A LEI 15.100/2025: MARCO JURÍDICO DA RECONEXÃO COM A SOCIEDADE ANALÓGICA

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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.15272684


Nilton Pereira da Cunha1


RESUMO
O artigo propõe uma reflexão crítica sobre os impactos da hiperconexão na sociedade contemporânea, especialmente no contexto da infância, adolescência e do ambiente escolar Parte-se de uma análise histórica da soiedade analógica, compreendida como base estruturante do processo civilizatório, para então abordar a transição para uma sociedade híbrida marcada pela predominância crescente do virtual sobre o real. Destaca-se o papel da pandemia de Covid-19 como catalisador dessa mudança e seus efeitos no desenvolvimento neuropsíquico das novas gerações. A partir dessa realidade, discute-se a urgênia de políticas públicas e medidas jurídicas pautadas nos princípios da prevenção e da precaução, como forma de conter os danos decorrentes da exposição precoce e excessiva às tecnologias digitais. Por fim, o artigo analisa a Lei 15.100/2025, entendida como um marco normativo que visa restituir o espaço da experiência analógica no ambiente escolar, reconhecendo sua centralidade para o desenvolvimento humano integral.
Palavras-chave: Hiperconexão. Sociedade Analógica. Infância. Sociedade Híbrida. Lei 15100/2025.

ABSTRACT
This article proposes a critical reflection on the impacts of hyperconnection on contemporary society, especially in the context of childhood, adolescence, and the school environment. It begins with a historical analysis of analog society, understood as the structuring basis of the civilizing process, and then addresses the transition to a hybrid society marked by the growing predominance of the virtual over the real. The role of the Covid-19 pandemic as a catalyst for this change and its effects on the neuropsychic development of new generations is highlighted. Based on this reality, the article discusses the urgency of public policies and legal measures based on the principles of prevention and precaution, as a way to contain the damage resulting from early and excessive exposure to digital technologies. Finally, the article analyzes Law 15.100/2025, understood as a regulatory framework that aims to restore the space of analog experience in the school environment, recognizing its centrality for integral human development.
Keywords: Hyperconnection. Analog Society. Childhood. Hybrid Society. Law 15100/2025.

1 INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, o avanço vertiginoso das tecnologias digitais transformou de maneira profunda e irreversíveis as dinâmicas sociais, emocionais e cognitivas da vida humana. A integração contínua de dispositivos conectados ao cotidiano não apenas facilitou o acesso à informação e à comunicação, mas também redesenhou a forma como os indivíduos se relacionam com o tempo, o espaço e com o outro.

Essa transformação, muitas vezes celebrada como progresso inconstestável, tem gerado inquietações relevantes no campo da educação, da saúde e da formação ética das novas gerações. Em especial, observa-se um deslocamento precoce da infância para ambientes mediados por telas, com implicações ainda pouco compreendidas, mas já perceptíveis no comportamento, no desenvolvimento emocional e na qualidade das interações sociais.

Para compreender a profundidade dessas mudanças, é necessário revisitar o papel formativo das experiências ao logo da história humana. Antes a digitalização massiva, a construção do conhecimento, da linguagem e da cultura se dava por meio da convivência direta com o mundo físico e com as pessoas. Essa forma de existir, que acompanhou todo o processo civilizatório, começa a ser desestabilizada por um novo arranjo, que mistura o material e o imaterial em um fluxo ininterrupto de estímulos.

Diante desse cenário, o presente artigo propõe uma análise critica da sociedade atual, refletindo sobre os caminhos que nos trouxeram até aqui e os desafios emergentes que impõem à coletividade diante da necessidade de repensar suas escolhas. Através de um olhar que articula história, sociologia, psicologia e Direito, buscarmos compreender o significado e a urgência de proteger os espaços analógicos da infância e da adolescência.

