PRÉ-ADOLESCENTES, VIOLÊNCIA E O JUDICIÁRIO: A DISSOLUÇÃO DOS VÍNCULOS E A EMERSÃO DE NOVOS CONFLITOS SOCIAIS

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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.17196447


Nilton Pereira da Cunha1


RESUMO
O presente artigo analisa a crescente presença de pré-adolescentes, especialmente na faixa etária de 12 a 14 anos, em situações de violência que acabam repercutindo, não apenas nas escolas, residências, mas que também estão chegando ao judiciário, especificamente ao Direito Penal pela sua gravidade e crueldade. Tal fenômeno, segundo os especialistas, está diretamente ligado à dissolução dos vínculos familiares, escolares e comunitários, agravada pela exposição precoce e excessiva às telas, desde tenra idade, e pela fragilização das redes de proteção social. A perda da referência da autoridade parental e a dificuldade da escola em exercer seu papel formativo contribuem para a emergência de novos conflitos sociais, que se expressam em comportamentos impulsivos, intolerância às frustrações e busca por reconhecimento imediato. Nesse cenário, o sistema da justiça se vê diante de uma demanda crescente, sem que haja políticas públicas adequadas para enfrentar as raízes do problema. A análise demonstra que a ausência de vínculos sólidos não apenas aumenta a vulnerabilidade emocional dos pré-adolescentes, mas também favorece a interiorização de padrões violentos como forma de expressão. Assim, torna-se urgente repensar estratégias de prevenção, que devem envolver família, escola, saúde, assistência social e o poder público, a fim de restaurar laços afetivos e sociais capazes de reduzir a judicialização precoce e seus impactos em toda a sociedade, já que a tendência, segundo as evidências científicas, é que esse quadro se agrave a médio e a longo prazo.
Palavras-chave: Pré-adolescentes. Violência. Judiciário. Família. Conflitos Sociais.

ABSTRACT
This article analyzes the growing presence of pre-adolescents, especially those aged 12 to 14, in situations of violence that end up impacting not only schools and homes, but are also reaching the judiciary, specifically criminal law, due to their severity and cruelty. This phenomenon, according to experts, is directly linked to the dissolution of family, school, and community ties, aggravated by early and excessive screen time from a young age and the weakening of social safety nets. The loss of parental authority and the school's difficulty in fulfilling its formative role contribute to the emergence of new social conflicts, expressed in impulsive behavior, intolerance of frustration, and a search for immediate recognition. In this scenario, the justice system faces a growing demand, without adequate public policies to address the root causes of the problem. The analysis shows that the lack of solid bonds not only increases pre-adolescents' emotional vulnerability but also encourages the internalization of violent patterns as a form of self-expression. Therefore, it is urgent to rethink prevention strategies, which must involve family, school, health care, social services, and public authorities, in order to restore emotional and social bonds capable of reducing early judicialization and its impacts on society as a whole, since the trend, according to scientific evidence, is for this situation to worsen in the medium and long term.
Keywords: Pre-adolescents. Violence. Judiciary. Family. Social Conflicts.

1 Introdução

No início do século XXI, quando as tecnologias digitais começaram a chegar às escolas, principalmente com a geração Z (1995-2009), o debate central estava voltado à aprendizagem.

A grande discussão dentro dos centros acadêmicos era em desenvolver práticas pedagógicas de como usar os computadores, a internet e, mais tarde, os smartphones, isto é, como eles poderiam melhorar os métodos pedagógicos, ampliar o acesso ao conhecimento e dinamizar o processo educativo.

É importante compreendermos que, a tecnologia cumpriu, em muitos campos, a expectativa de progresso: avançamos na medicina, comunicação, ciência e na forma de produzir conhecimento.

Contudo, no tocante ao neurodesenvolvimento infantil, ela representa um drama. Somos e continuamos biologicamente os mesmos, e o cérebro humano não se atualiza na velocidade das máquinas. O desenvolvimento equilibrado da criança exige interações diretas, presenciais e afetivas, pois apenas no encontro humano é que se constroem vínculos, linguagem, empatia e autocontrole.

