DIREITOS DO AUTISTA E A LUTA POR EFETIVIDADE NAS POLÍTICAS PÚBLICAS
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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.15502449
Pedro Lucas Miranda Leal1
Atila Barros2
RESUMO
Este artigo realiza uma análise crítica sobre o Transtorno do Espectro Autista (TEA) e a efetividade das políticas públicas de inclusão escolar no Brasil, evidenciando o descompasso entre os direitos legalmente garantidos e sua aplicação concreta nas instituições de ensino. A partir de dados recentes do CDC (2020) e do marco legal da Lei nº 12.764/2012, o estudo investiga os obstáculos institucionais, formativos e culturais que comprometem a inclusão de crianças com TEA, mesmo em contextos que se dizem inclusivos. Com base nos aportes teóricos de Foucault, Vygotsky e Freire, a pesquisa problematiza a naturalização da exclusão por meio de discursos normativos e defende uma prática pedagógica dialógica, ética e transformadora. A inclusão, longe de ser um mero cumprimento legal, é aqui compreendida como um campo de disputa política e epistemológica sobre o que é educar na diferença.
Palavras-chave: Autismo; Inclusão escolar; Políticas públicas; Educação e diferença.
ABSTRACT
This article presents a critical analysis of Autism Spectrum Disorder (ASD) and the effectiveness of public policies for school inclusion in Brazil, highlighting the gap between legally guaranteed rights and their actual implementation in educational institutions. Drawing on recent data from the CDC (2020) and the legal framework of Law No. 12.764/2012, the study investigates institutional, formative, and cultural barriers that hinder the inclusion of children with ASD, even in contexts that claim to be inclusive. Grounded in the theoretical contributions of Foucault, Vygotsky, and Freire, the research problematizes the normalization of exclusion through regulatory discourses and advocates for a dialogical, ethical, and transformative pedagogical practice. Inclusion, far from being merely a legal requirement, is understood as a political and epistemological arena in which the meaning of education in difference is contested.
Keywords: Autism; School inclusion; Public policy; Education and difference.
INTRODUÇÃO
Este estudo propõe uma análise crítica sobre o Autismo e o hiato entre os direitos assegurados legalmente e sua aplicação efetiva nas instituições escolares. Dados do Centers for Disease Control and Prevention (CDC, 2020) estimam que 1 em cada 54 crianças é diagnosticada com Transtorno do Espectro Autista (TEA), o que impõe novos desafios ao sistema educacional. Apesar dos avanços legais — como a Lei nº 12.764/2012, que garante o acesso à educação inclusiva — a realidade cotidiana das escolas brasileiras revela a persistência de barreiras institucionais e atitudinais. A ausência de cuidadores, a precariedade dos recursos e a insuficiência na formação dos profissionais evidenciam a distância entre discurso e prática. Mesmo em instituições que se declaram inclusivas, prevalece uma estrutura pouco preparada para acolher a singularidade dos alunos com TEA.
Foucault (1975), ao discutir os regimes de verdade, ajuda a compreender como a escola pode operar como espaço de normalização, onde o discurso da inclusão serve, muitas vezes, para legitimar práticas de exclusão sutis. Como afirma o autor, as instituições funcionam por meio de dispositivos disciplinares que regulam comportamentos e saberes, convertendo a diversidade em desvio. A teoria sociocultural de Vygotsky (1988) reforça que o desenvolvimento humano ocorre na mediação social; o fracasso da escola em adaptar-se ao aluno com TEA não é apenas pedagógico, mas epistemológico. Freire (1996), por sua vez, propõe uma pedagogia libertadora, baseada na escuta e no respeito às singularidades — elementos essenciais para uma prática verdadeiramente inclusiva. A literatura recente também aponta para a fragilidade das políticas inclusivas quando não acompanhadas de ações concretas. Sassi (2015) afirma que a existência da lei não assegura a inclusão, sendo fundamental enfrentar as resistências culturais e institucionais. Mello (2017) destaca que o sucesso da inclusão depende da formação dos educadores e da articulação entre escola, família e rede de saúde. Essa autora critica a medicalização da infância e a transformação de diagnósticos em dispositivos de controle, numa perspectiva que dialoga diretamente com Foucault. Pereira (2019) denuncia a “inclusão formal”, caracterizada pela presença física do aluno com TEA, mas sua exclusão simbólica e pedagógica. Para ele, a verdadeira inclusão exige uma mudança de paradigma: não basta adaptar o currículo, é preciso transformar as concepções de sujeito e aprendizagem. Foucault (1995), em A ordem do discurso, mostra como o poder se exerce pela legitimação de determinados discursos. Assim, a própria ideia de inclusão pode converter-se em norma reguladora, apagando a diferença sob o manto da adequação. Perguntar quem é o sujeito autista na escola e como ele é reconhecido é também uma crítica aos processos de subjetivação que operam no ambiente escolar.
A pesquisa evidencia, portanto, que a inclusão de crianças com TEA requer mais do que dispositivos legais: demanda escuta, compromisso ético e uma ruptura com a lógica da homogeneização. Como afirma Freire (1996), “ninguém educa ninguém [...] os homens se educam em comunhão”. Refletir sobre o autismo é, no fundo, refletir sobre a educação em sua potência transformadora. A inclusão não se resume a adequações técnicas, mas constitui uma prática política capaz de tensionar a escola como instituição normativa e reconfigurar o sentido da educação como liberdade.
