UMA ANÁLISE PSICANALÍTICA DO DISCURSO NORMATIVO DO MERCADO SOBRE SAÚDE MENTAL
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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.17162385
Marco Antônio de Carvalho Assis1
RESUMO
Este artigo analisa o discurso contemporâneo sobre a saúde mental a partir de uma dupla perspectiva: a da racionalidade normativa de mercado, sustentada pelo neoliberalismo e pelo paradigma biomédico, e a da psicanálise. Argumenta-se que a crescente visibilidade da saúde mental coexiste paradoxalmente com uma hiperinflação diagnóstica e uma patologização generalizada do sofrimento. O discurso hegemônico, ao individualizar e medicalizar o mal-estar, opera uma despolitização que serve aos imperativos de performance e consumo. Em contrapartida, a psicanálise oferece um arcabouço teórico-clínico que permite desvelar a dimensão política deste processo. Ao distinguir radicalmente o sintoma, como formação singular do inconsciente, do transtorno, como categoria nosológica, a psicanálise se posiciona como um discurso de resistência. Ela questiona o ideal de felicidade promovido pelo mercado e propõe uma ética do desejo, que aposta na capacidade do sujeito de inventar uma resposta singular ao mal-estar estrutural da condição humana, em oposição à normatização dos corpos e mentes.
Palavras-chave: Saúde Mental; Neoliberalismo; Psicanálise; Medicalização; Mal-Estar.
ABSTRACT
This article analyzes the contemporary discourse on mental health from a double perspective: that of the normative rationality of the market, supported by neoliberalism and the biomedical paradigm, and that of psychoanalysis. It is argued that the increasing visibility of mental health paradoxically coexists with diagnostic hyperinflation and a generalized pathologization of suffering. The hegemonic discourse, by individualizing and medicalizing malaise, operates a depoliticization that serves the imperatives of performance and consumption. On the other hand, psychoanalysis offers a theoretical-clinical framework that allows us to unveil the political dimension of this process. By radically distinguishing the symptom, as a singular formation of the unconscious, from the disorder, as a nosological category, psychoanalysis positions itself as a discourse of resistance. She questions the ideal of happiness promoted by the market and proposes an ethics of desire, which bets on the subject's ability to invent a singular response to the structural malaise of the human condition, as opposed to the normalization of bodies and minds.
Keywords: Mental health; Neoliberalism; Psychoanalysis; Medicalization; Malaise
1. INTRODUÇÃO
Vive-se um paradoxo central na atualidade: nunca se falou tanto em "saúde mental", que ocupa espaço crescente na mídia, nas políticas públicas e no cotidiano, ao mesmo tempo em que se observam fenômenos como uma "epidemia universal de depressão" e uma "hiperinflação diagnóstica” segundo Safatle, V. (2022). Esta contradição sugere que o próprio discurso hegemônico sobre a saúde mental, longe de ser apenas uma solução, pode ser um fator na proliferação e na formatação do sofrimento que pretende tratar. O aumento exponencial no diagnóstico de transtornos e na prescrição de psicofármacos aponta para uma transformação profunda na maneira como o sofrimento psíquico é concebido, administrado e vivenciado na cultura (Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, 2023).
A tese central deste trabalho é que o discurso normativo de mercado, sustentado por uma aliança estratégica entre a racionalidade neoliberal e o paradigma biomédico, opera uma captura e uma despolitização do sofrimento psíquico. Sob a égide da performance e da auto-otimização, o mal-estar é sistematicamente retirado de seu contexto social e político para ser reinscrito no corpo individual como uma disfunção neuroquímica. Em oposição a essa lógica, a psicanálise oferece um arcabouço teórico e clínico que permite não apenas desvelar a dimensão política deste processo, mas também resgatar a singularidade irredutível do sujeito. A análise aqui proposta se concentrará na oposição fundamental entre a lógica que transforma o sujeito em objeto de gestão e a aposta psicanalítica no sujeito do inconsciente como via de resistência.
Para desenvolver esta argumentação, o artigo está estruturado em quatro partes. Primeiramente, analisa-se o contexto sociopolítico da governamentalidade neoliberal, que formata um sujeito-empresa governado pelo imperativo da performance. Em seguida, investigam-se os mecanismos de medicalização e patologização da vida, com foco na aliança entre o modelo biomédico e a indústria farmacêutica. A terceira parte apresenta a resposta da psicanálise, centrada na distinção crucial entre o sintoma como invenção singular e o transtorno como categoria normativa. Por fim, aprofunda-se a crítica psicanalítica ao ideal de felicidade e expõe-se a ética do desejo como um contraponto radical à lógica do consumo e da adaptação.
