SABERES DOCENTES E PRÁTICAS TRANSFORMADORAS NA FORMAÇÃO DE EDUCADORES: PERSPECTIVAS E CAMINHOS

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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.17263914


Audiene Araújo da Silva1


RESUMO
Este artigo científico surgiu do anseio de olhar com mais cuidado para o que realmente sustenta a prática docente: os saberes que a gente constrói no dia a dia, entre erros, descobertas, trocas e afetos. Muito além do que se aprende nos livros ou nas disciplinas da licenciatura, há um saber que se forma no chão da escola, no corpo-a-corpo com os alunos, nas dúvidas que nos atravessam e nas pequenas decisões que tomamos em sala. Neste artigo, compartilho reflexões sobre como esses saberes que são muitos, diversos e, às vezes, até silenciosos — se conectam com práticas pedagógicas que têm potencial real de transformação. Falo da formação docente não como algo pronto ou padronizado, mas como um caminho cheio de encontros, revisões e recomeços. Acredito numa educação que escuta, que acolhe, que questiona e que transforma e num educador que se forma justamente nessa travessia.
Palavras-chave: saberes docentes, formação de professores, prática pedagógica, transformação, experiência.

ABSTRACT
This article is the result of a reflective journey into what truly sustains teaching practice: the knowledge built through everyday experiences, uncertainties, exchanges, and affections. Beyond academic theories or formal training, there is a kind of knowing that emerges from the lived realities of the classroom from the challenges, from the silences, and from the relationships that shape each educational encounter. Here, I explore how these diverse and often overlooked forms of knowledge connect with transformative pedagogical practices. I approach teacher education not as a fixed or standardized process, but as a dynamic and ongoing path—made of revisions, discoveries, and meaningful human interactions. I believe in an education that listens, embraces, provokes, and transformsand in educators who are shaped precisely through these lived and felt experiences.
Keywords: teacher knowledge, teacher education, pedagogical practice, educational transformation, experience.

1. INTRODUÇÃO

A educação brasileira, em seu contexto mais amplo, reflete um campo de constantes disputas e reconfigurações. As estruturas que definem o processo educativo no país não são estáticas e implicam em desafios contínuos que impactam diretamente as formas de ensino e aprendizagem nas escolas. A formação docente, em particular, tem sido uma das áreas mais debatidas, sobretudo quando se observa que o modelo tradicional de formação tem se mostrado incapaz de oferecer respostas satisfatórias aos desafios impostos pela sociedade contemporânea. Para além da mera transmissão de conteúdos, a formação de educadores deveria ser compreendida como um processo contínuo de reflexão e ação, integrando teoria e prática e considerando a realidade diversificada e multifacetada das escolas brasileiras. No entanto, ao longo dos anos, essa formação foi muitas vezes reduzida a uma adequação técnica a currículos e métodos preestabelecidos, distantes das reais necessidades de transformação social e educacional.

Nesse cenário, delimita-se como indagação de pesquisa: como a formação docente pode ser reformulada para integrar teoria e prática, de modo que os saberes docentes se tornem instrumentos de transformação social e promotores de uma educação crítica e inclusiva? Daqui decorre a pergunta geral: de que maneira a formação docente pode ser reestruturada para articular saberes teóricos e práticos, preparando professores capazes de atuar de forma reflexiva, crítica e transformadora? Essa questão central se desdobra em perguntas específicas: até que ponto os programas de formação docente no Brasil têm sido eficazes em preparar os educadores para os desafios reais da sala de aula? Como os saberes docentes são construídos e aplicados ao longo da trajetória profissional? Em que medida as políticas públicas de formação contribuem ou limitam esse processo? Quais práticas pedagógicas demonstram a integração entre teoria e prática e em que condições elas se tornam transformadoras?

