UMA ANÁLISE PSICOSSOCIAL DE O AUTO DA COMPADECIDA 2
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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.15307987
Giovana Da Silva Francisco1
Lawany Fernanda Francisco da Cunha2
Nathalia Maria Bompani Franco3
Daniela Emilena Santiago4
RESUMO
O presente texto tem com objetivo realizar uma análise do filme O Auto da Compadecida 2 , lançado em 2024, considerando para isso o contributo ofertado pela Psicologia Social e em especial considerando o pensamento de Silvia Lane. A análise, no entanto, esteve centrada no disposto por Lane usando como referência condutas, práticas e falas externadas pelos protagonistas João Grilo e Chicó. Por meio do estudo proposto foi possível observar a diversidade de comportamentos e interpretações dos protagonistas como representativos de com a realidade pode influenciar a constituição de subjetividades e práticas tão dispares como as que são apresentadas por Chicó e João Grilo.
Palavras-chave: Auto da Compadecida. Subjetividade. Realidade. Psicologia Social.
ABSTRACT
This text aims to analyze the film O Auto da Compadecida 2, released in 2024, considering the contribution offered by Social Psychology and especially considering the thinking of Silvia Lane. The analysis, however, was centered on what Lane said, using as reference the conduct, practices and speeches expressed by the protagonists João Grilo and Chicó. Through the proposed study, it was possible to observe the diversity of behaviors and interpretations of the protagonists as representative of how reality can influence the constitution of subjectivities and practices as disparate as those presented by Chicó and João Grilo.
Keywords: Auto da Compadecida. Subjectivity. Reality. Social Psychology.
1 INTRODUÇÃO
Não sei, só sei que foi assim5
O bordão acima inserido e que recuperamos aqui, sendo esse: “Não sei, só sei que foi assim” e usado por Chicó, personagem do Auto da Compadecia 1 e do Auto da Compadecida 2 evoca a menção da obra de Ariano Suassuna, grande referência para ambos filmes. A frase era usada pelo protagonista sempre que o mesmo buscava justificar fenômenos e situações que não poderiam ser justificadas racionalmente. Na obra, um emaranhado de junções entre ficções criadas regionalmente e situações de realidade concreta, somos chamados a pensar e a refletir a respeito dos mais variados fatores, e, dentre eles, vemos a menção de como o indivíduo consegue construir ou reconstruir a sua subjetividade.
No campo da Psicologia Social, uma das preocupações centrais é compreender como o indivíduo constrói sua identidade e se relaciona com o meio social, sendo continuamente influenciado por fatores contextuais, históricos e interacionais. Com tal intento, quando os alunos e também autores do presente manuscrito ingressaram na disciplina nomeada Psicologia Social, no terceiro semestre do curso de graduação em Psicologia realizaram um processo de reflexão em torno da construção da subjetividade do ser humano em determinados contextos sociais.
A disciplina suscita ainda a reflexão sobre expressões culturais, artísticas e que explorassem as expressões da subjetividade em diversos contexto com especial ênfase para o entendimento de como a realidade pode influenciar pensamento e ação do ser humano. Nesse sentido, para composição de um trabalho vinculado à disciplina os autores do presente artigo realizaram uma análise do filme “O Auto da Compadecida 2”. O filme “O Auto da Compadecida 2”, sequência da obra consagrada inspirada na literatura de Ariano Suassuna, oferece uma rica oportunidade de análise dessas dinâmicas, ao retomar os personagens João Grilo e Chicó em um cenário de desigualdade social, religiosidade popular e resistência cultural.
Lançado em 2024 e dirigido por Guel Arraes e Flávia Lacerda, o filme se ambienta novamente na fictícia cidade de Taperoá, no sertão nordestino, e propõe reflexões profundas sobre o papel da experiência, da narrativa e da fé na construção das relações humanas. Essa obra alcançou a marca de 4 milhões de expectadores[6], sendo considerado o filme que mais foi visto no cinema desde a pandemia, e, perdendo apenas para o igualmente aclamado: Ainda estou Aqui. Para tanto, isso demonstra a nosso ver, a grande ênfase que pode ser conferida a esta questão está associada ao fato de ser um filme de enorme relevância e importância social a medida que deflagra a importância do cinema e da cultura nacional, jogando luz para uma obra extremamente crítica e que guarda relação com a sociedade contemporânea.
