FEMINICÍDIO: AS FALHAS DO PODER PÚBLICO NA PROTEÇÃO ÀS VÍTIMAS
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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.17239545
Karina Ambrozio1
Márcia Pruccoli Gazoni Paiva2
RESUMO
O presente trabalho analisa as falhas do poder público na proteção às vítimas de feminicídio no Brasil. Parte-se do reconhecimento do Feminicídio como expressão extrema da violência de gênero e examinam-se as respostas institucionais e legislativas, policial, judiciária e de assistência social com ênfase na identificação das lacunas na prevenção, na proteção imediata e no acompanhamento pós-violência. A pesquisa combina levantamento bibliográfico, análise da combinação legislativa com a criação de políticas públicas voltadas para o enfrentamento da violência de gênero, propondo recomendações para aprimorar a efetividade das medidas protetivas e a articulação intersetorial em um contexto de relações íntimas, buscando controlar a desigualdade patriarcal com a ação do Poder Público em articular intervenções objetivas e mensuráveis evitando falhas institucionais que são imprescindíveis para transformar o arcabouço normativo em proteção efetiva.
Palavras-chave: Feminicídios, proteção à vítima, políticas públicas, prevenção.
ABSTRACT
This paper analyzes the failures of public authorities in protecting victims of femicide in Brazil. It begins with the recognition of femicide as an extreme expression of gender-based violence and examines institutional, legislative, police, judicial, and social assistance responses, with an emphasis on identifying gaps in prevention, immediate protection, and post-violence follow-up. The research combines a bibliographical survey and analysis of legislative interventions with the creation of public policies aimed at addressing gender-based violence. It proposes recommendations to improve the effectiveness of protective measures and intersectoral coordination in the context of intimate relationships. This work seeks to control patriarchal inequality through public authorities' efforts to coordinate objective and measurable interventions, avoiding institutional failures that are essential to transforming the regulatory framework into effective protection.
Keywords: Femicides, victim protection, public policies, prevention.
1. INTRODUÇÃO
O feminicídio representa a expressão mais extrema da violência de gênero, materializando-se na morte de mulheres pelo simples fato de serem mulheres. Apesar dos avanços legislativos no Brasil, como a promulgação da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) e, mais recentemente, da Lei nº 14.994/2024, que institui medidas para o enfrentamento do feminicídio, os índices de assassinatos de mulheres continuam alarmantes.
O presente trabalho tem por objetivo analisar os fatos que culminam na morte da mulher enquanto fenômeno jurídico e social, com especial atenção às falhas do Poder Público na proteção das vítimas. Para isso, serão abordados os aspectos estruturais da violência de gênero no Brasil, os mecanismos legais existentes e os obstáculos enfrentados na sua implementação.
A pesquisa baseia-se na identificação das falhas com ênfase nos atendimentos policiais, judiciário, legislativo e assistência social buscando apontar ausência de enfretamento, ou seja, apresentação e criação de políticas públicas para que haja melhorias institucionais na criação de propostas para aprimoramento. Assim sendo, a análise da responsabilidade estatal nos casos onde ocorre o feminicídio é essencial para compreensão em propor caminhos que assegurem a efetividade dos direitos fundamentais das mulheres à vida, à segurança e à dignidade.
Mapear as legislações e as políticas vigentes é primordial para verificar as lacunas na operacionalização das medidas protetivas e de prevenção para transformar o arcabouço normativo em proteção efetiva, porém é preciso compreender onde ocorrem as rupturas, como por exemplo, a demora na concessão de tais medidas, o atendimento policial inadequado e com isso permitir desenhar intervenções objetivas e mensuráveis.
Trata-se de pesquisa qualitativa, exploratória e descritiva, com análise documental e doutrinária, bem como legislativa. O estudo sistematiza legislação, doutrina, estudos acadêmicos sobre violência de gênero no Brasil em suas diferentes formas com ênfase no Feminicídio. A escolha do tema recaiu sobre materiais que abordam a implementação das normas e as experiências das vítimas no contato com o Poder Público.
Ao final, serão apresentadas propostas de aprimoramento institucional, voltadas à superação dessas deficiências. A metodologia utilizada baseia-se em natureza básica, objetivos exploratórios, abordagem qualitativa e procedimentos de pesquisa bibliográfica, com consulta a doutrina, legislação e dados oficiais sobre o tema.
2. FEMINICÍDIO E VIOLÊNCIA DE GÊNERO NO BRASIL
O feminicídio constitui a manifestação mais extrema da violência de gênero sendo inserido em um contexto histórico de desigualdade entre homens e mulheres, estruturalmente enraizado na sociedade brasileira. Trata-se de homicídio praticado contra a mulher em razão de ser do sexo feminino.
Juridicamente, a morte de mulheres é uma forma qualificada de homicídio, tendo um desfecho lamentável no histórico de violências de gênero no Brasil. O Estado, omisso na proteção às vítimas, compactua com estes homicídios, e a mídia, ao invés de cobrar do Poder Público, se aproveita dos casos, visto que instigam na sociedade o caráter punitivo típico de um país moralista.
De acordo com Guilherme de Souza Nucci (2024):
[...] a condição de ser mulher é justamente a causa de grande parte da violência ocorrida no lar e na família, em virtude da covardia com que atua o agente. Não se trata de motivação para agredir a mulher, mas o companheiro o faz porque ela é mais fraca. Os motivos podem variar dos mais pífios aos mais relevantes na ótica do agressor [...] (Nucci, 2024, p. 41).
Note que, o machismo e o sexismo institucional ainda permeiam as estruturas do Poder Público, resultando em subnotificação de casos, descredibilização da vítima e revitimização, visto que a falta de sensibilidade e capacitação de alguns profissionais agrava a situação.