O objetivo geral deste estudo é analisar de que forma a formação docente pode ser reestruturada para integrar saberes teóricos e práticos, de modo que os professores estejam preparados para atuar de forma reflexiva e transformadora no contexto educacional brasileiro. Os objetivos específicos consistem em compreender como os saberes docentes são constituídos e aplicados na prática pedagógica; investigar de que modo a formação inicial e continuada respondem aos desafios educacionais contemporâneos; discutir o papel das práticas pedagógicas transformadoras na construção de uma educação inclusiva e democrática; examinar as implicações das políticas públicas na valorização e no desenvolvimento profissional dos educadores; e propor caminhos que apontem para uma formação docente crítica, emancipadora e capaz de enfrentar as desigualdades estruturais do país.

A justificativa desta pesquisa se apoia na centralidade que o professor ocupa no processo de transformação educacional. O educador é o principal agente de mudança dentro da escola e, em um país marcado por desigualdades sociais e educacionais, a formação docente não pode ser reduzida a uma prática mecânica, nem a exigências burocráticas. É preciso compreendê-la como um processo contínuo e reflexivo que permita ao professor questionar as estruturas que limitam a aprendizagem e a construção do conhecimento. Assim, a investigação se mostra relevante tanto no âmbito social, ao contribuir para o fortalecimento da educação inclusiva e democrática, quanto no acadêmico, ao ampliar os debates sobre saberes docentes, formação e práticas pedagógicas.

A hipótese que norteia o estudo sustenta que os saberes docentes, quando compreendidos em sua dimensão teórico-prática, experiencial e crítica, podem constituir-se como ferramentas de transformação social. Por outro lado, quando reduzidos a um viés técnico e instrumental, eles reforçam a reprodução de desigualdades e limitam o papel do educador a mero executor de currículos preestabelecidos.

A metodologia adotada é de caráter bibliográfico e qualitativo, fundamentada na análise crítica de produções acadêmicas nacionais e internacionais que abordam os saberes docentes, a formação inicial e continuada, bem como as práticas pedagógicas transformadoras. O recorte temporal privilegiará estudos recentes que tratam das demandas da formação docente no contexto contemporâneo, com ênfase em referenciais críticos e em propostas que tensionam os limites do modelo tradicional de formação.

2. SABERES DOCENTES: FUNDAMENTOS E DIMENSÕES

A questão dos saberes docentes é um dos pilares centrais da pedagogia, sendo essencial para a construção de uma prática educativa que seja ao mesmo tempo efetiva e transformadora. Para compreender os saberes docentes, é necessário considerar que a docência não se limita a um simples repasse de conteúdo; ela é uma prática permeada por diversas dimensões do conhecimento, que incluem não só os aspectos cognitivos, mas também os sociais, culturais e históricos. Essa complexidade exige uma análise profunda da formação docente, pois é ela que oferece ao educador as ferramentas para refletir criticamente sobre sua prática e desenvolver estratégias pedagógicas que considerem as realidades específicas de cada grupo de alunos.

Nesse sentido, o saber docente não é apenas um acúmulo de conteúdos acadêmicos, mas uma construção contínua e dinâmica, feita ao longo da trajetória profissional do educador. Para Moll (2023), os saberes docentes podem ser classificados em três categorias fundamentais: saberes acadêmicos, saberes da experiência e saberes do ofício. Esses três saberes se entrelaçam e se complementam, configurando-se como a base para uma prática pedagógica que seja não só eficiente, mas também reflexiva e transformadora.

A formação de professores, assim, não pode ser vista como um processo estático ou linear. Ela deve ser entendida como uma trajetória de crescimento pessoal e profissional, na qual o educador é constantemente desafiado a questionar suas próprias práticas e a adaptar seu conhecimento às demandas de um contexto educacional em constante mudança. Nesse processo, os saberes dos educadores se formam a partir de uma série de interações com os alunos, com os colegas de profissão e com o próprio currículo escolar, além de serem influenciados pelas políticas educacionais, pelas questões sociais e pelas dimensões culturais, especialmente quando tratamos de aspectos de identidade étnico-racial.