Através dos percursos contrastantes de João Grilo, que retorna da metrópole, e de Chicó, que permanece no sertão, observamos distintas formas de adaptação e influência social. Nesse sentido, o filme funciona como um microcosmo da sociedade brasileira, destacando como diferentes trajetórias de vida influenciam não apenas o comportamento, mas também a percepção social dos indivíduos sobre os mais variados fenômenos sociais e de como essa percepção pode resultar em atos específicos.
Para compreender o filme sob o viés da Psicologia Social apresentaremos inicialmente um breve resumo da obra, seguida pela análise do mesmo. Nosso principal contributo é o pensamento de Silvia Lane, uma das autoras de referência da Psicologia Social Brasileira e que se mostrou fundamental para o entendimento de forma crítica do filme resenhado. Outrossim, a metodologia de pesquisa usada foi a recomposição do filme por meio de um resumo do mesmo e a análise em decurso sendo compreendido como um estudo de natureza teórica uma vez que se apoia em fontes de tal envergadura e não recorre a pesquisa ou estudo de campo (Minayo, 2001).
Importante frisar que o foco estará orientado para os protagonistas João Grilo (representado por Matheus Nachtergaele) e Chicó (representado por Selton Mello) ,e, os possíveis saberes que podem ser compreendidos analisando a representação construída em torno dos protagonistas e que nos dão a saber elementos importantes sobre a realidade e sua influência na determinação da subjetividade do ser humano. O diferencial é que podemos ainda pensar na nossa realidade, a brasileira, dado o contexto que é apresentado no filme.
2 JOÃO GRILO E CHICÓ: EXPRESSÕES DA REALIDADE BRASILEIRA
2.1 JOÃO GRILO: O RETORNO E O CAPITAL SIMBÓLICO DA EXPERIÊNCIA URBANA
O filme é iniciado com a apresentação de Chicó para pessoas que pagavam para escutar a história do renascimento de João Grilo. No entanto, é dito que Chicó está sozinho em Taperoá, demonstrando que seu casamento com Dona Rosinha foi encerrado e ainda demonstrando que João Grilo não está em Taperuá. No entanto, nos momentos iniciais do filme é apresentado que João Grilo volta para Taperuá e rapidamente procura Chicó.
João vai se informando a respeito da atual situação do município e descobre que há uma eleição em curso, sendo disputada entre Arlindo, um comerciante local e Coronel Ernani, fazendeiro da região. João consegue o respeito da comunidade devido a sua história de ressureição e com isso consegue a adesão de ambos políticos. Nesse contexto, resolve obter benefícios de ambos prometendo ajudá-los na disputa política, porém, sem adotar, rigidamente, um lado a ser seguido.
A trama passa a se desenrolar com a volta de Dona Rosinha, esposa de Chicó no primeiro filme e com inúmeras tentativas da dupla de obter vantagens de ambos lados, e, de ser colocar como representativos na realidade. Grande parte dos eventos demonstram apenas dois homens tentando sobreviver frente a realidade dura do sertão e recorrendo aos truques construídos como meios de sobrevivência. A narrativa avança para outra suposta morte e ressurreição de João que é desmascarada por um padre falso que estava em alinhamento com Chicó e João Grilo. Ao final, eles armam uma saída em que João sai escondido da cidade viando sustentar assim a sua morte para os demais.
O retorno de João Grilo a Taperoá marca uma mudança significativa na maneira como o personagem é percebido por sua comunidade. Mesmo não tendo acumulado riquezas ou status formal na metrópole, o simples fato de ter "conhecido o mundo" o distingue simbolicamente daqueles que nunca saíram da cidade. Seu discurso é mais seguro, sua postura é mais estratégica, e seu repertório de soluções é claramente influenciado pela vivência urbana. Dessa forma, pela vivência, João também se destaca como aquele que venceu a morte e ainda que não acredite em sua suposta ressureição usa isso e seu favor para obter vantagens na comunidade em que está inserido.
