A PEDAGOGIA DO SILÊNCIO E O DESAFIO DA VOZ NEGRA

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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.15540333


Yara da Costa Silva1
Atila Barros2


RESUMO
A educação brasileira tem sido historicamente marcada pela exclusão das contribuições africanas e afro-brasileiras, reflexo de um projeto pedagógico eurocêntrico. A Lei nº 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira, representou um avanço, mas ainda enfrenta resistências institucionais e práticas pedagógicas limitadas. Esta pesquisa analisa os obstáculos à implementação da lei, como a falta de formação docente, escassez de materiais didáticos inclusivos e um currículo monocultural. A literatura infantil afro-brasileira é discutida como ferramenta para promover representatividade e fortalecer identidades negras. A pesquisa bibliográfica destaca que inserir conteúdos afro-brasileiros não basta sem um reposicionamento estrutural da cultura negra como eixo central da educação. A transformação da escola em espaço antirracista exige compromisso docente, materiais adequados e políticas públicas eficazes.
Palavras-chave: Educação antirracista; Afro-brasilidade; Currículo inclusivo; Representatividade negra.

ABSTRACT
Brazilian education has historically been marked by the exclusion of African and Afro-Brazilian contributions, reflecting a Eurocentric pedagogical project. Law No. 10.639/2003, which mandates the teaching of Afro-Brazilian history and culture, represented significant progress, but still faces institutional resistance and limited pedagogical practices. This research analyzes the barriers to the implementation of the law, such as the lack of teacher training, scarcity of inclusive teaching materials, and the predominance of a monocultural curriculum. Afro-Brazilian children's literature is discussed as a tool to promote representation and strengthen Black identities. The bibliographic research emphasizes that simply including Afro-Brazilian content is not enough without a structural repositioning of Black culture as a central axis of education. Transforming the school into an anti-racist space requires committed teacher training, appropriate educational materials, and effective public policies.
Keywords: Anti-racist education; Afro-Brazilian identity; Inclusive curriculum; Black representation.

INTRODUÇÃO

A história da educação brasileira é atravessada por um silenciamento estrutural que marginalizou, por séculos, as contribuições dos povos africanos e afro-brasileiros à formação da sociedade nacional. Esse silenciamento não é mero descuido, mas consequência direta de um projeto pedagógico eurocêntrico, que consolidou-se desde o período colonial e perpetuou uma narrativa escolar em que a branquitude ocupa o centro simbólico da civilização, da cultura e do saber. Como destacam Chagas (2017) e Oliveira (2012), essa exclusão epistemológica provocou o apagamento sistemático das vozes negras nos currículos escolares, contribuindo para a naturalização do racismo e para a negação da ancestralidade africana como fundamento da identidade brasileira.

A promulgação da Lei nº 10.639/2003[3] representou um marco nas lutas dos movimentos negros por uma educação plural e antirracista. Tornar obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas significou uma tentativa de romper com a hegemonia narrativa e de reparar, ao menos em parte, as omissões históricas que marcaram o ensino no Brasil. Contudo, como demonstram Custódio e Bobsin (2016) e Assunção (2023), sua implementação tem sido marcada por resistências institucionais, políticas e culturais. A ausência de políticas formativas robustas, a escassez de materiais didáticos que valorizem a diversidade étnico-racial e a permanência de um currículo monocultural revelam o abismo entre a letra da lei e a prática pedagógica cotidiana. Essa lacuna não apenas compromete os objetivos educacionais de equidade e inclusão, como também afeta diretamente o processo de construção identitária de crianças e adolescentes negros, que muitas vezes não se reconhecem nas narrativas, imagens e valores veiculados pela escola. Como alerta Adichie (2009), o problema das histórias únicas reside em seu poder de definir quem é digno de ser lembrado, representado e valorizado. Quando os discursos escolares permanecem atrelados a uma visão única, branca e ocidental, perpetuam-se formas sutis, porém profundas, de exclusão simbólica.

É nesse cenário que a literatura infantil afro-brasileira emerge como ferramenta potente de resistência e reconfiguração do imaginário social. Conforme analisam Ramos e Amaral (2015), obras que trazem personagens negros em posições de protagonismo, sabedoria e beleza desafiam os estereótipos raciais historicamente disseminados na literatura e na mídia. A produção de autores comprometidos com a valorização da cultura afrodescendente, como Raul Lody (1995), representa um esforço para reencantar a infância com histórias ancoradas na ancestralidade africana, como se vê no conto Ogum: aquele que veio ensinar, em que o orixá é apresentado não como entidade folclórica, mas como símbolo civilizatório e ético.

Ao refletir sobre o papel da escola na mediação dessas narrativas, é preciso reconhecer, como apontam Xavier e Dornelles (2009), que o debate em torno da Lei nº 10.639/2003 não se limita ao campo educacional, mas envolve disputas ideológicas, históricas e políticas mais amplas. A resistência à inclusão efetiva da cultura afro-brasileira nos currículos revela o incômodo que a pluralidade cultural ainda causa em setores conservadores da sociedade brasileira. Nesse contexto, a escola precisa ser compreendida não como reprodutora de discursos dominantes, mas como espaço de contestação, diálogo e transformação social. Portanto, este artigo tem como objetivo analisar os fatores que limitam a aplicação plena da Lei nº 10.639/2003, com ênfase no papel da literatura infantil afro-brasileira como estratégia pedagógica para a construção de uma educação antirracista. A partir de uma abordagem bibliográfica, fundamentada em autores como Oliveira (2012), Assunção et al. (2023), Ramos e Amaral (2015) e Adichie (2009), busca-se evidenciar que não basta incluir conteúdos afro-brasileiros como apêndices do currículo; é necessário reposicionar a cultura afrodescendente como eixo estruturante do processo educativo. Confrontar o silêncio histórico com a voz ancestral é, mais do que um gesto didático, um ato político de reparação, reconhecimento e valorização da diversidade que constitui o Brasil.

CULTURA AFRODESCENDENTE COMO EIXO ESTRUTURANTE DO PROCESSO EDUCATIVO

A configuração histórica da educação brasileira está intrinsecamente marcada por um projeto civilizatório colonial, cujas raízes epistemológicas e políticas sustentam uma ordem hierárquica de saberes e de sujeitos. No centro deste projeto, encontra-se a marginalização sistemática da cultura afrodescendente, silenciada por um currículo eurocentrado e por práticas pedagógicas que reforçam, ainda hoje, a supremacia simbólica do Ocidente branco. A afirmação da cultura afro-brasileira como eixo estruturante do processo educativo, mais do que uma reivindicação identitária, é uma exigência ética, política e epistêmica de refundação da escola como espaço de pluralidade, reconhecimento e justiça social. Esta proposta não apenas dialoga com os pressupostos da Lei nº 10.639/2003, mas os radicaliza ao propor um deslocamento paradigmático: a educação deve deixar de “incluir” a cultura afrodescendente como apêndice e passar a reconhecê-la como fundante da formação do Brasil e, portanto, de seu próprio projeto educacional.

Essa abordagem encontra lastro na genealogia crítica proposta por Michel Foucault (1977), segundo o qual o saber não está desvinculado das relações de poder; ao contrário, ele é produzido dentro de uma rede de disputas, resistências e normalizações. O currículo escolar, nesse sentido, é um dispositivo que opera por seleção e silenciamento: escolhe o que deve ser ensinado e quem deve ser lembrado, definindo os limites entre o saber autorizado e o saber desqualificado. A ausência da cultura afrodescendente nos conteúdos escolares, nas referências literárias, nos livros didáticos e nas práticas pedagógicas não é mero esquecimento, mas resultado de um processo ativo de exclusão, que Foucault denomina de “regime de verdade” (Foucault, 1995). Nesse contexto, a obra de Laurentino Gomes (2019, 2021, 2022, 2023) é de fundamental importância para desvelar os alicerces históricos dessa exclusão. Ao reconstituir com rigor historiográfico o sistema escravocrata brasileiro, Gomes evidencia que a escravidão não foi um desvio da trajetória nacional, mas um de seus fundamentos estruturantes. Como afirma o autor, “o Brasil foi o último país do Ocidente a abolir a escravidão, o que não é coincidência, mas sintoma de uma sociedade profundamente moldada por hierarquias raciais” (Gomes, 2023, p. 19). Essa marca fundacional permanece viva nos currículos escolares que, ao omitir ou minimizar a contribuição dos povos africanos e afro-brasileiros, reiteram o racismo como prática pedagógica naturalizada.

