O CÉREBRO HUMANO EM DISPUTA: DE KANT AOS ALGORITMOS
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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.17892579
Nilton Pereira da Cunha1
RESUMO
O artigo em tela descreve sobre formação da racionalidade humana, estruturada no projeto iluminista de autonomia moral e intelectual, encontra hoje seus maiores desafios no ambiente digital. A razão, que em Kant deveria orientar o julgamento e garantir a liberdade do sujeito, passa a disputar espaço com sistemas informacionais capazes de compreender, capturar e direcionar processos cognitivos. O desenvolvimento inicial da neurociência, voltado à saúde e ao entendimento do desenvolvimento mental, acabou oferecendo as bases para a criação de uma economia da atenção, especialmente após Herbert Simon demonstrar que o excesso de informação gera escassez de atenção. Esse diagnóstico tornou-se fundamental para a construção de arquiteturas algorítmicas que prolongam, intensificam e manipulam o foco humano por meio de estímulos contínuos. Enquanto nos adultos isso se manifesta como alterações de comportamento e emoção, nas crianças a disputa é ainda mais sensível: a lógica algorítmica influencia diretamente o processo de poda neural e a construção das conexões cerebrais, ajustando o cérebro infantil ao ritmo acelerado do mundo virtual e reduzindo sua tolerância ao tempo, à espera e à lentidão do mundo real. O texto conclui que o cérebro humano se tornou um território em disputa, exigindo consciência crítica, educação digital e repostas regulatórias capazes de proteger a autonomia cognitiva. Mas o mais importante é a conscientização individual, coletiva de que estamos em uma nova fase e forma da vida humana, em que, o cérebro humano pode ser agora compreendido pelas tecnologias e através dos algoritmos pode ser influenciado na disputa da atenção e pode também ser moldado os comportamentos humanos.
Palavras-chave: Racionalidade Humana. Autonomia Cognitiva. Cérebro Humano. Mundo Virtual. Algoritmos. Disputa da Atenção.
ABSTRACT
This article describes how the formation of human rationality, structured within the Enlightenment project of moral and intellectual autonomy, faces its greatest challenges today in the digital environment. Reason, which in Kant's view should guide judgment and guarantee the subject's freedom, now competes with informational systems capable of understanding, capturing, and directing cognitive processes. The initial development of neuroscience, focused on health and understanding mental development, ended up providing the basis for the creation of an attention economy, especially after Herbert Simon demonstrated that information overload generates attention deficit. This diagnosis became fundamental for the construction of algorithmic architectures that prolong, intensify, and manipulate human focus through continuous stimuli. While in adults these manifests as changes in behavior and emotion, in children the conflict is even more sensitive: algorithmic logic directly influences the process of neural pruning and the construction of brain connections, adjusting the child's brain to the accelerated pace of the virtual world and reducing its tolerance for time, waiting, and the slowness of the real world. The text concludes that the human brain has become a contested territory, demanding critical awareness, digital education, and regulatory responses capable of protecting cognitive autonomy. But most importantly, there is an individual and collective awareness that we are in a new phase and form of human life, in which the human brain can now be understood through technology and, through algorithms, can be influenced in the competition for attention and human behavior can be shaped.
Keywords: Human Rationality. Cognitive Autonomy. Human Brain. Virtual World. Algorithms. Competition for Attention.
1. INTRODUÇÃO
A neurociência nasceu com a missão de compreender o cérebro humano sob a ótica da saúde, do desenvolvimento e da proteção das funções cognitivas. Seu foco inicial era mapear como pensamos, sentimos, percebemos e aprendemos, sempre orientada por uma visão humanista e clínica.
No entanto, à medida que o século XX avançou, um novo ator entrou nesse território: a engenharia, especialmente a engenharia computacional, dos sistemas informacionais e da modelagem cognitiva.
Foi aí que o olhar sobre o cérebro deixou de ser apenas científico e se tornou também estratégico.
