DUAS VISÕES, UM CONFLITO: REPRESENTAÇÕES DA GUERRA DA CRIMEIA NAS OBRAS DE ROGER FENTON E LIEV TOLSTÓI

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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.16816299


Matheus Santos Rangel1


RESUMO
O presente artigo analisa comparativamente duas representações da Guerra da Crimeia (1853–1856): a visual, através das fotografias de Roger Fenton, e a literária, por meio das “Crônicas de Sebastopol”, de Liev Tolstói. Enquanto Fenton, pioneiro da fotografia de guerra, produziu imagens cuidadosamente controladas para reforçar o moral e o prestígio britânico, omitindo deliberadamente os horrores do conflito, Tolstói apresentou, com rigor ético e sensibilidade literária, um retrato cru e sensorial do sofrimento humano, da violência e da vaidade militar. O estudo discute como cada meio moldou a memória do conflito de formas distintas, evidenciando o papel da estética, da censura e da intencionalidade política na construção das narrativas bélicas. Ao confrontar a suavização imagética de Fenton com o realismo visceral de Tolstói, revela-se uma disputa simbólica sobre o que se vê e o que se oculta na representação da guerra.
Palavras-chave: História. Guerra. Cultura.

ABSTRACT
This article presents a comparative analysis of two representations of the Crimean War (1853–1856): the visual, through the photographs of Roger Fenton, and the literary, through Sevastopol Sketches by Leo Tolstoy. While Fenton, a pioneer of war photography, produced carefully controlled images aimed at reinforcing British morale and prestige, Tolstoy offered, with ethical rigor and literary sensitivity, a raw and sensory portrayal of human suffering, violence, and military vanity. The study discusses how each medium shaped the memory of the conflict in distinct ways, highlighting the role of aesthetics, censorship, and political intent in the construction of war narratives. By contrasting Fenton’s softened imagery with Tolstoy’s visceral realism, the article reveals a symbolic dispute over what is shown and what is concealed in the representation of war.
Keywords: History. War. Culture.

1. INTRODUÇÃO

Travada entre os anos de 1853 e 1856, a Guerra da Crimeia foi um dos mais impactantes conflitos do século XIX. Enfrentaram-se, de um lado, o Império Russo; do outro, uma aliança formada pelo Império Otomano, França, Inglaterra e, posteriormente, o Reino da Sardenha. Apesar de seu escopo regional, a guerra teve desdobramentos diplomáticos e militares que repercutiram por toda a Europa (GOLDFRANK, 1994).

A origem do conflito está enraizada em disputas territoriais e religiosas. O estopim imediato foi a rivalidade entre católicos e ortodoxos pela tutela dos Lugares Santos, então sob domínio otomano (ANDERSON, 1971). A Rússia, autoproclamada protetora dos cristãos ortodoxos, exigia maiores garantias do sultão otomano, o que levou à deterioração das relações diplomáticas. A recusa do Império Otomano em ceder às pressões russas culminou numa declaração de guerra (ROYLE, 2000).

Do ponto de vista militar, a guerra revelou tanto o atraso estrutural do Império Russo quanto os dilemas estratégicos enfrentados por todas as potências envolvidas. Ao final do conflito, com o Tratado de Paris, a Rússia foi forçada a ceder territórios e limitar sua influência nos Bálcãs e no Mar Negro, o que impactou sua posição geopolítica nas décadas seguintes (TEMPERLEY, 1932).

Acima de tudo, a Guerra da Crimeia se impõe como um marco simbólico: entre os últimos ecos das guerras napoleônicas e os prenúncios dos conflitos industriais do século XX. Foi um conflito que combinou tradições militares ultrapassadas com inovações tecnológicas e que revelou as fragilidades e contradições dos impérios europeus diante de um mundo em transformação (BEST, 2004).

A guerra marcou uma virada importante nas práticas bélicas e no papel da opinião pública. Foi o primeiro conflito amplamente registrado por correspondentes de guerra e fotógrafos, o que permitiu à população europeia acompanhar os acontecimentos com relativa proximidade (SWEETMAN, 2001). É exatamente nesse contexto que surgem dois personagens extremamente relevantes à historiografia bélica: Roger Fenton e Liev Tolstói.

Roger Fenton foi um dos primeiros fotógrafos de guerra da história e esteve presente na Guerra da Crimeia como parte de um projeto deliberado de controle da imagem pública do conflito. Enviado com o apoio do governo britânico, seu trabalho era produzir uma representação mais “aceitável” da guerra, através de imagens que exaltassem a disciplina, a bravura e a dignidade das tropas britânicas, em contraste com os relatos alarmantes da imprensa sobre as condições precárias enfrentadas pelos soldados. Assim, os relatos jornalísticos e, sobretudo, as imagens capturadas por Roger Fenton, buscavam registrar cenas do cotidiano militar, embora de forma cuidadosamente controlada (HANNAVY, 2008).