A superação dessa lógica demanda a radicalização do projeto iniciado pela Lei nº 10.639/2003, cuja implementação, conforme demonstram os estudos de Assunção et al. (2023), ainda enfrenta obstáculos institucionais, formativos e ideológicos. A referida lei, embora represente um marco legal no reconhecimento da centralidade da cultura afrodescendente, é frequentemente aplicada de forma fragmentada e pontual. Em muitos contextos, como observam Custódio e Bobsin (2016), sua execução depende da iniciativa isolada de educadores engajados, revelando a ausência de um compromisso estrutural com a transformação do currículo e da formação docente.

Como aponta Adichie (2009), o perigo de contar uma única história, no caso, a história oficial branca, ocidental e cristã, reside em sua capacidade de se tornar a única versão da realidade, eclipsando todas as outras. Quando a escola narra o Brasil apenas a partir das glórias da colonização, da estética europeia e da narrativa dos heróis brancos, ela não apenas invisibiliza as contribuições afrodescendentes, como nega às crianças negras a possibilidade de se reconhecerem como sujeitos históricos, culturais e epistêmicos. Esse apagamento simbólico compromete a construção da autoestima, da identidade e do pertencimento, especialmente entre os estudantes negros, e perpetua um modelo educativo excludente. A literatura infantil afro-brasileira, conforme analisam Ramos e Amaral (2015), emerge como um instrumento potente de ressignificação dessa experiência. Ao apresentar personagens negros em contextos de beleza, sabedoria e protagonismo, essa produção literária desafia o cânone e propõe novas representações do ser negro na infância. No entanto, como mostram Debus (2007) e Chagas (2017), o acesso a esses materiais ainda é restrito e enfrenta resistências tanto por parte das instituições escolares quanto pela falta de formação adequada dos educadores. O mesmo ocorre com as expressões religiosas de matriz africana, como destaca Lody (1995): seu reconhecimento como patrimônio cultural e pedagógico esbarra em preconceitos racistas que associam essas tradições à marginalidade ou ao atraso.

A proposta de Oliveira (2012) de uma pedagogia baseada na filosofia da ancestralidade revela-se, nesse contexto, uma das vias mais promissoras para a reconfiguração epistemológica da educação brasileira. A ancestralidade, compreendida como força ontológica e princípio pedagógico, permite o resgate de saberes deslegitimados, a valorização das experiências diaspóricas e a reconexão com uma história que foi sistematicamente silenciada. Como argumenta o autor, “a ancestralidade não é apenas memória, mas fonte viva de conhecimento e ética que orienta a formação de sujeitos críticos e enraizados” (Oliveira, 2012, p. 31). Ao reposicionar a cultura afrodescendente como matriz fundadora e estruturante, a escola deixa de ser um espaço de exclusão para tornar-se campo de resistência e transformação.

A análise de Felipe e Teruya (2014) e Xavier e Dornelles (2009) reforça a ideia de que o processo de implementação de políticas de valorização da cultura afro-brasileira está atravessado por disputas simbólicas e políticas. A escola, longe de ser um espaço neutro, é palco dessas disputas, nas quais o currículo atua como campo de luta. Foucault (2008) nos ensina que o poder não se exerce apenas de forma repressiva, mas produtiva, ele produz discursos, subjetividades e práticas. Nesse sentido, a ausência da cultura afrodescendente não é um vácuo, mas uma produção ativa de silenciamento, um poder que se realiza por meio da invisibilidade.

A obra de Gomes (2019–2023) não apenas documenta o horror da escravidão como desvela suas permanências no tempo presente. Ao demonstrar como a escravidão moldou o imaginário social, a estrutura econômica e a organização política do Brasil, o autor permite compreender por que a cultura afrodescendente continua sendo tratada como periférica, folclórica ou exótica nos espaços educativos. A ruptura com esse modelo não pode ser feita por meio de ações pontuais ou pela mera adição de conteúdos afro-brasileiros aos currículos. É necessário um reposicionamento estrutural da cultura negra como eixo organizador das práticas educativas, ou seja, como fundamento do próprio projeto de educação pública, democrática e antirracista.

A cultura afrodescendente, enquanto eixo estruturante do processo educativo, oferece à escola brasileira a oportunidade de se reinventar como espaço de reconhecimento, pluralidade e emancipação. Este projeto, no entanto, exige mais do que boas intenções: demanda políticas públicas contínuas, revisão crítica dos currículos, formação docente antirracista e engajamento ético com a reparação histórica. É preciso reconhecer que o racismo, longe de ser um desvio, está inscrito nas estruturas da educação formal. Subverter essa ordem é devolver à escola sua vocação original: formar sujeitos livres, conscientes de sua história e comprometidos com a justiça social. Nas palavras de Foucault (1977), “a educação nunca é neutra: ela é sempre um exercício de poder”. Que esse poder seja, pois, transformado em potência crítica, em espaço de memória ativa e em campo de luta por uma pedagogia da ancestralidade, da resistência e da dignidade.

MATERIAL E MÉTODOS

Este artigo está ancorado em uma pesquisa de natureza qualitativa, com base na análise bibliográfica, caracterizando-se como um estudo teórico que visa refletir criticamente sobre a ausência da cultura afro-brasileira no espaço educacional. A escolha do método bibliográfico se justifica pela complexidade e profundidade necessárias à compreensão das dinâmicas históricas, sociais e políticas que envolvem a implementação da Lei nº 10.639/2003 e sua efetividade no contexto escolar, bem como as representações culturais e educacionais da população afrodescendente.

A investigação se fundamenta em autores que discutem a ancestralidade africana, a legislação educacional, as práticas escolares e a literatura infantil afro-brasileira, compondo um corpo teórico que permite a articulação entre o silêncio histórico da presença negra na educação e as possibilidades de construção de vozes insurgentes a partir de práticas pedagógicas inclusivas. A abordagem qualitativa, conforme esclarece Chagas (2017), permite compreender a inserção da cultura afro-brasileira na educação básica como um fenômeno atravessado por tensões sociais, políticas públicas ineficazes e resistências epistemológicas no interior das instituições escolares. Nesse sentido, a análise das fontes selecionadas se faz à luz da filosofia da ancestralidade africana, proposta por Oliveira (2012), a qual destaca que a educação deve ser compreendida como um campo de produção de sentidos culturais, éticos e políticos, inseparável da experiência histórica dos povos africanos e afro-brasileiros. Tal perspectiva confere ao estudo uma dimensão crítica e epistemologicamente comprometida com a valorização da cultura negra enquanto matriz fundadora da identidade brasileira.

O corpus bibliográfico é composto por autores nacionais e internacionais cujas produções tratam da implementação da Lei nº 10.639/2003, da literatura infantil como instrumento de resistência e formação identitária, bem como da crítica à hegemonia cultural eurocentrada no currículo escolar. Entre esses, destacam-se os estudos de Adichie (2009), que ao denunciar o perigo de uma história única, ilumina a urgência da multiplicidade de narrativas, especialmente no que tange à história e cultura africana e afro-brasileira. Sua reflexão reforça a importância da escuta e da visibilidade das vozes silenciadas pela tradição colonialista que permeia o sistema educacional brasileiro.