Dentro da perspectiva da Psicologia Social, esse reconhecimento atribuído a João Grilo pode ser interpretado como uma forma de representação e que equivale a um status construído socialmente, atribuído a pessoas específicas. Assim, conforme indica Lane (2017) a representação é uma construção subjetiva, mental, que o ser humano faz com base em sua realidade, com base em sua cultura e em sua inserção social. Para ela, no entanto, a realidade é influenciada e perpassada pela organização capitalista. A nosso ver, e, estabelecendo uma analogia com o filme estudado, a representação construída pela comunidade de Taperuá e representada no filme guarda grande relação com a religião, no caso, Católica, apresentada no filme. Além disso, ainda com base na construção realizada no filme, é possível inferir também que em comunidades interioranas, a vivência na cidade grande é muitas vezes associada a progresso, inteligência e sucesso, mesmo que não existam provas materiais concretas desse “sucesso”.
Ao longo do filme, João Grilo utiliza essa representação estruturada de maneira eficaz: ele ocupa um lugar de liderança nas situações de conflito e encontra formas criativas — por vezes manipulativas — de se posicionar socialmente. Sua habilidade em resolver problemas se ancora menos na força ou na fé, e mais na sagacidade adquirida por meio da experiência urbana, refletindo uma forma de poder que se impõe pela lógica e pela adaptação ao ambiente. Assim João passa a ser locutor no único programa de rádio da cidade, se coloca em situações de definir a política usando em seu favor o poder econômicos dos dois únicos candidatos à Prefeitura e passa uma imagem de santo para a comunidade transmutando entre ser amado e ser odiado pela população simples de Taperuá.
João Grilo insere um falso padre na trama para dar valor a sua morte e ressurreição e acaba deixando Taperuá escondido. Nessa altura do filme Chicó se reencontra dom Dona Rosinha, apresentada como caminhoneira e volta a reestabelecer a relação dos dois. João Grilo, por outro lado, se insere na trama sempre apoiando o amigo na reconstrução da sua relação. É apresentado que Chicó não sabia ler e Dona Rosinha começa a ensiná-lo ao passo que João Grilo apresenta domínio tanto de leitura quanto de matemática. Dessa forma, a esperteza e a sabedoria de João Grilo advém também do fato dele saber ler, além de ter vivido em locais maiores. Torna-se nítido na obra a comparação entre os protagonistas e há o enfoque para a diferenciação dos personagens comparando a realidade distinta de ambos como responsável pela consolidação das características dos protagonistas em questão.
2.2 CHICÓ: FÉ, ORALIDADE E RESISTÊNCIA
Chicó, por sua vez, representa aquele que nunca deixou a cidade, e que, diante das limitações materiais do sertão, desenvolveu outras formas de sustento e influência. Sua ferramenta principal é a palavra. Ele sobrevive contando histórias fantásticas, muitas vezes permeadas por elementos religiosos e sobrenaturais, que ele mesmo acredita com convicção. A sua vinculação com a Igreja Católica é bastante nítida e enfática uma vez que apresenta, várias vezes, a narrativa destacando a fé na imagem de Nossa Senhora, sempre aclamada e reiterada nas narrativas realizadas por Chicó em relação a João Grilo e sua suposta morte e ressurreição sob intercessão da Virgem Maria.
Apesar de seu conteúdo fantasioso, essas narrativas cumprem funções essenciais: oferecem consolo, produzem sentido e mantêm viva a esperança em uma realidade árida. Em contextos onde os recursos materiais são escassos, a fé e a imaginação ganham status de riqueza simbólica. Chicó encarna, assim, o típico contador de causos do interior nordestino, figura que detém prestígio social por meio da oralidade e da afetividade. Lane (2017) nos coloca, como podemos observar, que as funções psíquicas superiores são desenvolvidas a partir da realidade em que a pessoa está inserida. Por conseguinte, a necessidade humana impõe demandas específicas ao homem. Essas demandas colaboram para o seu desenvolvimento.