É nesse contexto que a linguagem se revela como um elemento estruturante na constituição dos saberes docentes, especialmente quando se pensa na construção da identidade do sujeito dentro do processo educacional. A linguagem não é apenas um meio de comunicação, mas um instrumento pedagógico e formador de identidades sociais, que deve ser considerado central para os professores no processo de ensino-aprendizagem. Ela exerce um papel crucial, não só como vetor de transmissão de conhecimento, mas também como formadora de subjetividades e de identidades, especialmente em um contexto onde questões étnico-raciais estão cada vez mais em discussão. A forma como o educador utiliza a linguagem em sua prática pedagógica tem o poder de reforçar ou desafiar as dinâmicas de poder que estruturam a sociedade, sendo capaz de influenciar diretamente a construção da identidade dos alunos, bem como a sua percepção de si mesmos e dos outros.

Este tópico tem como objetivo discutir a linguagem enquanto elemento estruturante da formação do sujeito e das identidades sociais, com ênfase na constituição da identidade étnico-racial.

2.1. Conceituação dos Saberes Docentes

A conceituação dos saberes docentes exige uma abordagem crítica e multidimensional, que vai além do simples entendimento de "conhecimento" ou "habilidade" que um professor deve possuir. Para que a prática pedagógica seja verdadeiramente transformadora e emancipadora, os saberes docentes não podem ser reduzidos a um conjunto fechado de técnicas e competências técnicas a serem reproduzidas. Como afirma Moll (2023), os saberes dos professores não se limitam ao conteúdo acadêmico que transmitem aos alunos, mas envolvem uma rede complexa de experiências, reflexões e práticas que se formam e se transformam ao longo da carreira docente. O educador, nesse sentido, é um sujeito que não apenas conhece, mas que constantemente reconstrói e adapta seu conhecimento à medida que interage com os alunos, com as práticas pedagógicas e com as condições do contexto escolar.

De acordo com Pimenta e Lima (2021), os saberes docentes devem ser compreendidos como um campo dinâmico, que integra três dimensões essenciais: os saberes acadêmicos, os saberes da experiência e os saberes do ofício. Os saberes acadêmicos referem-se ao conhecimento técnico e teórico das disciplinas que o educador ensina, ou seja, são os saberes conceituais e científicos que formam a base do conteúdo a ser transmitido aos alunos. No entanto, essa concepção de saber docente é limitada, pois ela não leva em consideração as experiências cotidianas do educador, as interações com os alunos e os desafios imprevistos que surgem em sala de aula.

Os saberes da experiência, por sua vez, são formados através do contato direto com a prática educacional, e são esses saberes que permitem ao professor lidar com as complexidades da sala de aula, como a gestão de comportamentos, a adaptação do conteúdo ao ritmo dos alunos e a resolução de conflitos. Já os saberes do ofício incluem as estratégias pedagógicas, as técnicas de ensino e as habilidades de gestão da sala de aula, que são fundamentais para a organização do ambiente educacional e para o sucesso das atividades de ensino.

Entretanto, esse modelo tripartido precisa ser expansivo, pois não contempla as dimensões culturais, sociais e raciais que permeiam o ambiente escolar. Em um país como o Brasil, marcado pela diversidade étnico-racial, os saberes docentes precisam ser contextualizados dentro dessas questões e levar em consideração os saberes culturais dos alunos e da comunidade escolar. A linguagem aqui se apresenta como um dos principais instrumentos de mediação do saber docente, pois é através dela que os professores não apenas transmitem informações, mas também constroem identidades sociais, identidades de gênero e identidades étnico-raciais dentro do ambiente educacional. Como discute Ferreira (2022), a identidade étnico-racial dos alunos precisa ser reconhecida e valorizada na prática pedagógica, e os professores têm o papel crucial de promover a inclusão e a valorização das diferenças por meio de suas escolhas pedagógicas e discursivas.

A linguagem, então, não é apenas um veículo de transmissão de conteúdos, mas uma ferramenta de construção de subjetividades. A maneira como o educador se comunica com os alunos, a escolha de palavras, os exemplos que utiliza, os textos que escolhe, tudo isso tem um impacto direto na formação identitária dos estudantes (Ferreira, 2022). A linguagem, portanto, possui um poder de produção de sentido que deve ser reconhecido e utilizado de forma crítica pelo professor. Os professores, ao se depararem com questões de raça e identidade na sala de aula, precisam ser conscientes de que suas práticas linguísticas e pedagógicas podem reforçar ou combater estereótipos, preconceitos e discriminação. A construção de uma identidade étnico-racial positiva para os alunos requer, portanto, uma formação docente que esteja atenta a essas dinâmicas e que prepare os educadores para agirem de forma consciente, promovendo uma educação antirracista.