A obra de Raul Lody (1995), “O povo do santo”, representa um dos pilares desta pesquisa ao oferecer uma leitura densa sobre as religiosidades afro-brasileiras e suas manifestações culturais como elementos constituintes de um saber ancestral que deve ser respeitado e inserido no ambiente escolar. A invisibilização desses saberes contribui para a manutenção de estigmas e preconceitos, e sua recuperação, como defende o autor, constitui ato pedagógico, político e cultural. A análise bibliográfica abrange também estudos contemporâneos sobre as políticas educacionais voltadas à cultura afro-brasileira, como os de Assunção et al. (2023), que discutem os avanços e os limites na trajetória de implementação da Lei 10.639/2003, vinte anos após sua promulgação. A pesquisa desses autores fornece dados relevantes que dialogam com os resultados obtidos nesta investigação, contribuindo para a problematização da efetividade da legislação e da responsabilidade do Estado na sua execução.

Complementarmente, a obra de Ramos e Amaral (2015) serve como base para a discussão sobre a literatura infantil afro-brasileira como ferramenta de resistência e empoderamento. As autoras evidenciam que o espaço escolar ainda carece de representações positivas da população negra, o que compromete a construção da autoestima e identidade das crianças afrodescendentes. Este trabalho se propõe a analisar como a ausência ou presença dessas narrativas impacta diretamente o processo educativo, e como a literatura pode servir de instrumento para o enfrentamento do racismo estrutural.

Os estudos de Xavier e Dornelles (2009) fornecem subsídios para a compreensão das disputas políticas e simbólicas em torno da tramitação da Lei 10.639/2003, permitindo vislumbrar os interesses e resistências enfrentados na esfera legislativa e institucional. Ao questionar o papel da escola na construção da identidade étnico-racial, as autoras contribuem para o entendimento da escola como espaço de disputa de narrativas e como possível agente de transformação. Ainda dentro da análise da prática escolar, a pesquisa se apoia em Custódio e Bobsin (2016), que discutem as implicações curriculares da Lei 10.639/2003 no ensino religioso, campo frequentemente negligenciado nos debates sobre diversidade étnico-racial. A abordagem dos autores reforça a necessidade de repensar os currículos escolares a partir de um olhar plural, que abarque as diferentes manifestações culturais e religiosas da população afrodescendente, como forma de combater o eurocentrismo e promover uma educação mais equitativa.

O levantamento bibliográfico foi realizado nas bases digitais Scielo e Google Scholar, priorizando artigos, livros e documentos oficiais com reconhecida relevância acadêmica e afinidade temática. A seleção dos materiais considerou critérios de atualidade, rigor metodológico, diversidade de perspectivas teóricas e compromisso com a promoção da equidade racial na educação. Com base nessa fundamentação teórica, a análise dos dados bibliográficos foi conduzida de forma interpretativa e crítica, buscando identificar padrões discursivos, lacunas, contradições e contribuições significativas para o enfrentamento do racismo estrutural no campo educacional. A metodologia adotada não tem como objetivo a generalização estatística dos dados, mas sim a ampliação da compreensão sobre os mecanismos de exclusão e resistência presentes na história da educação brasileira e na produção do conhecimento sobre a cultura afro-brasileira. Dessa maneira, este estudo se propõe a transcender uma abordagem meramente descritiva para assumir um compromisso ético-político com a valorização da diversidade cultural e a justiça social, reconhecendo a escola como um território de disputa simbólica e como campo fértil para o cultivo de vozes historicamente silenciadas. Ao adotar o método bibliográfico, a pesquisa lança mão de diferentes autores e perspectivas para construir uma análise densa e crítica sobre os caminhos possíveis para a implementação efetiva da Lei nº 10.639/2003, articulando história, cultura, literatura e prática pedagógica como dimensões indissociáveis da educação antirracista.

DISCUSSÃO

A promulgação da Lei nº 10.639/2003 representou, sob muitos aspectos, um marco civilizatório na luta por uma educação plural, antirracista e decolonial no Brasil. No entanto, a análise bibliográfica extensiva revela que sua efetivação concreta nas instituições escolares permanece obstaculizada por um conjunto de dispositivos normativos, discursivos e estruturais que mantêm a centralidade de um currículo eurocêntrico e a hegemonia epistêmica branca como regimes de verdade legitimadores do silenciamento das culturas afro-brasileiras. Nessa direção, a reflexão se inscreve na chave foucaultiana do poder-saber, compreendendo o campo educativo como instância de produção de subjetividades normatizadas e de exclusão simbólica (Foucault, 2012). A persistência de práticas escolares alicerçadas em um imaginário monocultural, conforme evidenciado por Chagas (2017) e Custódio e Bobsin (2016), configura-se como uma reatualização cotidiana das estratégias disciplinares que, segundo Foucault (1977), operam menos pela negação explícita e mais pela administração do visível e do dizível. O que se observa, portanto, é a manutenção de um "racismo de Estado" (Foucault, 2008), não mais como mecanismo biopolítico de exclusão física, mas como tecnologia educacional de invisibilização ontológica.

A análise de Chagas (2017), ao tratar da realidade paraibana, mostra que a aplicação da Lei 10.639/2003 é esporádica, fragmentada, destituída de ancoragem epistemológica consistente. Tal constatação é corroborada pelos estudos de Custódio e Bobsin (2016), que relatam a inexistência de diretrizes claras no Amapá, denunciando a intersecção entre ausência de políticas públicas, lacunas formativas e a permanência do preconceito racial como ethos institucional. A repetição desses padrões em distintos contextos regionais denuncia a estruturação de um regime de verdade que, conforme Foucault (1995), se sustenta por uma rede de discursos normativos que “produzem o que dizem”, transformando o não-dito em ausência ontológica. Essa ausência, que não é neutra, mas funcional à reprodução da supremacia branca, manifesta-se de forma mais contundente na constituição identitária das infâncias negras. A observação de Adichie (2009), segundo a qual "a história única cria estereótipos, e o problema com os estereótipos não é que eles sejam falsos, mas que são incompletos", é especialmente elucidativa nesse contexto. Ao apresentar apenas uma versão da história nacional, centrada na narrativa branca, luso-cristã e elitista, o currículo escolar brasileiro reitera um processo de apagamento sistemático das contribuições africanas e afro-brasileiras na conformação do país, impedindo que sujeitos negros se reconheçam como agentes históricos, epistêmicos e estéticos.

Essa dinâmica de apagamento é reforçada por materiais didáticos e práticas pedagógicas que reiteram uma lógica colonial do conhecimento. A literatura infantil afro-brasileira, segundo Ramos e Amaral (2015), emerge como dispositivo de resistência simbólica e reconexão identitária, ao inscrever corpos negros como protagonistas de suas narrativas. Ainda assim, essa produção literária enfrenta resistências de múltiplas ordens, ideológica, institucional, epistemológica, que dificultam sua inserção sistemática nos projetos político-pedagógicos escolares. Trata-se, aqui, de uma luta pela legitimação do simbólico e pela reconfiguração dos dispositivos que regulam a visibilidade das identidades negras nos processos formativos. Nesse sentido, a crítica foucaultiana à produção dos saberes “regulados e sancionados pela autoridade institucional” (Foucault, 1999) permite compreender por que, mesmo diante da legislação, o currículo permanece impermeável à pluralidade epistemológica. A escola, como espaço disciplinador e produtor de sujeitos dóceis (Foucault, 1977), funciona por meio de micro-poderes que naturalizam a exclusão do diverso e reiteram a centralidade do modelo branco-cristão como paradigma de civilidade e saber.

