TRANSMISSIBILIDADE EM QUESTÃO: LITERATURA DISSIDENTE E PSICOPODER BOLSONARISTA

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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10655000


Waldenilson Teixeira Ramos1


RESUMO
Este artigo tem como propósito apresentar reflexões e proposições do pré-projeto de pesquisa conduzido no departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense, localizado em Niterói, em andamento na linha de investigação: Subjetividade, Política e Exclusão Social. Denominado "ESCRITA COMO CAMPO DE DISPUTA DISSIDENTE: as urgências na cena pública em um Brasil coaptado pelas produções de aniquilamento das diferenças," esse projeto foi selecionado e incorporado ao programa de pós-graduação no ano de 2023. Sob a orientação do Dr. e Professor Danichi Hausen Mizoguchi, o projeto foi aprovado como requisito para a realização do curso de Mestrado em Psicologia. Este artigo abordará os objetivos, questões/problemas, justificativa, relevância, atualidade e método. Além de divulgar o andamento desta pesquisa, o artigo também serve como registro desse processo investigativo.
Palavras-chave: Escrita Dissidente. Política. Fascismo. Ética. Democracia.

ABSTRACT
The purpose of this article is to present the pre-project of a research project carried out in the Psychology department of the Fluminense Federal University, located in Niterói, which is currently underway in the line of research: Subjectivity, Politics and Social Exclusion. Entitled "WRITING AS A DISSIDENT DISPUTE FIELD: the urgencies on the public scene in a Brazil coapted by the productions of the annihilation of differences," this project was selected and incorporated into the postgraduate program in 2023. Under the guidance of Dr. and Professor Danichi Hausen Mizoguchi, the project was approved as a requirement for the Master's degree in Psychology. This article will cover the objectives, questions/problems, justification, relevance, timeliness and method. As well as publicizing the progress of this research, the article also serves as a record of this investigative process.
Keywords: Dissident Writing. Politics. Fascism. Ethics. Democracy.

INTRODUÇÃO

Este manuscrito se falhe, para compartilhar as proposições e reflexões, do projeto de pesquisa intitulado "ESCRITA COMO CAMPO DE DISPUTA DISSIDENTE: as urgências na cena pública em um Brasil coaptado pelas produções de aniquilamento das diferenças". Incorporado ao Programa de Pós-Graduação da Universidade Fluminense em Niterói no ano de 2023, o projeto é orientado pelo Professor e Doutor Danichi Hausen Mizoguchi e constitui um componente necessário para a conclusão do curso de mestrado no referido departamento. A pesquisa terá uma duração de dois anos, culminando na apresentação de uma dissertação ao término do curso. Seu foco reside na apresentação de desafios à Psicologia Social Crítica, com ênfase na tríade corpo, escrita e democracia. Adicionalmente, ao final deste artigo, será apresentada a carta de apresentação do projeto, destacando suas relações com o programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense e as condições justificadoras da solicitação de cota para a vaga no curso de Mestrado. O projeto destaca a dimensão crítica e ética da Psicologia e suas interfaces com as contemporaneidades.

O filósofo e sociólogo Walter Benjamin (2012), em seu texto "Experiência e pobreza", destaca os declínios profundos, na linguagem, da capacidade dos indivíduos de narrar histórias. Suas contribuições fornecem recursos importantes para ampliar a discussão sobre as condições de possibilidade da transmissibilidade da experiência, o papel da experiência na vida humana e a função política do ato de compartilhar histórias. Por sua vez, a linguista e escritora brasileira Conceição Evaristo (2019) introduziu o termo "escrevivência" para melhor marcar as circunstâncias históricas e políticas entranhadas em seus gestos literários. A escrevivência pode ser compreendida como "[..] a escrita de um corpo, de uma condição, de uma experiência negra no Brasil" (Oliveira, 2009, p. 622), uma escrita da vivência, da invenção da vida e da sobrevivência de uma história.