A infância não pode ser delegada as telas, já que o que sustenta a maturação saudável é o olhar, a fala, o toque e a convivência real.

O início do século XXI foi marcado pelo entusiasmo, em que a tecnologia era vista quase exclusivamente como ferramenta de desenvolvimento em todos os âmbitos.

Contudo, o cenário mudou radicalmente entre os pesquisadores da área da educação infantil. O que antes parecia um recurso para potencializar a aprendizagem hoje revela seus efeitos colaterais mais profundos.

A partir da geração Alpha (2010-2024), nascida já imersa em dispositivos digitais e redes sociais, o impacto deixou de ser apenas pedagógico e passou a atingir dimensões cognitivas, emocionais, sociais e físicas

Dentro de casa, observa-se uma ruptura drástica entre pais e filhos – também entre netos e avós – marcada pelo isolamento digital e pelo enfraquecimento do olho no olho, do diálogo e do afeto, pais e filhos pouco conversam, se olham, se vivem cada um na sua tela, no seu mundo digital. Essa fragilidade nos vínculos familiares gera crianças menos tolerantes a limites e frustrações, que, ao chegarem à adolescência, está se manifestando em comportamentos agressivos.

Nas escolas, esse processo se converte em violência escolar, tanto entre os próprios alunos quanto contra professores, em alguns casos culminando em episódios drásticos de agressão verbal e física.

O problema do uso precoce e excessivo dos dispositivos digitais, não se limita ao campo emocional e social. Ele se estende ao corpo físico, como, por exemplo, o aumento precoce do uso de óculos em crianças, consequentemente da exposição intensa à luz azul das telas, como também, o crescimento da obesidade infantil, resultado do sedentarismo e da alimentação inadequada associada ao tempo excessivo diante de dispositivos digitais.

A obesidade, por sua vez, não é apenas um problema estético ou isolado, ele aumenta significativamente o risco de outras doenças graves e também cresce significativamente o risco de outras doenças graves, como diabetes, hipertensão, problemas cardíacos e complicações ortopédicas.

Esses fatores, somados à fadiga ocular, distúrbios do sono e compromete não só o desenvolvimento saudável da visão, da obesidade, mas também da saúde mental, o uso precoce das telas transformou-se em um verdadeiro problema de saúde pública.

Assim, o que antes era visto como uma ferramenta de apoio à aprendizagem se transformou em um fator de risco para a convivência de vínculos familiar, segurança escolar e a saúde física e mental das novas gerações. O que se transformou em um problema que envolve as relações sociais doentias e de saúde pública, que exige atenção imediata de gestores e formuladores de políticas públicas.

É importante aqui destacar que, mais recentemente, o problema do uso precoce e excessivo de telas ultrapassou os limites da saúde e da educação e passou a se manifestar também no judiciário, com casos de grande repercussão nacional envolvendo pré-adolescentes.

Situações dessa natureza, antes incomuns nessa faixa etária, não podem ser compreendidas nem tratadas como meros atos de delinquência infantil tradicional. Mas, trata-se de um fenômeno distinto, marcado pela dissolução dos vínculos familiares e pela ausência de mediações afetivas consistentes, em os próprios “vitimados” são os parentes mais próximos – em sua maioria: pai, irmãos e avós.

Esse novo contexto evidencia a gravidade da transformação social em curso e exige respostas que transcendam a lógica punitiva, voltando-se à reconstrução dos laços de pertencimento, cuidado e responsabilidade compartilhada.

2 Geração Z e Geração Alpha: o impacto das telas na educação e na saúde pública

As gerações Z e Alpha representam marcos significativos na evolução das sociedades contemporâneas, especialmente no que tange à integração das tecnologias digitais no cotidiano.

A partir do início do século 2000, termos como “nativos digitais” ganharam força, sustentando a ideia de que esses jovens, por crescerem cercados de computadores, celulares e internet, desenvolveriam habilidades superiores às gerações anteriores. A expectativa, era que essa geração e as futuras fossem mais informadas e mais capazes de lidar com as complexidades do mundo contemporâneo.

No entanto, com o tempo, o entusiasmo deu lugar à preocupação. Ainda na geração Z, percebeu-se que a abundância de informação não se traduzia automaticamente em conhecimento.