A resposta a esse desafio não pode ser apenas cultural ou educacional: ela exige também fundamentos normativos e ações institucionais concretas – uma discussão que culmina, ao final, na análise da recente Lei 15.100/2025, que é uma volta ao mundo analógico no espaço escolar.

2 A HIRPERCONEXÃO NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA

A sociedade contemporânea é marcada por um fenômeno crescente e estrutural: a hiperconexão. Em um curto intervalo histórico, o mundo digital deixou de ser um complemento de realidade para se torna a principal moldura. Vivemos sob uma lógica de acesso imediato, estímulos constantes e presença virtual permanente. A conexão deixou e ser eventual para se torna onipresente, transformando-se em uma condição quase obrigatória para a participação social, profissional e até afetiva.

Esse cenário de conexão contínua não é neutro. Ele reconfigura o tempo, o espaço e a forma como os sujeitos se relacioam consigo mesmo, com os outros e com o mundo. E talvez o dado mais preocupante seja o fato de que essa hiperconexão tem alcançado de forma cada vez mais precoce o universo infantil. Desde os primeiros anos de vida – ou até mesmo no primeiros meses – as crianças têm sido exposta a dispositivos digitais, mergulhando em um ambiente de estímulos rápidos, imagens vibrantes e recompensas instantâneas, que moldam profundamente seus padrões de atenção, linguagem, emoção e interação.

As telas estão em todos os lugares: no colo dos pais, nas salas de aula, nas praças, nas camas, inclusive, nos carinhos de bebê2. A experiência humana passou a ser mediada por dispositivos que oferecem estímulos visuais e sonoros incessantes, moldando a percepção, o comportamento e o modo como o cérebro se organiza. Trata-se de um fenômeno que ultrapassa o simples uso da tecnologia: a hiperconexão é hoje o ambiente dominante no qual os sujeitos se formam, especialmente as crianças.

Essa nova ecologia digital, contudo, traz consequências que ainda estamos começando a compreender – e que, muitas vezes, tentamos minimizar. A substituição das interações humanas diretas por interações mediadas por telas empobrece a experiência sensorial e afetiva. A ausência do olhar, do toque, da espera, do silêncio e da frustração, compromete o desenvolvimento da empatia, da linguagem e do controle emocional3.

O excesso de estímulos também compromete a atenção sustentada, dificultando o pensamento abstrato e encurta a tolerância ao tédio, elemento fundamental para a criatividade e o autoconhecimento.

Nesse contexto, parece ter se perdido – ou pelo menos sido silenciado – o valor da sociedade analógica. Uma sociedade construída sobre a presença física, a interação concreta, o tempo real e a imprevisibilidade do outro. Uma sociedade em que o aprendizado acontecia no ritmo do corpo e da experiência direta, em que o mundo não cabia em uma tela e em que o desenvolvimento humano ocorria por meio do contato com o ambiente real.

Retomar a discussão sobre o mundo analógico não é um gesto nostálgico. É uma atitude crítica diante de uma lógia de vida que ameaça desumanizar a infância e empobrecer o tecido social. A sociedade analógica não representa um passado superado, mas um horizonte de recuperação daquilo que é essencial ao humano: o encontro, o tempo compartilhado, o afeto real, a construção subjetiva a partir da experiência vivida.

Antes de discutir qualquer política, norma ou diretriz, é necessário reconhecer que a hiperconexão alterou profundamente as bases do desenvolvimento humano. E que, para resgatar o que está em risco – a formação da subjetividade, a saúde mental, a infância –, será preciso recuperar a centralidade do mundo analógico como base da vida em sociedade.

3 A SOCIEDADE ANALÓGICA COMO FUNDAMENTO DO PROCESSO CIVILIZATÓRIO

A humanidade construiu seu caminho civilizatório sobre bases essencialmente analógicas. A linguagem oral, os gestos, os rituais, os mitos compartilhados à beira do fogo, as trocas simbólicas e afetivas entre gerações: tudo isso compôs o aracabouço pelo qual os humanos aprenderam a viver em grupo, a formar cultura e a transmitir conhecimento4.