CONTEXTUALIZAÇÃO DO PROBLEMA
O aumento nos diagnósticos de Transtorno do Espectro Autista (TEA) — estimado em 1 a cada 54 crianças segundo o CDC (2020) — tem intensificado os debates sobre inclusão escolar no Brasil. Tal crescimento reflete maior conscientização e avanços no entendimento do autismo, evidenciando a necessidade de políticas educacionais eficazes. Apesar da promulgação da Lei nº 12.764/2012 (Lei Berenice Piana), que reconhece o autista como pessoa com deficiência e garante direitos à educação, diagnóstico e apoio escolar, a implementação prática nas instituições de ensino ainda encontra grandes obstáculos. Persistem lacunas como ausência de laudo formal, falta de profissionais qualificados, escassez de recursos e resistência institucional às adaptações pedagógicas necessárias. Historicamente, as políticas públicas priorizaram modelos de integração parcial, mantendo alunos com deficiência em espaços segregados. A inclusão, conforme preconizada pela legislação, exige mais do que acesso físico à escola: demanda acolhimento pedagógico efetivo. Vygotsky (1988), ao enfatizar a mediação social como base para o desenvolvimento cognitivo, reforça que ambientes de aprendizagem devem ser sensíveis às necessidades dos sujeitos. Freire (1996), por sua vez, defende uma pedagogia crítica e dialógica, que respeite a singularidade de cada educando. Embora não trate diretamente do autismo, sua concepção de educação como prática emancipatória oferece fundamentos sólidos para uma inclusão ética e transformadora.
A análise de Sassi (2015) evidencia que, mesmo com avanços legais, a resistência cultural e a falta de preparo institucional são entraves persistentes. A autora defende que a inclusão real só ocorrerá quando houver mudanças estruturais nas práticas pedagógicas e no modo como a diferença é acolhida nas escolas. Mello (2017) reforça a urgência de estratégias individualizadas e apoio especializado como elementos centrais para a efetividade da inclusão de alunos com TEA, alertando para a frequente despreparação docente. Pereira (2019) aponta que a formação continuada e a colaboração entre professores, famílias e profissionais de apoio são fundamentais para garantir uma educação de qualidade a todos os alunos. Mesmo com a existência de políticas inclusivas, a distância entre a norma e a realidade escolar é ampla. A escassez de acompanhantes especializados, o despreparo para lidar com o TEA e a ausência de práticas pedagógicas adaptadas comprometem o desenvolvimento integral das crianças autistas. A inclusão, portanto, não deve ser encarada apenas como cumprimento legal, mas como compromisso ético e social. A efetivação dos direitos dessas crianças exige a transformação do ambiente escolar em um espaço realmente acolhedor e responsivo.
A reflexão crítica proposta exige considerar não apenas aspectos legais, mas as implicações éticas e sociais da inclusão. A resistência à inclusão é reflexo das desigualdades estruturais da sociedade e da reprodução de práticas excludentes. Como afirma Freire (1996), a educação deve ser espaço de superação, e não de conformação. Assim, a inclusão escolar de crianças com TEA revela-se um campo de disputas pedagógicas e políticas, no qual o desafio central é construir uma escola democrática e humanizadora — onde o respeito à diferença seja o princípio, e não a exceção.
A INCLUSÃO ESCOLAR DE CRIANÇAS COM TEA
A crescente prevalência de diagnósticos de Transtorno do Espectro Autista (TEA) no Brasil tem gerado uma demanda cada vez maior por adaptações no sistema educacional, a fim de garantir uma inclusão efetiva das crianças autistas nas escolas regulares. Segundo o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), a prevalência do autismo é de 1 a cada 54 crianças nos Estados Unidos (CDC, 2020), e essa tendência também é observada no Brasil, com implicações diretas para as políticas educacionais. O desafio da inclusão escolar de alunos com TEA está diretamente relacionado à capacidade das escolas de se adaptar às necessidades específicas desses alunos, especialmente à luz da Lei nº 12.764/12, a Lei Berenice Piana, que estabelece a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (Lei nº 12.764/12, 2012). A Lei Berenice Piana, promulgada em 2012, representou um avanço significativo nos direitos das pessoas com TEA, ao reconhecer oficialmente o autismo como uma deficiência e garantir o direito à educação, saúde, diagnóstico precoce, terapias, e a assistência de profissionais especializados (Lei nº 12.764/12, 2012). No entanto, apesar da clareza das diretrizes legais, a implementação dessa lei nas escolas tem sido desafiadora. A falta de recursos, a escassez de profissionais capacitados, e a resistência de algumas escolas em adaptar seus ambientes de aprendizagem são fatores que dificultam a efetivação plena da inclusão escolar.
A dificuldade de implementação da Lei nº 12.764/12 nas escolas pode ser observada em um estudo publicado na Revista Brasileira de Políticas Públicas (2020), que examina o impacto da legislação e os obstáculos enfrentados pelos profissionais da educação. O estudo revela que, embora existam diretrizes claras para a inclusão, muitas escolas ainda não oferecem o suporte necessário para alunos com TEA, principalmente em termos de adequação curricular, formação de professores e recursos didáticos especializados (Revista Brasileira de Políticas Públicas, 2020). Esse cenário sugere que, apesar do avanço legislativo, a legislação não tem sido suficiente para mudar efetivamente a realidade educacional de crianças com TEA, necessitando de um esforço conjunto de políticas públicas, formação contínua de educadores e adaptação das escolas.
