ANALISANDO A VIOLÊNCIA ESTRUTURAL NO RAP “A COR PÚRPURA”, DE DJONGA
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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.16898400
Roberto do Rego Monteiro Neto1
Neiva Vieira da Cunha2
RESUMO
O presente artigo é uma leitura do RAP A Cor Púrpura, de Djonga, usando como metodologia a análise literária de base sociolinguística. Referência ao livro homônimo de Alice Walker, a letra foi interpretada por meio de uma investigação bibliográfica em busca de conceitos consagrados para articular discussões sobre a violência do patriarcado contra mulheres e homens, eixo temático da letra em estudo. Essa análise se justifica por apontar a importância da reconstrução da memória pela interação social como forma de resistência, reconfigurando posicionamentos e revisando práticas violentas que são reproduzidas sem a crítica necessária. Essas considerações têm como fim endossar o necessário rompimento com o ciclo da violência, que se perfaz simbólica e estruturalmente, reproduzindo e sustentando as opressões sociais.
Palavras-chave: Memória coletiva. Violência estrutural. Análise sociolinguística.
ABSTRACT
The present article is a reading of Djonga’s RAP A Cor Púrpura using as methodology the literary analysis based on sociolinguistics. A reference to Alice Walker’s eponymous book, the lyrics were interpreted through a bibliographic investigation in search of established concepts to articulate discussions about the violence of patriarchy against women and men, the thematic axis of the lyrics under study. This analysis is justified by pointing the importance of reconstructing memory through social interaction as a form of resistance, reconfiguring positions, and reviewing violent practices that are reproduced without the necessary criticism. These considerations aim to endorse the necessary break with the cycle of violence, which is symbolically and structurally completed, reproducing and sustaining social oppressions.
Keywords: Collective memory. Structural violence. Sociolinguistic analysis.
1 INTRODUÇÃO
Um dos aspectos primordiais para a elaboração de uma narrativa, de acordo com A Filosofia da Composição de Edgar Allan Poe (2009), é que o autor tenha em mente o que vai acontecer “no final”, antes mesmo de tocar com a pena no papel. Em sua teoria, Poe diz que, em busca de um efeito marcante, o autor deve ter em mente o panorama de tudo que acontecerá em sua narrativa, desde o conflito gerador à resolução do problema. Em suma, se um autor quiser compor uma obra que mexa com o leitor, “não deve escrever o prólogo antes de saber como se dará o epílogo”, visto que o rumo da narrativa deve estar sempre direcionado ao impacto pretendido, meticulosamente preestabelecido pelo autor.
Dessa forma, a intenção do RAP A cor púrpura (2022), de Djonga, pode ser percebida já a partir de seu título, que faz referência explícita ao livro homônimo de Alice Walker (1982), utilizando inclusive a mesma estratégia narrativa epistolar para apresentar sua história, remetendo suas questões a Deus, para desabafar e pedir orientação espiritual na lida com as adversidades, especialmente em situações de conflito, que envolvem a prática da violência como metodologia para sua resolução.
De acordo com uma resenha publicada por Malu Silva (2024), o livro A cor púrpura (Walker, 1982), ambientado no sul dos Estados Unidos entre 1900 e 1940, conta a história de Celie, mulher negra, pobre e semianalfabeta. Desde criança, sofreu violência sexual e foi obrigada a se casar com Albert, viúvo violento, que fazia de Celie serviçal, praticando contra ela diversas violências físicas e psicológicas. Por 30 anos ela escreve cartas para Deus e para a irmã, missionária na África. Silva (2024) diz que “os textos têm uma linguagem peculiar, que assumem cadência e ritmo próprios à medida que Celie cresce e passa a reunir experiências, amores e amigos”, evidenciando o desenvolvimento de habilidades e a coletivização da ação da protagonista para resolver os nós que se apresentam ao longo da narrativa3.
A cor púrpura conta uma história sobre mudanças, redenção e especialmente sobre amor. A partir das cartas que narram a vida de Celie, Walker tece críticas ao poder dado aos homens em uma sociedade que ainda hoje luta por igualdade entre gêneros, raças e classes sociais (Silva, 2024).
Através dessas cartas, de forma simples e direta, esteticamente carregadas de linguagem informal e periférica, sinalizadas por William Labov (1972) como marcas que delimitam e retroalimentam a estratificação social, tanto livro quanto música compartilham a temática de resistir às violências simbólicas e estruturais sofridas pela população negra, violência que se manifesta de diversas formas, em várias camadas e entre vários atores sociais (Bourdieu, 1989), com destaque para o modo como se conformam no ethos da periferia4.
2 PANORAMA TEÓRICO-METODOLÓGICO
Tanto o eu-lírico do livro quanto o eu-lírico do RAP se encontram em posições vulneráveis em relação à violência praticada pela estrutura social em que se encontram. Em sua obra A dominação masculina (1998), Pierre Bourdieu diz que:
A violência simbólica é uma forma de coerção que se institui pela adesão que o dominado concede ao dominante, quando, para pensar e se pensar, dispõe apenas de instrumentos de conhecimento que têm em comum com o dominante, fazendo com que essa relação pareça natural (Bourdieu, 1998).