A obra de Raul Lody (1995) torna-se, então, decisiva para a denúncia desse silenciamento estrutural. Ao evidenciar a profundidade epistêmica das religiões de matriz africana, como o candomblé, a umbanda e o culto aos orixás, o autor desestabiliza a pretensa neutralidade do laicismo escolar, revelando-o como dispositivo de embranquecimento cultural. O não reconhecimento dessas manifestações no ambiente educacional não é apenas omissão, mas um ato político de exclusão simbólica e epistêmica, que sustenta um racismo religioso legitimado pelo silêncio curricular. Eduardo Oliveira (2012) propõe uma ruptura radical com essa lógica a partir da filosofia da ancestralidade, concebida como fundamento pedagógico capaz de reposicionar a cultura afro-brasileira no centro das práticas educativas. A ancestralidade, para além de conteúdo programático, constitui uma ética relacional que valoriza os saberes não hegemônicos e convoca a escola a se tornar espaço de ressignificação da história, da memória e da identidade. Tal perspectiva converge com a crítica foucaultiana à produção arbitrária das verdades escolares, sugerindo que apenas a subversão dos dispositivos de poder pode instaurar uma prática educativa libertadora.

O estudo de Assunção (2023), amplia esse diagnóstico ao destacar os esforços já empreendidos, produção de materiais, formações docentes, iniciativas locais, mas também denuncia sua fragilidade diante da ausência de políticas públicas permanentes e da dependência de ações isoladas de educadores comprometidos. Essa constatação converge com o que Foucault (2011) chama de “microfísica do poder”: não é apenas a estrutura macro que impede a transformação, mas a rede capilar de práticas institucionais e resistências difusas que operam para manter a ordem discursiva dominante.

Xavier e Dornelles (2009), por sua vez, revelam que a própria tramitação da Lei nº 10.639/2003 foi atravessada por disputas simbólicas e resistências que demonstram o desconforto do Estado em reconhecer o racismo como fundamento da desigualdade educacional. Tal desconforto não é apenas político, mas epistêmico: ele compromete a estrutura mesma da escola como instância de manutenção de uma determinada ordem social. Foucault (1975) nos ensina que toda instituição educativa é, antes de tudo, um campo de luta por regimes de visibilidade, de inteligibilidade e de subjetivação. Dessa forma, o presente estudo conclui que a efetivação da Lei nº 10.639/2003 não pode ser reduzida à mera execução normativa. Exige-se, antes, uma revolução conceitual e epistemológica no interior da escola, que redefina suas finalidades, seus conteúdos e suas práticas pedagógicas. É necessário formar educadores conscientes de sua função política e ética, capazes de tensionar o cânone e de instituir práticas antirracistas, pluriepistêmicas e verdadeiramente inclusivas. A presença negra na educação não deve ser tolerada, mas celebrada como fundadora da brasilidade.

A desconstrução do currículo eurocentrado e a construção de um novo pacto educativo exigem, portanto, a insurgência crítica contra os dispositivos que silenciam a diferença. A escola, enquanto espaço de reprodução social, mas também de invenção de outras possibilidades de existência, deve ser convocada a assumir seu papel histórico na reparação dos danos epistêmicos produzidos pelo colonialismo. Como diria Foucault (1995), “onde há poder, há resistência”, e é nesse entremeio que se inscreve a possibilidade de uma pedagogia da ancestralidade, da pluralidade e da libertação.

A DESCONSTRUÇÃO DO CURRÍCULO EUROCENTRADO

A produção e a legitimação do conhecimento no espaço escolar brasileiro foram, historicamente, atravessadas por um viés colonial que estabelece como norma epistêmica uma matriz eurocentrada, branca e cristã. Esta hegemonia cultural não se configura como fruto do acaso, mas como resultado de um projeto civilizatório assentado na exclusão sistemática dos saberes oriundos de povos africanos, indígenas e afrodescendentes. A desconstrução do currículo eurocentrado, nesse sentido, constitui não apenas uma demanda pedagógica, mas um imperativo político e ético, que desafia os fundamentos da própria modernidade escolar, seus regimes de verdade e suas práticas normalizadoras (Foucault, 1995).

Michel Foucault, ao refletir sobre os mecanismos de poder que produzem os discursos legítimos, nos adverte que “em toda sociedade, a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por um certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos” (Foucault, 1995, p. 8). Assim, o currículo escolar é um dispositivo que atua na constituição dos sujeitos, regulando o que pode ser ensinado, lembrado e esquecido. A centralidade da história europeia, da filosofia grega, da estética renascentista e das narrativas coloniais não é neutra; ela é produto de um processo histórico de imposição cultural que tem na escola sua reatualização permanente. Nesse contexto, a reflexão de Laurentino Gomes (2019, 2021, 2022, 2023) sobre o legado da escravidão no Brasil assume um papel crucial. Ao resgatar com rigor histórico os processos de escravização e suas implicações sociopolíticas, Gomes evidencia que a escravidão não é um capítulo encerrado da história nacional, mas um trauma fundante que moldou as estruturas sociais, as hierarquias raciais e, consequentemente, os próprios currículos escolares. Como afirma o autor, “a escravidão foi um empreendimento de Estado, de Igreja e de comércio, legitimado por uma cultura profundamente racista e por uma educação que a naturalizou” (Gomes, 2023, p. 22). A escola, nesse sentido, tornou-se um dos principais agentes de reprodução do epistemicídio, conceito que designa a destruição sistemática dos saberes e culturas subalternizadas.

A crítica à “história única” formulada por Adichie (2009) adensa essa problemática. Quando apenas um ponto de vista, europeu, branco e masculino, é legitimado como verdade histórica e cultural, silencia-se a multiplicidade de experiências, memórias e contribuições de outros grupos. No caso brasileiro, isso se manifesta na exclusão dos conhecimentos africanos, das epistemologias indígenas, das tradições orais negras e das práticas religiosas de matriz afro-brasileira. Como destaca Lody (1995), ao ignorar as expressões religiosas como o candomblé e a umbanda, a escola perpetua uma “epistemologia da ignorância”, marginalizando os saberes que não se encaixam no modelo ocidental e cristão. A promulgação da Lei nº 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino da história e da cultura afro-brasileira nas escolas, representou uma tentativa de ruptura com esse paradigma excludente. No entanto, conforme demonstram Assunção et al. (2023), sua implementação permanece limitada e fragmentada, revelando a persistência de resistências institucionais e culturais que operam como dispositivos de contenção. Para Foucault (1977), a resistência ao novo não se dá apenas por repressão, mas por uma rede de saberes-poderes que organiza os discursos e estabelece fronteiras entre o legítimo e o ilegítimo, o científico e o folclórico, o racional e o mágico. Essa lógica excludente é particularmente visível nas práticas curriculares, conforme evidenciam Custódio e Bobsin (2016) ao analisarem a realidade educacional do Amapá, e Chagas (2017) ao refletir sobre a Paraíba. Em ambos os casos, a aplicação da Lei 10.639/2003 é marcada pela ausência de formação docente, pela falta de diretrizes claras e pela permanência de preconceitos raciais profundamente enraizados no tecido institucional. O currículo, nesse cenário, funciona como mecanismo de apagamento simbólico e de reprodução das desigualdades raciais, como já denunciava Cavalleiro (2001), ao discutir os vínculos entre racismo e fracasso escolar da população negra. Nesse sentido, a desconstrução do currículo eurocentrado passa necessariamente pela valorização da literatura afro-brasileira e da produção cultural negra como formas de resistência e reexistência. Ramos e Amaral (2015), ao analisarem a literatura infantil afro-brasileira, argumentam que a presença de personagens negros em posições de protagonismo contribui significativamente para a construção da autoestima e da identidade de crianças negras, ao mesmo tempo em que questiona os estereótipos e as imagens negativas perpetuadas pelo cânone escolar. Essa reconfiguração do simbólico não é acessória, mas fundante: trata-se de inscrever novas narrativas no tecido da formação escolar.