Jovens passaram a demonstrar dificuldades crescentes em sustentar a atenção, aprofundar leituras e desenvolver pensamento crítico. A escola, em vez de avançar, começou a se deparar com desafios e perda de vínculos afetivos com o processo de aprendizagem.

A promessa inicial de que a tecnologia transformaria a educação em algo mais eficiente mostrou-se limitada e, em muitos casos, ilusória.

O que antes era um debate pedagógico sobre como utilizar a tecnologia de forma criativa se transformou, pouco a pouco, em uma preocupação de saúde pública: quais seriam os efeitos do uso precoce e excessivo das telas no desenvolvimento cognitivo, emocional e social?

Com a chegada da geração Alpha, nascida a partir de 2010, os sinais de alerta se intensificaram. Diferente da geração Z, que ainda teve parte de sua infância marcada por experiências analógicas e brincadeiras presenciais, a geração Alpha foi exposta às telas desde os primeiros meses de vida. Tablets substituíram brinquedos, celulares ocuparam o lugar de narrativas familiares, e a interação social presencial foi gradualmente colonizada por algoritmos.

O impacto é devastador. Pesquisas internacionais já apontam atrasos na aquisição da linguagem, dificuldades de socialização, aumento de quadros de ansiedade, depressão e até de diagnósticos de transtornos do neurodesenvolvimento. No campo educacional, professores relatam um verdadeiro colapso da aprendizagem: crianças incapazes de manter a atenção, dificuldades de memória, baixa tolerância à frustração e grande resistência às tarefas que exigem esforço cognitivo. O que era preocupação na geração Z tornou-se crise na geração Alpha.

Esse quadro deixou de ser visto apenas como um problema escolar ou familiar. Estamos diante de uma questão de saúde pública. O excesso de telas, em fase de intensa formação e poda neural, compromete o desenvolvimento cerebral das crianças e ameaças diretamente da próxima geração.

O resultado aparece em múltiplas frentes: maior evasão escolar, queda nos indicadores de aprendizagem, sobrecarga nos serviços de saúde mental e aumento das demandas nas redes de assistência social.

Para os gestores públicos, o recado é claro: não se trata de um tema opcional ou restrito ao âmbito doméstico, mas de uma urgência coletiva. Municípios e estados estão na linha de frente desse impacto, pois é nas cidades que os problemas se materializam – nas salas de aula, nos postos de saúde, nos lares e nas ruas.

Prevenir os efeitos do uso excessivo das telas significa investir na qualidade da educação, reduzir gastos futuros com saúde mental e preparar as bases para uma sociedade mais equilibrada.

Se a geração Z desmontou a crença de que a tecnologia, por si só, elevaria a educação, a geração Alpha mostra o custo real da hiperexposição digital: uma infância mais vulnerável, um sistema educacional fragilizado e um futuro em risco.

Reconhecer as telas como tema de saúde pública é um passo decisivo para proteger não apenas aprendizagem, mas a própria capacidade da sociedade de formar cidadãos plenos e emocionalmente equilibrados.

Estudos recentes mostra que uso de tela de 4 horas por dia está associado a riscos maiores de ansiedade, depressão, problemas de comportamento ou conduta e TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade), como também no aumento dos casos de Autismo.

3 Implicações à Saúde Pública e à Educação

O impacto das relas sobre o desenvolvimento infantil extrapola os limites do ambiente doméstico ou escolar e precisa ser compreendido como um problema de saúde pública e que cada vez mais está chegando também ao judiciário.

Diversos estudos já demonstram que o uso precoce e excessivo de dispositivos digitais interfere de forma significativa no desenvolvimento neurológico, cognitivo e socioemocional das crianças, especialmente nos primeiros anos de vida, quando o cérebro passa por intensa poda neural e se estrutura a partir das experiências ambientais.

Como observa Pascual-Leone: “O cérebro humano é altamente plástico, reorganizando-se continuamente em resposta às experiências2”, de modo que estímulos inadequados, como a hiperexposição digital, podem moldar trajetórias de desenvolvimento prejudiciais.