Nesse ponto surge a figura central de Herbert Simon, considerando o pai da teoria da Economia da Atenção. Simon percebeu algo que mudaria a compreensão sobre o funcionamento da mente no mundo contemporâneo: em ambiente saturados de informação, o que se torna escasso não é a informação nem o conhecimento, mas a atenção humana.
É nesse momento que ocorre o contraste fundamental com o pensamento iluminista de Immanuel Kant. Kant acreditava que, quando o acesso à informação fosse universal, o conhecimento se expandiria e a autonomia humana aumentaria.
Simon rompe com essa promessa iluminista ao mostrar que, diante do excesso informacional, a autonomia não se ampliar, ela se enfraquece. A mente passa a ser disputada.
Ao incorporar a visão de Simon, a engenharia percebeu que a atenção é um recurso limitado e altamente valioso. E, com isso, os sistemas computacionais passaram a ser desenhados deliberadamente para capturar o foco dos indivíduos, não para fortalecê-lo.
Diferentemente da neurociência tradicional, que buscava compreender e proteger o cérebro, a lógica da engenharia informacional passou a intervir nele, guiada por mercados que descobriram que a atenção é uma das matérias-primas mais lucrativas do século XXI.
É nesse ponto que entramos no mundo dos algoritmos, sistemas que se adaptam a cada clique, cada emoção e cada microdecisão. Essas tecnologias não apenas capturam atenção: elas modulam comportamento, produzem dependência emocional, moldam expectativas, alteram padrões de recompensa e reorganizam o próprio modo como o cérebro funciona.
Nos adultos, isso cria distração crônica, ansiedade e perda de profundidade cognitiva. Nos adolescentes, modela identidade, afeta a autoimagem, altera ritmos afetivos e fragiliza a autonomia.
Mas é nas crianças que os impactos são devastadores, especialmente por causa da poda neural, processo natural que elimina conexões pouco usadas e fortalece as mais estimuladas.
Se nessa fase os algoritmos dominam o ambiente cognitivo, serão eles, e não os vínculos humanos, que moldarão o cérebro.
Diante disso, torna-se urgente compreender que as grandes plataformas digitais operam justamente dessa forma: capturar a atenção, prolongá-la o mais de tempo possível e com isso monetizar-se, já que a atenção se transformou no bem mais valioso da economia contemporânea. Então, cada clique, cada notificação, cada feed, cada recomendação personalizada e cada estímulo virtual foram projetados para capturar nossa atenção, tendo como base os dados coletados e os rastros deixados cada vez que acessamos o mundo virtual. Cada segundo da sua atenção é disputado, e controlar a nossa atenção é controlar a nossa emoção, nosso comportamento, nossa vida, e o mais preocupante, é também controlar o nosso destino e os das futuras gerações.
Preservar a humanidade significa proteger o cérebro humano, especialmente o infantil, das dinâmicas agressivas que capturam nossa atenção, nos emocionam, nos manipulam e nos moldam.
A responsabilidade de nós adultos é garantir que o cérebro infantil não seja configurado pelos algoritmos, mas pela vida real, pela presença humana, pela interação afetiva e pelo desenvolvimento saudável da atenção.
Só assim poderemos manter viva a lógica da promessa iluminista de autonomia e impedir que ela seja engolida pela lógica informacional que governa o mundo virtual e foi projetada para governar a todos nós.
2. A PROMESSA ILUMINISTA: IMMANUEL KANT E A ESPERANÇA NO ESCLARECIMENTO PELA INFORMAÇÃO
A modernidade nasceu marcada por uma confiança radical na capacidade da razão humana de conduzir o destino coletivo. Immanuel Kant, uma das vozes máximas desse projeto, formulou com precisão a essência do Iluminismo: a emancipação do ser humano por meio da coragem de pensar por si mesmo.
No célebre ensaio de 1784, ele define o esclarecimento como: “A saída do ser humano de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado”2. A menoridade. Aqui, não é mera ignorância, mas a incapacidade de fazer uso autônomo do próprio entendimento.
Esse ideal kantiano parte de um pressuposto decisivo: o conhecimento circula, forma e liberta quando o sujeito se engaja reflexivamente com ele. Na época de Kant, esse engajamento ocorria sobretudo pela leitura, uma prática que exige lentidão, interpretação, diálogo interno e distanciamento crítico.