Essa violência se naturaliza e se conforma, portanto, enquanto parte da identidade do indivíduo, na medida em que, para garantir sua sobrevivência e lutar por sua dignidade, a violência, enquanto linguagem e método, passa a ser o recurso para responder e reagir à violência que é praticada contra ele. Em Os condenados da terra (2022), Frantz Fanon afirma que “a violência é a linguagem do colonizado”; fazendo uma analogia, é possível entender que alguém alfabetizado pela violência será alguém que fala por meio dessa linguagem.
No artigo Violência como Linguagem (2021), João Nalli tece uma reflexão que contribui para a percepção da dimensão comunicativa da violência reproduzida:
A violência pode ser entendida como uma forma de linguagem, ou seja, como um meio de comunicação. […] ao invés de criar uma relação única entre vítima e agressor, cria outro agressor que irá atrás de outra vítima, oriunda de um sistema opressor e capitalista, que influencia os indivíduos a cometerem violência em prol de seus status (Nalli, 2021; grifos do autor).
O RAP A cor púrpura (2022), de Djonga, na primeira parte de sua letra conta as diferentes formas de violência sofridas pelo eu-lírico, pessoa negra de periferia, bem como de que maneira essas violências forjam sua adaptação a esse contexto. Na segunda parte, a letra passa a falar sobre como a linguagem da violência se manifesta a partir do eu-lírico, enquanto estrutura reproduzida, fazendo parte da sua afirmação de identidade e do seu repertório sociolinguístico. Para Fanon (2022), “o colonialismo não se contenta em impor ao povo dominado sua própria lei, mas tende a desumanizá-lo completamente. A violência colonial não é apenas física, mas também psicológica, pois busca destruir a identidade e a cultura do colonizado”. A partir da percepção de que a violência como está posta é estrutural porque está incrustada na memória coletiva, consequência de processos de sociabilidade coloniais, e que sua reconstrução também pode se dar através de processos sociais conscientes (Halbwachs, 2013), com destaque para a Educação (Freire, 1974; Bourdieu, 1989), a leitura pretendida aqui busca fazer uma interseção crucial entre essas teorias, visando compreender e alinhar alternativas para superar a violência estrutural.
Pensar em um protagonismo social que busque alternativas à violência enquanto linguagem de sobrevivência e reprodução estrutural, sob o manto freiriano de que “quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é se tornar o opressor” (Freire, 1974), é um dos maiores desafios da Educação, principalmente nas periferias onde a violência determina caminhos. Através de modelos educativos com didática e metodologia críticas, é possível buscar letramentos alternativos ao idioma da violência nas redes de sociabilidade periféricas, assim como reconstruir memórias coletivas, reforçando as possibilidades de fortalecimento das potências das pessoas, em vez de subjugá-las à violência simbólica.
Como parâmetro metodológico, análises sociolinguísticas de letras de RAP, especialmente das que pautam discussões importantes para a vida dos estudantes, são ferramentas valiosas para provocar tomadas de consciência e posicionamentos contra estruturas de opressão. Por meio da análise literária e da sociolinguística (Labov, 1972), evidencia-se como o eu-lírico desse RAP experimenta a ressignificação das violências sofridas, absorvidas e replicadas, tal qual a protagonista do livro A cor púrpura (Walker, 1982), inspirando jovens de periferia a questionarem e romperem com os padrões de violência que ainda se replicam intensamente.
Djonga (Gustavo Marques) é de Belo Horizonte, Minas Gerais, e em 2022 lançou seu 8º álbum, O dono do lugar. Em entrevista à Folha de São Paulo (Rocha, 2022), o rapper falou sobre o processo criativo do álbum, que faz referência explícita ao livro Dom Quixote (2013), de Miguel de Cervantes, com a segunda faixa tendo o mesmo nome. Na capa, Djonga se posiciona de coquetel molotov na mão contra os mesmos moinhos enfrentados pelo protagonista de Cervantes, “em Consuegra, nos arredores de Toledo (Espanha), região onde nasceu tanto o autor quanto seu maior personagem, o Cavaleiro da Triste Figura” (Notícia Preta, 2022). Com uma lírica diferenciada, que já se tornou sua assinatura, esse disco faz referências a narrativas bastante conhecidas, como Os três porquinhos, O poderoso chefão, Os Vingadores, entre outros. Para uma apreciação mais intensa da experiência, são sugeridos fones de ouvido e volume alto. Recomenda-se também ouvir sem moderação, refletindo intencionalmente sobre como é possível perceber, através do olhar para o outro e da recusa à violência como meio para resolver conflitos, a importância de reconstruir memórias coletivas para que essa linguagem se torne cada vez mais obsoleta.
3 ADAPTAÇÃO, REPRODUÇÃO E RECONSTRUÇÃO
3.1. Primeira parte: adaptação como forma de sobrevivência
Logo na introdução da música, o beat (a batida) vai instaurando tensão e modulando a gravidade da abordagem que está por vir. Murmúrios com os primeiros versos do “Pai nosso” se sobrepõem em camadas de reverb (efeito de eco), podendo ser entendido como representação da quantidade incontável de vezes que o eu-lírico buscou conexão com o divino para pedir compreensão e força. É válido destacar que a qualidade musical de Djonga se dá em grande medida pela colaboração de seus parceiros beatmakers (DJs que compõem as batidas, as músicas): eles conferem às composições camadas importantes de significado. No caso de A cor púrpura (2022), Thiago Braga, conhecido como Rapaz do Dread, é o responsável pela co-autoria, fazendo o trabalho de engenharia de som e mixagem dessa track.