Durante milênios, a experiênia humana esteve profundamente enraizada na realidade concreta. A infância era vivida no corpo, na natureza, no convívio com os mais velhos. O saber se construía na observação direta, na escuta paciente, na repetição ritualística dos gestos, dos contos e dos valores. Cada comunidade humana, de alguma forma, cosolidava uma pedagogia implícita baseada na imersão no real – uma pedagogia da presença, da escuta, do tempo.

Foi nesse mundo analógio que a linguagem floresceu, que o pensamento simbólico se desenvolveu, que a efetiviade humana ganhou contornos profundos e duradouros. O tempo era vivido de forma circular ou linear, mas sempre com base em ciclos naturais, experiências diretas e relações pessoais. A transmissão do conhecimento, mesmo depois da invenção da escrita, manteve a mediação humana como centro: o mestre, o contador de histórias, o avô, o artesão, o educador.

Mesmo com os avanços da modernidade e o surgimento de novas formas de mediação – como a imprensa, o rádio e a televisão – a sociedade manteve, até o final do século XX, uma estrutura profundamente analógia: os vínculos sociais se davam em encontros presenciais, os aprendizados nasciam de experiências concretas, os laços afetivos eram cultivados com tempo e convivência.

Essa longa tradição da experiência vivida é o que está sendo dramaticamente interrompido pela sociedade híbrida – uma forma de organização social em que o real e o vritual se entrelaçam de maneira quase indissociável. Não se trata apenas da presença de telas, mas da substituição crescente do mundo concreto por simulações humanas diretas, da alienação sensorial e afetiva que transforma a vida cotidiana5.

O que hoje se chama de “sociedade analógica” não é, portanto, um modelo ultrapassado, mas a própria história da humanidade até aqui. É o ambiente onde a subjetividade humana foi formada, onde o pensamento crítico floresceu, onde os vínculos sociais foram possíveis.

Rediscutir a sociedade analógica é, nesse sentido, um movimento de reencontro com as bases da nossa próprias civilização. Não se trata de recusar os avanços tecnológicos, mas de compreender o que está em jogo quando o elo com a experiência concreta se enfraquece.

Antes de falarmos sobre respostas, prevenções é preciso entender o que realmente mudou na esturutura da vida cotidiana e como essas mudanças nos afastaram do tempo vivido, da presença do outro, da profundidade dos vínculos. É nesse ponto que merge a necessidade de examinar com atenção o advento da sociedade híbrida – essa nova forma de organização social em que o real e o digital se fundem, com efeitos ainda pouco compreendidos sobre o desenvolvimento humano.

4 A SOCIEDADE HÍBRIDA E A RUPTURA COM A EXPERIÊNCIA ANALÓGICA

A entrada no século XXI trouxe consigo uma recofiguração profunda das formas de viver, conviver e aprender. A sociedade híbrida – caracterizada pela fusão entre o mundo físico e o digital – passou a moldar o cotidiano humano em uma velocidade sem precedentes. Em um intervalo de apenas 25 anos, a virtualidade não apenas se infiltrou nas relações sociais, mas passou a predominar sobre o real, alterando os modos de perceber o tempo, o corpo, o outro e a própria existência6.

Enquanto a sociedade analógica se baseava na experiência direta e concreta, na convivência sensível e nos ritmos naturais da vida, a sociedade híbrida instaurou uma lógica de simultaneidade, aceleração e desmaterialização. Os vínculos passaram a ser mediados por tela, algorítmos e avatares. A presença cedeu lugar à conexão. A escuta silenciosa deu lugar à resposta instantânea. A linguagem corporal foi substitída por emojis.