TEORIA E PRÁTICA DA INCLUSÃO ESCOLAR
A formação dos professores desempenha um papel central na implementação de uma educação inclusiva de qualidade. Como discute Silvana Sassi em O Processo de Inclusão Escolar de Alunos com Deficiência: Desafios e Possibilidades (2015), a adaptação pedagógica e a formação específica de educadores são fundamentais para garantir a efetiva inclusão de alunos com TEA. A autora destaca que, muitas vezes, a falta de uma formação adequada para os docentes resulta em práticas pedagógicas excludentes, nas quais os alunos com TEA são marginalizados ou simplesmente não conseguem acessar o currículo regular. Para Sassi, o sucesso da inclusão depende diretamente da compreensão dos professores sobre as características do TEA e da adaptação das metodologias de ensino (Sassi, 2015). Essa perspectiva encontra eco nas diretrizes curriculares propostas pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) em Diretrizes Curriculares para a Educação Especial na Educação Básica (2008), que enfatizam a necessidade de formação contínua para educadores, com foco na adaptação dos currículos e metodologias pedagógicas para atender às necessidades específicas de alunos com deficiência. O CNE (2008) ressalta que a inclusão escolar não pode ser vista como uma questão isolada, mas deve ser integrada a uma transformação mais ampla do sistema educacional, com a criação de ambientes de aprendizagem inclusivos que contemplem as diversidades dos alunos. A Lei Berenice Piana, conforme abordado na Revista Brasileira de Políticas Públicas (2020), oferece um marco legal que garante direitos importantes para os alunos com TEA, incluindo a exigência de acompanhamento especializado nas escolas. No entanto, a falta de aplicação efetiva dessa lei nas escolas brasileiras leva a um quadro de exclusão que pode ser observado em muitas instituições de ensino, onde as crianças com TEA ainda são vistas como “casos excepcionais” e não como parte do público regular. A legislação é clara em relação à obrigatoriedade da inclusão, mas as lacunas na sua implementação, como a escassez de recursos e a falta de uma mentalidade inclusiva entre muitos profissionais da educação, são aspectos que comprometem sua efetivação.
Em sua análise sobre os direitos das pessoas com autismo, a Revista Brasileira de Educação Especial (2018) destaca que, mesmo com o avanço legal, a realidade nas escolas continua sendo de uma inclusão “parcial”. Os autores do artigo observam que, frequentemente, as escolas carecem de profissionais especializados em TEA, e as metodologias pedagógicas utilizadas ainda são inadequadas para atender às necessidades dos alunos. A falta de suporte individualizado, como o acompanhamento de um profissional especializado, é uma das principais barreiras enfrentadas pelas crianças com TEA no contexto escolar. Esse estudo sugere que a implementação efetiva da Lei nº 12.764/12 depende não apenas da alocação de recursos financeiros, mas também da mudança de atitudes e da conscientização dos profissionais da educação sobre as necessidades dos alunos com TEA (Revista Brasileira de Educação Especial, 2018).
O CDC (2020) e a UNICEF, com suas publicações sobre deficiência e inclusão na educação, fornecem uma base empírica sólida para compreender a prevalência do TEA e os desafios enfrentados pelas escolas na inclusão desses alunos. De acordo com os dados do CDC, a prevalência de autismo tem aumentado significativamente, refletindo não apenas uma maior conscientização, mas também avanços no diagnóstico precoce. A UNICEF (2020) aponta que a inclusão escolar de crianças com deficiência, incluindo aquelas com TEA, deve ser uma prioridade global, uma vez que a educação inclusiva é um direito fundamental que contribui para a construção de uma sociedade mais igualitária e justa. As organizações internacionais destacam a importância de políticas públicas que garantam o acesso à educação de qualidade para todas as crianças, independentemente de suas condições.
A Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, ao tratar dos desafios do autismo e da inclusão escolar, enfatiza a necessidade de políticas públicas eficazes que promovam a educação inclusiva, com foco na formação de professores e na implementação de práticas pedagógicas adequadas (Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, 2020). A fundação defende a criação de um ambiente educacional que não apenas acolha os alunos com TEA, mas que também favoreça seu desenvolvimento acadêmico e social. Embora o Brasil tenha avançado consideravelmente no reconhecimento dos direitos das pessoas com TEA, a efetiva inclusão escolar dessas crianças ainda enfrenta grandes desafios. A Lei nº 12.764/12, embora essencial, não tem sido suficiente para garantir que todos os alunos com TEA tenham acesso à educação de qualidade. A resistência de algumas escolas, a falta de formação adequada dos profissionais da educação, a escassez de recursos e o estigma social ainda são obstáculos significativos para a inclusão plena de crianças com TEA no sistema educacional brasileiro.
A análise das obras de Vygotsky, Freire, Sassi, Mello, e Pereira, juntamente com a revisão dos artigos acadêmicos sobre a temática, como os publicados na Revista Brasileira de Educação Especial (2018) e na Revista Brasileira de Políticas Públicas (2020), permite uma compreensão mais aprofundada dos desafios e das possibilidades da inclusão escolar. É necessário um esforço contínuo de todas as esferas da sociedade — governo, escolas, professores e comunidade — para que a inclusão escolar se torne uma realidade para todas as crianças com TEA. Somente assim será possível garantir o direito à educação plena e ao desenvolvimento integral dessas crianças, conforme estabelecido pela legislação.
A TEORIA DE VYGOTSKY SOBRE O DESENVOLVIMENTO SOCIAL E A EDUCAÇÃO INCLUSIVA
O desenvolvimento humano, conforme teorizado por Lev Vygotsky, não é um processo que se dá de forma isolada, mas sim como um fenômeno socialmente mediado. A teoria de Vygotsky sobre o desenvolvimento social destaca a importância das interações sociais, da linguagem e da cultura como elementos fundamentais na constituição do sujeito. Em seu conceito de "zona de desenvolvimento proximal" (ZDP), Vygotsky postula que o aprendizado ocorre efetivamente quando o sujeito é desafiado a realizar atividades que estão além de suas capacidades atuais, mas que são possíveis com o auxílio de um mediador — seja ele um educador, um colega ou uma ferramenta cultural. Este modelo de desenvolvimento, quando aplicado à Educação Inclusiva, abre caminho para reflexões significativas sobre a adaptação da escola à diversidade, especialmente no que tange aos alunos autistas e a busca pela efetivação de seus direitos dentro das políticas públicas educacionais (Vygotsky, 1984; Vigotsky, 1987).