2. A GOVERNAMENTALIDADE NEOLIBERAL E A GESTÃO DO SOFRIMENTO
O Sujeito-Empresa e o Imperativo da Performance
A governamentalidade neoliberal opera pela transformação do sujeito em um "empresário de si mesmo". Nesta lógica, cada indivíduo é incitado a gerir sua vida como uma empresa, internalizando valores como competição, risco, flexibilidade e auto-otimização. Consequentemente, o sujeito é responsabilizado integralmente não apenas por seu sucesso, mas, de forma crucial, por seu fracasso e seu adoecimento (Pereira, M. E. C. 2021).
Nesse cenário, emerge o que se pode chamar de "imperativo da performance” (Pereira, M. E. C., & Burity, M. A. 2015) Este imperativo funciona como um novo e poderoso mandato superegoico que substitui a antiga lógica da proibição e do dever pela injunção incessante ao gozo, à produtividade e à eficiência. O discurso da liberdade, encapsulado em lemas como "Yes, you can!", mascara uma forma de coação particularmente eficaz, pois a exploração passa a ser autoimposta, internalizada como um projeto de autorrealização, segundo Reis, V. A. W. dos. (2022). Esta exigência de performance contínua, associada a uma "cultura do narcisismo" que instiga o autocentramento e a competitividade, gera um estado de tensão e ansiedade permanentes, de acordo com Bezerra, B. (2020). O indivíduo se sente cronicamente "aquém em relação às imposições de uma proatividade desenfreada", o que cria um terreno fértil para a proliferação de diagnósticos como depressão, ansiedade generalizada e fobia social (Alves, N. D. 2024)
2.1 A PATOLOGIZAÇÃO DO FRACASSO E A DESPOLITIZAÇÃO DO MAL-ESTAR
Neste contexto, o sofrimento psíquico é sistematicamente despolitizado. Segundo Leão, A., & Barros, S. (2022), a angústia decorrente da precarização do trabalho, da instabilidade dos laços sociais e das políticas de austeridade fiscal é reconfigurada como um problema estritamente individual, uma falha bioquímica no cérebro do sujeito. O conceito de "precariedade subjetiva" é central para compreender esse processo: a incerteza, a instabilidade e o risco, categorias intrínsecas ao capitalismo contemporâneo, são internalizadas como normas de vida, e o sofrimento que emerge dessa condição é reduzido ao indivíduo, obscurecendo sua origem social e política, segundo Viana, T. de C., & Neves, A. S. (2022).
É aqui que a crescente tendência de explicar todo o sofrimento psíquico em termos neurobiológicos, um fenômeno, que segundo Russo, J. A. (2023) é denominado "cerebralização" , revela sua função como uma sofisticada tecnologia de poder. Este processo não representa um avanço científico neutro. Pelo contrário, ele é fundamental para a governamentalidade neoliberal. Ao produzir uma explicação "científica" que localiza a causa do sofrimento não nas contradições do sistema, mas em um "desequilíbrio químico" individual, a cerebralização desvia o olhar das condições sociais, políticas e econômicas que geram o mal-estar. A solução, portanto, deixa de ser a transformação social e passa a ser a intervenção farmacológica individual. Este eslocamento transforma um problema eminentemente político em um problema técnico-médico, neutralizando seu potencial crítico e reforçando o status quo. Trata-se de uma forma de psicopolítica, na qual o poder se exerce diretamente sobre a psique, moldando a própria percepção que o sujeito tem de seu sofrimento.
3. A MEDICALIZAÇÃO DA VIDA E A FABRICAÇÃO DE DOENÇAS
O principal mecanismo pelo qual a gestão neoliberal do sofrimento se torna operacional é a medicalização, um processo multifacetado que transforma problemas humanos, sociais e políticos em patologias médicas, criando um vasto mercado para suas "soluções".
3.1 A ALIANÇA TECNOCIENTÍFICA: O MODELO BIOMÉDICO E A INDÚSTRIA FARMACÊUTICA
O modelo biomédico, com sua abordagem ontológica que concebe a doença como uma entidade externa a ser combatida e erradicada, conforme explica a Universidade Aberta do SUS (2025), oferece o solo epistemológico ideal para a mercantilização da saúde. Sua lógica reducionista e focada no corpo biológico se alinha perfeitamente a uma abordagem que busca soluções técnicas e individualizantes para problemas complexos.