Esse processo, embora em curso desde os anos de 2000, sofreu um aceleramento vertiginoso com a pandemia da Covid-19. O isolamento social, necessário naquele momento, foi o gatilho para a virtualização massiva de quase todas as esferas da vida: educação, trabalho, lazer, saúde, vínculos afetivos, relações familiares. A adaptação ao digital foi imposta como urgência – e, ao mesmo tempo, abriu caminho para uma normalização do distanciamento humano.

Pode-se afirma, com segurança, que o maior legado da pandemia não foi sanitário, mas cultural e antropológico: ela consolidou a sociedade híbrida como modelo dominante. A excepcionalidade virou regra. A vida digital se estabilizou como permanente, mesmo com o retorno do convívio físico. A convivência virtual não apenas se manteve, mas ganhou legitimidade e preferência em muitos contextos.

O que era exceção se tornou estrutura. E, com isso, a ruptura com a base do mundo analógico foi consumada. O corpo passou a ser descartável; o toque, desnecessário; o tempo real, opcional. As crianças, os adolescentes, os adultos e os idosos foram, cada qual a sua maneira, incorporando a essa nova lógica – muitas vezes sem perceber que algo fundamental havia sido perdido: o enraizamento no real, a construção da subjetividade na presença do outro, a mediação humana como base do desenvolvimento.

5 O IMPACTO DA SOCIEDADE HÍBRIDA SOBRE O DESENVOLVIMENTO HUMANO

A consolidação da sociedade híbrida representa uma das mais profundas transformações do processo civilizatório. Se antes a humanidade caminhava sobre uma base sólida de experiências sensoriais, conveniências sensoriais, direta e mediações humanas, agora encontra-se imersa em um ambiente altamente digitalizado, em que o real é constantemente recoberto - ou substituído – por simulações.

O impacto mais preocupante dessa transição não é meramente tecnológico, mas antropológico: diz respeito à maneira como as novas gerações estão sendo formadas. As crianças da chamada geração Alpha, nascidas já dentro da lógica híbrida, estão tendo suas estruturas cognitivas, afetivas e relacionais moldadas em um ambiente onde o virtual se sobrepõe ao real desde os primeiros anos de vida. O corpo, o tempo, o olhar e o outro – elementos fundamentais ao desenvolvimento – tornam-se periféricos. A presença cede espaço à conexão. A exploração concreta do mundo é trocada por estímulos rápidos, luminosos e infinitamente repetitivos.

Nesse novo cenário, a infância deixa de ser um tempo de construção progressiva da subjetividade e passa a ser colonizada por padrões digitais. A plasticidade cerebral, que deveria estar voltada para a construção de vínculos, para a escuta, para o jogo simbólico e para a experiência com o real, é agora canalizada para estímulos que favorecem a dispersão, a impulsividade e a busca constante por dopamina7.

A consequência é uma geração com crescente dificuldade de lidar com o tédio, com a espera, com a frustração, com a convivência. Uma geração com menos habilidades socioemocionais, com dificuldades de concentração. Linguagem e empatia. Uma geração que, em muitos casos, não está plenamente doente – mas está se desenvolvendo em um ambiente doente.

A sociedade híbrida, ao naturalizar a mediação tecnológica como forma dominante de interação, compromete a construção e estruturas mentais saudáveis, principalmente nos primeiros anos de vida. E o mais grave é que isso ocorre de forma silenciosa e, muitas vezes, celebrada como progresso. A lógica do mercado, os interesses da indústria do entretenimento e o próprio discurso tecnocrático da educação digital contribuem para mascarar os danos de um ambiente que fere, ainda que sutilmente, o próprio desenvolvimento humano.

Não se trata de demonizar a tecnologia, mas de proteger as fases mais sensíveis da vida humana de uma exposição precoce, excessiva e desregulada a ela. O equilíbrio entre o mundo digital e mundo concreto precisa ser urgentemente restabelecido – e isso exige mais do que orientações familiares ou escolhas individuais.