Ainda dentro dessa perspectiva crítica, Gatti (2021) sugere que os saberes docentes devem ser vistos como uma prática reflexiva e transformadora, onde o educador, ao invés de se ver como um simples transmissor de conteúdos, deve se posicionar como um mediador de processos de aprendizagem, um agente de mudança social. A formação de professores, nesse contexto, deve, então, ser entendida não como um processo técnico de transmissão de conteúdos, mas como um processo político e social, onde o professor deve ser preparado para questionar e desconstruir as relações de poder e as desigualdades presentes na sociedade. A reflexão sobre as práticas pedagógicas e sobre a posição do educador na sociedade é um elemento essencial para que a docência se torne um verdadeiro instrumento de transformação social.

Além disso, a identidade de um professor não é apenas uma construção individual, mas uma identidade coletiva, que é formada dentro de um contexto social e cultural específico. Em um país como o Brasil, onde as relações raciais e sociais são extremamente complexas, a formação docente deve ser encarada como uma prática que leva em consideração essas questões de diversidade e inclusão. A reflexão sobre o racismo estrutural, sobre as desigualdades de classe e sobre as questões de gênero precisa ser central na formação dos professores, pois esses são os desafios que eles enfrentam em sala de aula. A formação docente, assim, não deve apenas ensinar técnicas pedagógicas, mas deve ser um espaço de conscientização política e de formação ética, onde o educador se torna capaz de questionar os valores estabelecidos e de promover mudanças significativas no sistema educacional.

Os saberes docentes, então, se tornam, de maneira inevitável, também um campo de resistência, onde o educador, ao se apropriar dos saberes acadêmicos, da experiência e do ofício, transforma-se em um agente ativo de contestação ao status quo educacional e social. O professor não deve ser apenas um transmissor de conteúdos, mas um mediador crítico e reflexivo, capaz de gerar mudanças significativas na sociedade e na educação.

2.2. Saberes Experienciais, Disciplinares e Pedagógicos

A formação docente, quando vista sob a ótica dos saberes docentes, requer uma compreensão de que esses saberes não são compostos unicamente por conhecimentos técnicos ou acadêmicos, mas por um conjunto de práticas e experiências que se desdobram ao longo da trajetória do educador. Para além da simples transmissão de conteúdo, a prática pedagógica envolve o processo de construção de saberes que são tanto técnicos quanto humanos, nos quais o professor é continuamente formado e transformado. Dessa maneira, é possível afirmar que os saberes experienciais são cruciais para a prática pedagógica, pois são formados a partir da vivência cotidiana do professor, com seus alunos e com os desafios diários da sala de aula.

Tardif destaca que a formação docente envolve a integração de diversos saberes, entre eles os saberes disciplinares, pedagógicos e experiênciais. Esses últimos, como Moll (2023) argumenta, são fundamentais, pois são construídos pelo educador ao longo do tempo, por meio da interação com os alunos, da resolução de problemas diários e das situações concretas que surgem no ambiente educacional. Segundo Moll, o saber docente não pode ser apenas acadêmico ou técnico, mas precisa ser profundamente enraizado na experiência prática. É justamente essa vivência que permite ao educador adaptar e inovar suas práticas pedagógicas, respondendo de maneira mais eficaz às necessidades e desafios da sala de aula. A experiência prática permite ao educador aprender a avaliar de forma justa, a planejar de maneira organizada, e a lidar com a diversidade dos alunos, que apresentam ritmos de aprendizagem distintos.