É nesse contexto que o filósofo insiste no valor do uso público da razão, cuja realização depende, segundo ele, de que “não se exige outra coisa senão liberdade3”. A liberdade, então, se expressa na possibilidade de examinar argumentos, ponderar ideias e construir juízos de forma autônoma.
A promessa iluminista, portanto, repousa sobre um modelo de cognição que privilegia a reflexão contínua. Contudo, a sociedade contemporânea se move sob outra dinâmica informacional.
No entanto, a abundância de dados, a velocidade da imagem, muitas vezes já carregada de sentidos prévios, produzem um ambiente em que a informação chega quase pronta, condensada, acompanhada de estímulos visuais que orientam a interpretação.
A imagem, por sua natureza, entrega significados de modo imediato, enquanto a leitura exige o lento trabalho de construção conceitual.
Essa diferença não é apenas estética; é também cognitiva. Trata-se de regimes distintos de apreensão do mundo: um centrado na reflexão textual; outro, na instantaneidade imagética. E, ao se combinar com mecanismos algorítmicos que selecionam, priorizam e antecipam o que o sujeito deverá ver, esse ambiente digital inaugura novos desafios para a autonomia da razão.
Não se trata de negar o potencial informativo da era digital, mas de reconhecer que o modo de acesso molda o modo de pensar, e que nem todo fluxo informacional favorece o tipo de maturidade intelectual que Kant imaginou.
Essa tensão contemporânea apenas reforça a atualidade do lema iluminista. A célebre convocação Sapere aude! (Ousa saber) continua a exigir coragem, mas agora em um contexto no qual o sujeito precisa recuperar espaços internos de lentidão, crítica e discernimento.
Como observa Habermas, quando as estruturas que sustentam o debate racional se transformam, a própria esfera pública passa a enfrentar formas inéditas de distorção4.
Atualizar a promessa iluminista significa, portanto, compreender que a emancipação depende não apenas do acesso à informação, mas das condições cognitivas e culturais que permitem converter informações em conhecimento.
A esperança kantiana permanece viva: a de que a humanidade pode, por esforço próprio, elevar-se à autonomia. Mas essa esperança exige pelos quais acessamos e processamos o mundo.
A liberdade continua sendo a condição do esclarecimento, e, no contexto contemporâneo, ela passa também pela capacidade de resistir à captura da atenção, reconstruir práticas reflexivas e reafirmar a dignidade do pensamento crítico.
3. O AVANÇO DA NEUROCIÊNCIA: COMPREENDER O CÉREBRO PARA CUIDAR, NÃO EXPLORAR
A evolução da Neurociência, ao longo do século XX, foi marcada por uma promessa profundamente humanista: compreender o cérebro para promover saúde, autonomia e bem-estar. Seus primeiros avanços estavam direcionados para tratar transtornos neurológicos, reabilitar funções cognitivas e explicar como os processos mentais emergem de sistemas biológicos complexos.
Em suas origens, a Neurociência nasce como ciência da cura e da compreensão, não do controle. Autores como Eric Kandel5 mostraram que o estudo da memória, da plasticidade sináptica e do desenvolvimento neural tinha como propósito iluminar os mecanismos pelos quais aprendemos, nos adaptamos e no tornamos seres capazes de criar sentido.
Esse impulso inicial sempre esteve ligado a uma concepção ética do conhecimento científico: investigar o cérebro significava ampliar os horizontes da dignidade humana e fortalecer a capacidade de cada indivíduo de conduzir sua própria história.
Em obras de impacto, como as de António Damásio6, a ênfase recai sobre a integração entre emoção, razão e corpo, mostrando que compreender a biologia da mente é compreender aquilo que nos torna plenamente humanos.
A neurociência, portanto, consolidou-se como uma ciência voltada para o desenvolvimento humano, buscando promover saúde mental, potencial cognitivo e bem-estar afetivo.