Essa base conceitual permite uma aliança estratégica e altamente lucrativa entre a medicina e a indústria farmacêutica, segundo Nascimento, R. L. R. (2019). Conforme denunciado por pesquisadores como Paulo Amarante, "a saída lucrativa da química salvadora que dociliza os corpos e mentes" tornou-se um dos pilares do capital neoliberal (Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, 2019). A indústria farmacêutica e seus postos de distribuição experimentam um crescimento exponencial, impulsionados pela capacidade de transformar o sofrimento cotidiano em oportunidade de negócio. Essa aliança não apenas oferece medicamentos, mas participa ativamente da construção social das doenças que esses medicamentos se propõem a tratar.
3.2 "DISEASE-MONGERING": A ENGENHARIA DO SOFRIMENTO LUCRATIVO
O processo de medicalização não consiste primariamente na descoberta de novas doenças, mas na construção social e no marketing de novas categorias patológicas. Trata-se de uma estratégia deliberada de criação de mercado que opera ao estreitar progressivamente os limites da normalidade para, em seguida, vender soluções para as "anormalidades" recém-criadas. Este fenômeno é conhecido como "disease-mongering", que pode ser traduzido como "fabricação" ou "tráfico de doenças" de acordo com Mattos, A. (2023, 22 de agosto).
Esse processo segue um roteiro bem definido, como o descrito por Lynn Payer, que inclui estratégias como tomar uma função normal e insinuar que há algo errado com ela, definir a maior parcela possível da população como afetada, enquadrar a condição como um desequilíbrio químico e promover a tecnologia como uma solução mágica e sem riscos. O resultado é uma "hiperinflação diagnóstica”, a criação de "pré-doenças" e o constante rebaixamento dos pontos de corte para fatores de risco, o que efetivamente anula a distinção entre saúde e doença e cria um imenso "reservatório de doenças" pronto para o consumo de fármacos e intervenções. A expansão vertiginosa de diagnósticos como o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) e a dislexia no campo da educação é um exemplo prático de como experiências humanas de dificuldade e diferença são reembaladas como transtornos a serem medicados, de acordo com Nascimento, R. L. R. (2019).
3.3 A REDUÇÃO DO SUJEITO AO CÉREBRO
A "cerebralização do sofrimento" representa o ápice desse processo de medicalização. Essa visão reduz a imensa complexidade da experiência humana, com suas dimensões histórica, social, cultural e, fundamentalmente, inconsciente a um mero epifenômeno da atividade neuronal. O sujeito é eclipsado por seu cérebro.
Segundo Rocha, I. N., & Silva, C. A. F. da. (2019), a hegemonia desse modelo se sustenta na promessa de uma "solução rápida para seu sofrimento" através de fármacos. Contudo, essa promessa tem um custo alto: ela promove a negação do sofrimento como parte inerente e, por vezes, produtiva da vida humana, ao mesmo tempo em que gera o uso desregulado e a dependência de medicamentos, causando enormes prejuízos subjetivos e sociais, incluindo graves síndromes de abstinência e a cronificação de condições que poderiam ser transitórias. A medicalização, em última instância, oferece alívio ao custo da alienação.
4. A RESPOSTA DA PSICANÁLISE: MAL-ESTAR ESTRUTURAL E SINTOMA COMO INVENÇÃO
A psicanálise oferece um contraponto radical à lógica normativa de mercado, deslocando os termos do debate. Ela sai do campo da norma e da disfunção para introduzir a lógica do sujeito, do desejo e do inconsciente, propondo uma compreensão inteiramente distinta do sofrimento psíquico.
4.1 O MAL-ESTAR COMO ESTRUTURA, NÃO COMO FALHA
Partindo da obra freudiana, a psicanálise postula que o "mal-estar na civilização" não é um acidente, uma falha ou uma doença a ser curada. Segundo Ribeiro, M. A. C. (2017), trata-se de uma condição estrutural e incontornável da existência humana, o preço a ser pago pela inserção na cultura e no campo da linguagem. O ser humano renuncia a uma parte de sua satisfação pulsional em troca da segurança e dos laços proporcionados pela vida em sociedade, e dessa renúncia emerge um resto de insatisfação irredutível.
Essa noção é atualizada pela teoria dos discursos de Jacques Lacan, em especial sua análise do "discurso do capitalista". Este discurso, uma modificação do discurso do mestre, caracteriza-se por foracluir a castração, ou seja, por negar a impossibilidade e a falta, prometendo um gozo ilimitado e imediatamente acessível através dos objetos de consumo (os gadgets). Ao fazer isso, ele confunde o objeto causa de desejo, que é singular e falta por estrutura, com o objeto de consumo, que é universal e sempre disponível. Ainda segundo Ribeiro, M. A. C. (2017), o resultado paradoxal é a intensificação do mal-estar, gerando uma insatisfação generalizada e a fragilização dos laços sociais, uma vez que o sujeito é impelido a uma busca incessante por uma satisfação que jamais se completa.