O relato de experiência de Beque Ramos e Barin (2020) sobre a formação docente no contexto da Educação Profissional e Tecnológica corrobora com essa perspectiva. As autoras afirmam que:

[...] é na prática que o professor aprende a avaliar de forma justa, planejar de maneira organizada e de forma que contemple a aprendizagem dos seus alunos, pois estes são um público muito diverso, como citado na referência acima, uns aprendem mais rápido, outros nem tanto, portanto, o professor precisa da experiência para contemplar a todos (Beque Ramos; Barin, 2020, p. 3).

Esse trecho ilustra a importância da experiência como fator central na formação do educador. A prática permite que o docente desenvolva não apenas suas habilidades técnicas, mas também sua capacidade de adaptar suas estratégias e de lidar com as demandas dinâmicas do processo educativo.

Os saberes disciplinares, por sua vez, referem-se ao conhecimento técnico e científico das áreas específicas de ensino, como Matemática, Ciências, História, entre outras. Embora imprescindíveis, esses saberes não são suficientes para uma formação docente completa, pois, como Pimenta e Lima (2021) apontam, a prática pedagógica exige mais do que o domínio do conteúdo acadêmico. Ela demanda uma capacidade de articular teoria e prática, de adaptar o saber à realidade concreta dos alunos, e de gerir os desafios cotidianos da sala de aula. No entanto, a aplicação desses saberes disciplinares ocorre em um contexto específico, onde a experiência docente se torna uma das ferramentas mais valiosas. O saber-fazer, que é o que constitui os saberes experienciais, reflete o “saber-ser” do professor, ou seja, a capacidade de se adaptar, de refletir sobre sua prática e de agir de acordo com a realidade dos seus alunos, sem que isso se limite a uma simples aplicação de um conteúdo.

A prática pedagógica, conforme discutido por Freire, é centrada na interação entre educador e educando, levando em consideração as experiências de vida e os saberes prévios dos alunos. Esse conceito tem sido abordado por autores contemporâneos, como Silva e Almeida (2023), que destacam a importância de uma educação que reconheça a diversidade de experiências dos alunos, adaptando o ensino às suas necessidades específicas.

Assim, ao refletir sobre os saberes docentes, não podemos esquecer que os saberes experienciais são formados e ampliados a partir da interação com a realidade escolar. Beque Ramos e Barin (2020) destacam que, embora a formação acadêmica seja importante, ela por si só não é suficiente para formar um educador eficaz. O que realmente transforma a prática pedagógica é a experiência vivida, que permite ao professor desenvolver um olhar mais aguçado para as necessidades de seus alunos e adaptar seu trabalho a essas exigências. Como afirmam Beque Ramos e Barin (2020):

[...] o saber associado à experiência no decorrer do processo de formação inicial é importante, mas não suficiente, assim a prática aqui relatada contribuiu para a profissionalização enquanto futura professora da Educação Profissional, modalidade essa que preconiza professores com práticas inovadoras que atendam a necessidade da educação em seu atual contexto” (p. 3).

Portanto, os saberes disciplinares, embora fundamentais, não podem ser dissociados dos saberes experienciais, que são essenciais para a construção de uma prática pedagógica efetiva e transformadora. A formação docente deve ser vista como um processo contínuo, onde os saberes experiênciais e disciplinares se entrelaçam e se alimentam mutuamente, criando um ambiente de aprendizagem onde teoria e prática não se contradizem, mas se complementam.

3. FORMAÇÃO DOCENTE: ENTRE TEORIA E PRÁTICA

Ao pensarmos os conceitos de letramento, com destaque para as abordagens ideológicas e críticas que deslocam o foco da mera codificação da linguagem para sua função social. O conceito de letramento, que inicialmente se limitava à capacidade de codificação e decodificação de símbolos escritos, foi progressivamente expandido e transformado, especialmente nas abordagens mais recentes que adotam uma visão sociocultural da linguagem.

O letramento, então, deixa de ser uma habilidade puramente técnica para se tornar uma ferramenta de inclusão social e transformação. Isso tem implicações diretas na formação docente, pois implica que os professores não devem apenas ensinar a decodificação de palavras, mas também engajar os alunos em práticas de leitura e escrita que permitam a compreensão crítica do mundo em que vivem. Para isso, é necessário que a formação docente seja orientada para o desenvolvimento de competências pedagógicas que integrem a teoria crítica e a prática reflexiva, permitindo aos educadores não só ensinar, mas também questionar e transformar as condições sociais por meio da educação.