Segundo Alice Bianchini (2021), renomada jurista e pesquisadora no âmbito da violência de gênero:
[...] o feminicídio não é um crime isolado, mas o ponto culminante de um ciclo de violência que, em regra, poderia ter sido prevenido se o Estado tivesse atuado de maneira mais efetiva na proteção das mulheres. [...] (Bianchini, 2021, p. 104).
A concepção da autora demonstra que, essa forma de homicídio deve ser analisada dentro de uma estrutura sistemática que engloba violência psicológica, patrimonial, moral, sexual e física, conforme previsão expressa na Lei 11.340/2006 denominada Lei Maria da Penha. Portanto, trata-se de fenômeno estrutural decorrente da desigualdade histórica entre homens e mulheres.
Haja vista, a naturalização da subordinação feminina e da cultura patriarcal, conforme já apontando pela OMS (Organização Mundial da Saúde) que, países com maiores índices de desigualdades de gênero registram taxas elevadas de violência contra a mulher, ademais o feminicídio torna-se o ápice desse fenômeno.
2.1 Conceito jurídico e social de Feminicídio
Juridicamente, o feminicídio foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro pela Lei nº 13.104/2015 denominada Lei do Feminicídio, que modificou o artigo 121 do Código Penal de 1940, incluindo uma nova qualificadora ao crime de homicídio. Assim, passou a vigorar no §2º, inciso VI, a seguinte previsão: “contra a mulher por razões da condição de sexo feminino. Pena – Reclusão, de doze a trinta anos”.
Posteriormente, a Lei 14.994, de 2024 incluiu o artigo 121-A ao Código Penal, criando o tipo penal autônomo do feminicídio, com a seguinte redação: “Matar mulher por razões da condição do sexo feminino: Pena – reclusão, de 20 (vinte) a 40 (quarenta) anos”.
A criação dessas leis representou um importante avanço na proteção dos direitos das mulheres, ao reconhecer que o homicídio praticado em razão de gênero possui características próprias e exige tratamento jurídico mais rigoroso. No entanto, seu caráter simbólico cumpre relevante função social, pois expõe uma realidade marcada pelo machismo estrutural, cuja expressão mais extrema é o assassinato da mulher pelo simples fato de ser mulher.
Nesse contexto, observa-se que: “a tipificação do feminicídio como qualificadora do homicídio representa um marco importante no reconhecimento da violência letal contra as mulheres como um problema de gênero e de direitos humanos”. (Messa, Calheiros, 2023, p. 88).
Por sua vez, Guilherme de Souza Nucci (2025) destaca que:
[...] A edição da Lei 13.104/2015 criou o homicídio qualificado e hediondo em função da conduta de matar a mulher, valendo-se de sua condição de sexo feminino (vide nota específica abaixo), por razões pedagógicas, procurando destacar a todos os destinatários da lei penal a particular gravidade desse delito. Agora, a Lei 14.994/2024 dá um passo adiante e constrói a figura típica autônoma do feminicídio, novamente e de maneira saliente, para demonstrar à sociedade brasileira o quão grave e pernicioso é esse crime, a ponto de merecer uma das penas mais elevadas de toda a legislação penal: reclusão, de 20 a 40 anos. Ultrapassa o latrocínio (reclusão, de 20 a 30 anos) e fica próximo à extorsão mediante sequestro com resultado morte (reclusão, de 24 a 30 anos). Como tivemos a oportunidade de expor anteriormente, esse cenário – matar a mulher em razão de condição de sexo feminino – é de índole objetiva, podendo conviver com circunstâncias subjetivas, ligadas à motivação do crime (fútil ou torpe), que passam à consideração como agravantes, na fixação da pena. Lembre-se de que o feminicida não mata a mulher simplesmente porque ela é do gênero feminino. A sua motivação é variada, podendo fazê-lo por ódio, raiva, ciúme, orgulho ferido, disputa familiar, prazer, sadismo, enfim, diversas causas, que merecem a conceituação de futilidade ou torpeza. [...] (Nucci, 2025, p. 618).
Embora o legislador tenha instituído penas mais severas para esse tipo específico de crime, a eficácia da norma ainda se mostra limitada pela insuficiência de recursos destinados à sua implementação, notadamente a falta de investimentos em programas de conscientização, capacitação de profissionais e estruturação de serviços de apoio às vítimas, o que compromete sua efetividade no combate à violência de gênero.
No plano social, o feminicídio representa a forma extrema da violência resultante do machismo patriarcal, que historicamente naturalizou a desigualdade entre homens e mulheres, legitimando o controle masculino sobre a vida e o corpo da mulher e perpetuando uma cultura de violência. Portanto, sua tipificação busca também promover uma transformação na mentalidade social, ressaltando que a violência contra a mulher não se restringe ao âmbito privado ou individual, mas constitui um problema estrutural e coletivo, oriundo da desigualdade entre os sexos.
A jurista Maria Berenice Dias (2021) bem sintetiza esse entendimento ao afirmar que:
[...] o feminicídio é a ponta do iceberg da violência contra a mulher. É a consequência extrema de uma escalada de agressões toleradas por uma sociedade machista e misógina [...]. (Dias, 2021, p. 103).
Dessa forma, o feminicídio não deve ser compreendido como episódios isolados, mas sim, como parte de um ciclo contínuo de violência estrutural, em que mulheres ainda são vistas como posse ou extensão do homem. Portanto, a instituição da qualificadora, enquanto figura típica autônoma, representa um marco jurídico e simbólico no enfrentamento à violência de gênero, mas não pode ser entendido como solução isolada.
É indispensável que a norma penal seja acompanhada de políticas públicas integradas, voltadas à prevenção, à educação em igualdade de gênero, ao fortalecimento da rede de proteção e ao acolhimento das vítimas, de modo a reduzir os fatores estruturais que alimentam o ciclo de violência. Somente assim será possível conferir efetividade ao comando normativo, transformando a previsão legal em instrumento real de proteção da dignidade da mulher.
