver em mundo tecnológico sem perder a essência do que nos torna humanos.

Essa construção, no entanto, só será possível por meio de uma consciência clara e compartilhada da escola e da família de que vivemos em um novo contexto social e emocional.

Sem que essas duas agências educativas reconheçam e assumam seu papel diante dessa realidade, será praticamente impossível promover uma humanização adequada e equilibrada das futuras gerações, pois é na convergência de seus esforços que se estabelece o alicerce para uma infância plena, saudável e verdadeiramente baseada na construção do conhecimento e, sobretudo, humana.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BETTELHEIM, Bruno. Uma vida para seu filho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

CUNHA, Nilton Pereira da. As emoções e o desenvolvimento infantil na sociedade híbrida. Disponível em: https://revistatopicos.com.br/artigos/as-emocoes-e-o-desenvolvimento-infantil-na-sociedade-hibrida#:~:text=Na%20sociedade%20h%C3%ADbrida%2C%20as%20rela%C3%A7%C3%B5es,pode%20gerar%20uma%20desconex%C3%A3o%20emocional%20. Consultado em: 11/08/2025.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

HAN, Byung-Chul. A sociedade da transparência. Petrópolis: Vozes, 2018.

ILLUOZ, Eva. As emoções como mercadoria. São Paulo: Zahar, 2019.

MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez, 2002.

NUSSBAUM, Marta. Not for Profit: Why Democracy Needs the Humanities. Princeton: Princeton University Press, 2010.

PIAGET, Jean. A equilibração das estruturas cognitivas. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.

VYGOTSKY, Lev S. A formação social da mente> São Paulo: Martins Fontes, 2007.

WALLON, Henri. As origens do caráter na criança. Lisboa: Estampa: 1975.


1 Nilton Pereira da Cunha é Professor, Pesquisador, Escritor e Coordenador Educacional do Instituto Nacional de Evolução Humana. Graduado e Pós-graduação Lato e Stricto Sensu na área da Educação, também graduado e pós-graduado em Direito, com artigos e livros publicados em português e castelhano em vários países: Brasil, Argentina e Colômbia, tais como: O autismo e a interação social: Como desenvolver uma criança saudável na Era Digital; El autismo y la interacción social: como desarrollar una crianza saludable en la Era Digital; Educação, Família e Geração Digital: os desafios e perspectivas da pós-modernidade.

2 PIAGET, Jean. A equilibração das estruturas cognitivas. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.

3 VYGOTSKY, Lev S. A formação social da mente> São Paulo: Martins Fontes, 2007.

4 WALLON, Henri. As origens do caráter na criança. Lisboa: Estampa: 1975.

5 BETTELHEIM, Bruno. Uma vida para seu filho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

6 CUNHA, Nilton Pereira da. As emoções e o desenvolvimento infantil na sociedade híbrida. Disponível em: https://revistatopicos.com.br/artigos/as-emocoes-e-o-desenvolvimento-infantil-na-sociedade-hibrida#:~:text=Na%20sociedade%20h%C3%ADbrida%2C%20as%20rela%C3%A7%C3%B5es,pode%20gerar%20uma%20desconex%C3%A3o%20emocional%20. Consultado em: 11/08/2025.

7 HAN, Byung-Chul. A sociedade da transparência. Petrópolis: Vozes, 2018.

8 ILLUOZ, Eva. As emoções como mercadoria. São Paulo: Zahar, 2019.

9 NUSSBAUM, Marta. Not for Profit: Why Democracy Needs the Humanities. Princeton: Princeton University Press, 2010.

10 FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

11 MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez, 2002.