No campo da educação, as consequências se manifestam em larga escala. Professores relatam dificuldades crescentes em manter a atenção dos alunos, que chegam às salas de aulas sem a capacidade de sustentar o foco por longos períodos, com baixa tolerância à frustração e dificuldades para lidar com tarefas que exigem esforço cognitivo continuado.

Maryanne Wolf, ao analisar os impactos da leitura digital, alerta que a substituição da leitura profunda pela leitura fragmentada “está alterando os circuitos cerebrais responsáveis pela reflexão crítica e pela empatia3”, elementos fundamentais para a aprendizagem plena. Isso implica porque crianças da geração Alpha, habituadas a estímulos rápidos e interativos, apresentam maiores dificuldades para desenvolver habilidades de leitura, escrita e interpretação

Os dados epidemiológicos reforçam essa preocupação. O Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC), em 2023 indica que cerca de 1 em cada 5 crianças de 3 a 17 anos nos Estados Unidos já foi diagnosticada com algum transtorno mental, emocional ou comportamental, como ansiedade, depressão ou transtornos de conduta.

Além disso, o aumento das taxas de autismo é alarmante: em 2000, a prevalência era de 1 caso para cada 150 crianças; em 2012, 1 em cada 88; em 2018, 1 em cada 59; em 2020, 1 em cada 36; e em 2022, chegou a 1 em cada 31 crianças que nascia.

Paralelamente, o diagnóstico de TDAH atinge aproximadamente 7 milhões de crianças norte-americanas representando 11,4% da população infantil (CDC, 2023). Ainda que os fatores sejam múltiplos, a literatura científica tem demonstrado associações robustas entre o tempo de tela elevado e maiores riscos de atrasos de linguagem, déficits de atenção e dificuldades socioemocionais (Christakis4 et. al., 2009; Madigam5 et al., 2019).

No Brasil, embora os levantamentos ainda sejam incipientes, o Ministério da Saúde já alerta para o crescimento expressivo das demandas em saúde mental infantojuvenil e para os impactos do uso abusivo das telas.

A Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE, 2019)6 revelou que 68% dos adolescentes utilizam telas por mais de 3 horas diárias fora do horário escolar, tempo acima das recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), que sugere, para criança e adolescentes de 5 a 17 anos, no máximo 2 horas por dia de lazer em frete a dispositivos digitais.

Essa realidade gera um efeito cascata sobre os sistemas de saúde, há aumento de procura por serviços especializados em psicologia, psiquiatria e fonoaudiologia, além da sobrecarga em unidades básicas de saúde devido a queixas de ansiedade, insônia e problemas de comportamento em crianças e adolescentes.

Na educação, observa-se queda no desempenho escolar, aumento da evasão e maiores dificuldades de socialização. Como afirma Damásio: “Não se pode separar a mente do corpo e das emoções7”, de modo que as dificuldades cognitivas e socioemocionais impactam diretamente a capacidade de aprender e de se relacionar.

Diante disso, gestores públicos precisam reconhecer que a prevenção ao uso abusivo das telas é um investimento estratégico com repercussões em múltiplas áreas. Ações de regulação e conscientização podem reduzir gastos futuros em saúde mental, melhorar os índices educacionais e fortalecer o tecido social.

Neil Postman, em sua análise crítica da sociedade midiatizada, já advertia que: “Cada tecnologia tem uma filosofia embutida, uma predisposição a usar a mente de certa maneira, a estabelecer prioridades de um tipo em detrimento de outro8”.

Assim, ao permitir que a infância seja colonizada por telas, estamos criando uma geração com prioridades cognitivas moldadas pela dispersão, pela gratificação imediata e pela superficialidade.

As implicações práticas são claras: municípios e estados devem criar programas de prevenção e orientação as famílias, capacitar professores e equipes de saúde e da assistência social para identificar sinais precoce de comprometimento cognitivo e socioemocional, e aplicar integralmente o que determina a Lei 15.100/2025, o não uso de celulares na escola.

Que as creches e escolas infantis da primeira infância não usem em hipóteses alguma, nenhum dispositivo de telas, que todas as atividades pedagógicas sejam manuais, diretas, olho no olho.