2.2 Aspectos estruturais da violência contra a mulher
Para abordar eficazmente a violência doméstica, é imperativo compreender a interação entre as ações de aplicação da Lei e as políticas públicas. As medidas essenciais devem incluir a promoção de uma cultura que condena veementemente a violência.
A violência contra a mulher é um fenômeno fortemente enraizado nas relações históricas de poder, desigualdade de gênero e padrões culturais que reforçam o patriarcado. A percepção dos aspectos estruturais demanda uma análise que ultrapassa os episódios de agressão.
Nas palavras do Doutrinador Luiz Roberto Cavaliere Duarte (2022):
[...] por certo, o homem que agride, de algum modo, a sua esposa, quando esta não lhe serve o jantar, tem plena consciência e vontade para realizar a sua conduta ilícita. Igualmente, tem discernimento, conhece o direito e pode agir de outra forma. Portanto, na acepção jurídico-penal, temos a perfeita subsunção do fato em tipos penais incriminadores, a merecer a reprovação jurídica [...] (Duarte, 2022, p. 58).
Nesse sentido, faz-se imperioso ressaltar que, o patriarcado social atribui aos homens a posição de poder e autoridade, de modo que, entrega para a mulher o lugar de subordinação e um status secundário. Dessa forma, é preciso que o Estado alerte a sociedade para não corroborar com essa construção, podendo, portanto, desempenhar um forte papel no combate à violência estrutural.
Vale ressaltar ainda que, é fundamental reconhecer que práticas violentas contra a mulher não se atém a uma mesma forma. Estruturalmente, é cometida dentro dos lares, em diferentes classes sociais, ainda, mulheres são vitimadas por sua etnia, religião, orientação sexual. Portanto, cria-se na sociedade múltiplas camadas de discriminação e vulnerabilidade.
Ademais, a jurista Maria Berenice Dias pontua que:
[...] A violência doméstica é um crime que ocorre na esfera íntima, muitas vezes ignorado pela sociedade e minimizado pelo sistema de justiça, o que contribui para a reincidência e para a perpetuação do ciclo de violência. [...] (Dias, 2023, p. 55).
Assim sendo, combater a violência contra a mulher exige muito mais do que a punição do agressor, é preciso que o mundo contemporâneo desconstrua o patriarcado. Ademais, o Estado pode intervir fazendo a promoção da igualdade de gênero, fortalecendo as instituições de proteção e instituindo desde a infância do ser humano a educação e o respeito à mulher.
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública baseia-se em informações fornecidas pelas secretarias de segurança pública contribuindo para melhoria e embasamento dos dados estatísticos. Em 2024, ocorreram 1.459 feminicídios, um recorde de mortes desde 2015, sendo a média de 04 mulheres assassinadas por dia, uma a cada 17 horas. Nos nove estados brasileiros analisados, foram 531 feminicídios, com aumento de 12,4% na violência contra a mulher.
Os dados revelam assim um aumento que representa a crueldade letal cometida por parceiros ou ex-parceiros íntimos. Naturalizar esse comportamento agressivo, desestimulando a mulher a não denunciar banaliza a prática da agressão, sendo um dos pilares que culminam na morte. Esse processo, envolve aceitação social, porém pode ser um alerta para o agravamento dos casos.
Maria Berenice Dias (2021) observa que:
[...] a violência contra a mulher é tratada como se fosse algo do mundo privado, tolerado e justificado sob a capa de valores patriarcais, construído na cultura ao longo do tempo de que o homem “manda” e a mulher “obedece” [...]. (Dias, 2021, p. 234).
Haja vista, para romper o ciclo é preciso, de acordo com os autores, enfrentar as barreiras estruturais, emocionais, institucionais e culturais, visto que a mulher vítima, não se reconhece como tal, especialmente quando é psicologicamente afetada. A própria sociedade causa a cultura do silêncio, isto é, a vítima por medo de sofrer retaliações e ou julgamento social, sendo que a família ensina a aguentar para não se expor, tolera, naturalizando a violência. Portanto, é fundamental redesenhar as políticas públicas reconhecendo a dignidade da mulher como prioridade social e institucional.
3. MECANISMOS LEGAIS DE PROTEÇÃO À MULHER
As leis que combatem o feminicídio, embora representem um avanço significativo na legislação brasileira, ainda se revelam insuficientes diante da realidade enfrentada pelas mulheres. Persistem desafios consideráveis, sobretudo no que se refere à ausência de suporte efetivo às vítimas. A insuficiência de estruturas adequadas de acolhimento, assistência integral e prevenção contribui, de forma preocupante, para o aumento dos casos de mortes e para a perpetuação do ciclo de violência.
A Constituição da República de 1988 constitui a principal base normativa dos mecanismos de proteção à mulher. No artigo 5º, inciso I, consagra-se a igualdade entre homens e mulheres em direitos e obrigações, e no artigo 226, §8º, há previsão expressa de que:
[...] O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. [...] (Constituição Federal de 1988).
Percebe-se que o dispositivo constitucional não se limita a enunciar um princípio abstrato, mas impõe ao Estado o dever de criar mecanismos concretos de combate à violência de gênero, servindo como fundamento para políticas públicas e legislações específicas. Trata-se de um avanço significativo na proteção jurídica das mulheres, uma vez que orienta a atuação estatal no sentido de assegurar medidas efetivas contra a violência doméstica e familiar.
3.1 Lei Maria da Penha e a Lei 14.994/2024
A Lei nº 11.340/2006, denominada Lei Maria da Penha, constitui marco normativo no combate à violência doméstica e familiar, prevendo medidas protetivas de urgência, assistência integral às vítimas, criação de juizados especializados e atendimento multidisciplinar. Além de oferecer instrumentos concretos de segurança, a norma representa o reconhecimento de que a violência contra a mulher exige resposta firme do Estado.