Como propõe Eduardo Oliveira (2012), a filosofia da ancestralidade deve ser compreendida como eixo estruturante de uma educação antirracista. A ancestralidade, nesse contexto, não é mera evocação de um passado remoto, mas fundamento ontológico que articula memória, identidade e pertencimento. A inserção dos saberes africanos e afro-brasileiros nos currículos escolares não deve ser realizada como um adendo periférico, mas como uma reconfiguração profunda da lógica curricular, capaz de deslocar o centro da normatividade branca e reinstaurar a pluralidade epistemológica. A literatura também pode contribuir decisivamente para essa reconfiguração, como aponta Debus (2007) ao discutir o papel da literatura infantil na construção de identidades de gênero e étnico-raciais. A valorização de vozes silenciadas, de narrativas não hegemônicas e de estéticas outras é parte fundamental do processo de desconstrução curricular. Como afirmam Xavier e Dornelles (2009), o papel da escola deve ser o de fomentar a construção de identidades múltiplas, críticas e conscientes, capazes de reconhecer a diversidade como valor e não como ameaça à ordem. A obra de Laurentino Gomes é especialmente significativa nesse movimento. Ao descrever com precisão o sistema escravista como eixo articulador da formação do Brasil, o autor demonstra que a omissão ou o tratamento superficial da escravidão nos currículos escolares não é mero descuido, mas parte de um projeto político de invisibilização. Ao contrário da narrativa redentora da abolição pacífica, Gomes (2022) evidencia que a escravidão foi um crime de longa duração, cujas marcas ainda estão inscritas nas ruas, nas práticas institucionais e nos próprios livros didáticos. A desconstrução do currículo eurocentrado exige, portanto, o reconhecimento de que não se trata apenas de incluir conteúdos “afro” ou “indígenas”, mas de interrogar os próprios fundamentos epistemológicos da educação brasileira. É preciso tensionar os cânones, revisar os marcos teóricos, reescrever os manuais e formar professores capazes de mediar uma educação comprometida com a justiça social e a reparação histórica. Como diria Foucault (2008), “não se trata de libertar a verdade de todo sistema de poder, mas de desprender o poder das verdades impostas”.

A desconstrução do currículo eurocentrado não é tarefa pontual, nem tampouco desprovida de conflitos. Trata-se de um embate epistemológico que se dá no interior das instituições escolares, nos programas de formação docente, nos materiais didáticos, nas avaliações, nas práticas de sala de aula e, sobretudo, nas formas de conceber o que é conhecimento legítimo. A escola brasileira, herdeira de um projeto colonial e racista, precisa romper com sua função histórica de silenciar o outro e tornar-se espaço de escuta, de pluralidade e de reconhecimento. Para isso, é necessário coragem política, rigor teórico e compromisso ético com uma educação que não apenas inclua, mas que transforme.

A ESCOLA BRASILEIRA, HERDEIRA DE UM PROJETO COLONIAL E RACISTA

A escola brasileira, enquanto instituição historicamente constituída e estruturada por relações de poder, não é neutra nem universal. Ela é, antes de tudo, produto de um projeto colonial que articulou dominação racial, epistemicídio e formação de subjetividades hierarquizadas. Desde sua origem no período colonial, passando pela fundação do Império e pela República oligárquica, a escola no Brasil esteve a serviço da reprodução de uma ordem social desigual, fundada sobre a escravização de corpos negros e a exclusão das culturas africanas e afro-brasileiras dos espaços legítimos de saber. Como argumenta Michel Foucault (1995), os dispositivos de saber-poder operam de forma difusa, mas eficaz, na constituição de discursos autorizados, na legitimação de determinadas memórias e na produção de regimes de verdade. A escola, nesse sentido, não apenas reflete a estrutura racial da sociedade brasileira, mas a reforça e reproduz cotidianamente.

Laurentino Gomes (2023), em sua trilogia Escravidão, expõe com contundência o caráter fundacional do sistema escravista na formação do Brasil. Mais do que um período histórico, a escravidão foi, e continua sendo, um modelo de organização econômica, social, simbólica e educativa. Como observa o autor, “a escravidão não foi apenas uma instituição jurídica, mas uma ideologia que legitimava a desigualdade, naturalizava a violência e silenciava a cultura do outro” (Gomes, 2023, p. 24). Essa ideologia, alicerçada no mito da inferioridade racial, encontra seu reflexo direto na arquitetura curricular das escolas brasileiras, onde a história, a literatura e as ciências ainda são majoritariamente pautadas por perspectivas eurocêntricas e brancas. A crítica foucaultiana à noção de verdade como construção histórica e política nos permite compreender que o currículo escolar não é um conjunto neutro de conteúdos, mas um campo de disputas simbólicas, no qual determinados saberes são autorizados enquanto outros são marginalizados ou invisibilizados. Para Foucault (1977), a escola moderna é uma das principais instituições disciplinadoras da sociedade, encarregada de produzir corpos dóceis, normalizados e aderentes aos valores dominantes. A exclusão da cultura afrodescendente dos conteúdos escolares, portanto, não é um acaso, mas uma estratégia de poder que visa à manutenção da ordem racial vigente.

O resultado dessa arquitetura curricular é o que Adichie (2009) denomina de "perigo da história única": uma narrativa hegemônica que silencia a pluralidade de vozes, experiências e epistemes, produzindo uma verdade unilateral e excludente. A escola brasileira, ao contar a história nacional a partir da ótica do colonizador, transforma a violência da escravidão em uma nota de rodapé e relega os sujeitos negros à condição de objetos históricos, nunca protagonistas. Essa omissão narrativa, que se estende aos livros didáticos, aos programas de formação docente e às práticas pedagógicas, compromete profundamente a construção de identidades negras positivas no ambiente escolar.

A promulgação da Lei nº 10.639/2003 representou um avanço jurídico no enfrentamento do racismo estrutural na educação. No entanto, conforme evidenciam os estudos de Assunção et al. (2023), sua implementação permanece limitada, dependente da atuação voluntarista de educadores comprometidos e marcada pela ausência de políticas públicas robustas de formação docente. A análise de Custódio e Bobsin (2016), ao investigar o ensino religioso no Amapá, confirma essa tendência ao evidenciar que o preconceito institucional e a falta de diretrizes claras inviabilizam a concretização do currículo afro-brasileiro. O caráter estrutural do racismo escolar, como denuncia Eliane Cavalleiro (2001), é mantido por uma pedagogia da ausência: ausência de autores negros, de representações positivas da população negra, de discussões sobre o legado da escravidão e de reconhecimento da pluralidade étnico-racial como constitutiva da identidade brasileira. A exclusão do negro do campo do conhecimento não é apenas quantitativa, mas qualitativa, pois implica a negação da humanidade plena de sujeitos negros, relegando-os a um lugar de silêncio e subalternidade.

A literatura infantil afro-brasileira, segundo Ramos e Amaral (2015), representa uma estratégia de resistência a esse apagamento simbólico, ao inscrever personagens negros em posições de protagonismo, inteligência e beleza. Contudo, como apontam Debus (2007) e Chagas (2017), esses materiais ainda enfrentam resistências tanto por parte das editoras quanto das próprias escolas, que os tratam como suplementos periféricos, e não como parte central da formação cidadã e cultural dos estudantes. A proposta de Oliveira (2012), ao articular educação e ancestralidade africana, propõe uma ruptura epistemológica com o modelo colonial de ensino. A filosofia da ancestralidade, segundo o autor, não é apenas um conjunto de conteúdos a serem ensinados, mas um paradigma pedagógico que valoriza os saberes orais, a circularidade do tempo, a relação com a natureza e o respeito aos mais velhos como mediadores do conhecimento. Integrar essa perspectiva à escola implica uma reconfiguração profunda de suas práticas, seus valores e seus objetivos. Foucault (2008) enfatiza que onde há poder, há resistência. A escola brasileira, embora nascida sob a égide da colonialidade, também pode tornar-se espaço de ruptura, desde que se reconheça como lugar de conflito e se disponha a enfrentar seus próprios fantasmas. A reestruturação do currículo, a formação de professores comprometidos com a justiça racial, a valorização de autores e autoras negras, e a inserção da cultura afro-brasileira como fundamento do processo educativo são medidas urgentes para romper com a herança colonial que ainda persiste nos corredores escolares.