É nesse ponto que emerge a necessidade de uma resposta coletiva, política e jurídica. A defesa da infância e do desenvolvimento humano deve ser compreendida como responsabilidade de todos: famílias, escolas, comunidades, meios de comunicação e, especialmente, do poder público.

São necessárias políticas públicas preventivas, protocolos institucionais de proteção, ações educativas constantes e, sobretudo, medidas jurídicas capazes de enfrentar os efeitos nocivos da sociedade híbrida. O Estado não pode ser omisso diante de um cenário que compromete o futuro humano em sua base mais essencial. A prevenção não é apenas uma escolha ética – é um imperativo civilizatório.

6 OS PRINCÍPIOS JURÍDICOS DA PREVENÇÃO E PRECAUÇÃO E A URGÊNCIA DE UMA CONSCIÊNCIA COLETIVA

Diante do cenário apresentado, em que a sociedade híbrida impõe riscos concretos e simbólicos ao desenvolvimento humano, especialmente nas fases iniciais da vida, é imprescindível recorrer a fundamentos já consolidados no campo do Direito, como os princípios da prevenção e da precaução.

Esses princípios amplamente aplicados em questões ambientais e de saúde pública, ganham aqui um novo contorno: o da proteção da forma psíquica, cognitiva e social das novas gerações diante de um ambeinte digitalizado em excesso.

O princípio da precaução orienta que, mesmo na ausência de certeza científica absoluta, havendo indícios sérios de riscos relevantes e irreversíveis, ações devem ser tomadas para evitar danos. Já o princípio da prevenção atua quando esses danos são já conhecidos ou razoavelmente previsíveis – como ocorre hoje, com os efeitos da hiperexposição digital na infância. A ciência vem acumulando evidências robustas sobre os impactos negativos da introdução precoce de telas, da diminuição do tempo de interação presencial e da perda de experiências sensoriais diretas no desenvolvimento de crianças e adolescentes.

Apesar disso, a consciência coletiva sobre esse risco permanece baixa. Os pais, cuidadores e até os profissionais da educação e da saúde, muitas vezes, não têm acesso às informações necessárias ou são atravessados por discursos que associam a tecnologia unicamente ao progresso, ignorando ou criando uma linha de fumaça nos efeitos colaterais desse avanço.

A sociedade como um todo ainda não percebe que está diante de uma emergência silenciosa, cujo custo só será plenamente compreendido no futuro – quando talvez já seja tarde para revertê-lo.

Não basta, portanto, confiar na decisão individual de cada família ou no bom senso de cada instituição. O problema é estrutural, sistêmico, e demanda ações institucionais organizadas, contínuas e baseadas em evidências. É nesse sentido que os princípios da precaução e da prevenção precisam sair do campo teórico e orientar políticas públias concretas, estratégicas educativas e, sobretudo, medidas jurídicas capazes de estabelecer limites, critérios e responsabilidades diante do risco coletivo instalado.

A proteção da infância, enquanto bem jurídico indisponível, exige uma atuação proativa do Estado e da sociedade. E é nesse contexto que surge, com ineditismo e coragem a Lei 15.100/2025.

7 A EMERGÊNCIA DA LEI 15.100/2025: UM MARCO HISTÓRICO DIANTE DO COLAPSO SILENCIOSO.

A promulgação da Lei 15.100, em 2025, não surge do acaso. Ela representa a resposta a um processo histórico acumulativo de erosão das bases analógicas da infância, intensificado nas duas últimas décadas, mas que se acelerou vertiginosamente após a pandemia da Covid-19. A crise sanitária mundial não apenas revelou desigualdades já existentes, como serviu de catalisador para uma digitalização forçada da vida cotidiana, especialmente da educação. A escola, que até então representava o último bastão da convivência concreta, tornou-se, repentinamente, um território virtualizado.