Em seus artigos 22 a 24, a Lei apresenta medidas destinadas à preservação da mulher, permitindo que o juiz afaste o agressor do lar e de seu convívio social, inclusive impondo restrições a qualquer forma de contato ou aproximação. O artigo 23, por sua vez, estende a proteção estatal ao patrimônio da mulher, conferindo amplitude à defesa de seus direitos e contemplando ações ou omissões que resultem em morte, lesão, sofrimento físico ou psicológico, bem como em dano moral ou patrimonial.
Segundo Luiz Roberto Cavalieri Duarte (2022):
[...] o feminicídio não pode ser analisado apenas como um crime contra a vida, mas como resultado de um sistema estrutural de desigualdade, em que a omissão estatal reforça ciclos de violência e vulnerabilidade da mulher. Essa perspectiva evidencia que a morte da mulher não é um ato isolado, mas sim a consequência de relações sociais desiguais, em que fatores econômicos, culturais e institucionais contribuem para a manutenção da violência de gênero. [...] (Duarte, 2022, p. 147).
Em 9 de outubro de 2024, entrou em vigor a Lei nº 14.994/2024, que trouxe aperfeiçoamentos significativos no combate ao feminicídio, tornando-o crime autônomo, com pena de reclusão de 20 a 40 anos, e estabelecendo causas de aumento, como o descumprimento de medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha.
A prática do crime contra mulheres em situação de maior vulnerabilidade, como gestantes, mães e pessoas com deficiência, reforça a necessidade de integração entre medidas preventivas e punitivas, ampliando a proteção às vítimas e assegurando a responsabilização não apenas do agressor, mas também do poder público.
A conjugação entre essas leis evidencia que o cometimento da infração penal não deve ser compreendido como fenômeno criminal isolado, mas sim como mecanismo de proteção ao maior bem jurídico tutelado: a vida da mulher. A intervenção estatal, aliada ao Direito Penal, garante instrumentos para a preservação desse direito fundamental.
Não obstante os avanços legislativos, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2024) registra aproximadamente 1.459 feminicídios no país, em sua maioria envolvendo mulheres negras entre 18 e 44 anos, o que evidencia a persistência de padrões históricos e patriarcais de violência.
A integração entre a Lei Maria da Penha e a Lei nº 14.994/2024 reflete a necessidade de uma resposta legal ampla e articulada, combinando proteção emergencial, responsabilização penal e políticas públicas de prevenção, considerando os aspectos sociais, econômicos e culturais que sustentam a violência de gênero no Brasil.
Diniz (2017, p. 102) observa que, “o feminicídio é o ápice de um ciclo de violência que se inicia com formas simbólicas e psicológicas de agressão, e somente uma abordagem integral pode romper esse ciclo”.
A Lei Maria da Penha se destaca por retirar a violência doméstica da esfera privada, reconhecendo-a como violação de direitos humanos e problema social. Nesse sentido, políticas públicas voltadas à educação de gênero desde a infância são essenciais para o enfrentamento do patriarcado.
A Lei nº 14.994/2024, ao tornar o feminicídio um tipo penal autônomo e mais severamente punido, instituiu o Protocolo Nacional de Investigação e Julgamento com Perspectiva de Gênero, orientando autoridades policiais e o Judiciário a considerarem questões de gênero em todas as fases da persecução penal. A inovação legislativa impactou diretamente os julgamentos, de modo que o homicídio cometido contra a mulher passou a ser tratado como crime de ódio, e não mais como crime passional.
Nesse sentido, em julgado recente, a Ministra Relatora Carmen Bittencourt destacou a obrigatoriedade da aplicação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero:
DIREITO DE FAMÍLIA. AGRAVO DE INSTRUMENTO. ALIMENTOS PROVISÓRIOS. EX-CÔNJUGE. INCAPACIDADE ATUAL PARA O TRABALHO. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. CUIDADOS EXCLUSIVOS COM FILHOS ATÍPICOS. PERSPECTIVA DE GÊNERO. PARCIAL PROVIMENTO.
(…)
5. A aplicação do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero é obrigatória em ações que envolvem fixação de alimentos em contexto de violência doméstica, como no caso concreto, no qual há medidas protetivas deferidas em favor da agravante e dos filhos.
6. A agravante demonstrou situação de vulnerabilidade econômica, ausência de rede de apoio, cancelamento de plano de saúde, necessidade de tratamento médico e dedicação integral aos filhos com necessidades especiais, o que inviabiliza, neste momento, a sua autonomia financeira.
7. O agravado, servidor público com renda mensal líquida significativamente elevada, além de bens móveis e imóveis, demonstra capacidade financeira para suportar a obrigação alimentar, sem comprometimento de sua subsistência.
IV. DISPOSITIVO E TESE
8. Recurso conhecido e parcialmente provido. Decisão reformada para fixar alimentos provisórios à ex-cônjuge no patamar de 10% da remuneração bruta auferida pelo agravado, excluídos os descontos compulsórios, pelo prazo de 3 anos.
Tese de julgamento:
1. A obrigação de prestar alimentos entre ex-cônjuges pode ser fixada com base na vulnerabilidade econômica decorrente de dedicação exclusiva ao lar e aos filhos, ainda que o alimentando possua formação acadêmica.
2. É aplicável o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero em demandas alimentares que envolvam histórico de violência doméstica.
3. os alimentos provisórios fixados entre ex-cônjuges devem observar caráter transitório e proporcionalidade entre a necessidade de quem pleiteia e a possibilidade de quem paga. (…)
(TJ/DFT - Acórdão: 1997833 - Processo: 0702366-28.2025.8.07.0000, Rel. Des.