A análise de Xavier e Dornelles (2009) sobre o processo legislativo que levou à aprovação da Lei 10.639/2003 mostra que o reconhecimento da cultura afro-brasileira na educação foi fruto de intensa pressão dos movimentos sociais negros e enfrentou resistências de diversos setores políticos. Isso demonstra que a escola não é apenas um reflexo da sociedade, mas também um campo de disputa, onde diferentes projetos de sociedade se confrontam. Como tal, ela pode, e deve, ser resignificada como instrumento de emancipação. Reconhecer a escola brasileira como herdeira de um projeto colonial e racista não é um exercício de culpabilização anacrônica, mas de responsabilidade histórica. A persistência da desigualdade racial nos índices de evasão escolar, nas práticas discriminatórias em sala de aula e na ausência de representatividade nos materiais didáticos são evidências de que o passado colonial continua operando no presente. Superar esse legado exige coragem institucional, vontade política e, sobretudo, uma pedagogia comprometida com a reparação histórica e a valorização das múltiplas identidades que compõem o Brasil.

Ao trazer a escravidão para o centro do debate sobre a educação brasileira, Laurentino Gomes (2023) nos convida a interromper o ciclo de silenciamento e negação. A escola, enquanto espaço de formação de consciências e de produção de saberes, deve assumir seu papel histórico na reconstrução de uma narrativa nacional que inclua, respeite e celebre as culturas afrodescendentes como constituintes da brasilidade. Isso não é apenas uma questão de justiça, é uma exigência para a construção de uma democracia plena e antirracista.

A RECONSTRUÇÃO DE UMA NARRATIVA NACIONAL

A formação da identidade nacional brasileira esteve, desde seus primórdios, profundamente ancorada em um projeto de dominação colonial que instituiu a branquitude como norma e universalizou uma narrativa histórica eurocentrada, racista e excludente. Neste processo, as culturas afrodescendentes foram sistematicamente marginalizadas, silenciadas e reduzidas a estigmas, quando não completamente apagadas das representações oficiais do Brasil. Tal projeto de construção identitária, como demonstram as obras de Gomes (2019), esteve intrinsecamente ligado à lógica do escravismo, que não apenas subjugou corpos negros por mais de três séculos, mas forjou um imaginário coletivo no qual o negro é historicamente desumanizado e despossuído de agência histórica e epistêmica. Ao resgatar a centralidade da escravidão na constituição do Brasil, Gomes desmascara a falácia da cordialidade racial e evidencia que “o Brasil foi o país das Américas que mais recebeu africanos escravizados e o último a abolir legalmente a escravidão” (Gomes, 2019, p. 19). Tal fato não é apenas um dado histórico, mas um fundamento estrutural da desigualdade contemporânea e da exclusão simbólica de populações negras dos processos de construção da memória nacional. A ausência da cultura afro-brasileira dos currículos escolares, da produção midiática, da literatura canônica e dos espaços de poder é resultado direto desse apagamento histórico que naturaliza a desigualdade racial como destino e não como construção política.

Como afirma Michel Foucault (1977), as instituições, entre elas, a escola, operam como dispositivos disciplinares que moldam subjetividades e produzem saberes autorizados, delimitando os contornos entre o visível e o invisível, o dizível e o silenciado. O currículo escolar, nesse sentido, é um campo de poder: ele regula o que se ensina, quem é representado e como as identidades são formadas. A invisibilidade da história e da cultura afrodescendente nos materiais pedagógicos e nas práticas escolares revela não um esquecimento, mas uma operação ativa de exclusão, um epistemicídio contínuo e institucionalizado.

Adichie (2009), em sua reflexão sobre o “perigo de uma história única”, adverte para os riscos de se contar apenas uma versão da realidade. Segundo ela, “a história única cria estereótipos, e o problema com os estereótipos não é que sejam falsos, mas que sejam incompletos” (Adichie, 2009). A história nacional contada nas escolas brasileiras, majoritariamente, é essa história única: uma narrativa heroica, branca, masculina e cristã, que silencia as lutas de resistência negra, a sofisticação dos saberes africanos e a contribuição efetiva dos povos afrodescendentes para a formação da cultura, da economia e da política brasileira. É nesse contexto que se insere a necessidade urgente de reconstruir uma narrativa nacional que não apenas inclua, mas que celebre as culturas afrodescendentes como constitutivas da brasilidade. Tal reconstrução, conforme argumentam Assunção et al. (2023), deve ir além da aplicação normativa da Lei nº 10.639/2003, exigindo uma reconfiguração epistemológica que reposicione a cultura negra como eixo estruturante do processo educativo. Essa reconfiguração implica revisar conteúdos, metodologias, materiais didáticos e, sobretudo, a formação docente.

Contudo, como observam Custódio e Bobsin (2016), a implementação da Lei tem ocorrido de forma fragmentada, muitas vezes dependente da iniciativa individual de docentes comprometidos, sem políticas públicas robustas e contínuas que assegurem sua efetividade. Em outras palavras, o Estado brasileiro continua a operar, mesmo após duas décadas da promulgação da Lei, sob uma lógica de negligência estrutural que revela o não comprometimento com a descolonização do currículo e com a promoção da justiça racial na educação.

A literatura infantil afro-brasileira surge, conforme Ramos e Amaral (2015), como uma ferramenta potente para a reconstrução simbólica da identidade nacional. Ao apresentar personagens negros em papéis de protagonismo, saber e beleza, essa literatura reverte a lógica hegemônica que associa o negro ao subalterno, ao marginal e ao exótico. No entanto, como advertem Debus (2007) e Chagas (2017), a inserção dessa literatura nos contextos escolares ainda encontra sérios entraves, desde o desconhecimento até a resistência ideológica de setores que se recusam a abandonar a narrativa monocultural que tem servido à manutenção do status quo. Nesse sentido, a proposta de Oliveira (2012) de uma educação baseada na filosofia da ancestralidade é central. A ancestralidade, como fundamento epistêmico e ontológico, resgata os valores civilizatórios africanos e afirma que o conhecimento não é monopólio do Ocidente. Ao articular razão e espiritualidade, oralidade e vivência, temporalidade circular e relação comunitária, a filosofia africana inaugura uma outra pedagogia, uma pedagogia do pertencimento, da escuta e da memória coletiva. A escola, ao incorporar tais fundamentos, não apenas promove o reconhecimento da diversidade cultural, mas constrói uma nova ética da educação, voltada para a reparação histórica e para a promoção da equidade.

Essa reconstrução também demanda uma revisão crítica da atuação das instituições formadoras e dos mecanismos legais de validação do conhecimento. Como demonstram Xavier e Dornelles (2009), a aprovação da Lei 10.639/2003 foi fruto de intensas disputas simbólicas e políticas, evidenciando que a inserção da cultura afrodescendente nos currículos escolares não é um dado consensual, mas um campo de tensão entre forças que disputam o sentido da nação e o projeto de sociedade. Foucault (2008) nos lembra que o poder está sempre em disputa e que os regimes de verdade podem ser confrontados por práticas contra-hegemônicas que desestabilizem a normatividade dominante. Nesse contexto, é preciso destacar o papel estratégico da escola não apenas como reprodutora de discursos coloniais, mas como espaço potencial de resistência. A escola que celebra a cultura afrodescendente como constitutiva da brasilidade é aquela que rompe com o universalismo branco, que questiona o cânone e que se compromete com a justiça histórica. Para tanto, ela deve assumir que o racismo não é uma falha pontual, mas uma estrutura fundante do sistema educacional, conforme denúncia Cavalleiro (2001). A superação desse modelo exige investimento político, revisão curricular ampla, valorização de intelectuais e autores negros, e uma escuta ativa das comunidades afrodescendentes.