De acordo com Street (2020), o conceito de letramento não deve ser visto como uma habilidade isolada, mas como um conjunto de práticas que são culturalmente determinadas e que transmitem valores e ideologias. O autor defende que o letramento deve ser entendido como um fenômeno social e político, uma vez que as práticas de leitura e escrita estão intimamente ligadas ao poder e à distribuição de recursos sociais e culturais. A escola, nesse contexto, não é apenas um local de ensino da língua, mas também um espaço de disputa em que diferentes formas de letramento (e, por conseguinte, de acesso ao poder e ao conhecimento) se confrontam. Street (2020) afirma:

O letramento é, portanto, um fenômeno socialmente localizado, que reflete estruturas de poder e acesso. Ao ensinar letramento, os educadores estão, implicitamente, inserindo os alunos em práticas sociais que não só envolvem a codificação de palavras, mas a integração dos indivíduos em uma sociedade que distribui recursos de forma desigual. O letramento, então, é uma forma de mediador cultural que vai além da técnica, funcionando como um instrumento de inclusão e de exclusão no processo educacional (Street, 2020, p. 47).

Essas considerações têm uma relevância direta para a formação docente, uma vez que o professor deve ser capaz de reconhecer e questionar as dinâmicas de poder presentes nas práticas de letramento, desenvolvendo uma prática pedagógica crítica e inclusiva que promova uma educação mais igualitária e democrática. Para isso, é necessário que a formação docente inclua uma compreensão mais profunda das questões sociais, culturais e políticas envolvidas no letramento, preparando os educadores para desafiar as normas sociais que perpetuam desigualdades no acesso ao conhecimento.

Além disso, o conceito de letramento crítico propõe que o letramento deve ir além da decodificação de textos, envolvendo a análise crítica de textos, contextos e discursos. Cervetti et al. (2021) ampliam essa perspectiva ao afirmar que o letramento deve ser compreendido como uma prática que envolve o engajamento ativo do aluno com a leitura e a escrita, no sentido de interpretar e transformar os textos de forma crítica. Para Cervetti et al. (2021), um ensino eficaz de letramento deve promover a reflexão crítica sobre o conteúdo, permitindo que os alunos desenvolvam não apenas a habilidade de entender o que leem, mas também a capacidade de questionar e intervir no mundo por meio da leitura e escrita. Eles argumentam:

O letramento crítico não se limita a ensinar a ler e escrever, mas envolve o engajamento profundo com os textos e os contextos em que esses textos são produzidos. Os educadores devem ensinar os alunos a refletir sobre as estruturas de poder e as intencionalidades presentes nas produções textuais, ajudando-os a entender o papel da leitura e da escrita na construção de suas próprias identidades e na transformação do mundo ao seu redor (Cervetti et al., 2021, p. 61).

Essa abordagem do letramento implica que a formação inicial dos professores não deva se restringir ao ensino de estratégias de decodificação ou compreensão literal de textos, mas deve incluir uma formação que os preparasse para engajar os alunos em uma leitura crítica da realidade, estimulando-os a analisar e questionar os textos, os discursos e as estruturas sociais e culturais que os moldam.

O letramento, portanto, deve ser uma prática intencional e reflexiva, com o objetivo de formar sujeitos críticos que não apenas reproduzam o conhecimento, mas que também sejam capazes de questioná-lo e de transformá-lo. Essa perspectiva é sustentada por Alvarez (2020), que coloca o letramento como uma ferramenta de emancipação social. Para Alvarez (2020), a prática de letramento deve ser vista como um meio de empoderamento dos alunos, proporcionando-lhes a capacidade de interagir com o mundo de maneira crítica e reflexiva, com o intuito de desafiar as desigualdades e construir uma sociedade mais justa. Ele afirma:

O letramento crítico se apresenta não apenas como uma habilidade técnica, mas como um instrumento de emancipação. Através do letramento, os alunos podem desafiar as narrativas dominantes e construir novos significados, tornando-se sujeitos de sua própria aprendizagem e agentes de transformação social. Portanto, o ensino do letramento deve envolver a reflexão constante sobre os textos, as intencionalidades dos discursos e as condições sociais que moldam o conteúdo das leituras (Alvarez, 2020, p. 82).