Carmen Bittencourt, 8ª Turma Cível, julgado em 13/05/2025, publicado no DJe em 29/05/2025).
No caso concreto, a agravante demonstrou vulnerabilidade econômica, ausência de rede de apoio, cancelamento de plano de saúde, necessidade de tratamento médico e dedicação integral aos filhos com necessidades especiais, inviabilizando sua autonomia financeira. O agravado, servidor público com renda elevada e bens móveis e imóveis, comprovou capacidade financeira para suportar a obrigação alimentar sem comprometer sua subsistência.
A jurisprudência é unânime em reconhecer que, nos casos de fixação de alimentos em contexto de violência doméstica — sobretudo quando há medidas protetivas —, deve- se considerar a vulnerabilidade econômica da mulher e a capacidade contributiva do agressor.
A doutrina reforça que o agressor deve comprovar incapacidade financeira, visto que os órfãos do feminicídio enfrentam graves problemas sociais, psicológicos e econômicos, e considerando que o pátrio poder familiar atribui a ambos os genitores a responsabilidade pela manutenção dos filhos, a assistência deve recair sobre aquele que deu causa à ausência do outro.
Assim, da análise integrada da Lei Maria da Penha, da Lei nº 14.994/2024, da jurisprudência e da doutrina, evidencia-se que a proteção da mulher em situação de vulnerabilidade exige atuação coordenada do Estado, combinando medidas preventivas, punitivas e políticas públicas de promoção da igualdade de gênero.
O arcabouço legal assegura a tutela da vida, reconhece a violência de gênero como questão estrutural e orienta a responsabilização adequada dos autores de agressões, garantindo a proteção não apenas das mulheres, mas também dos filhos afetados, sendo certo que a efetividade do direito penal depende de sua integração com políticas sociais e instrumentos de proteção ampla, constituindo avanço significativo na proteção dos direitos humanos das mulheres.
3.2 Medidas protetivas de urgência e sua aplicabilidade
Instituídas pela Lei 11.340/2006, as medidas protetivas de urgência são as ferramentas cruciais para proteger a vida e a integridade da mulher em situação de violência. São decisões judiciais que podem ser solicitadas pela vítima ou pela autoridade policial para afastar o agressor, proibir o contato dele com a vítima e seus familiares, restringir a posse de armas e determinar o pagamento de pensão alimentícia.
Conforme aduz o doutrinador Aury Lopes Junior (2016):
[...] as medidas protetivas de urgência representam a concretização da tutela de urgência na esfera penal, buscando evitar o perecimento do direito à vida e à integridade física da mulher em situação de violência doméstica [...] (Lopes Junior, 2016, p. 347).
Apesar de sua importância, a demora na concessão das medidas é um dos principais desafios no enfrentamento e combate. Muitas vezes, a mulher precisa esperar dias por uma decisão judicial, o que a mantém em risco, ou seja, a falha estatal contribuindo com aumento efetivo dos casos, pois sem um monitoramento efetivo, o agressor pode descumprir a medida sem ser punido.
A agilidade e a empatia da autoridade policial são cruciais no momento do registro da ocorrência. O policial deve acolher a vítima e solicitar imediatamente a medida protetiva. Por sua vez, o Judiciário deve agir com celeridade e sensibilidade, compreendendo a urgência da situação e garantindo a proteção da mulher.
Após a atuação da polícia, o Poder Público tem a responsabilidade de conceder as medidas protetivas de urgência e garantir o andamento do processo criminal. Conforme a Doutrinadora e Jurista Jaqueline Valadares (2020):
[...] O delegado de polícia não pode mais atuar de forma mecânica, registrando a ocorrência e liberando o agressor. A Lei Maria da Penha exige uma atuação proativa, com a imediata solicitação das medidas protetivas de urgência, a fim de salvaguardar a vida da mulher. A forma como o policial acolhe a vítima, o ambiente seguro que ele proporciona e a celeridade em encaminhar o pedido ao Judiciário são determinantes para a eficácia da lei [...] (VALADARES, 2020, p. 55).
Essa atuação do Judiciário, alinhada com as diretrizes do Conselho Nacional de Justiça que instituiu o Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero, visando orientar os juízes a considerar os estereótipos e as desigualdades de gênero em suas decisões, demonstram que, para que as leis de proteção à mulher sejam efetivas, é necessária uma atuação conjunta e qualificada de todos os agentes do sistema de justiça.
4. FALHAS DO PODER PÚBLICO NA PROTEÇÃO DAS VÍTIMAS DE FEMINICÍDIO
A proteção da vítima de feminicídio é uma questão complexa e envolve uma série de falhas do Poder Público em diversos níveis. Embora existam legislações e políticas públicas voltadas à prevenção da violência contra as mulheres, na prática, muitos desses mecanismos não são eficazes.
De acordo com Maria Berenice Dias (2021):
[...] Lei Maria da Penha é o nome dado à Lei 11.340 de 2006. Tal nome advém da trágica história de Maria da Penha Maia Fernandes, uma farmacêutica casada com um professor universitário e economista. Eles viviam em Fortaleza (CE), e tiveram três filhas. Além das inúmeras agressões de que foi vítima, em duas oportunidades o marido tentou matá- lá. [...] (Dias, 2021, p. 21).
Nesse sentido, apesar de existirem leis como a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio, que visam proteger as mulheres, muitas vezes essas leis não são aplicadas de forma eficiente. Em muitos casos, a implementação das políticas públicas enfrenta desafios como falta de recursos, treinamento adequado para os profissionais envolvidos e, em algumas situações, resistência cultural para lidar com questões de gênero.