No livro de Walker (1982), os apelos ao divino se materializam por meio de cartas5, ora para Deus, ora para sua irmã missionária. Na teologia cristã, Deus é onipresente, onisciente, e principalmente justo, o que está registrado em algumas passagens da Bíblia (1990), como “Em todo lugar os olhos de Javé estão vigiando os maus e os bons” (Bíblia, Provérbios 15:3, 1990), ou em “Não existe criatura que possa esconder-se de Deus; tudo fica nu e descoberto aos olhos dele; e a ele devemos prestar contas” (Bíblia, Hebreus 4:13, 1990). Mesmo sabendo que, conforme a fé cristã, não é necessário contar para Deus o que Ele já sabe, orações e conversas exercem importante papel psicológico no crente, reduzindo ansiedade e estresse, além de contribuir para autoconhecimento e transformação de hábitos (Mamede-Neves, 2023).
Na letra da música A cor púrpura (2022), ao longo de toda a composição, o vocativo “Querido Deus” (Verso 1) se repete no início de quase todas as estrofes, reforçando o caráter espiritual e profundo que remete à onisciência divina. Não por acaso, a ironia afiada de Djonga já se apresenta nos primeiros versos, com o eu-lírico narrando um caso de violência sexual sofrida por ele quando ele ainda era criança, cometido por alguém da igreja (verso 8), conferindo ainda mais camadas ao efeito pretendido nessa interlocução com Deus, sobre os “representantes” do temor e do louvor a Ele.
Nos versos 2 e 3, o toque não consentido se apresenta como a percepção de que algo não está acontecendo como deveria, ainda que a criança (verso 4) abusada em questão não consiga perceber isso como violência, dadas suas limitações cognitiva e comunicativa, bem como as atitudes do abusador para amenizar a agressão (versos 5 a 7). Segundo a Organização Mundial de Saúde, entretanto, no Relatório Mundial sobre Violência e Saúde, o toque não consentido é entendido como uma forma de violência, já que:
A violência sexual inclui uma série de atos, desde o assédio verbal até a penetração forçada. Qualquer ato sexual, tentativa de obter um ato sexual, comentários ou avanços sexuais indesejados, ou atos para traficar ou de outra forma direcionados contra a sexualidade de uma pessoa usando coerção, por qualquer pessoa, independentemente de sua relação com a vítima, em qualquer ambiente, incluindo, mas não se limitando a casa e trabalho, é uma forma de violência (OMS, 2002; grifos do autor).
Sobre ter sido abusado na infância por alguém religioso (verso 8, “gente que sempre louva”), a omissão da letra em relação à ordem religiosa do abusador abre margem para uma reflexão interessante. Há estudos importantes que abordam a pedofilia religiosa tanto na Igreja Católica (Gusmão; Braga, 2023) quanto nas evangélicas (Anjos, 2023), dada a relação de confiança e sigilo que existe entre sacerdotes, lideranças e membros dessas associações.
Na segunda estrofe, é apresentada a violência praticada pelo Estado:
Além de seguir violentado pelo toque não consentido (OMS, 2002), como pode se ver no verso 2 da segunda estrofe, o eu-lírico também sofreu a violência do sistema, representada pela repressão policial (verso 3, “usava farda”). Em agosto de 2024, uma incursão policial foi iniciada na Nova Holanda, Maré/RJ, visando demolir construções atribuídas ao processo de lavagem de dinheiro de narcotraficantes, sufocando suas ações na região (G1, 2024). No portal de notícias da comunidade, Maré de Notícias (2024), a dor dos moradores por perderem as casas compradas com o suor de seu trabalho, e os danos colaterais experimentados pelas crianças que passam fome por sequer poderem comer nas escolas, fechadas dada a insegurança causada pela presença recorrente das forças policiais no território, podem ser ilustrados pelos versos 6 e 7 da segunda estrofe: “isso aqui num é sua casa / Foi tipo: Entende, neguin’, nem sua casa é sua casa”.
A segunda estrofe aponta também para o fenômeno jurídico da coisificação do sujeito periférico frente à presunção de culpa estabelecida pelas forças de segurança (Borges, 2019). O jovem negro e periférico “pra nós [polícia enquanto Estado e operadora da lei] é coisa” (verso 8), enquadrando-se sempre no lugar de suspeição, cuja culpa é presumida antes da possibilidade de inocência: “Vai tá sempre no erro e não importa a causa” (verso 9).
Na terceira estrofe, as camadas de violência seguem se aprofundando e construindo a percepção de mundo do eu-lírico, que começa a perceber que, de alguma forma, precisa entender e se enquadrar nesse processo comunicativo que configura a violência enquanto linguagem.
O verso 2 aponta para uma questão central a respeito da percepção da violência, tanto quanto linguagem de dominação quanto estrutura de opressão, ambas operadas pelo patriarcado. De acordo com o trabalho de Jean-Yves Leloup e Catherine Bensaid (2000), sobre o feminino e o sagrado, a mulher-mãe, apresentada no verso 2 da terceira estrofe como a mãe que aponta o homicídio entre “sujeitos homens” como sendo “coisas de homem”, tem um valor epistemológico que transcende a percepção biológica ou sociológica das categorias de gênero. A sabedoria atribuída à matriarcalidade contrasta veementemente com a virulência do patriarcado que se estabeleceu na cultura ocidental. Ainda sobre esse aspecto, Heide Göttner-Abendroth (2012) se apresenta como uma leitura interessante para pensar a participação ativa das mulheres mais velhas, quando se percebe a imponência epistemológica do arquétipo da mãe-avó sábia na resolução de conflitos sociais. Elas se valem de sua experiência e compreensão de mundo para agenciar os problemas que surgem ao longo das narrativas da vida, garantindo que as decisões do grupo, em grupo, estejam de acordo com as necessidades da comunidade.