Além de Fenton, um certo jovem oficial do exército russo, Liev Tolstói, esteve presente nas trincheiras, enfrentando o fogo inimigo e a precariedade das condições de vida dos soldados. Mais do que um simples militar, ele foi um observador atento da desordem, do medo e do absurdo que dominavam o campo de batalha; elementos que mais tarde seriam fundamentais para sua literatura. Foi nesse contexto que nasceram “As Crônicas de Sebastopol”, uma série de relatos ficcionais, mas ancorados em experiências reais, que retratam o cotidiano brutal da guerra com notável sensibilidade e realismo (BARTLETT, 2013). Tolstói rompe com a tradição glorificadora da narrativa bélica e, em seu lugar, oferece um retrato ético e psicológico dos soldados comuns. A guerra, em Tolstói, não é um espetáculo grandioso, mas uma tragédia humana.

Neste artigo, propõe-se uma análise comparativa entre essas duas formas de representação da Guerra da Crimeia: a visual, através das fotografias de Roger Fenton, e a literária, por meio das “Crônicas de Sebastopol”, de Liev Tolstói. Ao colocar em diálogo essas visões, compreenderemos como diferentes mídias e intenções moldam a memória dos conflitos armados.

2. A GUERRA IMAGÉTICA

A Guerra da Crimeia não foi travada apenas nas trincheiras de Sebastopol ou nos campos gelados da Península. Travou-se também nos jornais, nos relatos, nas palavras e, pela primeira vez na história, nas imagens. Foi ali, em meio ao estrondo dos canhões e à lama que consumia os homens, que nasceu uma nova dimensão do conflito: a guerra como espetáculo visual. O fotógrafo britânico Roger Fenton, pioneiro da fotografia de guerra, foi incumbido da missão de registrar o front. Mas o que lhe foi permitido ver e mostrar era cuidadosamente delimitado por interesses políticos e estéticos. Seu trabalho não pretendia revelar a realidade da guerra, mas suavizá-la (HANNAVY, 2008).

Figura 1 - Soldados ingleses posando para uma fotografia. Disponível em:<https://www.allworldwars.com/image/072/Fenton004.jpg>. Acesso em: 09 de ago. 2025.

Fenton chegou à Crimeia em março de 1855, sob o calor diplomático de uma Inglaterra já saturada com os relatos de desorganização e sofrimento nas frentes de combate. Seu objetivo, apoiado pelo governo britânico e pela monarquia, era claro: criar um contradiscurso visual que restaurasse a honra, a ordem e o moral das tropas perante a opinião pública (LACOSTE, 2010). O resultado são mais de 300 imagens compostas, muitas vezes encenadas, que evitam sistematicamente cadáveres, sangue, ferimentos ou desespero. Em vez disso, vê-se uma guerra sem dor: oficiais posando diante de tendas, soldados em descanso, cavalos, paisagens desérticas e limpas (SONTAG, 2004).

A ausência do horror nas fotografias de Fenton não se deve apenas às limitações técnicas de sua época, mas principalmente à própria função que lhe foi atribuída: embelezar a guerra, torná-la aceitável, digna de orgulho imperial. Sua câmera, embora documental na aparência, operava sob a lógica da censura e da propaganda (BROTHERS, 1997). Em vez de capturar a guerra como ela era, oferecia ao público ocidental uma guerra que se podia admirar, como nos romances de outrora.

Figura 2 - Oficial francês posando para uma fotografia. Notar o sentimento heroico da imagem, com direito à espada e pose. Disponível em:<https://www.allworldwars.com/image/072/Fenton087.jpg>. Acesso em: 09 de out. 2025.

A recepção dessas imagens na sociedade vitoriana foi profundamente moldada por esse viés. Ao serem exibidas em Londres e outras cidades europeias, as fotografias de Fenton reforçaram um imaginário de heroísmo e disciplina, alimentando o sentimento patriótico e a legitimidade da intervenção britânica na Crimeia (TAYLOR, 2022). Ao omitirem os corpos mutilados, a miséria e o sofrimento cotidiano, contribuíram para que a população mantivesse uma distância emocional segura em relação ao conflito, consumindo-o como espetáculo visual sem encarar sua brutalidade. Esse efeito não apenas sustentou o apoio à guerra, mas também estabeleceu um precedente para o uso estratégico da fotografia como ferramenta de construção narrativa em contextos militares, que se perpetua até nossa contemporaneidade (GURR, 2010).