Contudo, à medida que o conhecimento do cérebro avançava, uma nova convergência histórica começou a se formar: a aproximação entre Neurociência, Engenharia Informacional e Sistemas Computacionais de Dados.
O que inicialmente era investigação biológica tornou-se base para arquiteturas tecnológicas capazes de captar, prever e modular comportamentos. A compreensão dos mecanismos da atenção, memória e recompensa passou a orientar a construção de sistemas digitais que disputam, incessantemente, a atividade cognitiva humana.
Essa transformação representa uma mutação antropológica: aquilo que nasceu para cuidar passou também a se tornar instrumento para influenciar. A fronteira entre compreensão e exploração começou a se estreitar.
Nesse contexto, a contribuição de Herbert Simon torna-se decisiva. Em meados do século XX, Simon percebeu algo que romperia com a perspectiva iluminista de que maior acesso à informação produziria automaticamente maior esclarecimento.
Para ele, o problema central da era informacional não seria mais a escassez de dados, mas a escassez daquilo que os seres humanos possuem em quantidade limitada: atenção. Em um texto seminal, Simon afirmou que: “A riqueza de informações cria pobreza de atenção7”.
Ou seja, quanto mais informações circulam, mais difícil se torna para o indivíduo selecionar, interpretar e refletir, ou seja, o oposto do ideal reflexivo do Iluminismo.
Essa constatação desestabiliza a lógica moderna da autonomia racional. Se Kant sonhava com uma sociedade em que o livre acesso ao conhecimento conduziria ao uso autônomo da razão, Simon mostrou que o excesso informacional pode produzir justamente o contrário: dispersão, sobrecarga e vulnerabilidade cognitiva.
A atenção, que deveria ser instrumento da liberdade, torna-se objeto de disputa econômica, política e tecnológica. Segundo Simon, tratava-se de uma “economia informacional” cujo recurso escasso não é o dado, mas a capacidade humana de processá-lo de modo significativo.
Quando essa tese encontra a evolução da Neurociência e o avanço dos sistemas computacionais, emerge uma nova realidade histórica. O conhecimento científico sobre o funcionamento cerebral, aliado a algoritmos capazes de aprender preferências e prever comportamentos, inaugura um ambiente em que a subjetividade passa a ser permanentemente capturada por estímulos, sinais, recompensas e seduções estruturadas digitalmente.
Como observa Shoshana Zuboff, esse novo regime informacional ultrapassa a coleta de dados e passa a “produzir condutas8”, criando um cenário no qual o comportamento se torna matéria-prima moldável e negociável
Assim, a convergência entre Neurociência, Engenharia Informacional e computação não transforma apenas tecnologias; transforma o próprio sujeito. Os sistemas digitais, munidos de teorias de atenção, mecanismos de recompensa e modelos de comportamento, operam sobre os circuitos emocionais e cognitivos, influenciando hábitos, percepções e decisões.
Aquilo que a Neurociência compreende para promover saúde pode, quando deslocado de seu propósito original, ser utilizado para modular comportamentos, estabelecendo uma relação inédita entre conhecimento científico e poder tecnológico.
Essa realidade representa uma ruptura com o horizonte iluminista. Não se trata apenas de excesso de informação, mas de estruturas que organizam a experiência humana segundo lógicas econômicas e técnicas.
A promessa de crescimento cognitivo pela informação, sustentada por séculos, dá lugar a um cenário em que a autonomia depende, antes de tudo, da capacidade de proteger a atenção, preservar a criticidade e resguardar o sujeito contra formas cada vez mais sutis de captura cognitiva.
4. A ENGENHARIA INFORMACIONAL E OS ALGORITMOS: QUANDO O CÉREBRO SE TORNA ALVO
A entrada da engenharia informacional na vida humana representa uma das maiores inflexões civilizatórias desde a Revolução Industrial. Se, durante séculos, o conhecimento científico sobre o cérebro tinha como horizonte a saúde, o desenvolvimento humano e a proteção das funções mentais, a virada digital introduziu um novo paradigma: o cérebro deixou de ser apenas compreendido e passou a ser calculado, previsto e estrategicamente influenciado.