4.2 A DISTINÇÃO CRUCIAL: TRANSTORNO VERSUS SINTOMA
O cerne da oposição teórica entre a abordagem de mercado e a psicanalítica reside na distinção entre os conceitos de transtorno e sintoma. Segundo Almeida, T. de. (2018), o transtorno mental, na perspectiva biomédica, é definido como uma categoria nosológica, um conjunto de sinais e sintomas observáveis que indicam uma disfunção biológica e que devem ser erradicados para restaurar a funcionalidade do indivíduo. É uma entidade extrínseca ao sujeito, que o acomete como uma doença.
O sintoma psicanalítico, em radical contraste, é uma formação singular do inconsciente. Ele não é um erro a ser corrigido, mas uma "obra de arte, paciente e laboriosamente construída" pelo sujeito. É uma solução de compromisso, uma metáfora que, ao mesmo tempo que causa sofrimento, porta uma verdade sobre o desejo e a história daquele sujeito. É uma "criação do sujeito para dar um destino para aquilo que não se consegue dizer de outro modo". Para Leitão, M. L. S. (2024), o trabalho analítico, portanto, não visa eliminá-lo, mas decifrá-lo, permitindo que o sujeito se implique em sua causa e invente um novo saber-fazer com ele.
Ao tratar o sintoma psicanalítico como um mero transtorno a ser eliminado, o discurso biomédico-mercadológico comete uma forma de violência epistêmica. Ele silencia a única via que o sujeito encontrou para expressar uma verdade muitas vezes insuportável, impondo uma normalização que apaga a sua singularidade. A supressão farmacológica do sintoma, ao ignorar sua função e seu sentido, não "cura" o sujeito, mas o priva de sua criação mais íntima. É um ato que implicitamente comunica: "Sua verdade não importa; sua singularidade é um erro; você deve se conformar ao padrão". Essa supressão forçada não é um ato terapêutico neutro, mas um ato de poder disciplinar que visa produzir corpos e mentes dóceis e adaptados à norma social e produtiva, servindo perfeitamente aos interesses do discurso capitalista.
TABELA 1: COMPARATIVO DAS CONCEPÇÕES DE SOFRIMENTO PSÍQUICO
Critério | Perspectiva Normativa de Mercado (Biomédica) | Perspectiva Psicanalítica |
Unidade de Análise | Transtorno Mental (ex: TDM, TAG) | Sintoma |
Natureza | Disfunção neurobiológica; desvio da norma estatística; conjunto de comportamentos observáveis. | Formação do inconsciente; metáfora da verdade do sujeito; solução de compromisso singular. |
Relação com o Sujeito | Algo extrínseco ao sujeito, uma "doença" que o acomete e deve ser erradicada. | Intrínseco e constitutivo; uma "criação" do sujeito que fala sobre seu desejo e sua história. |
Causalidade | Primariamente biológica/genética ("desequilíbrio químico"). Fatores sociais são gatilhos secundários. | Estrutural (efeito da linguagem e da falta-a-ser) e histórica (singularidade da vida do sujeito). |
Objetivo do Tratamento | Supressão/eliminação dos sintomas (do transtorno); retorno à funcionalidade e performance; adaptação à norma. | Implicação do sujeito em sua causa; decifração do sentido do sintoma; invenção de um novo saber-fazer com o mal-estar. |
Posição do Profissional | Especialista que detém o saber, diagnostica e prescreve a solução (geralmente farmacológica). | Analista que sustenta um lugar de não-saber, provocando o sujeito a produzir seu próprio saber sobre si. |
5. A CRÍTICA AO IDEAL DE FELICIDADE E A ÉTICA DO DESEJO
A seção final sintetiza a crítica psicanalítica, propondo uma ética radicalmente distinta daquela oferecida pelo mercado, que se baseia não na promessa de felicidade, mas na responsabilidade pelo desejo.