Portanto, temos que a Guerra da Crimeia inaugurou um paradigma comunicacional no qual a fotografia passou a ser compreendida não como um reflexo neutro da realidade, mas como um instrumento de poder e persuasão. Esse fenômeno teria desdobramentos ao longo de todo o século XIX e XX, influenciando desde o fotojornalismo até as campanhas de propaganda das duas guerras mundiais e os demais conflitos que viriam a surgir (BROTHERS, 1997).

Figura 3 - Um general francês dando ordens a seus subordinados, denotando superioridade e promoção de ordem. Disponível em: <https://www.allworldwars.com/image/072/Fenton023.jpg>. Acesso em: 09 de ago. 2025

3. AS CRÔNICAS DE SEBASTOPOL

Enquanto servia como segundo-tenente de um regimento de artilharia durante a Guerra da Crimeia, a serviço da pátria russa, Liev Tolstói decidiu que o mundo precisava entender a realidade daquele conflito. Velando-se dos raros momentos de mínima calmaria nos frontes de combate, descreveu os horrores dos constantes embates entre as nações participantes do conflito. Narrou os disparos e bombardeios, os gritos por socorro e as orações por misericórdia. À toda humanidade, transcreveu a guerra como o maior dos horrores.

Diferentemente de Fenton, que buscava no conflito uma estética engrandecedora, Tolstói desejava, acima de tudo, representar a verdade. Em suas próprias palavras, o autor defende tal argumento, afirmando que: “O herói da minha história, a quem amo com todas as forças de minha alma, a quem tentei expor em toda a sua beleza, e que sempre foi, é e sempre será o mais belo, é a verdade” (TOLSTÓI, p. 64). O autor não poupa detalhes, jamais aceita omitir informações, esconder a cena completa. Não emoldura seus personagens em poses de efeito ou expressões de autoconfiança, mas exprime seus medos e anseios, seus temores e angústias. Na obra de Tolstói, “você vê cenas assustadoras e comoventes, você vê a guerra, não de seu lado convencional, belo e brilhante, com música e tambores, com bandeiras esvoaçantes e generais galopando, mas você vê a guerra em sua fase real – no sangue, no sofrimento, na morte” (TOLSTÓI, p. 17).

Na primeira das crônicas, o leitor é apresentado à guerra. Através da narração em primeira pessoa, Tolstói imerge seu público na rotina diária de um combatente de Sebastopol, que recebe a missão de resistir ao inimigo. Assim, “você abre a porta do grande Salão da Assembleia e a visão e o cheiro de quarenta ou cinquenta homens gravemente feridos, alguns deles amputados, alguns em redes, a maioria no chão, de repente o atingem” (TOLSTÓI, p. 14). Os problemas são diversos: no campo de batalha, não é o czar quem impera, mas sim o absoluto caos.

“[...] de um lado passa o socorrista batendo os braços, de outro lado o médico está correndo para o hospital, mais adiante o soldado sai de sua cabana de terra e lava o rosto queimado de sol em água incrustada de gelo e, virando-se em direção ao leste carmesim, benze-se rapidamente enquanto ora a Deus, e, um pouco mais distante, uma carroça alta e pesada é guiada rangendo até o cemitério para enterrar os mortos ensanguentados, com os quais está carregada quase até o topo” (TOLSTÓI, p. 11)

Através das páginas seguintes, a situação se complica. Por meio de uma narração sensorial, o autor provoca em seus leitores sentimentos como nojo e repulsa, quando relata a pulsação de entranhas e o sangue que escorre de violentas lacerações das vítimas de Sebastopol. Agora, o leitor caminha por dentre uma série de soldados russos vencidos pela contenda mais recente, quando “o odor opressivo de um cadáver o atinge com força, e o fogo interior consumidor que penetrou em cada membro do sofredor parece penetrar em você também” (TOLSTÓI, p. 16). O leitor deve então se preparar, na categoria de protagonista, para mais um dia de árduo trabalho nas trincheiras, pois “[...] a questão não resolvida pelos diplomatas ainda não foi resolvida com pólvora e sangue’ (TOLSTÓI, p. 27).