Com o retorno às atividades presenciais, muitos acreditavam que haveria um equilíbrio espontâneo entre o digital e o real. No entanto, o que se viu foi a consolidação da lógica híbrida como norma: telas permanentes em sala de aula, plataformas substituindo o contato humano, algoritmos guiando o ritmo da aprendizagem. A pandemia foi superada – mas seu maior legado foi a dessiminação de uma infância digitalizada, desvinculada da corporeidade, da coletividade e da experiência direta com o mundo.

Esse cenário gerou um alerta crescente entre pesquisadores, educadores, profissionais da saúde e movimentos sociais preocupados com o impacto dessa nova organização da vida escolar sobre o desenvolvimento infantil. Era necessário reverter a tendência de substituição do real pelo virtual no espaço da escola, não por saudosismo, mas por reconhecimento científico, pedagógico e humano de que a escola é , antes de tudo, lugar de presença – e que presença não se reduz a conexão.

Foi dessa urgênia história, alimentada por diagnósticos cada vez mais graves de sofrimento psíquico, dificuldade de aprendizagem e desregulação emocional em crianças e adolescentes, que nasceu a Lei 15.100/2025.

8 UM RESPOSTA JURÍDICA E POLÍTICA PARA O RETORNO AO FUNDAMENTO CIVILIZATÓRIO HUMANO

A Lei 15.100/2025 estabelece diretrizes concretas para a redução drástica das telas no ambiente escolar. Inspirada nos principios jurídicos da precaução e da prevenção, e sustentada por um amplo diálogo interdisciplinar, ela propõe o resgate da sociedade analógica como base para a reconstrução da experiência escolar, especialmente nas faixas etárias mais sensíveis ao desenvolvimento neurológio e socioafetivo.

Trata-se de um marco legal que reconhece o valor insubstituível de interaçõa humana, do tempo não fragmentado, da escuta, do jogo simbólico, da leitura em papel, da experimentação concreta e do vínculo real como o outro e com o mundo. Ao propor o retorno ao analógico no espaço escolar, a lei não ignora os avanços tecnológicos, mas reestabelece uma linha de proteção clara: na infância, o digital deve ser exceção – e não regra.

Mais do que uma norma administrativa, a Lei 15.100/2025 é uma declaração de princípios: ela afirma que o futuro da infância não pode se entregue ao automatismo tecnológico. Afirma que o desenvolvimento humano exige presença, tempo, silêncio, frustração e afeto. Afirma que a escola tem um papel civilizatório que não pode ser terceirizado a plataformas digitais.

Essa lei simboliza a tomada de consciência institucional diante de uma ruptura histórica: a da supremacia do virtual sobre o real, do imediato sobre o contínuo, do automatismo obre a experiência. Ao estabelecer limites claros para o uso de telas e dispositivos digitais no ambiente escolar, especialmente nas etapas iniciais da educação, a lei inaugura uma nova fase de reconstrução do vínculo da infância e adolescência com a corporeidade e mundo concreto.

Seu conteudo reflete uma resposta jurídica firme, orientada pelos princípios jurídicos da prevenção e da precaução, diante das evidências acumuladas sobre os prejuízos da exposição precoce e excessiva ao digital.

A norma determina, entre outras medidas:

  • Art. 1º Esta Lei tem por objetivo dispor sobre a utilização, por estudantes, de aparelhos eletrônicos portáteis pessoais, inclusive telefones celulares, nos estabelecimentos públicos e privados de ensino da educação básica, com o objetivo de salvaguardar a saúde mental, física e psíquica das crianças e adolescentes.

  • Parágrafo único. Para fins desta Lei, consideram-se sala de aula todos os espaços escolares nos quais são desenvolvidas atividades pedagógicas sob a orientação de profissionais de educação.

  • Art. 2º Fica proibido o uso, por estudantes, de aparelhos eletrônicos portáteis pessoais durante a aula, o recreio ou intervalos entre as aulas, para todas as etapas da educação básica.

  • § 1º Em sala de aula, o uso de aparelhos eletrônicos é permitido para fins estritamente pedagógicos ou didáticos, conforme orientação dos profissionais de educação.