Sem perder de vista o peso civilizacional da violência que o patriarcado impõe sobre a mulher, existe também um espectro de violências que se impõem entre indivíduos do mesmo gênero. Nesse sentido, a causa de uma contenda importa pouco ou quase nada, visto que, independentemente de qual seja o motivo de uma disputa, o que realmente importa para o homem é sustentar sua honra e não “levar desaforo para casa”, custe o que custar. Os versos 2, 3 e 4 da terceira estrofe sintetizam essa construção epistemológica da masculinidade viril e intransigente entranhada na percepção coletiva de que o homem deve ser imbatível e implacável. bell hooks (2004), porém, sobre o tema, elucida como o patriarcado não só busca oprimir as mulheres, mas também coloca parâmetros inquestionavelmente prejudiciais para outros homens, que devem aderir aos padrões de “macheza”, o que os leva a seguirem reproduzindo sociabilidades violentas e opressivas, especialmente contra mulheres.
Seguindo com o pensamento de bell hooks (2004), o patriarcado estabelece meios “pedagógicos” para induzir os homens a reprimirem sentimentos e emoções que podem colocá-los em posição de vulnerabilidade. Essa “pedagogia” é empregada como forma de promover a consolidação de poder e controle como formas de validação masculina. Isso frequentemente leva a uma série de problemas psicossociais, como isolamento, dificuldade em se relacionar de forma autêntica e agravamento de comportamentos violentos.
Os versos 3 e 4 da terceira estrofe também permitem refletir sobre o uso específico de um verbo em conjugação reflexiva para moderar uma percepção muito significativa na sociabilidade ocidental. Quando o eu-lírico diz “Esse foi o primeiro contato verdadeiro / Que eu tive com o que me parece que é ser um homem” (versos 3 e 4 da terceira estrofe, grifo do autor), o que “parece” ao rapper não é uma certeza, mas o que se apresenta como a estrutura de linguagem adequada para estabelecer posição de respeito e poder. Semanticamente falando, uma coisa que “parece” não “é”. Ouvindo a música, é possível ouvir o backvocal falando “Parece, né? Interessante...” Esses aspectos dão margem à interpretação de que o eu-lírico ainda não tem certeza do que é “ser homem”, mas, ao que “parece”, tem algo a ver com a ideologia que estabeleceu que “homem que é homem não leva desaforo pra casa”.
Essa máxima se fortalece quando, a partir do verso 5 da terceira estrofe, é apresentado um episódio de violência sofrida na escola, causada por um colega, e o eu-lírico entende que não existe alternativa (no verso 7, ele diz: “até tentei resolver de um jeito um pouco fofo”) para se posicionar contra essa violência que não seja se tornar também um homem violento (Fanon, 2022). No último verso antes do refrão, é possível perceber a conformação do eu-lírico com as estruturas de dominação e violência que o coagem: “Quando pude perceber, tinha me adaptado”; ou seja, “aprendi as regras, agora posso jogar”.
Não apenas em nossa experiência particular, mas também no contato com alunos de periferia em quase 20 anos de magistério, uma frase é sistematicamente reproduzida em relação à violência enquanto linguagem: “Se apanhar na rua e não revidar, vai apanhar em casa de novo para deixar de ser frouxo”. Elizabeth Gershoff (2016) argumenta, em suas pesquisas, que o castigo físico, assim como castigo privativo, pode fomentar um cenário de estresse que afeta o desenvolvimento mental dos indivíduos durante a sua infância. Ela destaca que o castigo físico está não só associado a uma série de distúrbios emocionais e comportamentais, mas também ao aumento da agressividade, da ansiedade e da depressão, afetando gravemente o bem-estar de crianças e indivíduos em formação. Adaptar-se a isso, portanto, pode ser entendido aqui como forma de sobreviver a essa linguagem se letrando nela. Isso abre uma perspectiva dolorosa para a interpretação do refrão, quando ele aparece após a primeira parte, em que o eu-lírico chega à conclusão de que, enquanto homem, se ele quiser se impor e não ser violentado, precisa se impor pela violência perante outros sujeitos, para que ninguém se atreva a questionar sua posição.
No refrão, o eu-lírico expressa sua epifania existencial:
Dessa maneira, concluindo o percurso de formação psicossocial do protagonista da letra, a compreensão de que a dor é passível de ser sentida por qualquer um (verso 3 do refrão) municia o eu-lírico para se posicionar e resistir a qualquer tentativa sociocultural de diminuir seu valor ou subjugá-lo aos papeis subalternos através da violência, como outrora. Se ele sangra, sofre e sente dor, quem o oprimiu o fez porque sabe disso, usando a violência para manter a dominação. Já que ela é uma moeda nada sutil no câmbio das sociabilidades, muitos se apropriam da violência e passam a reproduzi-la para demarcar seu poder. Em sua obra O poder simbólico (1989), Pierre Bourdieu apresenta uma definição que apresenta o modo como essa forma de poder se mantém na estrutura da sociedade:
O poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem. É ainda o poder de construção da realidade que tende a estabelecer uma ordem gnoseológica: o sentido imediato do mundo, em particular, do mundo social (Bourdieu, 1989).