No segundo conto, Tolstói explora o psicológico de uma série de personagens, sendo que o principal enfoque do capítulo encontra-se na análise da glorificação militar e ganância, que aqui condenam seres humanos àquela calamitosa situação. Dentre os protagonistas da narrativa, encontram-se oficiais e outros indivíduos de alta patente, que divagam sobre os louros e regalias que sonham em obter com a realização de seus trabalhos. Em dado momento, o autor intensifica sua crítica, consternado com o fato de que, mesmo diante da mais absurda brutalidade, seus personagens ainda pensem em ganhos pessoais:

“Vaidade! Vaidade! Vaidade em todos os lugares, mesmo à beira de sepultura e entre homens prontos para morrer pelas mais altas convicções. Vaidade! Deve ser um traço característico e uma doença peculiar do nosso século. Por que nunca se ouviu falar entre os homens de outrora, dessa paixão, mais do que da varíola ou da cólera? Por que Homero e Shakespeare falaram de amor, de glória, de sofrimento, enquanto a literatura de nossa época não passa de uma narrativa sem fim sobre esnobes e vaidade?” (TOLSTÓI, p. 30)

Inevitavelmente, tais aspirações reduzem-se ao vazio:

“Centenas de corpos recentemente manchados de sangue, de homens que duas horas antes haviam sido preenchidos com diversas esperanças e desejos elevados ou mesquinhos, agora jaziam, com membros enrijecidos, no orvalhado e florido vale que separava o bastião da trincheira. No piso plano da capela para os mortos em Sebastopol, centenas de homens rastejavam, retorciam-se e gemiam, com maldições e orações nos lábios ressecados, alguns entre os cadáveres no vale florido, outros em macas, catres e no chão manchado de sangue do hospital” (TOLSTÓI, p. 58).

A violência segue como a única constância, sendo que “os médicos, com as mangas arregaçadas, ajoelhavam-se ao lado dos feridos, ao lado dos quais os cirurgiões assistentes seguravam as velas, examinando, apalpando e sondando as feridas, apesar dos terríveis gemidos e súplicas dos doentes”. (TOLSTÓI, p. 43). Os caídos se amontoam, são fileiras de russos engolidos pelo conflito: “Quarenta padioleiros estavam à porta, aguardando a tarefa de transportar para o hospital os homens atendidos e os mortos para a capela, e olhavam para esta imagem em silêncio, apenas soltando um suspiro pesado de vez em quando” (TOLSTÓI, p. 44).

Algo que fica evidente, conforme a narrativa avança, é a frieza com a qual aqueles soldados, já acostumados com a violência e as precárias condições em que sobrevivem, concebem a morte. São diversas as passagens em que surgem divagações sobre o aparente fim, e os personagens de Tolstói parecem apáticos, cientes de que não há escapatória frente o inevitável. “Várias vezes ao longo dessas três horas, Mikháilov, não sem razão, considerou seu fim como inevitável, e se acostumou com a convicção de que ele deveria ser morto infalivelmente e que não pertencia mais a este mundo”. (TOLSTÓI, p. 49)." Condenados a sacrificarem suas vidas em prol da nação, eles partem para a batalha, cientes de que não virão a retornar. E, ainda para aqueles que sucedem em escapar do fim nas trincheiras, parece não haver real salvação, pois os horrores ali vividos ficarão eternamente gravados em suas memórias, como destacado na fala de um dos soldados: “‘Sabe, eu me acostumei tanto com essas bombas que estou convencido de que uma noite de estrelas na Rússia sempre me parecerá apenas um espetáculo de explosões de bombas, de tanto que a gente se acostuma com elas’” (TOLSTÓI, p. 38).

Há ainda, neste mesmo capítulo, descrições relacionadas aos civis envolvidos no conflito, que por Sebastopol ainda convivem. São personagens inocentes à guerra, vítimas da invasão de seus lares e assombrados pela iminência da destruição de tudo aquilo que esforçaram-se, durante toda a existência, para conquistarem.

“‘Aquelas estrelinhas! Elas dispararam pelo céu como estrelas, como estrelas!’, disse a menina, quebrando o silêncio que se seguiu às palavras de Nikita. ‘Pronto, pronto! Outro caiu! Por que eles fazem isso, mamãe?’”

“‘Eles vão arruinar totalmente nossa choupana!’, exclamou a velha, suspirando e sem responder à pergunta da filhinha.”

“‘E quando o tio e eu fomos lá hoje, mamãe’, continuou a menininha, com voz estridente, ‘havia uma bala de canhão tão grande no quarto, perto do armário... ela havia atravessado a parede e entrado na sala... e era tão grande que você não poderia levantá-la.’”

“‘Aqueles que tinham marido e dinheiro foram embora’, disse a velha. ‘E agora arruinaram minha última casinha. Veja, veja como eles estão atirando, os miseráveis. Senhor, Senhor!’”

“‘E assim que saímos, uma bomba voou em nossa direção, explodiu e espalhou a terra ao redor, e um pedaço da concha chegou perto de atingir meu tio e eu.’” (TOLSTÓI, p. 41).