4.1 Inefetividade na aplicação das Leis
Muitos casos de mortes de mulheres ainda são registrados como homicídio comum, e não como feminicídio. Essa falha na tipificação dificulta a coleta de dados precisos, gera invisibilidade estatística da violência de gênero e, consequentemente, dificulta a formulação de políticas públicas eficazes e direcionadas.
Nas palavras de Alice Bianchini (2021):
[...] a invisibilidade do feminicídio em relatórios oficiais e inquéritos policiais é uma barreira para o combate efetivo do crime, pois a ausência de dados precisos desqualifica a violência e impede a construção de políticas públicas. Muitos casos são registrados como homicídio comum, o que invisibiliza a motivação de gênero e, por consequência, o problema [...] (Bianchini, 2021, p. 45).
A inefetividade não decorre apenas de falhas técnicas, mas também da permanência do machismo estrutural dentro das próprias instituições. A simples criação de novos tipos penais ou aumento de penas não se mostram suficientes se não vierem acompanhadas de mecanismos concretos de proteção preventiva e de transformação cultural, capazes de resguardar a vida da mulher antes que a violência atinja o estágio mais grave.
4.2 Ausência de políticas públicas estruturadas
As medidas protetivas de urgência, previstas na Lei Maria da Penha, têm por finalidade garantir a integridade física, sociológica e social das vítimas. Contudo, na prática, essas medidas frequentemente não são respeitadas ou acompanhadas de fiscalização adequada, expondo as mulheres a novos episódios de violência e, em muitos casos, ao risco iminente de morte.
A ausência de uma rede eficiente de monitoramento, bem como a falta de integração entre órgãos de segurança pública, sistema de justiça e serviços de apoio social, contribuem para que o agressor, mesmo após decisão judicial, mantenha acesso à vítima, perpetuando o ciclo de violência.
Sobre esse déficit estrutural, Aury Lopes Junior (2022) adverte:
[...] muitas leis são editadas como resposta imediata à pressão social e midiática, mas sem a correspondente estrutura estatal para que sejam eficazes. Nesse contexto, a lei “funciona mais como um símbolo político de combate à violência do que como instrumento real de transformação social” [...] (Lopes Junior, 2022, p.98).
A crítica do autor revela a fragilidade do chamado direito penal simbólico, fenômeno recorrente no Brasil, em que leis penais são criadas ou endurecidas em resposta à comoção social, mas desprovidas de políticas públicas que garantam sua aplicação efetiva. Esse caráter meramente retórico, dissociado da realidade operacional, transmite à sociedade uma falsa sensação de segurança, ao mesmo tempo em que reforça a descrença nas instituições.
Esse simbolismo legislativo resulta diretamente na sensação de impunidade. A lentidão da Justiça e a deficiência das investigações fazem com que inúmeros feminicídios não sejam punidos de forma eficaz, estimulando a reincidência e o agravamento do quadro de violência. Mais grave ainda é o fato de que um número alarmante de mortes de mulheres sequer chega a ser investigado, revelando um padrão de negligência institucional.
O Jurista Lopes Junior (2022) continua descrevendo que:
[...] a criação de Leis Penais sem a mínima estruturação estatal para que se sejam cumpridas, transforma-se em resposta simbólica, incapaz de enfrentar a complexidade do problema. A violência de gênero não soluciona com penas mais altas, mas sim com políticas públicas estruturadas. [...] (Lopes Junior, 2022, p. 113).
Essa reflexão evidencia que o enfrentamento à violência de gênero exige mais do que o endurecimento penal: é imprescindível a formulação de políticas públicas consistentes, que articulem medidas de prevenção, proteção e acolhimento. Sem isso, a lei permanece no campo da promessa, incapaz de produzir transformações concretas.
Ademais, um dos pontos mais críticos é a insuficiência de abrigos temporários e casas especializadas no acolhimento de mulheres em situação de risco. A escassez desses serviços força inúmeras vítimas a permanecerem em ambientes hostis, convivendo diariamente com seus agressores enquanto aguardam providências judiciais.
A precariedade da rede de proteção faz com que muitas mulheres retornem ao ciclo de violência por absoluta falta de alternativas seguras, reforçando a necessidade de investimento em estruturas de apoio que garantam não apenas a sobrevivência, mas também a reconstrução da autonomia e dignidade dessas mulheres.
4.3 Falta de capacitação dos profissionais do sistema de justiça
O fortalecimento da rede de proteção às mulheres em situação de violência não depende apenas da criação de novas estruturas físicas, como as Casas da Mulher Brasileira, Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs) e abrigos temporários. Embora tais instituições sejam fundamentais, sua efetividade está diretamente condicionada à capacitação contínua dos profissionais que nelas atuam. Sem formação adequada, tais estruturas correm o risco de se tornarem meramente formais, reproduzindo preconceitos e falhas já existentes no sistema de justiça.
Nessa perspectiva, Fernanda Carvalho e Juliana Lima (2021) destacam:
[...] A insuficiente capacitação dos operadores do direito sobre a violência de gênero resulta em práticas discriminatórias, reforçando estereótipos e contribuindo para a revitimização das mulheres. [...] (Carvalho e Lima, 2021, p. 45-67).
Essa insuficiência de preparo evidencia que a violência de gênero não é apenas um problema legal ou institucional, mas também cultural. Movimentos feministas têm denunciado reiteradamente que o sistema de justiça muitas vezes culpabiliza a vítima, fazendo-a reviver o trauma diante de agentes públicos despreparados.
Essa cultura de minimização da violência de gênero atravessa todos os elos institucionais, da polícia que desestimula o registro de ocorrência, ao juiz que concede medidas protetivas sem garantir a fiscalização de seu cumprimento. Além disso, a legislação brasileira ainda se concentra excessivamente no viés punitivo, sem abordar outras dimensões da violência de gênero, como a psicológica e a econômica, o que limita a formulação de estratégias preventivas eficazes.