Após se adaptar, o eu-lírico performa o mesmo dialeto de violência com o qual foi alfabetizado e letrado, dado o ethos de violência estrutural onde foi forjado. Doravante, demonstração de poder e força compõem o repertório com o qual ele deve se comunicar.
3.2. Segunda parte: violência reproduzida como método e linguagem
Após o refrão, a quarta estrofe nos mostra como o eu-lírico se apropriou de signos de status do opressor para se manter no topo e sobreviver às violências simbólicas.
Os versos de 2 a 11 apresentam diversos símbolos de riqueza e status. Sobre isso, Bourdieu (1989) diz que “A ostentação de riqueza é uma forma de violência simbólica que visa impor uma hierarquia social e legitimar a dominação dos que possuem capital econômico sobre os que não possuem”. Atingir esse patamar foi fundamental para que o eu-lírico passasse a ser percebido e reconhecido pelas pessoas que o rodeiam como referência inquestionável de sucesso e poder, o que se percebe quando diz que passou a ser, “Pra elas, o preto, [e] pra eles, o cara” (verso 11). Tornar-se admirado e respeitado por elas e por eles é explicitamente um caro valor ao eu-lírico d’A cor púrpura. Ao longo da quarta estrofe, surgem mais algumas categorias para essa análise, especialmente quando se pensa na sua posição como referência para homens e mulheres.
Quando ele usa categorias como “o bala” (verso 2), “O dono da bola, no meu bolso cash” (verso 3), “No meu pulso, um Aqua / Lange meia lua” (versos 4 e 5) e “No pé o doze mola” (verso 6)6, reforça a afirmação do poder econômico que possui (Bourdieu, 1989), materializado em símbolos de status e riqueza. Esse tipo de afirmação simbólica se relaciona diretamente com o efeito desejado de causar admiração e reconhecimento nos círculos sociais, em que muitos admiram e desejam fazer parte dessa manifestação de abundância, discutido também por Bourdieu, em A distinção: crítica social do julgamento (2007), especificamente no trecho: “a distinção social é mantida e reforçada através de práticas culturais e sociais que valorizam certos tipos de capital, incluindo o capital econômico e social”.
O verso 12 da quarta estrofe aparece como um respiro espiritual em meio a toda essa exuberante catarse de ostentação material e afirmação de poder. O eu-lírico revela sua fragilidade e como toda essa aparente conquista na verdade apenas escondem as marcas de toda a dor que ele vem sentindo, sem curar as feridas que foram deixadas nele. Sobreviver, em contexto que tem a violência como ethos para as sociabilidades, não se trata de se curar das feridas, mas de seguir apesar delas, de modo que o sucesso material serviu como capa, como cobertura, para que ninguém as visse.
Na quinta estrofe (a única que o eu-lírico não começa falando com Deus), seu lugar de poder no topo da hierarquia é colocado, portanto, como incontestável.
Logo no verso 1 dessa estrofe o eu-lírico mostra que, diferentemente de antes, “hoje nós não pipoca7”, ou seja, não foge da briga. Em um jogo de palavras sinalizado pela aliteração8 com as palavras “pipoca” e “pipoco”, o eu-lírico completa sua fala dizendo que “resolve no pipoco”, fazendo referência ao uso da arma de fogo como forma de resolver conflitos, independentemente de quais sejam, confirmando a fala profética da mãe, no verso 2 da terceira estrofe, que diz: “um homem matou outro homem por coisas que mamãe diz que são coisas de homem”.
Da mesma forma, os versos 2 e 3 da quinta estrofe estabelecem outro parâmetro: a territorialidade masculina na demarcação de suas propriedades, incluindo o reforço de que a mulher também é parte dessas propriedades (“num olha mulher dos outro’ / Tipo nem cumprimenta”), já que o patrimônio, no patriarcado, estende-se inclusive às pessoas que se associam aos homens “poderosos”, reforçando de maneiras distintas o reconhecimento e a reprodução do pátrio poder.
Nas sociedades onde o público se destaca do privado, sustentamos que as relações de gênero continuam patriarcais; no âmbito das sociedades patrimoniais, a intimidade entre público e privado também não resultou em uma maior participação política ou econômica das mulheres nessa esfera pela própria origem patriarcal do estamento burocrático no contexto de um patrimonialismo patriarcal (Aguiar, 2000; grifos do autor).
Ainda no verso 3, seguindo pelo verso 4, o eu-lírico faz uma tensa concessão em relação ao “respeito” que tem pela “mulher dos outro” (verso 2). Entretanto, caso esteja muito alterado pelo uso de substâncias psicoativas, que é o que significa ficar “bem louco”, ele desfere “uma olhada nojenta, piada de mau gosto”. Essa tensão aponta para o posicionamento de um homem que não precisa sequer se dar ao trabalho de exercitar o autocontrole e o respeito aos outros, ainda que invada a “propriedade” de outro homem, dentro da perspectiva patriarcal que coloca a mulher como “sua posse”, a partir do momento em que se relaciona com ele9. A partir desse momento, a violência era sua linguagem e método, sempre que quisesse fazer afirmação de seu poder.