Outrossim, quando o ser humano é inserido na sociedade, a partir de seu nascimento, muitas necessidades vão sendo apresentadas a ele. A criança aprende a comer, a andar, a falar e a desempenhar um rol de atividades afins que potencializam o seu desenvolvimento. Todo esse vir a ser condiciona o seu psiquismo influenciando sua capacidade de memória, sua atenção, a linguagem, a consciência e o pensamento abstrato. A capacidade de imaginar integra essas funções psíquicas superiores, no entanto, ela se alimenta e provém da realidade em que as pessoas estão inseridas.
Sob o olhar da Psicologia Social, Chicó representa uma forma de liderança, de referência para lidar com situações as quais eles, ainda não conseguem. Ele mobiliza os sentimentos coletivos, conecta-se afetivamente com o sofrimento do outro e transforma a dor em narrativa. Sua influência não se dá pela imposição da razão, mas pela capacidade de envolver emocionalmente e gerar identificação. Em uma sociedade onde a religiosidade popular é um elemento estruturante, sua fé torna-se uma ponte entre o real e o simbólico. De forma que, podemos falar de um simbólico, uma imaginação coletiva e que foi estruturada e fortalecida a partir de uma realidade concreta. Chicó é compreendido e aceito porque a sua narrativa encontra adesão dos demais moradores de Taperuá.
2.3 DOIS MUNDOS, DUAS LINGUAGENS: A RAZÃO URBANA E A FÉ SERTANEJA
João Grilo e Chicó representam, de forma quase arquetípica, dois modos distintos de vivenciar e interpretar o mundo. João incorpora a lógica da cidade: racionalidade, esperteza, objetividade e resolução de problemas por meio do cálculo social. Chicó, ao contrário, expressa a sensibilidade da tradição oral, da religiosidade, da emoção e da subjetividade. Essa oposição revela mais do que perfis individuais: evidencia a tensão entre dois modelos de racionalidade. O racionalismo urbano, representado por João, reflete a modernidade e sua busca por eficiência. Já a racionalidade simbólica de Chicó é mais ancestral, ligada à cultura popular, à memória coletiva e à fé como instrumento de sobrevivência.
Recuperando Lane (2017) observamos que é dito que, a realidade concreta, a realidade, influencia substancialmente a forma com que o homem se apropria da realidade. Portanto, a realidade de Chicó se mostrou distinta da vivida por João Grilo e isso resultou em formas distintas de se comportarem e de interpretarem a vida e a realidade. Por exemplo, Chicó, logo que João Grilo retorna a cidade de Taperuá lhe apresenta o rádio que comprou parcelado no único lugar que vende bens de tal natureza. Ao passo que Chicó vê a possibilidade de compra parcelada como algo positivo ao passo que o Grilo já tece críticas em relação aos juros provenientes de tal aquisição. Em outro contexto vemos que Grilo busca o acesso à água, algo que era manipulado por um único fazendeiro do local, ao passo que Chicó compreende como correta essa utilização e o comércio da água no local. Ou seja, a realidade vivenciada também estimula os personagens em compreender fenômenos sociais associados a pobreza e a exploração do pobre.
Ambos os personagens exercem influência social, mas por vias diferentes: João pela razão estratégica, Chicó pela emoção empática. Essa dualidade também permite refletir sobre como diferentes contextos sociais exigem diferentes formas de atuação, e como a palavra - seja lógica ou emocional - continua sendo a principal ferramenta de negociação, pertencimento e resistência em comunidades vulneráveis. Nesse sentido, Lane (2017) nos aponta, pautada em Paulo Freire a importância da identificação das pessoas para que possam sair do estado de alienação. Para ela caberia a Psicologia e realização da mediação do processo de identificação das pessoas o que resultaria, no seu entendimento, no fim da alienação. Para a autora as intervenções grupais em Psicologia deveriam apresentar essa possibilidade, porém, o que observamos no destaque conferido pela autora é o fato de que o grupo tem a potência de apoio e por conseguinte de libertação dos seres humanos conferindo a esse uma percepção mais próxima do real e não uma perspectiva metaforizada.