A inclusão escolar de alunos com Transtorno do Espectro Autista (TEA) deve ser vista sob a ótica do desenvolvimento social e cultural, um princípio central na teoria de Vygotsky. Para ele, o desenvolvimento cognitivo e social não ocorre de forma puramente individual, mas é permeado por interações com o outro, com a cultura e com os instrumentos simbólicos que a sociedade oferece. Em um ambiente educacional inclusivo, a mediação dos professores, a colaboração entre pares e o uso de ferramentas pedagógicas adequadas são cruciais para que o aluno autista possa avançar na sua ZDP, rompendo barreiras impostas pelas dificuldades inerentes ao seu quadro clínico (Vygotsky, 1987). A inclusão de crianças com autismo, conforme destacado na obra de Vygotsky, não deve ser tratada como uma adaptação superficial ou como uma política de "acolhimento" isolado, mas sim como uma reconfiguração da própria pedagogia, onde as diferenças são reconhecidas e celebradas. A educação inclusiva, portanto, deve promover não apenas a presença do aluno autista na escola, mas também sua participação ativa no processo de ensino-aprendizagem. Para Vygotsky, essa participação é facilitada quando a escola se torna um espaço de interação social mediada, capaz de proporcionar experiências de aprendizagem que respeitam o ritmo e as peculiaridades de cada aluno (Vygotsky, 1984; Vygotsky, 2012).
A luta pelos direitos das pessoas com autismo no Brasil ganhou uma importante vitória com a promulgação da Lei nº 12.764/12, conhecida como Lei Berenice Piana, que reconheceu o autismo como uma deficiência e garantiu a inclusão dessas pessoas nas políticas públicas de saúde, educação e assistência social. No entanto, a efetividade dessa lei ainda está longe de ser plena, como evidenciado pela desigualdade no acesso a serviços especializados e pela falta de formação adequada para educadores no trato com alunos autistas. Neste ponto, a teoria de Vygotsky pode contribuir de maneira significativa para a implementação mais eficaz dessas políticas, pois oferece uma perspectiva de desenvolvimento que não apenas considera as limitações, mas que também busca promover as condições para que o indivíduo ultrapasse essas barreiras por meio da mediação social e cultural (Vygotsky, 1987).
A luta pelos direitos dos autistas, portanto, não deve se limitar à garantia de acessibilidade física e jurídica, mas deve estender-se à garantia de um ambiente educacional verdadeiramente inclusivo, que ofereça as condições necessárias para que o aluno autista desenvolva suas potencialidades. Isso implica em uma mudança no paradigma educacional, que deve ser transformado de um modelo de ensino que busca "normalizar" o aluno para um modelo que reconhece e respeita as diferenças, promovendo o desenvolvimento social e cognitivo dentro da ZDP de cada aluno (Vygotsky, 2012).
FOUCAULT E A REFLEXÃO SOBRE A EDUCAÇÃO INCLUSIVA
A partir das reflexões de Michel Foucault sobre o poder e a disciplinaridade, podemos entender que a educação inclusiva não se resume a uma simples questão de acesso aos espaços educacionais, mas envolve uma profunda reconfiguração das relações de poder, identidade e subjetividade dentro das instituições escolares. Para Foucault, a educação, enquanto uma prática social, é um dos principais mecanismos de controle e normatização, sendo capaz de produzir formas específicas de subjetividade que se alinham aos ideais dominantes de sociedade. Ela não é apenas um meio de transmissão de conhecimentos, mas também um campo onde se exercem práticas de vigilância, disciplina e conformação dos sujeitos às normas estabelecidas (Foucault, 2011). Entretanto, Foucault também nos ensina que, embora a educação tenha essa função de controle, ela não é um espaço totalmente fechado à resistência. A própria estrutura pedagógica pode ser uma forma de resistência às normas impostas. Quando consideramos a educação inclusiva sob essa ótica, ela deixa de ser uma mera adaptação ou um ajuste superficial de políticas educacionais. A verdadeira inclusão, conforme a perspectiva foucaultiana, exige uma transformação radical na maneira como o poder se exerce na educação. A escola deve ser reconfigurada não como um local onde as diferenças são suprimidas e “normalizadas”, mas como um espaço de afirmação da diferença, onde a multiplicidade das experiências humanas é reconhecida e celebrada.
Foucault propõe que o poder não é algo que simplesmente é imposto de cima para baixo, mas que ele circula e se manifesta nas relações cotidianas, nas interações entre os indivíduos e nas instituições. No contexto da educação inclusiva, isso significa que as práticas pedagógicas podem ser uma ferramenta tanto de subordinação quanto de libertação. O desafio, portanto, é redirecionar essas práticas para criar espaços educacionais que não apenas aceitem, mas que verdadeiramente integrem a diversidade como um valor fundamental. Para que isso aconteça, é preciso que os educadores, gestores e a própria sociedade reconheçam que a inclusão não é um simples processo de acomodação, mas uma reestruturação das formas de ensino, aprendizagem e interação social dentro da escola.