Surge uma lógica que não se limita a observar o comportamento humano, mas a desenhá-lo, integrando psicologia, neurociência, marketing comportamental, design, ciência dos dados e modelagem algorítmica.
Essa transformação não ocorre por acaso. Ela é guiada por um princípio fundamental da economia informacional: a atenção humana tornou-se o recurso mais valioso do século XXI.
Como alertou o próprio Herbert Simon: “A riqueza de informações cria uma pobreza de atenção9”. Essa frase representa a nova arquitetura do mundo digital: quanto mais conteúdos são produzidos, mais disputada se torna a atenção, mais vulnerável se torna a mente e mais sofisticados se tornam os mecanismos que tentam capturá-la.
É nesse cenário que os algoritmos passam a operar como atores invisíveis, mas profundamente ativos. Eles monitoram nossos padrões de navegação, interpretam emoções, calculam probabilidades de engajamento e reorganizam, em tempo real, o ambiente ao qual somos expostos.
Não são apenas máquinas de recomendação, são máquinas de modulação. Como disse Shoshana Zuboff: “O poder digital não observa apenas a vida humana; ele pretende e molda em seu favor10”.
Essa moldagem afeta diretamente nossos circuitos neurais de recompensa, nossas expectativas afetivas e nossa capacidade de manter foco.
Nos adultos, o resultado mais evidente é a erosão da atenção profunda, acompanhada de um aumento de ansiedade, irritabilidade e fragmentação cognitiva. Nos adolescentes, cuja identidade está em formação, os algoritmos interferem nas dinâmicas afetivas, amplificam inseguranças, reforçam padrões disfuncionais e constroem ambientes onde a validação externa se torna o principal eixo emocional.
Mas são nas crianças que os impactos são potencialmente devastadores. Durante a fase da poda neural, o cérebro elimina conexões que não são estimuladas e fortalece as que se repetem com maior intensidade.
Se esse período é dominado por estímulos digitais, recompensas dopaminérgicas instantâneas e fluxo informacionais constantes, é o próprio mapa neural da criança que é reconfigurado por filtros, telas e sistemas que ignoram completamente as necessidades humanas de vínculo, presença e mundo real.
Esse é o ponto mais sensível da discussão: os algoritmos não apenas capturam atenção, eles capturam desenvolvimento. Não apenas modulam emoções, entram no circuito emocional, estabelecendo, para muitas crianças, seu primeiro modelo de prazer, tédio, recompensa, indignação ou frustração.
Como afirmou Marshall McLuhan, décadas antes da era digital: “O meio é a mensagem, e a mensagem é a transformação do próprio ser humano11”. E hoje, o meio é algorítmico. A mensagem é a reconfiguração do cérebro.
Se entendermos essa dinâmica, torna-se impossível naturalizar a presença irrestrita das telas na infância. O cérebro humano não pode ser tratado como um mercado aberto, disponível para qualquer plataforma que deseje moldá-lo.
A engenharia informacional trabalha com a lógica da otimização, não da humanidade. Ela quer eficiência, engajamento, previsibilidade. O desenvolvimento infantil precisa de imprevisibilidade criativa, vínculo humano, silencioso, presença, frustração real, mundo concreto.
Por isso, precisamos assumir uma nova consciência civilizatória: preservar o cérebro humano, especialmente o infantil, exige reconhecer que estamos diante de tecnologias que foram projetadas para vencer, não para proteger.
Cabe aos adultos compreender essa disputa e agir como guardiões do desenvolvimento humano, impedindo que algoritmos se tornem os principais arquitetos da mente.
Proteger a atenção é proteger autonomia; proteger a autonomia é proteger a humanidade.
5. A ECONOMIA DA ATENÇÃO: A TEORIA DE HERBERT SIMON COMO CHAVE PARA COMPREENDER O CONTROLE SILENCIOSO DA EMOÇÃO, COMPORTAMENTO E VIDA HUMANA
Quando Herbert Simon formulou a teoria da economia da atenção, ele não estava apenas descrevendo uma mudança informacional. Ele estava antecipando uma transformação ambiental capaz de redefinir a forma como seres humanos sentem, pensam e se comportam.