A lei também prevê que as Seretarias de Educação dos estados e municípios deverão implementar polítias públicas de conscientização voltadas para famílias, escolas e comunidades, ampliando a noção de que proteger a infância é proteger o futuro da própria sociedade.

Ao centrar-se na escola como território simbólico e concreto de reconstrução do vínculo com o mundo real, a lei 15.100/2025 não apenas regula condutas, mas reivindica a importânia de resgatar o mundo analógico como condição indispensável ao desenvolvimento humano e ao próprio processo civilizatório. O analógico, aqui, não é retrocesso: é fundamento. É nele que se enraízam a linguagem, o afeto, a ética, a convivênia, a empatia, a cultura.

Trata-se, portanto, de uma lei de proteção à infância, mas também de proteção à humanidade. Em tempos em que tudo tende à virtualização e a aceleração, a lei 15.100/2025 nos convida a uma pausa. A um reencontro. A uma reconexão – não com a máquina, mas com a experiência humana em sua inteireza.

9 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo deste artigo, buscamos refletir sobre os impactos da hiperconexão na sociedade contemporânea, analisando sua ruptura com os fundamentos da experiência humana analógia e seus efeitos especialmente sobre a infância e o ambiente escolar. Vimos que a chamada sociedade híbrida – marcada pela fusão entre o real e o virtual – promoveu, em poucos anos, uma reorganização profunda na vida cotidiana, alterando modos de convivência, percepção de tempo, formas de aprendizagem e vínculos afetivos.

Retornamos, então, ao contexto histórico da sociedade analógica, que acompanhou milênios de desenvolvimneto humano, estruturando os laços sociais, culturais e psíquicos que possibilitam o próprio processo civilizatório. Foi justamente essa lógica a experiência direta com o mundo, com o corpo, com a palavra falada e ouvida, com o tempo contínuo e compartilhado, que foi interrompida - e, muitas vezes, esquecidade – diante da aceleração promovida pela sociedade digital.

A pandemia da Covid-19 representou um ponto de inflexão. A virtualização forçada da vida aprofundou os riscos de uma infância desconectada do real e fragilizada em seus vínculos afetivos, motores e sociais. Os efeitos dessa ruptura vêm se manifestando de forma silenciosa, mas crescente: aumento de transtorno do neurodesenvolvimento, dificuldades de atenção, impulsividade, desregulação emocional, perda de repertório simbólico.

Nesse contexto, defendemos a urgênia de medidas preventivas e políticas públicas fundamentadas nos princípios jurídicos da precaução e da prevenção, como forma de proteger o desenvolvimento humano desde os primeiros anos de vida. No entanto, identificamos também uma lacuna grave: a maior parte dos pais, cuidadores e instituições ainda não têm a consciência dos riscos associados à exposição precoce e excessiva às tecnologias digitais. Falta formação, capacitação, informação e, sobretudo, coragem institucional para enfrentar os desafios impostos por esse novo paradigma.

Foi nesse cenário que emergiu a Lei 15.100/2025, marco legal que busca restituir o lugar da experiência analógica no ambiente escolar. Mais do que uma norma técnica, a lei representa uma virada ética, pedagógica e civilizatória, ao reafirmar que a infância e a adolescência precisa do real para se desenvolver de forma plena. A escola, nesse sentido, assume o papel de guardiã da presença, da corporeidade, da linguagem viva e da convivênia concreta.

Concluímos, portanto, que a defesa da sociedade analógica – especialmente no universo da criança e adolescência – e de forma ainda mais especial, da primeira infância, não é resistência nostalgíca ao novo, mas responsabilidade com aquilo que sustenta a própria humanidade.