As contribuições de Walter Benjamin e Conceição Evaristo são essenciais para fomentar questões éticas e políticas fundamentais: como pensar o papel político da escrita como ferramenta de transmissibilidade de histórias frente a um mundo de experiências em declínio? Quais são as condições contemporâneas de experiência e as dinâmicas que viabilizam ou impossibilitam a transmissibilidade de determinadas experiências? Estas são questões cruciais para este projeto de mestrado, especialmente diante de uma conjuntura política em que as forças de aniquilamento da diferença, como o fascismo, o racismo, o capacitismo, a misoginia e o bolsonarismo, continuam a se manifestar, freando e apagando as experiências vivas dos corpos dissidentes. O projeto apresenta pistas e questões políticas sobre as possibilidades de experiência na contemporaneidade e as políticas de exclusão social no campo das subjetividades.

FUNDAMENTADOS E DIREÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS

Este projeto de pesquisa se enreda em si mesmo, adotando a própria escrita como método de investigação e ferramenta na oficina do pensamento. Configura-se como uma revisão sistemática de literatura que convoca, no gesto da escrita, o movimento de reflexão e modificação. A questão de pesquisa central indaga sobre a função das escritas de corpos dissidentes que, imbuidas de uma perspectiva crítica em relação ao mundo, buscam ocupar o palco na cena pública. Neste contexto, o projeto estabelece o gesto da leitura e escrita como método de investigação, considerando que a dupla vetorização das forças do pensamento e da escrita pode expressar o que Benjamin denominou de "mais profundas modificações" (Benjamin, 1996, p. 149).

Walter Benjamin também sustenta a ideia de que o mau escritor é aquele que estabelece fronteiras na razão, tentando fazer da escrita um esforço para expressar o pensamento. Ele afirma que "o mau escritor é o escritor que sempre diz mais do que pensa", cultivando a clareza e a sensibilidade como qualidades superiores na escrita (Benjamin, 1996, p. 149). Benjamin oferece, possivelmente, uma pista metodológica valiosa, delineando uma espécie de "metaescrita" – um gesto de dobrar a escrita como movimento modificador, uma escrita da subjetivação e "pesquisação". Dessa forma, não se trata apenas de um método para expandir a razão por meio da escrita. Benjamin (1996) afirmou anteriormente:

A base de todas as questões de estilo é que não existe em absoluto esta: dizer o que se pensa. Pois o dizer não é somente uma expressão, e sim toda uma realização do pensar que o submete às mais profundas modificações, exatamente igual que o caminhar até uma meta não é somente a expressão de um desejo de alcançar senão sua realização, e expõe a este desejo as mais profundas modificações (p. 149).

Nesse contexto, o projeto de pesquisa assume a escrita como uma tecnologia imbricada que se configura como objeto e método simultaneamente, adotando uma abordagem aberta ao desvio e à modificação. A aposta reside na transformação tanto do pesquisador quanto da escrita após o processo de investigação e redação. Essa apropriação da escrita, em conjunto com a revisão sistemática de literatura, não apenas representa uma aposta teórico-metodológica, mas também uma abertura aos processos micropolíticos essenciais para as reflexões sobre o mundo e o eu.

Quanto ao campo de investigação deste primeiro plano de pesquisa, obras que se constituem como performances próprias, desempenhando ações dissidentes e críticas, são fundamentais. Michel Foucault, ao longo de sua trajetória intelectual, utilizou a escrita como instrumento de escavação do pensamento e de abertura do real por meio do bisturi da escrita (FOUCAULT, 2016). Deleuze (2013) fornece outras pistas que despertam a curiosidade sobre a instrumentalização da escrita por parte desse pensador, dissertando:

Foucault nunca encarou a escritura como um objetivo, como um fim. É exatamente isso que faz dele um grande escritor, que coloca no que escreve uma alegria cada vez maior, um riso cada vez mais evidente. Divina comédia das punições: é um direito elementar do leitor ficar fascinado até as gargalhadas diante de tantas invenções perversas, tantos discursos cínicos, tantos horrores minuciosos. Dos aparelhos antimasturbatórios para crianças até os mecanismos das prisões para adultos, toda uma cadeia se exibe, suscitando risos inesperados que a vergonha, o sofrimento ou a morte não conseguem calar. Os carrascos riem raramente, ou então o seu riso é diferente (Deleuze, 2013, p. 33).