Para Simon, em um mundo inundado por dados, imagens, notificações e estímulos, o bem verdadeiramente escasso não é a informação, mas é a atenção humana. E aquilo que se torna escasso, inevitavelmente, passa a ser disputado, administrado e explorado.
O que Simon talvez não imaginasse é que, décadas depois, sua teoria se tornaria a lente mais precisa para compreender o que hoje ocorre de maneira silenciosa e profunda: a captura da atenção como caminho para o controle emocional e comportamental.
As tecnologias digitais, munidas de neurociência aplicada, engenharia informacional e sistemas de aprendizagem automática, passaram a operar como arquiteturas de influência, ajustando estímulos, conteúdos e interações para moldar estados internos.
Se a atenção é a porta de entrada para tudo que sentimos e pensamos, controlar a atenção significa, necessariamente, influenciar: nossas emoções, nossos impulsos, nossos hábitos e nossa visão de mundo.
O processo é gradual, imperceptível e contínuo. Não há violência, não há imposição: há design. Não há coerção explícita: há sedução algorítmica. Trata-se de uma pedagogia invisível que educa a mente para padrões de hiperestimulação, imediatismo, dependência afetiva digital e vulnerabilidade cognitiva.
Essa mudança ambiental profunda cria um cenário em que:
As emoções são moldadas por estímulos que competem pelo nosso tempo;
O comportamento é moldado por mecanismos de reforço contínuo;
A memória e o pensamento são organizados pela lógica da dispersão;
A própria vida humana passa a ser orientada por sistemas que disputam nossa atenção como se disputam commodities.
A teoria de Simon, portanto, não é apenas um conceito acadêmico. É um diagnóstico civilizacional. Ela revela que, ao permitirmos que a atenção se torne objeto de mercado, deixamos que a estrutura emocional e cognitiva da sociedade passe a ser influenciada por sistemas que não têm compromisso com o desenvolvimento humano, mas com a permanência, o engajamento e a previsibilidade.
Como já mencionamos, nos adultos, a captura da atenção produz mudanças significativas na emoção, afetividade e no comportamento; porém, no cérebro infantil, o impacto é infinitamente mais profundo, porque cada segundo de atenção prolongada no mundo virtual conecta neurônios, organiza circuitos e molda funções executivas segundo a lógica algorítmica, uma lógica de velocidade, estímulos imediatos, recompensas rápidas e ausência total de espera.
Assim, crianças educadas pelos ritmos da máquina passam a estranhar a lentidão do mundo real, a não tolerar frustrações, silêncios e processos gradativos, tornando-se dependentes de uma estimulação contínua que o ambiente natural não oferece.
Estamos, portanto, diante de um fenômeno civilizacional: ao permitir que o mundo virtual se torne a principal fonte de conexão neural na infância, estamos construindo gerações inteiras incapazes de habitar plenamente o real, gerações que têm seus cérebros estruturados não pela experiência humana plena, mas pelas regras invisíveis do algoritmo.
Esse processo, silencioso e cumulativo, está destruindo algo que nenhuma sociedade pode perder impunemente: a capacidade de formar seres humanos capazes de atenção profunda, vínculo afetivo, empatia e convivência.
Diante desse cenário, surge uma obrigação ética e humanista: a conscientização. Compreender que a captura da atenção não é neutra; que molda nossas prioridades, afeta nossas relações, reorganiza o funcionamento do cérebro e redefine o que significa ser humano.
Só a partir da consciência crítica desse processo é possível reconstruir autonomia, recuperar profundidade emocional e restituir à atenção seu papel originário: permitir que a vida seja verdadeiramente vivida e não apenas consumida.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A trajetória que vai de Kant à era dos algoritmos revela um deslocamento profundo na compreensão do ser humano e, sobretudo, na disputa por sua atenção, sua liberdade e sua própria formação cognitiva.