Essas abordagens ideológicas e críticas do letramento são essenciais para a formação docente, pois exigem que o educador não só domine as técnicas de leitura e escrita, mas também seja capaz de desafiar as estruturas de poder que permeiam a educação. Para formar professores críticos, capazes de promover uma educação transformadora, é necessário que sua formação inicial inclua uma compreensão profunda da função social da linguagem e do letramento, para que possam, por meio da leitura crítica e da escrita reflexiva, proporcionar aos alunos as ferramentas necessárias para compreender e transformar o mundo.

3.1. Formação Inicial e a Profissionalização Docente

A formação inicial docente representa a base sobre a qual os professores irão construir a sua identidade profissional ao longo de toda a carreira. Ela não deve ser compreendida como uma etapa isolada ou de preparação meramente técnica, mas como o início de um processo de desenvolvimento contínuo e dinâmico. O educador não se profissionaliza apenas na formação inicial, mas ao longo de sua trajetória prática, em um movimento constante de reflexão e adaptação. O verdadeiro processo de profissionalização docente não acontece simplesmente ao aprender uma série de técnicas, mas em como o educador consegue integrar seus saberes e refletir sobre suas práticas dentro da realidade educacional em que atua.

Nesse contexto, Gatti (2021) defende que a profissionalização docente vai além da simples aplicação de técnicas ou conteúdos. Para ela, a formação inicial é apenas o ponto de partida, pois a verdadeira profissionalização se constrói a partir da experiência prática e da reflexão contínua sobre as práticas pedagógicas. O educador se profissionaliza ao integrar os saberes teóricos adquiridos na formação inicial com as realidades da sala de aula e os desafios cotidianos que surgem no ambiente educacional. Gatti (2021) afirma:

A formação inicial é fundamental, mas a verdadeira profissionalização docente ocorre quando o educador consegue integrar os conhecimentos acadêmicos e pedagógicos à prática cotidiana da sala de aula. Esse processo contínuo de adaptação às necessidades dos alunos e de reflexão constante sobre a prática pedagógica é o que garante a eficácia e a transformação da educação (Gatti, 2021, p. 120).

Dessa maneira, a formação inicial do educador não deve ser vista como um ponto final, mas como o início de um processo contínuo de desenvolvimento profissional. O educador se profissionaliza à medida que reflete sobre sua prática e se adapta às novas exigências educacionais e sociais, ajustando sua metodologia conforme o contexto e as necessidades dos alunos. O verdadeiro processo de profissionalização exige que o educador tenha a capacidade de refletir criticamente sobre suas escolhas pedagógicas, ajustar suas abordagens e se manter atualizado com as demandas sociais e culturais da educação.

Essa reflexão constante sobre a prática pedagógica é fundamental para a formação de um educador crítico, capaz de questionar as estruturas educacionais estabelecidas e, ao mesmo tempo, transformar suas abordagens de ensino. Gatti (2021) reforça que a formação inicial deve ser entendida como o início de um processo contínuo, que vai além da transmissão de técnicas e conteúdos. Ela deve permitir que o educador desenvolva uma prática reflexiva e transformadora, com base no entendimento das condições sociais e das necessidades dos alunos. Para Gatti (2021), a profissionalização se dá quando o educador é capaz de integrar sua prática pedagógica com as realidades concretas da sala de aula e da sociedade em que vive.

A formação inicial deve, portanto, proporcionar ao educador as bases necessárias para que ele possa construir, ao longo de sua carreira, uma prática pedagógica inovadora, que não apenas respeite as diferenças, mas que seja capaz de transformá-las em oportunidades de aprendizagem. O professor não se limita a aplicar métodos e técnicas de ensino, mas se torna um agente de mudança, capaz de adaptar suas práticas conforme as novas demandas e desafios que surgem ao longo de sua trajetória profissional.