As críticas dos movimentos feministas também ressaltam que a legislação brasileira ainda se concentra excessivamente no viés punitivo, sem considerar outras dimensões da violência de gênero, como a psicológica e a econômica. Essa perspectiva limitada impede a formulação de estratégias preventivas eficazes, voltadas para a desconstrução das raízes culturais da desigualdade de gênero.
A Organização das Nações Unidas (2019) reforça essa constatação, ao afirmar:
[...] A ausência de treinamento continuado de agentes do sistema de justiça e de segurança pública é uma das causas da impunidade em casos de Feminicídio. [...] (ONU MULHERES, 2019).
O Supremo Tribunal Federal (STF) tem afirmado de forma reiterada que a efetividade da Lei Maria da Penha não se esgota na formalidade de sua edição, mas depende da implementação de mecanismos concretos de proteção e prevenção à violência doméstica e familiar.
No julgamento da ADC 19, em 09/02/2012, a Corte reconheceu a constitucionalidade da Lei nº 11.340/2006, destacando que sua aplicação concretiza o mandamento do art. 226, § 8º, da Constituição Federal, que impõe ao Estado a adoção de políticas e medidas para coibir a violência no âmbito familiar, com especial atenção àquela praticada contra a mulher.
A decisão ressaltou que a lei, ao ampliar o conceito de violência de gênero para abarcar agressões físicas, sexuais, psicológicas, morais e patrimoniais, cumpre importante papel essencial na concretização da igualdade material, reconhecendo a necessidade de proteção diferenciada e adequada à mulher historicamente discriminada.
O STF também enfatizou que a eficácia da Lei Maria da Penha não pode depender exclusivamente do procedimento judicial formal. Na ADI 6138, julgada em 23/03/2022, o STF validou a concessão excepcional de medidas protetivas de afastamento do agressor por delegados de polícia ou policiais, sem necessidade de autorização judicial prévia, reconhecendo que tal medida é essencial para impedir a continuidade da violência em situações de risco iminente à vida ou à integridade da mulher.
Destacou-se que a antecipação administrativa de proteção não subtrai a competência judicial, mas se mostra indispensável para romper o ciclo da violência doméstica nas fases mais agudas, garantindo proteção imediata à vítima. Eis a ementa do acórdão prolatado:
Ementa: DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E NECESSIDADE DE MEDIDAS EFICAZES PARA PREVENIR A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER. CONSTITUCIONALIDADE DE MEDIDA PROTETIVA DE URGÊNCIA CORRESPONDENTE AO AFASTAMENTO IMEDIATO DO AGRESSOR DO LOCAL DE CONVIVÊNCIA COM A OFENDIDA EXCEPCIONALMENTE SER CONCEDIDA POR DELEGADO DE POLÍCIA OU POLICIAL. IMPRESCINDIBILIDADE DE REFERENDO PELA AUTORIDADE JUDICIAL. LEGÍTIMA ATUAÇÃO DO APARATO DE SEGURANÇA PÚBLICA PARA RESGUARDAR DIREITOS DA VÍTIMA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR. IMPROCEDÊNCIA. 1. A autorização excepcional para que delegados de polícia e policiais procedam na forma do art. 12-C II e III, E § 1º, da Lei nº 11.340/2006 (LEI MARIA DA PENHA), com as alterações incluídas pela Lei nº 13.827/2019, é resposta legislativa adequada e necessária ao rompimento do ciclo de violência doméstica em suas fases mais agudas, amplamente justificável em razão da eventual impossibilidade de obtenção da tutela jurisdicional em tempo hábil. 2. Independentemente de ordem judicial ou prévio consentimento do seu morador, o artigo 5º, inciso XI, da Constituição Federal admite que qualquer do povo, e, com maior razão, os integrantes de carreira policial, ingressem em domicílio alheio nas hipóteses de flagrante delito ou para prestar socorro, incluída a hipótese de excepcional urgência identificada em um contexto de risco atual ou iminente à vida ou à integridade física ou psicológica da mulher em situação de violência doméstica e familiar, ou de seus dependentes. 3. Constitucionalidade na concessão excepcional de medida protetiva de afastamento imediato do agressor do local de convivência com a ofendida sob efeito de condição resolutiva. 4. A antecipação administrativa de medida protetiva de urgência para impedir que mulheres vítimas de violência doméstica e familiar permaneçam expostas às agressões e hostilidades ocorridas na privacidade do lar não subtrai a última palavra do Poder Judiciário, a quem se resguarda a prerrogativa de decidir sobre sua manutenção ou revogação, bem como sobre a supressão e reparação de eventuais excessos ou abusos. (STF – ADI 6138 –Tribunal Pleno, Relator(a): Min. ALEXANDRE DE MORAES, Julgamento: 23/03/2022, Publicação: 09/06/2022). (grifos pelas subscritoras).
Em 2025, ao julgar o RE 152068 (Tema 1370 da repercussão geral), o STF reafirmou a necessidade de integrar a proteção da mulher a medidas sociais, laborais e previdenciárias, ao reconhecer a competência do juízo criminal para determinar o afastamento remunerado de mulheres vítimas de violência doméstica, nos termos do art. 9º, § 2º, II, da Lei Maria da Penha.
A decisão evidencia que a efetividade da legislação depende de políticas públicas articuladas, que garantam não apenas a punição do agressor, mas também a proteção material, psicológica e social da vítima, de modo a viabilizar a ruptura do ciclo de violência.
Essas decisões demonstram que a Lei Maria da Penha deve ser compreendida como um sistema protetivo integral, de nítido caráter constitucional e respaldado por normas internacionais de direitos humanos. Como destaca Flávia Piovesan (2017, p. 430), a legislação inova ao romper com o paradigma anterior, baseado na Lei nº 9.099/95, que tratava a violência doméstica como infração de menor potencial ofensivo, e ao conferir à proteção da mulher status de direitos humanos, exigindo respostas proporcionais à gravidade do fenômeno.