Mais do que uma escolha individual, trata-se de um dever coletivo, pois, como sublinha Byung-Chul Han9: “A sociedade do cansaço” nasce justamente da pressão por estímulos constantes e da incapacidade de lidar com o silêncio e a pausa, condições indispensáveis ao aprendizado profundo.

Portanto, quando olhamos para a trajetória, no tocante a educação e a geração Alpha, evidencia-se de forma drástica os riscos da hiperexposição digital, fica claro que estamos diante de uma questão de saúde pública.

Proteger a infância das telas não é retroceder, mas garantir condições mínimas para que o processo educacional e o desenvolvimento humano se realizem plenamente.

O futuro da geração Beta, que está nascendo em um ambiente ainda mais permeado pela inteligência artificial, dependerá das escolhas que gestores e a sociedade fizerem agora.

4 Impactos das telas também na justiça: a dissolução dos vínculos e a emergência de novos conflitos sociais

Como já comentamos, o impacto das telas não se limita à educação e à saúde, ele avança para outros campos fundamentais da vida em sociedade, alcançando o próprio sistema de justiça e o núcleo mais sagrado da vida social: a família.

Casos cada mais recorrentes de adolescentes da geração Alpha envolvidos em atitudes de agressividade extrema – chegando, em situações dramáticas, ao assassinato de pais, irmãos e avós – revelam um cenário que exige reflexão e ação conjunta da gestão pública e do judiciário.

Tais manifestações de violência não podem ser compreendidas apenas sob a ótica da delinquência juvenil, mas como resultado de um processo de desenvolvimento cerebral e social comprometido por um processo externo que está moldando o cérebro das crianças, em sua fase crítica, a das conexões neurais, especialmente, de 0 aos 3 anos de idade.

É importante ter em conta que, o córtex pré-frontal, região responsável pela empatia, tomada de decisões e controle dos impulsos, encontra-se em processo de maturação justamente durante a infância e adolescência.

Como demonstram estudos em neurociência, esse processo depende de experiências relacionais ricas e de interações presenciais, que forneçam estímulos emocionais e sociais adequando, segundo o neurocientista português, António Damásio10.

No entanto, a cultura da distração infinita promovida pelas telas limita o contato olho a olho, substituindo vínculos sólidos por conexões efêmeras, que se dissolvem em um clique.

Nessa lógica, a formação da empatia é prejudicada e, consequentemente, as capacidades de compaixão e regulação dos impulsos não são plenamente desenvolvidas.

Essa dissolução dos vínculos foi descrita por Zygmunt Bauman11 na metáfora da “modernidade líquida”. As relações virtuais, mediadas por algoritmos e plataformas digitais, são frágeis e instáveis, não carregam a densidade do afeto verdadeiro e tendem a se desfazer sem resistência.

Essa liquidez aplicada às relações familiares e sociais, especialmente em crianças e adolescentes que nunca tiveram contato consistente com vínculos sólidos, gera um vácuo afetivo que pode se transformar em terreno fértil para comportamentos desumanizados.

É preciso destacar que, quando o ambiente familiar e a socialização comunitária não oferecem contrapesos a essa liquidez – por meio de diálogo, convivência real, limites e frustrações necessárias –, o desenvolvimento socioemocional torna-se ainda mais comprometido.

O resultado é uma geração que, muitas vezes, não reconhece o valor do outro, não exercita a empatia e age a partir dos impulsos imediatos, potencializados por uma dopamina que se regula na gratificação instantâneas das telas.

Esse fenômeno, que já se manifesta em crimes de extrema violência e crueldade cometidos por pré-adolescentes da geração Alpha contra os seus próprios familiares, e isso não pode ser analisado isoladamente.

Trata-se de adolescentes que, em sua maioria, foram crianças expostas desde muito cedo ao mundo virtual, passando horas e horas diante das telas, sobretudo durante o período da pandemia, quando a ausência de socialização presencial e o confinamento familiar aprofundaram a dependência digital.

Ao invés de interações olho no olho, experiências afetivas e construção de vínculos sólidos, essas crianças cresceram em ambientes mediados pela lógica fragmentada e líquida virtual, em que tudo pode ser descartado em um clique.