A análise da obra O Auto da Compadecida 2, à luz da Psicologia Social Crítica, proposta por Lane (2017) permite compreender como os fenômenos sociais interferem diretamente na constituição da subjetividade dos sujeitos, especialmente em contextos marcados por desigualdade, exploração e dominação simbólica. Lane (2017) propõe uma Psicologia Social comprometida com a transformação da realidade, focada nas relações sociais concretas e nas formas pelas quais os indivíduos se constituem a partir das condições históricas, culturais e econômicas em que estão inseridos.
No filme, a alienação se apresenta de forma explícita através da figura do personagem Arlindo que detém o capital econômico e simbólico da cidade fictícia de Taperoá. Proprietário de uma loja de acessórios e da rádio local, esse sujeito utiliza seus meios de produção não apenas para acumular riqueza, mas também para manipular ideologicamente a população. Através do controle da rádio, ele promove sua candidatura à prefeitura, construindo uma imagem pública positiva e monopolizando a informação. Trata-se de uma forma de dominação ideológica que, segundo Lane (2017) caracteriza-se como uma alienação social: as pessoas interiorizam valores e discursos que não condizem com sua realidade concreta, perdendo a consciência crítica de sua condição.
Além disso, o personagem de Arlindo explora a alienação econômica por meio da facilitação de compras parceladas, o que, à primeira vista, parece um benefício, mas se revela um mecanismo de exploração por conta dos juros abusivos. A população, envolta em uma falsa sensação de acesso ao consumo, permanece alheia ao processo de endividamento que a aprisiona, perpetuando o ciclo de dominação. Este cenário representa, segundo Lane, uma subjetividade forjada pelas contradições do sistema capitalista, que inviabiliza os mecanismos de opressão ao mesmo tempo em que produz sujeitos adaptados e conformados com as estruturas vigentes. Acerca de tais elementos retomamos o que Lane (2017) oferece grande ênfase ao entendimento da realidade capitalista como condicionante de subjetividades e de práticas.
Nesse interim, para a autora, a sociedade capitalista é organizada, estruturalmente, com base em duas classes sociais sendo essas a burguesia e o proletariado. O burguês detém os meios de produção e o proletariado detém a força de trabalho a qual vende em troca de salário para ter suas necessidades atendidas. No filme Arlindo representa a classe burguesa e detentora dos meios de produção. João Grilo e Chicó são representativos da classe trabalhadora, no entanto, a nosso ver, Chicó se mostra mais alienado que João. João consegue analisar a realidade e encontrar alternativas de superação da situação de pobreza e de exploração vivida, e, mais, dada sua representação social consegue até mesmo orientar elementos associados a política local pois ele, tem, consciência do poder que exercer sob a sociedade e tem também entendimento das situações de exploração.
Afinal, como indicamos o personagem João Grilo retorna à cidade com um olhar transformado, fruto de experiências acumuladas fora daquele contexto. Sua astúcia é intensificada por uma nova compreensão das dinâmicas sociais e das fragilidades humanas. João passa a operar estrategicamente dentro do sistema, utilizando-se da vulnerabilidade emocional e da fé da população para obter vantagens. Nesse sentido, sua ação ilustra como a subjetividade é moldada pelas condições socioculturais: ele adapta seu comportamento ao ambiente para atingir seus objetivos, mesmo que isso signifique manipular o outro.
João Grilo também introduz na cidade um antigo amigo, como apontamos acima, que assume diferentes papeis sociais (vendedor, bispo, cambista), sempre com o intuito de explorar os sentimentos e valores dos habitantes. Tal camuflagem revela, conforme Lane (2017), como o meio social atua na formação do indivíduo, e como este, por sua vez, pode reproduzir práticas de dominação se não houver uma consciência crítica que o leve à transformação de sua realidade e da dos outros.
Dessa forma, o filme ilustra de maneira simbólica como a alienação social e econômica, somada à vulnerabilidade subjetiva, pode ser instrumentalizada tanto por figuras de poder tradicionais quanto por sujeitos marginalizados que compreendem as engrenagens do sistema. A Psicologia Social Crítica de Lane, portanto, oferece uma chave de leitura potente para entender que a consciência de si não é um processo individual e isolado, mas sim uma construção histórica e social, que só pode ser emancipada por meio da ação crítica e transformadora.