A reconstrução de uma narrativa nacional que inclua, respeite e celebre as culturas afrodescendentes é uma tarefa histórica inadiável. Trata-se de enfrentar um legado de mais de trezentos anos de escravidão e séculos de exclusão sistemática que moldaram não apenas a estrutura econômica do país, mas seu imaginário, sua cultura e suas instituições. É nesse sentido que a obra de Laurentino Gomes (2019–2023) cumpre papel fundamental: ao trazer à tona a centralidade da escravidão na constituição do Brasil, o autor escancara a urgência de revisarmos os marcos que sustentam a nossa ideia de nação.

Foucault nos ensina que “todo saber é um ato político” (Foucault, 1995). Assim, reconstruir a narrativa nacional é também subverter os dispositivos de poder que autorizaram o silenciamento. É fazer da escola um território de memória, de dignidade e de emancipação. Celebrar as culturas afrodescendentes não é uma concessão pedagógica, mas um direito epistêmico. É afirmar que não há Brasil possível sem África, não apenas como origem histórica, mas como horizonte de futuro.

A VIOLÊNCIA RACIAL NO ESPAÇO ESCOLAR E O DESAFIO DA LEI 10.639/2003 COMO AÇÃO ANTIRRACISTA

A persistência da violência racial no ambiente escolar revela-se como uma das faces mais perversas do racismo estrutural no Brasil. No interior das instituições educacionais, as práticas discriminatórias, muitas vezes sutis, banalizadas ou travestidas de "brincadeiras", operam na manutenção simbólica e material de uma lógica relacional binária entre opressor e oprimido. Como bem observa Conceição (2016), o espaço escolar, longe de ser neutro, frequentemente reproduz as desigualdades históricas ao negligenciar os conflitos raciais ou ao silenciar a dor dos sujeitos negros diante de agressões sistemáticas. A naturalização da violência racial, portanto, não é apenas um fenômeno social difuso, mas uma prática institucionalizada, cuja banalização sustenta os papéis desiguais de poder que foram historicamente forjados durante e após o regime escravocrata. Mais grave ainda é o fato de que, em muitos casos, os agentes escolares que deveriam agir como mediadores e educadores atuam como cúmplices do silêncio. O não enfrentamento do racismo por parte da gestão escolar e do corpo docente, seja por desconhecimento, seja por negligência, seja por conivência, contribui para a revitimização dos estudantes negros, que, ao não encontrarem respaldo institucional, aprendem que sua dor não é legitimada e que sua presença é secundarizada. Conforme destaca Conceição (2016), essa omissão institucional não apenas perpetua a violência, mas reforça os mecanismos de exclusão histórica que sustentam o racismo no Brasil.

A violência racial no ambiente escolar auxilia na manutenção de papéis, isto é, oprimido e opressor. Tais práticas muitas vezes são naturalizadas e vulgarizadas por quem deveria mediar e desconstruir os atos racistas. Ao contrário, na maioria dos casos, o silêncio é a única resposta que o aluno encontra. A adoção da lei é uma ação antirracista em favor das vítimas do racismo e de outras formas discriminatórias narradas em muitos capítulos da história brasileira (Conceição, 2016, p.123).

É nesse contexto que a promulgação da Lei nº 10.639/2003 deve ser compreendida não como um gesto isolado, mas como uma medida política de reparação e resistência. A referida legislação, ao tornar obrigatório o ensino da história e da cultura afro-brasileira nas escolas, constitui-se como uma ação afirmativa de enfrentamento ao racismo e às múltiplas formas de discriminação que marcam a história nacional. Mais do que um conteúdo curricular, a lei é um instrumento de justiça social, pois reconhece a centralidade da presença negra na formação do Brasil e reivindica uma pedagogia antirracista comprometida com a equidade e com a valorização da diversidade.

Contudo, a eficácia da lei depende de sua materialização concreta nas práticas escolares. Como assinala Conceição (2016), o reconhecimento da cultura afro-brasileira deve ser acompanhado de ações pedagógicas estruturadas, formação docente continuada e escuta ativa das experiências dos sujeitos historicamente marginalizados. A simples adoção formal da lei, sem um projeto educativo transformador, corre o risco de reproduzir as mesmas estruturas que pretende combater. É preciso romper com o silêncio institucionalizado e promover uma educação que reconheça, acolha e celebre as identidades afrodescendentes como constitutivas da brasilidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise crítica empreendida neste artigo evidenciou que a exclusão sistemática da cultura afro-brasileira dos currículos escolares não constitui um desvio ou falha pontual do sistema educacional, mas sim uma manifestação recorrente e estruturada de um projeto racializado de formação, enraizado em dispositivos históricos e políticos que operam como vetores de exclusão simbólica, epistemológica e subjetiva. Tal constatação remete à compreensão foucaultiana de que o saber, longe de ser um bem neutro, é atravessado por relações de poder, sendo o currículo escolar um instrumento de regulação das narrativas permitidas e dos sujeitos legitimados (Foucault, 1977). Assim, a persistente invisibilidade das culturas afrodescendentes no espaço escolar expressa, com nitidez, a continuidade de um regime de verdade racializado, que impõe à população negra um lugar periférico na produção e transmissão do conhecimento.

A promulgação da Lei nº 10.639/2003 representa, nesse contexto, um marco jurídico e político impulsionado pela luta dos movimentos negros organizados, os quais reivindicam a ruptura com o monopólio epistêmico branco no ambiente escolar. No entanto, como demonstram Assunção et al. (2023), a aplicação da referida lei revelou-se limitada, fragmentada e, em muitos casos, inócua. Duas décadas após sua promulgação, o que se observa é a inserção episódica e desconexa de conteúdos afro-brasileiros, tratados como eventos pontuais, muitas vezes restritos ao mês de novembro, e não como componentes estruturantes da formação escolar. Esta abordagem episódica revela, na prática, a persistência de um ethos pedagógico que naturaliza a exclusão e reduz a presença negra à condição de suplemento curricular.

O racismo estrutural, como bem aponta Eliane Cavalleiro (2001), manifesta-se na educação por meio da deslegitimação de saberes não brancos, da negação de subjetividades negras e da institucionalização da desigualdade como dado pedagógico. “O racismo na escola”, escreve a autora, “é um fenômeno insidioso, cotidiano, e, justamente por isso, resistente às abordagens superficiais” (Cavalleiro, 2001, p. 49). A superação dessa lógica demanda mais do que a inclusão formal de conteúdos: exige a constituição de um projeto pedagógico antirracista, comprometido com a equidade, a reparação histórica e a valorização das contribuições africanas e afro-brasileiras como centrais na conformação da sociedade nacional. A resistência à implementação plena da Lei 10.639/2003 não se limita às práticas escolares. Xavier e Dornelles (2009) demonstram que os próprios trâmites legislativos da lei foram atravessados por tensões, silenciamentos e disputas ideológicas que revelam a relutância institucional em reconhecer o racismo como estruturante da desigualdade educacional. Essa resistência não é apenas política, mas epistêmica, pois confronta diretamente a matriz eurocêntrica que sustenta o sistema de ensino brasileiro desde seus fundamentos coloniais. Nesse cenário, a literatura infantil afro-brasileira constitui uma estratégia de deslocamento simbólico das representações dominantes e de reconstrução de imaginários sociais. Como apontam Ramos e Amaral (2015), ao apresentar crianças negras em situações de protagonismo, inteligência, beleza e criatividade, essa produção literária rompe com os estereótipos historicamente atribuídos à população negra e promove processos de identificação positiva e subjetivação afirmativa. Raul Lody (1995), ao resgatar e valorizar as cosmovisões de matriz africana por meio da linguagem simbólica e ritualística, inscreve tais saberes no campo da legitimidade cultural e epistêmica. Trata-se de uma pedagogia da ancestralidade, que desafia o cânone branco e afirma a pluralidade como princípio formador.