A educação, então, precisa ser entendida como um campo de disputas, onde a luta por uma educação inclusiva verdadeira é também uma luta pelo reconhecimento das subjetividades marginalizadas. Nesse contexto, a resistência não se dá apenas por meio de ações explícitas, mas também na capacidade das práticas pedagógicas de desafiar as normas de ensino tradicionais que buscam homogeneizar as experiências dos alunos, impondo um único modelo de aprendizagem e comportamento. Ao invés de homogenizar, a inclusão precisa buscar uma pedagogia que, como sugere Foucault, permita que as diferenças se manifestem de maneira produtiva e não como anomalias a serem corrigidas. Isso implica não só em repensar o currículo e as metodologias de ensino, mas também em revisitar as normas sociais e as estruturas de poder que permeiam o ambiente escolar.
A resistência, assim, não se dá apenas no âmbito da aceitação de alunos com deficiências ou necessidades específicas, mas na construção de uma escola que se torna um local de libertação, onde todos os alunos podem se tornar sujeitos ativos e críticos da sua própria formação. A escola, então, deve se constituir como um espaço onde as práticas pedagógicas são não apenas uma preparação para o mercado de trabalho ou para uma inserção social, mas uma verdadeira formação para a vida em sociedade, onde as diferenças são aceitas, respeitadas e valorizadas, contribuindo para o fortalecimento de uma democracia inclusiva e plural. Dessa forma, a educação inclusiva, longe de ser uma simples adaptação ou ajustamento de normas, torna-se uma ferramenta de transformação social, capaz de gerar uma nova configuração de relações de poder e subjetividade na sociedade (Foucault, 2011).
A relação entre a teoria de Vygotsky e a educação inclusiva evidencia que a inclusão não pode ser vista apenas como uma obrigação legal ou como um simples "ajuste" nas práticas pedagógicas, mas como um processo dinâmico e contínuo de construção do conhecimento em um contexto de interações sociais mediadas. Para que a luta pelos direitos dos autistas se traduza em políticas públicas efetivas, é necessário que a sociedade como um todo, e particularmente os educadores, adotem uma abordagem pedagógica que reconheça as diferenças e ofereça as condições para que todos os alunos, independentemente de suas dificuldades, possam alcançar seu pleno potencial (Vygotsky, 1984; Vygotsky, 1987). Embora a Lei Berenice Piana tenha sido um marco importante na inclusão de pessoas com autismo no Brasil, a realidade nas escolas ainda está longe de ser ideal. Um dos principais desafios encontrados é a implementação inadequada ou incompleta das políticas educacionais, que muitas vezes não levam em consideração as especificidades do desenvolvimento social e cognitivo de alunos com TEA. A falta de recursos, como a contratação de profissionais especializados (psicopedagogos, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos) e a escassez de formação adequada para os educadores, limita o alcance da política pública de inclusão (Vygotsky, 1984).
A inclusão de alunos com TEA vai além de um simples "acesso" à educação; ela implica na transformação da própria estrutura social da escola. Essa transformação deve ser vista, assim como Vygotsky propõe, como uma mediação contínua entre o desenvolvimento individual e o contexto social. O papel da escola não é apenas inserir o aluno no sistema, mas adaptá-lo de maneira que o sujeito consiga superar suas limitações e avançar na sua ZDP por meio de uma constante interação mediada (Vygotsky, 2012).
O TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA (TEA)
O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é uma condição do neurodesenvolvimento que afeta as habilidades cognitivas, sociais e comunicacionais, exigindo abordagens educacionais específicas. Segundo o DSM-5 (APA, 2013), o espectro abrange diferentes graus de intensidade e necessidade de apoio. Com o aumento dos diagnósticos, evidenciado pelo CDC (2020), a escola tornou-se palco central dos debates sobre inclusão, desafiando políticas públicas, práticas pedagógicas e a formação docente. A Lei nº 12.764/12, a chamada Lei Berenice Piana, foi um marco ao reconhecer o autismo como deficiência, assegurando direitos à educação, saúde e acompanhamento especializado. No entanto, sua efetiva implementação encontra entraves estruturais: falta de mediadores, escassez de materiais adaptados e ausência de formação específica.
Autores como Pereira (2019) afirmam que a educação inclusiva deve superar adaptações superficiais, promovendo ambientes dialógicos e respeitosos às singularidades. Vygotsky (1998), em A Formação Social da Mente, sustenta que a aprendizagem se dá por mediação social, tornando fundamental a criação de espaços escolares que estimulem a participação ativa dos alunos com TEA. Já Freire (1996), mesmo sem tratar diretamente do autismo, propõe uma pedagogia da escuta e do diálogo, em que a educação é vista como um processo libertador, atento às potências de cada sujeito. Essa perspectiva é essencial para pensar uma escola que acolha, respeite e potencialize a diversidade.
A literatura aponta fragilidades na formação continuada dos professores. Sassi (2015) evidencia que, sem preparo adequado, os educadores se veem despreparados para implementar práticas pedagógicas ajustadas às necessidades dos alunos com TEA. Mello (2017) reforça a importância do diagnóstico precoce e da criação de estratégias individualizadas como fatores determinantes para a efetividade da inclusão. Costa e Silva (2020) destacam a precariedade das escolas públicas no que diz respeito à infraestrutura e à disponibilidade de recursos materiais e humanos. A ausência de uma política de formação docente robusta e o longo tempo de espera para diagnósticos, como demonstram Santos (2018) e Araújo (2021), comprometem o acesso ao atendimento especializado e à construção de planos pedagógicos individualizados.