Assim como na atualidade, as crianças descritas por Tolstói não estão alheias aos horrores envolvidos nas operações militares que acontecem em Sebastopol, sendo vítimas diretas. Em outra passagem, após uma tentativa de ataque dos beligerantes opostos ao Império Russo, acompanhamos a pequena aventura de um garoto que decide explorar a cidade, quando avista uma pilha de mortos.

“O rapaz observou por um longo tempo um terrível corpo sem cabeça que por acaso era o que estava mais próximo dele. Depois de ficar ali por um longo tempo, ele se aproximou e tocou com o pé o braço enrijecido do cadáver que se projetava. O braço balançou um pouco. Ele o tocou novamente, e com mais vigor. O braço balançou para trás e então caiu no lugar novamente, e imediatamente o menino soltou um grito, escondeu o rosto nas flores e correu para as fortificações o mais rápido que pôde (TOLSTÓI, p. 63)

Na terceira e última de suas crônicas, Tolstói nos apresenta a dicotomia entre dois irmãos que lutam na mesma guerra. Enquanto o mais velho é retratado como mais contido e experiente, seu caçula está ávido pela batalha. Contudo, ao chegar em campo, seu romantismo é abalado frente à realidade:

“De repente, Volódia ficou terrivelmente assustado, parecia-lhe que uma bala de canhão ou uma lasca de bomba voaria em sua direção e o atingiria diretamente na cabeça. Essa escuridão úmida, todos esses sons, especialmente o bater raivoso das ondas, pareciam dizer-lhe que não deveria ir mais longe, que nada de bom o esperava além, que ele nunca mais pisaria no chão sobre este lugar, que ele deveria dar meia-volta imediatamente e fugir para um lugar ou outro, o mais longe possível desse terrível refúgio da morte” (TOLSTÓI, p. 87).

Volódia percebe que, mesmo treinado pela academia militar, não havia como estar pronto para aquilo tudo. Não importava o quanto se esforçasse para relembrar dos incentivos imperiais e da suposta honra em servir à pátria, “toda a sua alma jovem e sensível encolheu-se e foi esmagada pela consciência da solidão e pela indiferença de todos ao seu destino em meio ao perigo” (TOLSTÓI, p. 90). Sua aventura termina em mais uma pilha de defuntos, mas não há tempo para lamentar as perdas, pois:

“A destruição ainda estava em andamento. Sobre a terra, sulcada e espalhada pelas explosões recentes, jaziam carruagens curvadas, esmagando os corpos dos russos e do inimigo, pesados canhões de ferro silenciados para sempre, bombas e balas de canhão arremessadas com força horrível em covas e meio enterradas no solo, depois mais cadáveres, fossos, estilhaços de vigas, aposentos à prova de bombas e ainda mais corpos silenciosos em casacos das cores cinza e azul” (TOLSTÓI, p. 126.)

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Guerra da Crimeia foi mais do que um conflito entre impérios: foi também uma disputa entre formas de ver e representar a guerra. Por meio das imagens silenciosas de Roger Fenton e das palavras contundentes de Liev Tolstói, a memória desse episódio foi moldada por dois registros profundamente contrastantes. Fenton, com sua câmera, capturou a superfície da guerra: os uniformes alinhados, as paisagens vazias, o heroísmo calado. Tolstói, com sua pena, rasgou essa superfície para expor o que havia por baixo: o sangue, o medo, o sofrimento e a vaidade que habitam os bastidores da glória militar.

Enquanto Fenton ofereceu ao público europeu uma visão palatável do conflito, suavizada pela estética e pela propaganda com que fora encarregado de reproduzir ao grande público de sua época, Tolstói insistiu na verdade crua. Suas crônicas não são apenas literatura, mas um grito ético, uma recusa em permitir que a violência seja romantizada. O autor produziu mais do que somente alguns relatos de seu cotidiano enquanto militar russo: delatou, ao mundo, a guerra.

Entre a fotografia posada e o texto visceral, entre o silêncio das imagens e o clamor das palavras, o leitor é desafiado a refletir sobre o que escolhemos ver e o que preferimos ignorar quando olhamos para a guerra. E talvez seja justamente nesse intervalo entre o que é mostrado e o que é sentido que reside a mais profunda crítica da arte de Tolstói: não basta ver a guerra; é preciso senti-la, entendê-la e, sobretudo, recusá-la.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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TEMPERLEY, Harold. England and the Near East: the Crimea. Londres: Longmans, Green and Co., 1932.


1 Discente do Curso Superior de Bacharelado em História do Faculdade Estácio. E-mail: [email protected]