É nesse mesmo sentido que Oliveira (2012) propõe a filosofia da ancestralidade como fundamento para uma educação que reconheça as múltiplas formas de existência e de saber produzidas por sujeitos historicamente subalternizados. A ancestralidade, conforme o autor, não é mera evocação do passado, mas potência epistemológica que articula memória, identidade e pertencimento. Integrar essa perspectiva ao currículo escolar é reconfigurar a escola como espaço de escuta, de reconhecimento e de emancipação, o que requer, como enfatiza Chagas (2017), a desconstrução das estruturas que sustentam o racismo institucional e a formação crítica dos educadores.

Foucault (1995) nos lembra que todo processo de exclusão está acompanhado de uma operação de ocultamento discursivo. O silêncio em torno da cultura afrodescendente na escola é, portanto, parte de um projeto de poder que opera pela negação da diferença e pela universalização de uma única história, branca, europeia, cristã e elitista. Essa constatação encontra eco na denúncia de Chimamanda Adichie (2009), para quem “o problema das histórias únicas não é que sejam falsas, mas que são incompletas”. A reconstrução de uma narrativa nacional justa e plural exige, portanto, o enfrentamento deliberado da história única com a multiplicidade de vozes e de experiências silenciadas. A análise empreendida nesta breve pesquisa corrobora a ideia de que a transformação da escola em espaço de justiça racial demanda ações intencionais, políticas públicas contínuas e, sobretudo, coragem epistemológica. É necessário instituir uma nova pedagogia, uma pedagogia decolonial, pluriepistêmica e antirracista, que tenha como fundamento a valorização da cultura afrodescendente não como exceção, mas como matriz constitutiva da brasilidade. Para isso, é imprescindível investir na formação docente, na produção e disseminação de materiais didáticos inclusivos, na revisão crítica dos currículos e na fiscalização rigorosa do cumprimento da legislação.

Como afirma Cavalleiro (2001, p. 61), “a escola precisa deixar de ser espaço de reprodução das desigualdades para tornar-se território de reconstrução das identidades negras em sua pluralidade e complexidade”. Trata-se, portanto, de compreender a educação como campo de disputa simbólica e política, no qual o enfrentamento ao racismo não pode ser relegado à marginalidade ou à boa vontade individual, mas deve constituir-se como princípio estruturador do projeto pedagógico nacional. A pesquisa aqui desenvolvida permite concluir que a ausência da cultura afro-brasileira no currículo escolar brasileiro não é resultado do acaso, mas expressão de um sistema educacional forjado sob os moldes de uma lógica colonial, racista e excludente. A promulgação da Lei 10.639/2003 constituiu um avanço importante, mas sua efetivação carece de enraizamento institucional e de reorientação curricular profunda. A presença negra na escola não pode ser episódica, nem tampouco limitada ao plano simbólico. Ela deve assumir centralidade na formação de sujeitos críticos, conscientes de sua história e comprometidos com a justiça racial.

Desnaturalizar o racismo educacional, nesse sentido, significa confrontar o silêncio com a palavra, a omissão com a memória, o apagamento com a presença. A valorização da literatura afro-brasileira, da ancestralidade africana e das vozes negras como produtoras de conhecimento não é apenas uma questão de representatividade, mas de reconstrução ética e política do espaço escolar como território de pluralidade. Como diria Foucault (2008), "onde há poder, há resistência", e é nessa tensão que se inscreve a possibilidade de uma educação verdadeiramente democrática, emancipada da herança colonial e comprometida com a equidade racial.

“Ninguém nasce odiando outra pessoa pela sua cor de pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender; e se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar.” (Mandela, 2013).

A notável afirmação de Nelson Mandela sintetiza, com profundidade ética e clareza política, uma compreensão fundamental sobre a natureza social do preconceito e da discriminação. Ao afirmar que o ódio é uma construção aprendida, Mandela desloca a discussão do campo da suposta “natureza humana” para o terreno histórico, cultural e educativo, revelando que os mecanismos de opressão racial e intolerância religiosa são frutos de processos intencionais de formação, reprodução e normatização de práticas sociais excludentes. A sentença de Mandela dialoga com os estudos contemporâneos sobre o racismo estrutural, ao evidenciar que o preconceito não é inato, mas ensinado, aprendido nas relações sociais, naturalizado pelas instituições e disseminado pelos discursos hegemônicos que hierarquizam os sujeitos com base em marcadores de raça, classe, gênero ou religião. Essa concepção encontra ressonância no pensamento de Foucault (1977), para quem os indivíduos são produtos de dispositivos de poder e de regimes discursivos que operam sobre os corpos e as subjetividades. Assim, o ódio racial, de classe ou religioso não é um fenômeno isolado ou espontâneo, mas um saber-poder inculcado desde a infância, particularmente no interior das instituições escolares, familiares e midiáticas.

Ao mesmo tempo, a frase de Mandela carrega uma esperança radical: se o ódio pode ser ensinado, o amor também pode ser cultivado. Essa reversibilidade do aprendizado aponta para a potência transformadora da educação como ferramenta de desconstrução do preconceito e de construção de uma ética do cuidado, do reconhecimento e da solidariedade. Paulo Freire (1996) já afirmava que a educação nunca é neutra: ou ela contribui para a domesticação dos corpos e para a manutenção da ordem opressora, ou ela se constitui como prática libertadora, comprometida com a transformação social. Ensinar a amar, nesse contexto, não se trata de um exercício moralista, mas de um ato político, que exige descolonizar o currículo, escutar as vozes silenciadas e valorizar a diversidade como princípio formador.

Aplicada à realidade brasileira, a frase de Mandela nos convoca a encarar com responsabilidade o papel da escola na produção e na superação das desigualdades raciais. Se, historicamente, o sistema educacional contribuiu para a exclusão simbólica da cultura afro-brasileira, como demonstram Assunção et al. (2023) e Cavalleiro (2001), é também na educação que se pode instaurar uma nova pedagogia da escuta, da memória e da equidade. Ensinar a amar, portanto, significa incorporar ao processo educativo uma ética antirracista e uma epistemologia da pluralidade, capaz de formar sujeitos abertos à alteridade e comprometidos com a justiça social.

Em breve síntese, a frase de Mandela não é apenas uma constatação, mas um imperativo ético: não basta denunciar a lógica do ódio, é preciso criar condições concretas para o aprendizado do amor como fundamento das relações humanas. E se o ódio se aprende nas estruturas, o amor, para ser emancipador, precisa também ser ensinado coletivamente, por meio da arte, da literatura, da convivência democrática e, sobretudo, por uma educação comprometida com a dignidade de todos os povos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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1 Discente do Curso de Pedagogia pela Universidade Estácio de Sá (Campus Teresópolis). E-mail: [email protected]

2 Docente dos Cursos de Pedagogia, Análise e Desenvolvimento de Sistemas e Ciências da Computação (UNESA-RJ). Doutorando em Educação pela Universidade Nacional de Rosário (UNR-ARG). Mestrado em Educação (UNESA-RJ). MBA em Data Warehouse e Business Intelligence (FI - PR). Pós-Graduado em Engenharia de Software, Antropologia, Psicopedagogia, Neuropsicopedagogia, Educação no Campo, Filosofia e Ciência da Religião (FAVENI-MG). Historiador pela Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU-SP). E-mail: [email protected]

3 A Lei nº 10.639/2003 é uma lei brasileira que tornou obrigatório o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira em todas as escolas, públicas e particulares, do ensino fundamental até o ensino médio. A lei foi sancionada pelo Presidente Luis Inácio Lula da Silva em 09 de janeiro de 2003. A lei é considerada um marco na educação brasileira, pois colocou o Dia da Consciência Negra como data prevista no calendário escolar.