Seguindo pelos versos 5 e 6, o eu-lírico continua se afirmando enquanto “homem poderoso”; entretanto, a escolha de palavras aqui permite uma leitura inquietante na percepção de como opera a violência do homem contra a mulher nos processos de dominação estrutural. No verso 5, quando ele diz que “No meio de tanta puta eu escolhi a dedo”, a escolha da palavra e sua entonação acentuam a violência estruturada pelo patriarcado. É possível perceber, no emprego da palavra puta, várias categorias de violência contra a mulher, desde a sua leitura como alguém que se oferece sexualmente por dinheiro, como uma depreciação das mulheres em geral enquanto categoria social digna de desprezo. Para Maisa Guimarães e Regina Pedroza (2020), o uso de categorias pejorativas é uma ação violenta que está direcionada à destruição ou ao ataque da subjetividade do outro, e surge em um momento em que o sujeito acha que está perdendo poder ou percebe sua impotência. Para as autoras, esse uso se interpõe “à subjetividade e à linguagem, impondo ao corpo determinadas coerções para atingir a subjetividade, a afetividade e o pensamento” (Guimarães; Pedroza, 2020).
O verso 6, por sua vez, complementando a agressão sociolinguística iniciada no verso 5, faz um recorte psicossocial que conecta a agressividade que leva o eu-lírico a se referir às mulheres que se aproximam dele como “putas”, visto que foi condicionado, como possuidor de patrimônio, a julgar mulheres como interesseiras. Em seguida, ao dizer: “escolhi a dedo / Aquela que mais me olhava com olhar de medo”, o eu-lírico expõe sua incapacidade de lidar com mulheres insubmissas, já que estas olham para ele sem medo, de igual para igual, preferindo aquelas que mais se intimidam com sua imagem de poder àquelas que podem de alguma forma desafiar sua dominação (Álvares, 2014).
Nos versos 7 e 8 da quinta estrofe, para mostrar como realmente atingiu os mais altos patamares do poder, o eu-lírico atesta: “Manos que não questionem a minha hierarquia / Prefiram morrer que correr e saibam guardar segredo”. Ao afirmar que sua hierarquia não deve ser questionada, ele impõe um poder que não deve ser posto em dúvida nem pelos mais íntimos, seus “manos”, que antes de fugir “prefiram morrer”, e nem ousem abrir a boca para falar qualquer coisa que possa prejudicar a dominação e a posição de poder que ele construiu. A lealdade é um caro valor ao poder, especialmente entre homens, visto que a frase dirigida aos “manos” (sócios, cúmplices e amigos) encontra, em estudo conduzido por Emily Faverin e outros autores (2022), importantes reflexões nesse sentido. Podem ser destacadas: “o principal objetivo masculino na espécie humana é o controle da reprodução feminina, e a principal estratégia para obter isso é a violência”, justificando uma formação coletiva interessada em oprimir as mulheres para estruturar a dominação; e “a permanência de indivíduos do sexo masculino em sua área natal ou em seu grupo de origem é um provável fator de subsistência do sistema” (Faverin et al., 2022), que abre reflexão sobre a fidelidade ao lar como fator de sustentação dessa estrutura.
Nesse ponto da letra, o eu-lírico se encontra no ápice de sua afirmação enquanto homem poderoso. Entretanto, na sexta estrofe, em um recuo consideravelmente notável, quando a trajetória do narrador se encaminha ao clímax da história, ele se volta a Deus para falar de sua família, mas não a família que construiu com os seus “manos”, e sim aquela que vinha construindo com sua companheira, dentro de casa, sangue do seu sangue, em âmbito estritamente doméstico e particular.
A violência que então o definia se voltou contra ele para assombrá-lo através de seu filho, que agora se expõe ao mercado da sociabilidade, onde as posições frequentemente se negociam e reproduzem culturalmente pela violência (Bourdieu, 1989). O eu-lírico aprendeu isso cedo: viu homens se matando para provar que são homens (verso 2, terceira estrofe) e apanhou na escola de um garoto que disse “foi meu pai que me ensinou” (versos 5 e 6, terceira estrofe). E mesmo tentando “resolver de um jeito um pouco fofo” (verso 7, terceira estrofe), quando se deu conta, havia se adaptado (verso 8, terceira estrofe).
A violência estrutural opera por meio de um mecanismo que constantemente se retroalimenta através de reprodução simbólica e demarcações de poder. Manter-se insubmisso, ainda que pela linguagem da violência, implica em submeter outros a ela para estabelecer posições em uma dada hierarquia, custe o que custar, doa a quem doer. O final da primeira parte mostra como o eu-lírico aprendeu a violência através das agressões sofridas, e passou a praticá-la por entender empiricamente que essa é a linguagem mais universal que existe. O léxico10 da dor é idioma fluente entre os seres humanos, tanto que no refrão essa ideia fica explícita no verso 3 (“Dói igual em todo mundo”).
Dessa forma, apesar da mordida que o filho dele sofreu ser comum entre crianças na escola (Venezian et al., 2009), como dito no verso 5 da sexta estrofe (“Foi uma mordida, ele tava na escola”), o eu-lírico, que passou a ver tudo a partir da perspectiva da violência, interpreta o ocorrido como parte de um processo sociocultural de reprodução estrutural com base na violência como expressão e posicionamento (Bourdieu, 1989). O eu-lírico hesita ao constatar essa e outras questões que colocam a violência em xeque, como nos versos 6 e 7, quando diz: “É, foi gente querida, foi tipo gente nossa / Foi gente igual ele, tipo foi gente nova”. No verso 6, a “gente querida” provavelmente se refere a alguém que é filho de amigos ou conhecidos, gente que já passou por situações igual ele, com ele e por ele; isso não fica dito, mas pode ser deduzido, dada a valorização feita pela escolha de expressões como “gente querida” e “gente nossa”. No verso 7, o uso das expressões “igual ele” e “gente nova” parece acender um alerta na perspectiva do eu-lírico, que chega ao ápice da sua hesitação11.