3 CONCLUSÃO/CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Auto da Compadecida 2 ultrapassa os limites de uma comédia popular ao propor uma reflexão sensível sobre as formas de sobrevivência e de construção de identidade em contextos marcados pela desigualdade. Através dos percursos contrastantes de João Grilo e Chicó, o filme ilustra como a experiência urbana pode ser convertida em capital simbólico, e como a oralidade e a fé continuam sendo potentes formas de sustento e influência social.
Nesse sentido, a Psicologia Social nos ajuda a compreender que o comportamento humano é profundamente moldado pelas circunstâncias contextuais e pelas interações sociais. João e Chicó não são apenas personagens fictícios: são representações vivas de estratégias reais adotadas por indivíduos que, mesmo em condições adversas, buscam reconhecimento, pertencimento e dignidade. Em um mundo onde tantas vezes faltam recursos materiais, o filme nos lembra que a palavra, quando bem usada, continua sendo uma das mais poderosas formas de poder.
A partir da perspectiva da Psicologia Social Crítica, proposta por Silvia Lane, é possível aprofundar ainda mais essa leitura ao evidenciar como as relações sociais e os contextos históricos moldam profundamente a subjetividade dos sujeitos. Os mecanismos de alienação presentes no filme — tanto sociais quanto econômicos — não são meramente individuais ou acidentais, mas estruturais e mantidos pelas dinâmicas de poder. Personagens como Arlindo e o próprio João Grilo escancaram as contradições de uma sociedade marcada pela desigualdade e pela manipulação simbólica, seja pela via da dominação direta, seja pela astúcia de quem aprende a operar dentro das regras do sistema.
A crítica proposta por Lane (2017), portanto, convida à reflexão sobre a necessidade de uma consciência crítica que vá além da adaptação às estruturas opressoras, promovendo práticas transformadoras capazes de romper com os ciclos de exploração. O filme, nesse sentido, torna-se não apenas uma obra de entretenimento, mas um retrato simbólico e potente das formas como o sujeito é atravessado pelas condições sociais e, ao mesmo tempo, pode resistir, reinventar-se e transformar sua realidade.
No tocante a disciplina em si desejamos destacar a enorme relevância que a mesma adquiriu no sentido de estimular reflexões críticas a partir de representações culturais como o cinema. Por conseguinte, a disciplina realiza o estímulo para que os alunos possam transcender o espaço da sala de aula em direção ao fortalecimento de análises que sejam realizadas em momentos e fazeres atrelados ao cotidiano, observando a potência do substrato teórico de referência em orientar o olhar para a compreensão ampliada dos fenômenos sociais que estão presentes na realidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LANE, S. T. M. O que é psicologia social. São Paulo: Brasiliense, 2017.
MINAYO, M. C. de S.(Org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.
Fontes
ARRAES, G. (Direção). O Auto da Compadecida 2 [Filme]. Brasil: Globo Filmes, 2024.
1 Discente do Curso Superior de Psicologia do Instituto de Ciências Humanas da UNIP, Campus Assis e-mail: [email protected]
2 Discente do Curso Superior de Psicologia do Instituto de Ciências Humanas da UNIP, Campus Assis e-mail: [email protected]
3 Discente do Curso Superior de Psicologia do Instituto de Ciências Humanas da UNIP, Campus Assis e-mail: [email protected]
4 Docente do Curso Superior de Psicologia do Instituto de Ciências Humanas da UNIP, Campus Assis. Mestre em Psicologia pela Unesp de Assis, Mestre em História pela Unesp de Assis e Doutora em História pela Unesp de Assis e-mail: [email protected]
5 Disponível em https://www.pensador.com/frase/NTY2NTM5/. Acesso em 23 abr de 2025.
6 Disponível em https://oglobo.globo.com/cultura/noticia/2025/02/09/o-auto-da-compadecida-2-chega-a-marca-de-4-milhoes-de-espectadores.ghtml. Acesso em 23 abr de 2025.