O digital pode ser ferramenta, mas jamais fundamento. Cabe a nós, enquanto sociedade, decidir se queremos um futuro conectado a telas ou reconectado com o essecial, ou seja, esse essencial representa à construção civilizatória humana.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CHAVEZ, Valeria. “El autismo es una pandemia” advirtió un reconocido psiquiatra especializado en neurodesarrollo. Disponível em: “El autismo es una pandemia”, advirtió un reconocido psiquiatra especializado en neurodesarrollo - Infobae. Consultado em: 21/04/25.

CUNHA, Nilton Pereira da. As emoções e o desenvolvimento infantil na sociedade híbrida. Disponível em: https://revistatopicos.com.br/artigos/as-emocoes-e-o-desenvolvimento-infantil-na-sociedade-hibrida. Consultado em: 21/04/25.

_______. Da sociedade analógica à sociedade híbrida: seus ecossistemas e o impacto no desenvolvimento infantil. Disponível em: https://revistatopicos.com.br/artigos/da-sociedade-analogica-a-sociedade-hibrida-seus-ecossistemas-e-o-impacto-no-desenvolvimento-infantil. Consultado em: 21/04/2025.

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_______. A reconfiguração imposta pela sociedade híbrida: é estrutural, inclusive com implicações na subjetividade humana. Disponível em: https://revistatopicos.com.br/artigos/a-reconfiguracao-imposta-pela-sociedade-hibrida-e-estrutural-inclusive-com-implicacoe-na-subjetividade-humana. Consultado em: 21/04/2025.


1 Nilton Pereira da Cunha é Professor, Mestre em Ciência da Educação, Doutorando, Psicopedagogo e Escritor, com graduação e pós-graduação lato e stricto sensu na área da educação e também graduado e pós-graduado em Direito. Professor de Educação Especial por mais de uma década pela Secretaria de Educação de Pernambuco. Autor de dezenas de artigos publicados em vários países da América Latina, por exemlo: Brasil, Argentina e Colômbia. Também com mais de uma dezena de livros públicados na língua portuguesa e em castelhano, entre eles: O autismo e a interação social: como desenvolver uma criança saudável na Era Digital; El autismo y la interación social: cómo desarrollar una crianza saludable en la Era Digital; Educação, Família e Geração Digital: desafios e perspectivas da pós-modernidade.

2 CHAVEZ, Valeria. “El autismo es una pandemia” advirtió un reconocido psiquiatra especializado en neurodesarrollo. Disponível em: “El autismo es una pandemia”, advirtió un reconocido psiquiatra especializado en neurodesarrollo - Infobae. Consultado em: 21/04/25.

3 CUNHA, Nilton Pereira da. As emoções e o desenvolvimento infantil na sociedade híbrida. Disponível em: https://revistatopicos.com.br/artigos/as-emocoes-e-o-desenvolvimento-infantil-na-sociedade-hibrida. Consultado em: 21/04/25.

4 BURNS, Edward McNall. História da civilização ocidental: do homem das cavernas até a bomba atômica. Porto Alegre: Globo, 1981.

5 CUNHA, Nilton Pereira da. Da sociedade analógica à sociedade híbrida: seus ecossistemas e o impacto no desenvolvimento infantil. Disponível em: https://revistatopicos.com.br/artigos/da-sociedade-analogica-a-sociedade-hibrida-seus-ecossistemas-e-o-impacto-no-desenvolvimento-infantil. Consultado em: 21/04/2025.

6 CUNHA, Nilton Pereira da. A identidade fluida e fragmentada na sociedade híbrida. Disponível em: https://revistatopicos.com.br/artigos/a-identidade-fluida-e-fragmentada-na-sociedade-hibrida. Consultado em: 21/04/2025.

7 Cunha, Nilton Pereira da. A reconfiguração imposta pela sociedade híbrida: é estrutural, inclusive com implicações na subjetividade humana. Disponível em: https://revistatopicos.com.br/artigos/a-reconfiguracao-imposta-pela-sociedade-hibrida-e-estrutural-inclusive-com-implicacoe-na-subjetividade-humana. Consultado em: 21/04/2025.