Shulman (2020) também defende que a formação docente não pode se restringir ao simples repasse de conteúdos acadêmicos. O professor deve ser capacitado para lidar com as diferentes realidades da sala de aula e para integrar o conhecimento disciplinar com as metodologias de ensino, de modo a construir uma prática pedagógica que seja ao mesmo tempo eficaz e adaptável. Para Shulman, a verdadeira profissionalização docente exige que o educador seja autônomo em sua prática, capaz de avaliar e ajustar suas metodologias com base na avaliação constante do impacto de suas ações pedagógicas.

Em um cenário educacional em constante transformação, Imbernón (2022) argumenta que a formação inicial não é suficiente para que o educador se torne um profissional capacitado e adaptado à diversidade de demandas da educação contemporânea. A profissionalização docente, como afirma Imbernón, é um processo contínuo de aprendizado, em que o educador precisa se envolver com a reflexão prática, questionando constantemente as estratégias pedagógicas, a eficácia de suas abordagens e as condições estruturais que afetam a qualidade da educação. A verdadeira profissionalização ocorre quando o educador se compromete a repensar constantemente sua prática, a ajustar suas estratégias e a agregar novos saberes à medida que adquire mais experiência.

Além disso, a formação inicial deve ser pensada de maneira que prepare o educador para ser um agente crítico e transformador dentro da sala de aula, com um compromisso social e político claro.Segundo Souza e Silva (2023), a educação deve ser compreendida como um ato político, em consonância com as ideias de Freire, que destaca o papel do educador como mediador da transformação social. Dessa forma, a formação docente precisa conscientizar os educadores sobre a importância de sua função não apenas como transmissores de conhecimento, mas como agentes ativos de mudança, comprometidos com a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. A profissionalização não pode ser dissociada do compromisso com a emancipação social, e a formação inicial deve incutir no educador o entendimento de que seu papel vai além de transmitir conteúdo: ele é um agente de mudança social, capaz de influenciar positivamente a sociedade por meio de suas práticas pedagógicas.

A profissionalização docente, portanto, é um processo que começa na formação inicial, mas que deve se estender ao longo de toda a carreira do educador. Para isso, é essencial que a formação inicial seja pensada como um ponto de partida, um fundamento que precisa ser constantemente revisto e reformulado durante a trajetória do educador, com o compromisso contínuo com a prática reflexiva, a adaptação às novas realidades e o questionamento das práticas pedagógicas estabelecidas.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Realizar essa pesquisa e estudo foi, antes de tudo, um exercício de reflexão acerca da caminhada como educadora, das experiências que atravessam e dos sentidos que em construção sobre o que é, de fato, formar e ser formado. Falar de saberes docentes e de práticas transformadoras é falar de vida, de gente, de encontros e de tudo aquilo que não cabe nos manuais, mas que pulsa forte no cotidiano das escolas e nos vínculos que criamos com os alunos, com os professores e conosco.

Não é possível pensar uma formação que desconsidera a singularidade de cada educador, nem em práticas pedagógicas que se sustentam apenas em conteúdos prontos e fórmulas de ensino, e sim, em uma formação que convida à escuta, que acolhe as dúvidas, que provoca movimento, instigam práticas que nascem da vivência, da sensibilidade e do desejo real de transformar não só o que está fora, mas também o que está dentro da gente.

É imprescindível enaltecermos e tecermos a analogia do processo de aprendizado da docência enquanto uma travessia. E cada passo nessa travessia é feito de perguntas, de tentativas, de recomeços. Em que é essencial a coragem de caminhar em meios a incertezas e desafios munidos da proatividade, resiliência e esperança e que assim, a formação de educadores siga sendo, acima de tudo, um ato de humanidade.

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1 Graduada em Biologia Educação pela Universidade Vale do Acaraú (UVA), graduada em Licenciatura em Ciências da Religião pela Faculdade IBRA, Mestre Ciências da Educação pela Universidad de la Integración de las Américas – UNID.