Seguindo a perspectiva teórico-metodológica adotada neste projeto, pensadores como Michel Foucault, Gilles Deleuze e Conceição Evaristo, em consonância com suas obras, mostram-se promissores para a investigação sobre uma escrita crítica, que protesta e corta. A proposta é explorar, refletir e compartilhar ideias acerca de uma escrita-bisturi, e esses teóricos, juntamente com as contribuições da corrente da Filosofia da diferença, apontam para um caminho viável a ser trilhado.

Dessa maneira, visando utilizar o gesto da escrita como instrumento de luta na esfera pública, especialmente para a divulgação de experiências dissidentes no contexto brasileiro e em face das forças de aniquilamento da diferença, os pensadores Michel Foucault, Gilles Deleuze e Conceição Evaristo orientam a direção deste projeto. A entrevista intitulada "O Belo perigo" (2016), na qual Foucault explora sua intimidade com a escrita e o papel desta como um bisturi cortante; o ensaio "Literatura e vida" (1997), de Deleuze, que aborda as relações intrínsecas entre literatura e ontologia; e "Becos da memória" (2019), de Conceição Evaristo, uma obra de performance literária que a autora denomina de "escrevivência", são focos primordiais da revisão sistemática de literatura. Ao compreender o caráter crítico e dissidente intrínseco à constituição e à performance dessas obras literárias, elas se configuram como um campo de investigação central para este pré-projeto de pesquisa.

A professora e pesquisadora Beatriz Adura Martins (2017) suscitou uma indagação relevante acerca da narrativa dos corpos travestis na esfera pública brasileira e do papel político intrínseco nos atos de narrar as histórias dessa população. Sua obra, intitulada "Por uma escrita dos restos: o encontro entre a psicologia e os assassinatos de travestis" (Martins, 2017), apresenta uma significativa contribuição a esse debate, considerando os processos de extermínio dessa população tanto no plano material quanto no campo subjetivo e simbólico.

No ano de 2019, o Conselho Federal e Regionais de Psicologia publicou o livro "Tentativas de aniquilamento de subjetividades LGBTIs" (Conselho, 2019). A obra consiste em uma coletânea de breves narrativas de corpos LGBTQIA+. Além de funcionar como um trabalho de denúncia contra várias modalidades de violência direcionadas a esses corpos, o escrito coloca de maneira proeminente na esfera pública as histórias dessas pessoas, frequentemente marginalizadas e apagadas. A obra reforça a urgência de enfrentar as forças de apagamento e silenciamento da diferença, reafirmando o compromisso ético de uma psicologia brasileira crítica.

As contribuições da pesquisadora Beatriz Martins e a ação dos Conselhos de Psicologia delineiam uma posição política sobre a temática, que também é de relevância para este projeto. Este impasse/objeto constitui um campo em disputa. Nas obras mencionadas, observa-se uma perspectiva de Psicologia Social Crítica, que defende a pluralidade humana, os direitos humanos e a multiplicidade da experiência humana. Diante disso, parece que o campo crítico da literatura produzida até o momento vem destacando e, cada uma à sua maneira, combatendo o silenciamento, a exclusão social e o apagamento enfrentados pelas narrativas dissidentes.

LINGUAGEM E ESTÉTICA NA POLÍTICA BRASILEIRA: UMA ANÁLISE CRÍTICA DO PSICOPODER BOLSONARISTA

O filósofo francês Gilles Deleuze (1997), em seu texto "Literatura e vida", oferece pistas importantes sobre um ethos da escrita, enquanto função de transmissibilidade do vivível, como movimento de invenção e resistência política. A tese de Deleuze sobre a escrita e a literatura aponta para um plano da subjetividade não óbvio, um plano médico e cuidador no gesto escrito. Deleuze (1997, p. 13) fortalece essa ideia ao afirmar: "Por isso o escritor, enquanto tal, não é doente, mas antes médico, médico de si próprio e do mundo." Em um mundo cooptado por múltiplas forças, incluindo aquelas que promovem o silenciamento e o apagamento da diferença, a escrita, quando encontra as devidas potências, pode exercer um gesto de vida na cena pública. Além do simples ato de comunicação, a escrita pode se apresentar como um espaço possível de subjetivação de outras diferenças e como um movimento para se diferenciar. O próprio Deleuze não parece reduzir a tecnologia da escrita à função da comunicação; em vez disso, a apresenta como um movimento de performance da vida, produtora de vivível e força.