Dessa forma, a jurisprudência do STF evidencia que a eficácia da lei exige atuação coordenada do Estado, conjugando medidas preventivas, repressivas e de assistência, para garantir proteção efetiva, empoderamento da mulher e superação das barreiras estruturais que perpetuam a violência de gênero. Críticas de movimentos feministas e de organismos internacionais reforçam que a lei, isoladamente, é insuficiente para combater o feminicídio; é necessário compromisso político e institucional efetivo, voltado à criação e execução de políticas públicas estruturadas, que enfrentem o problema em sua raiz e assegurem a proteção, a dignidade e o empoderamento das mulheres.
4.4 Revitimização e desigualdade no atendimento
A revitimização institucional, também conhecida como vitimização secundária, é um fenômeno doloroso e frequente no atendimento a mulheres em situação de violência. Ela ocorre quando a vítima, ao buscar ajuda e amparo nas instituições públicas como por exemplo, delegacias, hospitais ou tribunais, é submetida a novos sofrimentos e humilhações. Em vez de encontrar acolhimento e proteção, a mulher é confrontada com questionamentos, descrença e julgamentos que a fazem reviver o trauma da violência.
Essa realidade é particularmente cruel em delegacias, onde a mulher deveria encontrar o primeiro porto seguro para denunciar e iniciar a busca por justiça. No entanto, muitas vezes, o que ela encontra é uma cultura de descrédito e preconceitos enraizados que a levam a duvidar de sua própria experiência.
Concernente ao entendimento da questão, descrevem Ana Ventura e Rafael Gomes (2020):
[...] A aplicação da Lei Maria da Penha ainda enfrenta a barreira cultural dentro do próprio sistema de justiça, em razão da falta de formação técnica e sensibilidade de magistrados, promotores e policiais. [...] (Ventura e Gomes, 2020, p. 233-256).
O excesso de formalidades e a lentidão no registro da ocorrência podem ser um obstáculo para a mulher. Em um momento de fragilidade emocional, a necessidade de repetir exaustivamente a história, enfrentar longas esperas e lidar com a indiferença dos atendentes pode fazer com que a vítima desista da denúncia.
O fenômeno da revitimização é ainda mais grave e complexo quando cruzado com questões de classe social e raça. Mulheres negras, por exemplo, enfrentam um sistema que, de forma histórica e estrutural, as coloca em uma posição de maior vulnerabilidade. Em delegacias, elas podem ser tratadas com menos credibilidade, suas denúncias podem ser minimizadas e, muitas vezes, elas não têm acesso a advogados e outros recursos que as ajudem a navegar pelo sistema de justiça.
A mulher de baixa renda, que não tem acesso a advogados particulares, é muitas vezes tratada com descaso e inferioridade. Sua dor é minimizada e sua denúncia, vista com menos seriedade do que a de uma mulher de classe média ou alta. Isso cria uma hierarquia de vítimas, onde o direito à proteção e à justiça parece depender da condição socioeconômica.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho evidenciou que o feminicídio não pode ser compreendido como um crime isolado, mas como o ponto culminante de um ciclo de violência de gênero historicamente estruturado. As análises demonstram que as falhas do poder público na proteção das vítimas, se seja por omissão policial, morosidade judicial, descumprimento de medidas protetivas ou ausência de políticas preventivas, contribuem para a perpetuação da violência e, em muitos casos, culminam no feminicídio.
Apesar dos avanços legais promovidos pela Lei Maria da Penha, combinados com tipos penais específicos e legislações complementares, a efetividade das medidas de proteção à mulher ainda enfrenta graves obstáculos. A legislação, embora indispensável, mostra-se insuficiente quando desacompanhada de políticas públicas estruturadas, recursos materiais adequados e atuação coordenada entre polícia, Ministério Público, Judiciário e serviços sociais.
Casos documentados indicam que, mesmo diante de denúncias formais, a atuação estatal frequentemente se revela incapaz de garantir a integridade física e psicológica das mulheres. Essa lacuna entre a letra da lei e sua aplicação concreta manifesta-se na insuficiência de verbas para delegacias especializadas, na escassez de abrigos temporários e na ausência de programas preventivos que enfrentem a raiz do problema. Soma-se a isso a revitimização institucional, o preconceito de classe e o racismo estrutural, que expõem a fragilidade de um sistema que, em vez de proteger, muitas vezes culpabiliza a vítima.
A luta contra o feminicídio exige, portanto, não apenas responsabilização institucional, mas, também, uma profunda transformação cultural. É imperativo cobrar das instituições e de seus agentes a aplicação justa e efetiva da lei, ao mesmo tempo em que se enfrenta a mentalidade machista e patriarcal que naturaliza a violência de gênero em nossa sociedade.
Em síntese, este estudo reafirma que o enfrentamento ao feminicídio não se limita à criminalização, constituindo-se, sobretudo, como responsabilidade estrutural do Estado. A superação das falhas exige comprometimento político, planejamento estratégico e fiscalização contínua, de modo que a legislação vigente se traduza em proteção concreta às vítimas, prevenindo tragédias anunciadas e promovendo a igualdade de gênero de forma efetiva.
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1 Graduanda de Direito na Faculdade de Direito de Cachoeiro de Itapemirim/ES – FDCI. E-mail: [email protected]
2 Professora Orientadora na Faculdade de Direito de Cachoeiro de Itapemirim/ES – FDCI. Especialista em Ciências Criminais com Formação para o Ensino Superior pela Universidade Anhanguera – Uniderp. Pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Gama Filho. Advogada Criminalista. E-mail: [email protected]