A crítica de Pereira (2019) ao caráter meramente formal de parte das ações inclusivas mostra que, em muitas escolas, a inclusão é reduzida à presença física do aluno ou a ajustes pontuais. No entanto, para que a inclusão se concretize, é necessário transformar o ambiente escolar em um espaço responsivo às necessidades dos sujeitos, com apoio de psicopedagogos, terapeutas e gestores conscientes de seu papel. A legislação por si só não garante inclusão: é preciso compromisso ético, político e pedagógico com a diversidade. Como argumenta Sassi (2015), o aluno com TEA deve ser reconhecido como sujeito integral do processo educacional, e não apenas como um corpo a ser adaptado às normas da escola. A inclusão escolar de alunos com TEA não é apenas uma demanda legal, mas uma exigência ética de uma sociedade democrática. Requer reestruturações profundas nas práticas pedagógicas, reorganização dos ambientes escolares, disponibilização de recursos e, sobretudo, escuta atenta às diferenças. A efetividade da Lei nº 12.764/12 depende da superação da lógica de inclusão burocrática e da construção de uma escola verdadeiramente plural, em que a diferença não seja tolerada, mas celebrada como valor educativo.
A HISTÓRIA DO TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA (TEA)
A história do Transtorno do Espectro Autista (TEA) remonta ao início do século XX, quando o conceito de autismo começou a ser delineado nas primeiras observações clínicas, mas foi durante a década de 1940 que o termo ganhou maior destaque. A evolução do entendimento sobre o TEA passou por várias fases de concepção e redefinição, com destaque para os marcos históricos estabelecidos por estudiosos como Leo Kanner, Hans Asperger, e mais recentemente, pelas contribuições das neurociências e da psicologia do desenvolvimento. O autismo, como condição clínica, foi descrito pela primeira vez em 1943 pelo psiquiatra austríaco Leo Kanner, que, em seu trabalho "Autistic Disturbances of Affective Contact" (Kanner, 1943), identificou um grupo de crianças que demonstravam dificuldades graves na interação social, comunicação e comportamento. Kanner observou que esses sintomas não eram causados por uma deficiência intelectual, mas por um conjunto de características únicas que afetavam a capacidade das crianças de se conectar com os outros. Ele usou o termo "autismo" para descrever o comportamento das crianças, vindo do grego "autos", que significa "em si mesmo", referindo-se à tendência das crianças a se isolarem em seu próprio mundo. Por outro lado, Hans Asperger, um pediatra austríaco contemporâneo de Kanner, também estudou crianças com características semelhantes, mas com uma manifestação menos grave de distúrbios. Em 1944, Asperger publicou sua pesquisa sobre crianças que exibiam comportamentos repetitivos e interesses restritos, mas que, ao contrário das crianças de Kanner, mantinham habilidades cognitivas relativamente preservadas. Embora o termo "Síndrome de Asperger" só fosse cunhado mais tarde, o trabalho de Asperger foi fundamental para a compreensão de que o autismo poderia ocorrer em diferentes graus e com diferentes manifestações. Asperger (1991) descreveu o que hoje é entendido como uma forma de autismo de alto funcionamento, onde as habilidades de linguagem e inteligência estavam mais preservadas, mas os sintomas sociais e comportamentais ainda estavam presentes.
Na década de 1980, o autismo começou a ser classificado de maneira mais sistemática, com o reconhecimento da diversidade dentro do espectro. O DSM-III (American Psychiatric Association, 1980) passou a incluir o autismo como uma categoria diagnóstica separada e começou a definir o autismo como um "distúrbio generalizado do desenvolvimento". Foi nesta época que o termo "autismo" começou a ser mais amplamente utilizado para englobar uma série de distúrbios de desenvolvimento com características semelhantes. A compreensão do TEA continuou a evoluir ao longo das décadas seguintes. Em 1994, o DSM-IV (American Psychiatric Association, 1994) ampliou a definição de autismo, introduzindo o conceito de Transtornos do Espectro Autista (TEA), que incluía o autismo clássico, a Síndrome de Asperger e o Transtorno Global do Desenvolvimento sem outra especificação. Isso refletiu uma visão mais inclusiva, reconhecendo que o autismo poderia ocorrer em diferentes níveis de gravidade e manifestar-se de formas variadas. A partir do início do século XXI, com os avanços nas neurociências e a melhor compreensão dos fatores genéticos e ambientais que contribuem para o TEA, o conceito de autismo passou a ser mais refinado. Estudos como os de Lord, Rutter e Le Couteur (2000) ofereceram diagnósticos mais precisos e estabeleceram critérios mais claros para distinguir entre os diversos subtipos dentro do espectro. A compreensão do autismo também se expandiu para incluir aspectos relacionados ao desenvolvimento neuropsicológico, à genética e à interação com o ambiente social. A partir da década de 1990, o autismo passou a ser reconhecido em uma perspectiva mais inclusiva, especialmente com o fortalecimento da legislação e das políticas públicas em muitos países. Nos Estados Unidos, por exemplo, o "Americans with Disabilities Act" (ADA) de 1990 e a "Individuals with Disabilities Education Act" (IDEA) de 1997 garantiram o direito à educação para crianças com deficiência, incluindo aquelas com TEA. Esse movimento se expandiu internacionalmente, com políticas que favoreciam a integração de crianças com autismo nas escolas regulares e a oferta de recursos de apoio, como serviços especializados e adaptações curriculares.
No Brasil, a Constituição de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996 estabeleceram as bases para a educação inclusiva, que foi mais fortemente reforçada pela Lei nº 12.764/12, que institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista. A Lei Berenice Piana, como ficou conhecida, garante o direito à educação e à saúde para pessoas com TEA, além de prever o diagnóstico precoce e o acompanhamento especializado.