O resultado tem sido o enfraquecimento da empatia, da capacidade de compaixão e da regulação dos impulsos, funções diretamente ligadas ao córtex pré-frontal em desenvolvimento.

Esse quadro aponta para uma tendência de aumento dos casos, já que a geração Alpha é a primeira a atravessar a infância inteira sob a mediação constante das telas, com efeitos ainda mais intensos no período da pandemia.

Os municípios, como primeira linha de enfretamento dos problemas sociais, precisam enxergar que a prevenção do impacto das telas não é apenas uma pauta educacional ou de saúde pública, mas também passou a ser de segurança pública.

Ao mesmo tempo, o poder judiciário deve se engajar de forma proativa, não apenas para punir os atos cometidos, mas para atuar na construção de políticas de prevenção, em parceria com escolas, famílias e serviço de assistência social.

Nesse sentido, a reflexão é urgente: se não forem criados mecanismos de conscientização na contenção do uso de telas pelas crianças de estímulos ao desenvolvimento saudável do cérebro infantil e das relações humanas, não será apenas o déficit de aprendizagem na escola e os problemas de saúde mental, mas também o sistema de justiça terá de lidar com um número cada vez mais crescente de crianças e pré-adolescentes envolvidos em casos de crimes graves. Inclusive, nessa idade (13 a 14 anos) não eram nem cooptados pelo crime organizado, sempre eram a partir dos 15 anos. E isso necessita ser olhado com uma visão de preocupação e na busca de alternativas pelo poder público como um todo, inclusive, pelo judiciário.

Como alerta Maryanne Wolf12, a perda da profundidade da atenção e da leitura reflexiva está intimamente ligada à redução da empatia – das bases para a vida em comunidade.

Portanto, a questão do impacto das telas já não pode ser vista como um tema restrito ao campo pedagógico ou médico. Trata-se de uma problemática estrutural da sociedade contemporânea, que exige articulação entre educação, saúde, assistência social, famílias e o sistema de justiça.

O que está em jogo não é apenas o rendimento escolar ou os índices de saúde mental, que já seria extremamente grave, mas a preservação da convivência social, a proteção do núcleo familiar e a própria noção de humanidade.

É urgente compreendermos que, episódios de violência extrema de crianças e pré-adolescentes de 13 e 14 anos, revela uma crise no desenvolvimento emocional, afetivo e cognitivo da infância, que dinamiza uma gravidade sem precedente da situação.

Se estamos vivenciando esse drama com a geração Alpha, marcada por uma infância de horas e horas no mundo virtual, intensificada pela pandemia, a preocupação deve se voltar ainda mais para a geração Beta.

Esta poderá crescer em um ambiente em que a inteligência artificial (IA) lhes oferecerá respostas imediatas, entretenimento infinito e satisfação sem frustração, eliminando qualquer necessidade de interação humana.

Se os pais não tiverem plena consciência desse processo e não compreenderem que o amor não é inato, mas construído na relação real – no toque, no abraço, no olho a olho –, corremos o risco de criarmos filhos que, embora biologicamente nossos, nos parecerão emocionalmente estranhos.

Filhos incapazes de sentir ou compreender o outro, porque não desenvolveram adequadamente o córtex pré-frontal, área essencial para a empatia, tomada de decisão e controle dos impulsos.

Eis o prenúncio de um drama futuro, em que a humanidade poderá conviver com novas gerações emocionalmente desertas, que não conhecem o amor porque nunca o vivenciaram em sua forma mais plena e verdadeira.

5 Considerações finais

O impacto das telas na infância e adolescência não é um fenômeno marginal, mas um problema estrutural que atravessa diferentes campos da vida social: a educação, a saúde e, mais recentemente, a justiça.

Diante desse contexto, a análise do cenário atual mostra que não se trata apenas de queda no rendimento escolar ou aumento nos diagnósticos de transtornos mentais, mas de uma verdadeira reconfiguração dos vínculos humanos.

A geração Alpha já apresenta sinais alarmantes desse processo, com déficits no desenvolvimento do córtex pré-frontal, dificuldades de empatia e de controle dos impulsos, culminando em episódios de violência estrema contra os próprios familiares.