Escreve-se sempre para dar a vida, para liberar a vida aí onde ela está aprisionada, para traçar linhas de fuga. Para isso é preciso que a linguagem não seja um sistema homogêneo, mas um desequilíbrio, sempre heterogêneo: o estilo cava nelas diferenças de potenciais entre as quais alguma coisa pode passar, surgir um clarão que sai da própria linguagem, fazendo-nos ver e pensar o que permanecia na sombra em torno das palavras, entidades cuja existência mal suspeitávamos (Deleuze, 2013, p. 180).

Por outro lado, autores como o filósofo Henry Bugalho (2020) e o historiador Michel Gherman (2022), em suas respectivas obras, denunciam reiteradamente o atual estado político marcado pelo ódio e ataques às experiências e vidas minoritárias no Brasil. No trabalho intitulado "Minha especialidade é matar: como o bolsonarismo tomou conta do Brasil", Bugalho (2020) detalha a propagação do repúdio às experiências minoritárias na cena pública brasileira e o uso de uma tecnologia estética para disseminar a desumanização, legitimando o aniquilamento da diferença. Gherman (2022), por sua vez, argumenta que a crise institucional no Brasil é, acima de tudo, uma crise estética, situada no plano político da linguagem e dos afetos. Diante disso, surge a necessidade de uma tarefa democrática e ética, uma luta em prol da vida e da defesa da multiplicidade da experiência humana. Ambos os pesquisadores, de certa forma, alinham-se à perspectiva de Benjamin e sua hipótese sobre o declínio da experiência, destacando as tecnologias de ódio que resultam na perda da capacidade social de narrar outras histórias.

Tomar o bolsonarismo como um efeito de um projeto político de ódio no Brasil possibilita a compreensão de uma conjuntura política, tanto em termos macropolíticos quanto micropolíticos, resultante de uma tecnologia discursiva e, principalmente, estética. A disseminação do ressentimento e do desejo de aniquilação da diferença é evidência de um processo de contaminação política, onde se observa uma crise, acima de tudo, estética. A estética bolsonarista é marcada por uma paixão avassaladora e repúdio à diferença (Gherman, 2022). A jornalista Patrícia Campos Mello (2020) infelizmente vivenciou a força desta tecnologia estética de propagação de repúdio e ódio. Em seu livro "A MÁQUINA DO ÓDIO: notas de uma repórter sobre fake news e violência digital", Mello descreve:

O vídeo se chama “Jornalista da Folha.”.
Uma prostituta se aproxima de um carro e se debruça na janela do passageiro para abordar o motorista.
“Bora se divertir, gato?”, ela diz.
“Quanto é que você está cobrando?”, o motorista pergunta.
“Depende do que você quiser, meu amor.”
“Você faz serviço completo?”
“Experimenta, depois você me fala.”
“Tá ótimo… eu só preciso de um furo… um furinho pra mim tá bom.”
“Eu tenho três, meu amor, escolhe o que você quiser.”
“Sou eu que escolho, é, sua safada?”
“É… Fala aí, qual dos furos você vai querer, hein?”
“Eu quero um furo de reportagem, sua safada…Um furinho bem gostoso… Você só manipula notícia ou você também cria notícia falsa do zero? Uma outra coisa que eu também estou precisando é de uma fonte falsa, aquela que inventa história mesmo e se for preciso ela até vai depor se for intimada.”
A prostituta faz cara de ofendida.
“Como é que é?”
“Furo de reportagem, fake news, quanto é que você está cobrando?”
“Eu não faço esse tipo de coisa.”
“Você não é jornalista da Folha?”
A prostituta fica ultrajada.
“Do que é que você me chamou?”
“Jornalista da Folha.”
“Olha aqui, eu sou prostituta, seu babaca. Jornalista da Folha? Era só o que me faltava. O meu trabalho é um trabalho digno, eu não destruo a vida das pessoas! Serviço completo, né? Agora eu estou entendendo, serviço completo. Eu faço, sim, serviço completo, mas isso eu não faço, porque eu tenho dignidade, seu idiota! Sai daqui!” (Mello, 2020, p. 75 - 76).