Então, no verso 8 da sexta estrofe, quando ele diz ao filho “Mas pega esse moleque e faz seu nome, neguin”, a violência estrutural desfere mais um golpe no protagonista, que nesse intenso conflito, entre sobreviver sustentando o poder pela violência ou responder à questão por meio de outra linguagem, acaba se expressando no dialeto comum e manda o filho “pegar esse moleque e fazer seu nome”, emblemática expressão para demarcar posicionamento de poder e respeito, ainda que, e principalmente, pelo uso da força (Bourdieu, 1989). Como justificativa para essa recomendação, o eu-lírico argumenta, no verso 9, “Filho meu não vai ficar de piada na roda”. O filho dele não pode ficar de piada na escola, na roda de amigos, porque, se ele é o “fodão”, o filho dele deve seguir o mesmo caminho. No mínimo, honrar o nome e a imagem do pai, que sofreu e passou a praticar a violência para se impor, devendo ele estar disposto também a isso para poder sobreviver e se impor também. É possível perceber, com essa situação, como funciona a mecânica de reprodução da violência enquanto estrutura, visto que, no verso 3 da terceira estrofe, o narrador contou que apanhou de um garoto na escola, que dissera ter aprendido aquilo com o próprio pai.
A reviravolta vem com a resposta negativa do filho, no verso 10 da sexta estrofe (“Ele mexe a cabeça em sinal de negativo”). Mediante a falta de palavras que se impunha nessa resposta, mencionada no verso 11 da sexta estrofe, quando ele diz que “O silêncio [da resposta] fala” (Giffoni, 2020), o eu-lírico tem a epifania que o faz perceber que seguir por esse caminho vai apenas perpetuar as reproduções estruturais da violência como linguagem e prática de opressão. Ainda no verso 11, ao dizer que “o mundo chama pra fora”, é possível perceber a alegoria ao momento do parto, quando o bebê sai da barriga da mãe, chamado para fora pelo mundo.
No verso 12, ao dizer “Nasci de novo, será o fim de um ciclo?”, o eu-lírico mobiliza a categoria “nascer de novo” como a necessidade de encerrar o ciclo da violência e estabelecer novos modelos de sociabilidade. Essa categoria é utilizada para simbolizar a conversão ao cristianismo, operada também por categorias como “aceitar Jesus” ou “morrer para o mundo”. As referências simbólicas ao cristianismo, na letra de A cor púrpura (2022), estão diretamente ligadas ao contexto do livro de Walker (1982) e ao próprio contexto da letra, em que as questões são colocadas em interlocução com Deus, o único “acima de tudo”, cuja justiça pode redimir seus pecados e punir seus opressores.
No início da letra, na análise do verso 2 da primeira estrofe, foi explicado como o toque não consentido é considerado uma forma de violência, com menção ao Relatório mundial sobre violência e saúde da OMS (2002). No verso 14, quando ele diz que “Acho que alguém me tocou agora”, o “toque” se apresenta com semântica consideravelmente diferente. Ele foi tocado pela necessidade de reconstruir sua memória a partir de uma nova percepção das sociabilidades. Halbwachs (2013) afirmou que “nossas lembranças são moldadas e influenciadas pelos contextos sociais em que vivemos e pelos grupos aos quais pertencemos”, o que também reforça uma mudança em sua forma de se posicionar no mundo enquanto homem violento, dado que a situação com o filho o fez repensar em como deveria atuar em relação a continuar ou não com esse ciclo de violência.
O impacto dessa transformação, considerando essa perspectiva, permite que seja feita uma nova leitura do refrão, que pode ser interpretado nesse momento conforme a mudança de posicionamento do eu-lírico enquanto agente de reprodução da violência (“E foi assim que eu me vi”, verso 1, refrão), junto à compreensão de que se “Tu é igual nós / Dói igual em todo mundo” (versos 2 e 3 do refrão). Talvez a saída não esteja em responder violência com violência, mas no desenvolvimento de outras linguagens que possam operar soluções não violentas para os conflitos.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS (MAS NUNCA DEFINITIVAS)
O ser humano é indivíduo, mas também é parte de uma configuração coletiva que o orienta, da mesma forma em que por ele é moldada, conforme o sujeito deixa marcada sua passagem pelo mundo. Nossas memórias e critérios de julgamento e ação são reconstruções constantes (Halbwachs, 2013), forjadas em convivência com outros indivíduos, com quem estamos constantemente trocando experiências, informações e aprendendo sobre como proceder nos “corres” da vida.
Pensando em meios para tentar reverter a violência estrutural e simbólica, do modo como foi conceituada por Pierre Bourdieu (1989), e levando em consideração a intencionalidade de efeito da composição apontada por Edgar Allan Poe (2009), a analise literária de letras de RAP, conforme a sociolinguística das variações como marcadoras de desigualdades sociais, como estudadas por William Labov (1972), pode ser um potente recurso para embasar questionamentos e reflexões acerca da reprodução dos padrões de violência, promovendo alternativas para um protagonismo social transformador.