Essas manifestações são o reflexo de um ambiente em que a cultura da distração infinita substituiu o contato humano pelo estímulo digital incessante. A pandemia apenas intensificou esse quadro, ampliou o tempo diante das telas e reduziu drasticamente as oportunidades de interação olho no olho, tão necessárias para a construção do afeto, da compaixão e da convivência social. E que mesmo que as possibilidades dos convívios diretos tenham voltado a normalidade, no entanto, o legado do tempo diante das telas permaneceu.

A consequência é o surgimento de novos conflitos sociais que já demandam a atuação não apenas da escola e dos sistemas de saúde, mas também do poder público, inclusive do judiciário e das políticas de segurança pública.

Contudo, o maior desafio ainda estar por vir. A geração Beta (2005-?), que está nascendo em meio a uma inteligência artificial (AI) cada vez mais presente e acessível, poderá ser ainda mais vulnerável.

Se para a geração Alpha, as pesquisas científicas apontam que, a questão central corresponde a perda do tempo de socialização, então, para a geração Beta o risco é a substituição quase que total das interações humanas por respostas artificiais, que oferecem gratificação sem frustração e companhia sem vínculo.

Se não houver um esforço consciente dos pais, educadores, gestores públicos e a participação do poder judiciário para resgatar o valor do toque, do olho no olho e da convivência real, poderemos assistir ao nascimento de crianças e adolescentes incapazes de desenvolver laços afetivos sólidos, com funções cognitivas e emocionais gravemente comprometidas.

Assim, torna-se imprescindível reconhecer que o amor não é inato, mas construído, e que somente o contato humano é capaz de formar indivíduos plenos, empáticos e capazes de viver em sociedade.

O que está em jogo não é apenas a saúde mental ou o desempenho escolar das novas gerações, mas a própria sobrevivência da experiência humana enquanto experiência de vínculo.

Prevenir os impactos das telas e construir políticas públicas eficazes é mais do que uma escolha: é uma obrigação ética, social e histórica, sob pena de legarmos às próximas gerações um futuro marcado pela falta de vínculos afetivos reais e duradouros, o que restará é a indiferença, a violência e a solidão digital. Ou seja, um perigo para o futuro da própria humanidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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_______. O cérebro no mundo digital: os desafios da leitura na nossa era. São Paulo: Contexto, 2019.


1 Nilton Pereira da Cunha é Professor, Pesquisador, Escritor e Coordenador Educacional do Instituto Nacional de Evolução Humana. Graduado e Pós-graduação Lato e Stricto Sensu na área da Educação, também graduado e pós-graduado em Direito, com artigos e livros publicados em português e castelhano em vários países: Brasil, Argentina e Colômbia, tais como: O autismo e a interação social: Como desenvolver uma criança saudável na Era Digital; El autismo y la interacción social: como desarrollar una crianza saludable en la Era Digital; Educação, Família e Geração Digital: os desafios e perspectivas da pós-modernidade. @nilton.cunha.900. WhatsApp: +54 11 4989-3292.

2 PASCUAL-LEONE, A. The plastic human brain cortex. Annual Review of Neuroscience, v. 28, p. 377-401, 2005.

3 WOLF, M. Reader, como home: the Reading brain in a digital world. New York: HarperCollins, 2018.

4 CHRISTAKIS, D. A. et al. Early televisión exposure and subsequent attentional problems in children. Pediatrics, v. 113, n. 4, p. 708-713, 2009.

5 MADIGAN, S. et. al. Association between screen time and children’s performance on a developmental screening test. JAMA Prdiatrics, v. 173, n. 3, p. 244-250, 2019.

6 PENSE – Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Rio de Janeiro: IBGE, 2019.

7 DAMÁSIO, António R. O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. São Paulo: Companhias das Letras, 2012.

8 POSTMAN, Neil. Tecnopólio: a rendição da cultura à tecnologia. São Paulo: Nobel, 1994.

9 HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2017.

10 DAMÁSIO, António R. Idem. 2012.

11 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2004.

12 WOLF, Maryanne. O cérebro no mundo digital: os desafios da leitura na nossa era. São Paulo: Contexto, 2019.