O ambiente virtual tornou-se um espaço fundamental para a disseminação das ideias da extrema direita e, simultaneamente, para a propagação de afetos em uma lógica virtual. A luta, acima de tudo, visa a "alma do Brasil" (Wolf, 2018). A transcrição feita por Patrícia Campos Mello destaca o claro uso da linguagem no processo de desumanização que a jornalista sofreu. É essa tecnologia discursiva/estética que autoriza sua aniquilação em planos físicos e virtuais, imersos no plano imanente dos afetos. A racionalidade patriarcal presente na qualificação da jornalista, rotulando-a como alguém que "uma prostituta se envergonharia", denuncia a misoginia e as lógicas de opressão a todo e qualquer ato sexual feminino. Essa racionalidade misógina e opressora é performatizada em uma produção audiovisual, sendo a tecnologia estética bolsonarista o epicentro dessa produção, arrebatando milhões de corações brasileiros. Emerge, assim, uma crise estética, onde a arte é utilizada de maneira inadequada, propagando ódio. O bolsonarismo tornou-se uma matriz formal na indústria cultural brasileira (Adorno, 2020). Para a extrema direita no Brasil, a internet representa o alinhamento perfeito entre o virtual e o estético, um plano de contágio facilmente molecularizado em uma terra sem lei ou garantias e direitos. Portanto, no âmbito da indústria cultural, o processo de massificação e aniquilamento de subjetividades ocorre de forma autorizada. Mello (2020) prossegue com seu relato:

Em fevereiro de 2020, várias imagens ofensivas como esse vídeo começaram a circular nas redes sociais. Em uma delas, uma mulher aparece nua, de pernas abertas, em cima de uma pilha de notas de dólar. Em outra, o rosto dessa mesma mulher aparece com a legenda: “Folha da Puta — tudo por um furo, você quer o meu? Patrícia, Prostituta da Folha de S.Paulo — troco sexo por informações sobre Bolsonaro”. E tem uma em que essa mulher — sempre a mesma — aparece com a frase: “Ofereço o cuzinho em troca de informação sobre o governo Bozo” (Mello, 2020, p. 78).

A utilização da linguagem e estética emerge como ferramentas poderosas empregadas pela extrema direita no cenário político brasileiro. Marcia Tiburi (2019) caracteriza esse emprego como Psicopoder, um cálculo estratégico para angariar capital político e articular paixões. Nesse contexto, o uso e abuso do Psicopoder no Brasil torna-se uma questão crucial para a Psicologia Social Crítica, destacando a estilística bolsonarista além da figura de Jair Bolsonaro. A compreensão de Bolsonaro como metáfora de uma força política distinta destaca um problema urgente na subjetividade contemporânea brasileira, abordando dimensões políticas, éticas e estéticas, cuja propagação se manifesta como elemento direto nos processos de exclusão social e aniquilamento dos corpos dissidentes.

Diante desse panorama, surge o desafio de apresentar outras narrativas na esfera pública, especialmente as experiências minoritárias no contexto político brasileiro. Conceição Evaristo, Walter Benjamin e Gilles Deleuze fornecem pistas relevantes sobre as múltiplas funções da escrita e literatura, permitindo explorar alternativas para contornar o declínio da experiência e sua transmissibilidade. Um problema central neste projeto de pesquisa é compreender o papel da literatura diante das estratégias de aniquilação da diferença, questionando se a escrita pode ser uma ferramenta de guerra em outro plano de disputa democrática, capacitando outras subjetividades a ocuparem espaço na cena pública.