5.1 A TIRANIA DA FELICIDADE
O discurso contemporâneo, segundo Safatle, V. (2022), desconstrói o ideal de felicidade, mostrando-o não como uma aspiração humana natural, mas como uma "ideologia felicista" e uma mercadoria a ser consumida. A felicidade se torna um dever moral, uma meta a ser atingida através do consumo correto de bens, serviços e experiências. Para Fernandes, M. P. R. (2023), nesta "ditadura da felicidade", sua ausência é interpretada como uma falha pessoal, uma patologia. O sujeito que se apresenta triste, angustiado ou insatisfeito é imediatamente marginalizado, pois o infortúnio e a negatividade não são bem-vindos em uma cultura que exige positividade e bem-estar constantes.
Essa pressão imensa, paradoxalmente, gera mais sofrimento. A psicanálise critica esse ideal de uma "felicidade prêt-à-porter”, segundo Coser, M. (2003), argumentando que ele promove uma "demissão subjetiva". Diante do mal-estar, o sujeito é convidado a abdicar do complexo e por vezes doloroso "trabalho psíquico" de lidar com suas contradições, em troca da promessa de uma solução química fácil, mas profundamente alienante.
5.2 A ÉTICA DA PSICANÁLISE: SUSTENTAR O DESEJO, NÃO PREENCHER A FALTA
Em oposição à ética do bem-estar e da satisfação total do mercado, a psicanálise propõe uma ética do desejo. Esta ética se fundamenta na premissa de que o desejo humano é estruturado por uma falta-a-ser fundamental, que não pode e não deve ser completamente preenchida. É essa falta que nos move, que nos faz criar, amar e produzir. O ideal de felicidade do mercado, ao prometer o preenchimento total dessa falta, é, na verdade, uma promessa de morte do desejo.
O ideal de felicidade na contemporaneidade funciona como um imperativo superegoico perverso. O superego clássico, freudiano, proibia o gozo ("Não gozarás!"). O superego contemporâneo, segundo Reis, V. A. W. dos. (2022), alinhado ao mercado, ordena o gozo ("Gozarás! Serás feliz e performático!"). Este comando é perverso porque a felicidade e o gozo pleno são, por estrutura, impossíveis de serem atingidos de forma contínua e total. O fracasso inevitável em obedecer a este comando impossível é interpretado pelo sujeito como uma falha pessoal, gerando culpa e mais sofrimento, o que o lança de volta ao mercado em busca de novas soluções (fármacos, produtos de autoajuda etc.).
A psicanálise recusa essa lógica. O objetivo de uma análise para Ribeiro, M. A. C. (2017), não é entregar a felicidade, mas sim "acolher o mal-estar”, aliviar o sujeito do peso esmagador desse imperativo e permitir que ele se responsabilize por seu desejo, inventando uma resposta singular a essa falta estrutural. A proposta psicanalítica "continua apostando na recuperação do laço do ser falante com a palavra em sua dimensão discursiva". A aposta final não é na adaptação a uma norma de felicidade, mas na "política do particular", na qual o sujeito, através da análise, pode se apropriar de seu sintoma e de seu desejo para "inventar a sua arte de viver". Esta é a forma mais radical de resistência à homogeneização promovida pelo discurso capitalista.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo buscou demonstrar que o discurso sobre a saúde mental é, hoje, um campo de disputa política fundamental. De um lado, a aliança neoliberal-biomédica promove a objetivação e a normatização do sujeito, despolitizando o sofrimento para transformá-lo em mercadoria. Ao reduzir a complexidade da vida psíquica a um conjunto de disfunções cerebrais, essa abordagem corrobora para o "esgotamento da capacidade de enfrentar conflitos, contradições e reinvenções", de acordo com Pereira, M. E. C. (2021), produzindo conformidade social e sujeitos mais adaptados às exigências do mercado.
De outro lado, a psicanálise emerge como um discurso de resistência que insiste na singularidade radical do sujeito do inconsciente. Ao dar voz ao sintoma e ao mal-estar, ela repolitiza o sofrimento, apontando para as contradições do laço social e para a verdade particular que cada sujeito carrega. A psicanálise não oferece promessas de felicidade ou de erradicação do sofrimento, mas um espaço para que o sujeito possa se haver com a sua própria verdade e construir uma saída singular para o seu mal-estar.
Conclui-se, portanto, que a pertinência da psicanálise na contemporaneidade reside não apenas em sua eficácia como prática clínica, mas em sua potência como ferramenta crítica indispensável para pensar e enfrentar o mal-estar. Ela oferece um contraponto ético e político à redução da vida humana à lógica do desempenho e do consumo, reafirmando que, mesmo na era da performance, há algo no sujeito que não se mede, não se gerencia e não se vende.
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1 Doutor em Psicanálise, especialista e graduado em Psicologia pela Universidad de Artes y Oficios de México