Atualmente, o entendimento do TEA se baseia em uma abordagem multifacetada, que reconhece tanto os aspectos biológicos quanto sociais do transtorno. Estudos recentes indicam que o autismo é um transtorno neurobiológico com forte componente genético, embora fatores ambientais também desempenhem um papel importante no seu desenvolvimento (Zwaigenbaum et al., 2015). Pesquisas sobre o neurodesenvolvimento têm revelado informações sobre as anomalias cerebrais associadas ao TEA, como as diferenças na conectividade neural e no processamento de informações sensoriais (Courchesne et al., 2011). A identificação precoce do autismo e a intervenção terapêutica, incluindo abordagens como a terapia comportamental, têm se mostrado eficazes no desenvolvimento de habilidades sociais e de comunicação para indivíduos com TEA. Além disso, a compreensão do autismo também tem se expandido para incluir uma abordagem mais inclusiva e menos estigmatizante. De acordo com autores como Silberman (2015), o conceito de autismo tem sido cada vez mais aceito como parte da diversidade humana, e muitos indivíduos no espectro buscam um diagnóstico para entender melhor sua identidade e melhorar suas interações sociais.
METODO
A metodologia adotada neste estudo é a revisão de literatura, recurso essencial na pesquisa acadêmica, voltado à análise crítica e sistemática do conhecimento já produzido sobre determinado tema. Neste caso, a escolha fundamenta-se na necessidade de compreender as tensões entre os direitos assegurados legalmente e sua implementação nas escolas, com foco na inclusão de crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA). A revisão permite identificar lacunas, aprofundar teorias e situar o fenômeno da inclusão escolar dentro de uma abordagem interdisciplinar. Leis como a nº 12.764/2012, que estabelece o direito à educação inclusiva, e as discussões propostas por autores como Vygotsky, Freire e Foucault, fundamentam essa análise. A obra de Vygotsky (1988) é central para a compreensão da aprendizagem como processo mediado socialmente. Sua perspectiva exige práticas pedagógicas que reconheçam e respondam à singularidade dos sujeitos, como os com TEA. Freire (1996), por sua vez, propõe uma pedagogia do diálogo e da escuta, defendendo a valorização das diferenças como princípio ético da prática educacional. Sua crítica à educação bancária reforça a urgência de romper com modelos excludentes. Já Foucault (1995) oferece instrumentos teóricos para problematizar a inclusão como estratégia de normalização. Para ele, o poder opera nas instituições não apenas pela repressão, mas pela organização dos discursos e práticas, como se observa nas escolas que, mesmo sob a bandeira da inclusão, reproduzem exclusões sutis.
A revisão de literatura também abrange estudos como os de Sassi (2015), Mello (2017) e Pereira (2019), que evidenciam as dificuldades da inclusão na prática. Mello (2017) destaca a importância da formação docente e da articulação entre escola, família e rede de saúde. Sassi (2015) alerta que a legislação, por si só, não rompe com as barreiras atitudinais nem transforma as práticas pedagógicas. Pereira (2019) acrescenta que a inclusão não pode ser meramente formal — é preciso garantir a participação efetiva dos alunos, repensando o próprio paradigma de aprendizagem. Esses autores convergem na ideia de que as transformações desejadas na educação inclusiva exigem mais do que ajustes legais: implicam uma profunda revisão das concepções de sujeito, ensino e convivência escolar. Segundo Gil (2010), a revisão de literatura é estratégica para mapear o estado da arte, orientar hipóteses e sustentar criticamente os objetivos de uma pesquisa. Lakatos e Marconi (2017) reafirmam esse papel ao destacar que tal metodologia permite consolidar fundamentos teóricos e dialogar com os principais debates acadêmicos. No presente estudo, isso se manifesta pela articulação entre as teorias da aprendizagem e os desafios institucionais enfrentados no cotidiano escolar, contribuindo para uma compreensão ampliada e crítica da inclusão de alunos com TEA.
Em síntese, a metodologia de revisão de literatura, ao promover uma análise densa, crítica e fundamentada, permite que o estudo transcenda a mera descrição de políticas e leis, apontando caminhos para a transformação da prática escolar em um espaço verdadeiramente inclusivo e emancipador. Ao integrar diferentes referenciais teóricos, o estudo contribui para o aprofundamento do debate sobre a inclusão e para a proposição de práticas que respeitem a singularidade e a diversidade no ambiente educacional.
APRESENTAÇÃO DOS DADOS E ANÁLISE
O presente estudo investiga as lacunas entre os direitos legais assegurados e a efetividade da inclusão escolar de crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA), com base em análise empírica e teórica. Parte-se do marco legal estabelecido pela Lei nº 12.764/2012 (Lei Berenice Piana) e pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015), que garantem a educação inclusiva. Apesar disso, a realidade escolar, tanto pública quanto privada, revela barreiras institucionais, falta de recursos humanos especializados, materiais adaptados e deficiências na formação docente. A ausência de mediação pedagógica eficaz, prevista na teoria sociocultural de Vygotsky, agrava o descompasso entre legislação e prática. O autor destaca que o desenvolvimento cognitivo ocorre pela mediação social (Vygotsky, 1984; 1987), o que exige professores preparados para lidar com a diversidade. No entanto, observou-se que o ensino ainda se baseia em métodos tradicionais e descontextualizados para alunos com TEA.
A articulação entre escola, família e saúde aparece como um ponto crítico, sendo recorrente o relato de isolamento por parte das famílias. A comunicação falha entre os setores compromete o acompanhamento integral dos alunos. No âmbito público, observa-se resistência à mudança e infraestrutura inadequada, revelando a distância entre o discurso legal e a experiência concreta da inclusão. Foucault (1975; 2011) é mobilizado para problematizar o risco de que a inclusão se torne um mecanismo de normalização, mascarando práticas de exclusão sob a aparência de integração. A "inclusão", assim, tende a transformar diferenças em desvios a serem corrigidos, em vez de reconhecê-las como valor pedagógico.