Se a sociabilidade foi forjada pela submissão violenta de adversários, ou mesmo de familiares e amigos, ainda que resultado de adaptação e reprodução de um cultura determinada pela violência, é possível forjar alternativas capazes de desenvolver metodologias para a solução de conflitos através de linguagens que pensem a alteridade não como um recurso meramente comparativo para perpetuar opressão, mas como critério reflexivo para buscar respostas coletivas para as divergências que se apresentam na vida de sujeitos periféricos.
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1 Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGECC/FEBF/UERJ), e-mail: [email protected], Lattes: http://lattes.cnpq.br/7967554637828407.
2 Professora Associada da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FEBF/UERJ), e-mail: [email protected], Lattes: http://lattes.cnpq.br/8153346153671009.
3 Esse é um possível exemplo de como a compreensão dos elementos da narrativa é importante para desenvolver recursos e ferramentas para estimular o protagonismo social.
4 Para Aristóteles (2005), ethos se refere à essência que motiva ideias e costumes, ao lado de logus (razão, lógica) e pathos (sentimentos, empatia). Segundo ele, “há três coisas que inspiram confiança: a prudência, a virtude e a benevolência” (Aristóteles, 2005), características opostas, inclusive, ao ethos que pode ser percebido em contextos que se reproduzem e se sustentam à base de violência.
5 Algumas obras célebres já experimentaram o romance epistolar. Uma das mais famosas se chama Os sofrimentos do jovem Werther, de Johann W. Goethe, publicada em 1774. Outra, mais recente, de Eça de Queiroz, A correspondência de Fradique Mendes, foi publicada em 1900. Uma característica marcante desse gênero é a narrativa fragmentada, com vácuos narrativos que aumentam a expectativa para a próxima carta, causando no leitor curiosidade e ao mesmo tempo intimidade, dado o vínculo que se estabelece com o remetente a respeito dos eventos relatados, alimentando também o senso de importância que se dá ao desenrolar dos acontecimentos.
6 Os versos 4, 5 e 6 da quarta estrofe estão profundamente marcados por aspectos de variação linguística não-padrão, com ocorrências de inconformidades ortográficas associadas à baixa instrução formal. Os versos 4 e 5 fazem referência a um modelo de relógio cujo nome de mercado é Aqualand Meia-Lua; o verso 6 fala de um modelo de tênis esportivo que tem 12 molas em seu solado, fabricado por diversas marcas, e que é moda, especialmente entre rapazes de periferia. Sobre o uso de variedades não-padrão da língua, William Labov pontua que “a variação linguística não é apenas uma questão de diferenças de pronúncia ou vocabulário, mas reflete e reforça as estruturas sociais e as relações de poder dentro de uma comunidade” (Labov, 1972). Diante disso, é possível entender que o eu-lírico, ainda que tenha se apropriado de capital econômico e status, não faz questão de se apropriar de todo capital cultural da classe dominante à qual ele se referencia, na hora de se comunicar ostentando bens de consumo que reforçam o poder simbólico do dinheiro (Bourdieu, 1989).
7 “Pipocar”, no Dicionário Priberam da Língua Portuguesa (2024), significa: “verbo intransitivo [...] 4. Brasil, Informal. [Esporte] Ficar com medo e hesitar numa jogada”.
8 Aliteração é uma figura de linguagem em que os sons consonantais se repetem, causando um efeito sonoro marcante.
9 Muitas pessoas vêm questionando, nos últimos anos, o papel da monogamia enquanto metodologia patriarcal, visto que relações tradicionais normalizam a ideia de “posse” e reforçam a leitura de que, em um relacionamento monogâmico, os envolvidos “pertencem” um ao outro. É ilusório pensar que, ao agir assim, a mulher se apropria de uma metodologia de dominação masculina para não ser oprimida, visto que, considerando a semântica estrutural, não passa de reforço legitimador do oprimido quanto à prática que o oprime. Sobre o assunto: “A monogamia, ao garantir a paternidade legítima, reforça a ideia de posse sobre a mulher, perpetuando a dominação masculina e a exclusão das mulheres da esfera pública” (Azevedo, 2020).
10 Léxico, segundo Ferdinand de Saussure, “é o conjunto dos hábitos linguísticos que permitem a uma pessoa compreender e fazer-se compreender” (Saussure, 2006); ou seja, léxico é o conjunto de palavras que comunicam e representam determinado contexto, no caso desta análise, o ethos codificado pela linguagem da violência, gerando na dor um texto que todos conseguem ler.
11 O uso de histórias como recurso para ensinar elementos da narrativa e promover protagonismo social é muito valioso no ensino de jovens periféricos. Metodologicamente, uma narrativa é composta por um protagonista que precisa desenvolver habilidades e se associar a outros indivíduos para a resolução de conflitos e problemas. No caso da letra do RAP A cor púrpura (2022), as habilidades para resolver o problema que é tentar romper com o ciclo da violência começam a se organizar quando o eu-lírico, protagonista dessa narrativa, hesita em relação à atitude que deve tomar quanto à violência sofrida por seu filho. Essa hesitação prenuncia o clímax do enredo e conduz ao efeito reflexivo esperado no desfecho, como prescrito por Poe (2009), imprescindível a uma narração que se pretende de impacto.