Este projeto de pesquisa representa uma continuidade de mais de cinco anos de investigação na Universidade Federal Fluminense (UFF), onde a participação em grupos de pesquisa no departamento de Psicologia costurou relações entre genealogia moderna, democracia, escrita, ética e Psicologia Social Crítica. A atuação em grupos como "Da Subjetividade à Coragem: Modulações da Verdade nos Últimos Cursos de Foucault" e "Políticas e Poéticas da Transmissibilidade em Psicologia Social" foi fundamental para despertar inquietações sobre a temática da democracia e a função da enunciação na cena política. Essas experiências culminaram na produção do trabalho de conclusão de curso, transformado no livro "Por Uma Escrita Imunda: As Sujeiras e as (In)pregnâncias da Vida no Gesto Literário" (Ramos, 2023).

O projeto reflete uma força de resistência diante das tendências de apagamento e exclusão de corpos dissidentes na conjuntura política brasileira. Alinhado à linha de pesquisa "Subjetividade, Política e Exclusão Social" no Programa de Pós-graduação, reafirma um compromisso crítico e ético com a produção de conhecimento em Psicologia. A abordagem transdisciplinar, dialogando com os planos da clínica, arte e política, busca entender as interfaces entre a escrita dissidente e a inserção de narrativas outras na cena pública, considerando a disputa em um Brasil cooptado pelas produções de aniquilamento da diferença.

Por fim, diante da ascensão do bolsonarismo, este projeto reconfigura as urgências no território brasileiro, alinhando-se com disciplinas comprometidas com os direitos humanos e a democracia. A perspectiva transdisciplinar emerge como uma abordagem crucial, considerando o papel histórico e político do gesto literário na contemporaneidade, enfatizando a importância de analisar e resistir à tecnologia da escrita como instrumento político na cena brasileira.

CONSIDERAÇÕES FINAIS SOBRE O PROJETO

Este projeto visa abordar os desafios impostos pelas dinâmicas de poder na cena pública brasileira, especialmente no que se refere às condições que influenciam a transmissibilidade de narrativas específicas e a partilha de experiências dissidentes. Sua proposta central é envolver-se na reflexão sobre a escrita dissidente como instrumento de disputa, explorando um plano democrático das modalidades de subjetivação e transmissibilidade que a literatura pode potencializar. Nesse contexto, a escrita não é apenas vista como um processo de subjetivação do corpo do escritor, mas também como uma máquina de guerra, um meio de disputar na esfera pública, dando visibilidade a experiências dissidentes e permitindo o surgimento de outras subjetividades.

Assim, o projeto busca se dedicar ao movimento da escrita como uma ferramenta de enfrentamento contra o apagamento, silenciamento e aniquilamento das experiências dissidentes na contemporaneidade. Para alcançar esse objetivo, propõe-se realizar uma revisão sistemática da literatura, utilizando as contribuições de intelectuais como Conceição Evaristo, Michel Foucault e Gilles Deleuze. Esses autores são considerados cruciais para a reflexão deste pré-projeto, pois abordam suas escritas como questões políticas e de produção de subjetividade, alinhadas a uma concepção de um devir da escrita e uma escrita de resistência.

Em última análise, este projeto busca incorporar essas perspectivas teóricas não apenas para refletir sobre o papel político de uma escrita crítica na divulgação de experiências dissidentes, mas também para realizar um exercício de pensamento em uma psicologia social crítica, comprometida com a manifestação da multiplicidade humana.

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1 Psicólogo registrado sob o CRP 05/72529, atualmente dedicado ao mestrado em Psicologia, com ênfase na linha de pesquisa Subjetividade, Política e Exclusão Social, pela Universidade Federal Fluminense. Graduou-se em Psicologia pela mesma instituição em 2022 e está em processo de especialização nas áreas de Ciências Sociais e Ciências Políticas na Faculdade Focus. Desempenha papel ativo como pesquisador na Universidade Federal Fluminense (UFF) e no Centro Latino-Americano de Estudos em Cultura (CLAEC). Como extensionista, contribui para projetos na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e na própria UFF. Paralelamente, assume a função de Tutor na Fundação de Empreendimentos Científicos e Tecnológicos (FINATEC).Experiência profissional abrange a Psicologia Social e Saúde Mental, destacando-se em temas como ética, política, resistência, micropolítica e inclusão. O profissional está comprometido com a pesquisa e o desenvolvimento acadêmico, buscando contribuir significativamente para o campo da Psicologia.