A análise empírica mostra a necessidade urgente de formação continuada docente. A precariedade da formação inicial compromete práticas pedagógicas que deveriam ser adaptadas às singularidades cognitivas. Além disso, a inclusão escolar, segundo os pressupostos de Vygotsky e Freire, deve ser compreendida como um processo ético e político de transformação e não apenas como cumprimento formal da legislação. A presença física de alunos com TEA na escola regular não garante, por si só, inclusão efetiva. É necessário construir ambientes de aprendizagem responsivos às singularidades.
A revisão de literatura foi eficaz ao abordar legislação, práticas pedagógicas, teoria e desafios práticos. Contudo, poderia ampliar a articulação entre autores como Piaget e Bruner, que também tratam da diversidade cognitiva. A separação entre teoria e prática foi outro ponto frágil: faltou aprofundamento crítico sobre como o marco legal se realiza (ou não) na organização escolar. Além disso, a análise das barreiras atitudinais e da resistência institucional à mudança merece maior destaque, especialmente considerando os paradoxos do discurso inclusivo, conforme apontado por Foucault (1995). Por fim, a articulação entre políticas públicas, escolas e famílias carece de aprofundamento, já que a efetividade das leis depende de sua materialização nas práticas escolares cotidianas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os resultados obtidos ao longo desta pesquisa indicam, de forma contundente, que a inclusão escolar de crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA) no Brasil permanece como um projeto inacabado, tensionado entre o reconhecimento legal dos direitos e a ausência de práticas educativas que os tornem efetivos. Embora a legislação vigente — em especial a Lei nº 12.764/2012, que institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com TEA, e a Lei nº 13.146/2015, o Estatuto da Pessoa com Deficiência — represente avanços significativos no campo jurídico, ela tem se mostrado insuficiente para alterar, de forma estrutural, as práticas escolares que historicamente se constituíram sobre parâmetros excludentes e homogeneizadores.
A partir da perspectiva da psicologia histórico-cultural de Lev Vygotsky, é possível compreender que o processo educacional não se realiza de forma individual ou espontânea, mas por meio da mediação social, simbólica e cultural. O conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP) — eixo fundamental da teoria vygotskiana — propõe que o aprendizado ocorre de modo mais potente quando o sujeito é conduzido, por meio da interação e da colaboração, a realizar tarefas que extrapolam sua capacidade individual imediata. Nesse sentido, a ausência de uma mediação pedagógica efetiva, a falta de estratégias educacionais centradas na interação e na linguagem, e a não valorização dos instrumentos culturais e das expressões singulares do sujeito com TEA, configuram-se como obstáculos concretos à constituição de uma educação verdadeiramente inclusiva (Vygotsky, 1984; 1987; 1994). Além disso, os dados analisados revelam uma precarização persistente das condições objetivas que possibilitariam a inclusão escolar. A formação continuada dos profissionais da educação, ainda fragmentada e muitas vezes desvinculada das realidades escolares, contribui para a manutenção de práticas pedagógicas insensíveis às especificidades do autismo. A escassez de recursos pedagógicos, de tecnologias assistivas e de equipes multidisciplinares, somada à resistência institucional em adaptar o currículo e flexibilizar as metodologias, compromete gravemente os princípios da equidade e do direito à aprendizagem. Conforme alerta Rivière (1988), o problema não está na criança com autismo, mas nas estruturas cognitivas e simbólicas da escola, que continuam a operar sob lógicas normalizadoras e reducionistas.
As considerações finais deste trabalho, portanto, reafirmam que a inclusão escolar deve ser compreendida não como um dispositivo técnico ou uma adequação pontual ao sistema vigente, mas como um movimento radical de transformação ética, epistemológica e política da escola. Tal transformação exige o reconhecimento de que o sujeito com TEA não é um desvio a ser corrigido, mas uma expressão legítima da diversidade humana. A escola inclusiva, nesse sentido, deve ser reconfigurada como espaço de construção de subjetividades múltiplas, onde o currículo, a linguagem e a relação pedagógica sejam permanentemente tensionados pelas diferenças que os atravessam. É imprescindível romper com a lógica da homogeneização e assumir a inclusão como um processo contínuo de revisão crítica das práticas educativas. Isso implica investir de forma significativa na formação inicial e continuada dos professores, promover políticas públicas intersetoriais e construir, no cotidiano escolar, uma pedagogia que se comprometa com a justiça cognitiva — isto é, com o direito de todos os sujeitos à aprendizagem em condições equitativas, significativas e humanizadoras.
Conclui-se, portanto, que o desafio da inclusão escolar das crianças com TEA não reside apenas na implementação das leis, mas na produção de uma cultura educacional que reconheça, valorize e incorpore a diferença como princípio fundante do processo educativo. Só assim será possível superar a distância entre o direito formal e a vivência concreta, entre a norma jurídica e a práxis pedagógica, entre a promessa da inclusão e sua plena realização.
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1 Discente do curso de Pedagogia da Universidade Estácio de Sá (Unesa), Campus Teresópolis, RJ.
2 Docente dos Cursos de Pedagogia, Análise e Desenvolvimento de Sistemas e Ciências da Computação (UNESA-RJ). Doutorando em Educação pela Universidade Nacional de Rosário (UNR-ARG). Mestrado em Educação (UNESA-RJ). MBA em Data Warehouse e Business Intelligence (FI - PR). Pós-Graduado em Engenharia de Software, Antropologia, Psicopedagogia, Neuropsicopedagogia, Educação no Campo, Filosofia e Ciência da Religião (FAVENI-MG). Historiador pela Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU-SP).