Se para o Iluminismo o sujeito racional era o centro moral do mundo, capaz de orientar suas escolhas pela autonomia da razão, hoje assistimos a um cenário em que essa autonomia é sistematicamente tensionada por sistemas computacionais que conhecem e exploram vulnerabilidades neurológicas antes mesmo que a consciência possa intervir.
A Neurociência avançou para compreender o cérebro humano com o propósito de cuidar, tratar, apoiar o desenvolvimento. Mas, paralelamente, essa mesma compreensão se tornou matéria-prima da engenharia informacional, inaugurando uma nova arquitetura de poder: não mais a que disciplina corpos, mas a que captura atenção, reorganiza afetos e moda comportamentos.
A Economia da Atenção de Herbert Simon é mais atual do que nunca: quando a informação se torna abundante, a atenção se converte no recurso verdadeiramente escasso, consequentemente, tornar-se também bastante valiosa, e o ser humano passa a ser o produto dessa disputa.
A lógica algorítmica atua como um ambiente formativo, acelerado e hiperestimulante, capaz de orientar a poda neural e favorecer padrões cognitivos mais ajustados ao mundo virtual do que ao mundo real.
A consequência é evidente: gerações inteiras crescem com dificuldades crescentes em lidar com a lentidão, a espera, o silêncio e a complexidade do mundo offline.
Estamos, portanto, diante de uma tensão histórica inédita. Se Kant acreditava que a liberdade humana nascida da razão autônoma, hoje essa liberdade só será preservada se compreendemos, com lucidez e coragem, que o ambiente digital foi criado para vencer, para disputar intensamente cada segundo de nossa atenção.
Os pesquisadores do Instituto Nacional de Evolução Humana advertem que, a única defesa possível é a consciência: consciência individual, consciência coletiva, consciência pública traduzida em políticas, protocolos preventivos e responsabilidade compartilhadas entre famílias, escolas, profissionais e Poder Público.
O cérebro humano está em disputa. E nossa tarefa, enquanto pesquisador e sociedade, não é negar a tecnologia, mas recolocar o humano no centro, garantindo que o processo científico sirva para proteger, nunca para explorar, a formação das próximas gerações.
Se o século XVIII lutou pela autonomia da razão, o século XXI precisa lutar pela autonomia da atenção. Somente assim a promessa iluminista poderá ser resgatada, atualizada e preservada diante do desafio inédito do sistema de modelagem algorítmica que está implantado pelas tecnologias que passaram a compreender o cérebro e como funcionam suas compensações.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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1 Nilton Pereira da Cunha é Professor, Pesquisador, Escritor e Coordenador Educacional do Instituto Nacional de Evolução Humana. Graduado e Pós-graduação Lato e Stricto Sensu na área da Educação, também graduado e pós-graduado em Direito, com artigos e livros publicados em português e castelhano em vários países: Brasil, Argentina e Colômbia, tais como: O autismo e a interação social: Como desenvolver uma criança saudável na Era Digital; El autismo y la interacción social: como desarrollar una crianza saludable en la Era Digital; Educação, Família e Geração Digital: os desafios e perspectivas da pós-modernidade. @nilton.cunha.900. WhatsApp: +54 11 4989-3292.
2 KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
3 KANT, Immanuel. Resposta à resposta: Que é o Iluminismo? In: KANT, Immanuel. Textos seletos. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1985.
4 HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.
5 KANDEL, Eric. Em busca da memória: o nascimento de uma nova ciência da mente. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
6 DAMÁSIO, António. O erro de Descartes. São Paulo: Companhias das Letras, 2012.
7 SIMON, Herbert. Designing Organizations for an Information-Rich World. In: GRENBERGER, M. (Org.). Computers, Communication and the Public Interest. Blatimore: Johns Hopkins Press, 1971.
8 ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. São Paulo: Intrínseca, 2021.
9 SIMON, Herbert A. Designing organizations for na information-rich world. In: GREEBERGER, Martin (Org.). Computers, Communication, and the Public Interest. Baltimore: Johns Hopkins Press, 1971.
10 ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2023.
11 McLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensão do homem. São Paulo: Cultrix, 2012.