O PAPEL DA MÍDIA E DA CIÊNCIA NA CONSTRUÇÃO SOCIAL DAS DOENÇAS MENTAIS: DESVENDANDO NARRATIVAS INFLUENCIADAS POR INTERESSES COMERCIAIS

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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.17490388


Habssay Flabull Araújo de Almeida
Maison Gabriel da Silva Borges
Rennerson Soares Varanda
Luciene Gomes Araujo de Almeida


RESUMO
Este artigo científico analisa o papel da mídia e da ciência na construção social das doenças mentais, com foco nas narrativas influenciadas por interesses comerciais. A partir de uma revisão bibliográfica crítica, argumenta-se que as doenças mentais são construções sociais complexas, cujas definições e tratamentos são moldados por fatores sociais, culturais e econômicos. A pesquisa revela como a indústria farmacêutica, em sua relação com a psiquiatria, promove a medicalização da vida cotidiana, expandindo categorias diagnósticas e incentivando o uso de psicofármacos. A mídia, por sua vez, atua como um poderoso amplificador dessas narrativas, muitas vezes de forma acrítica e sensacionalista. As conclusões apontam para as implicações éticas e sociais dessas dinâmicas, como a patologização de experiências humanas normais e a negligência de abordagens não farmacológicas. O artigo defende a necessidade de uma postura crítica em relação às narrativas dominantes, a fim de promover uma compreensão mais holística e ética da saúde mental.
Palavras-chave: Doenças Mentais, Mídia, Indústria Farmacêutica, Medicalização, Construção Social, Interesses Comerciais.

ABSTRACT
This scientific article analyzes the role of the media and science in the social construction of mental illness, focusing on narratives influenced by commercial interests. Based on a critical literature review, it argues that mental illnesses are complex social constructs, whose definitions and treatments are shaped by social, cultural, and economic factors. The research reveals how the pharmaceutical industry, in its relationship with psychiatry, promotes the medicalization of everyday life, expanding diagnostic categories and encouraging the use of psychotropic drugs. The media, in turn, acts as a powerful amplifier of these narratives, often in an uncritical and sensationalist manner. The conclusions point to the ethical and social implications of these dynamics, such as the pathologization of normal human experiences and the neglect of non-pharmacological approaches. The article argues for the need for a critical stance toward dominant narratives in order to promote a more holistic and ethical understanding of mental health.
Keywords: Mental Illness, Media, Pharmaceutical Industry, Medicalization, Social Construction, Commercial Interests.

Introdução

A compreensão e a abordagem das doenças mentais têm sido historicamente moldadas por uma complexa interação de fatores sociais, culturais, científicos e econômicos. Longe de serem meras entidades biológicas estáticas, as doenças mentais são, em grande medida, construções sociais, cujas definições, percepções e tratamentos são influenciados pelas lentes através das quais a sociedade as observa. Neste contexto, a mídia e a ciência emergem como pilares fundamentais na edificação dessas narrativas, desempenhando um papel crucial na formação do imaginário público e na validação de determinadas abordagens terapêuticas.

Tradicionalmente, a ciência, em particular a psiquiatria, tem sido vista como a principal autoridade na definição e classificação das condições mentais, buscando uma objetividade baseada em evidências empíricas. Contudo, essa autoridade não opera em um vácuo. A mídia, por sua vez, atua como um poderoso amplificador e disseminador dessas informações, traduzindo conceitos científicos complexos para o público leigo e, muitas vezes, simplificando ou distorcendo a realidade em prol de narrativas mais acessíveis, ou sensacionalistas. A intersecção entre esses dois campos, ciência e mídia, cria um terreno fértil para a construção de consensos sociais sobre o que constitui a

normalidade e a patologia mental, influenciando diretamente a percepção individual e coletiva sobre a saúde mental.

No entanto, um elemento frequentemente subestimado, mas de crescente relevância, é a influência dos interesses comerciais na moldagem dessas narrativas. A indústria farmacêutica, em particular, tem sido apontada por diversos pesquisadores como um ator poderoso na definição do que são as doenças mentais e como elas devem ser tratadas, impulsionando a medicalização de aspectos da vida cotidiana e a promoção de soluções farmacológicas. Essa influência se manifesta não apenas na pesquisa e desenvolvimento de medicamentos, mas também na forma como a informação é veiculada pela mídia, muitas vezes de maneira sutil, mas eficaz, para criar e sustentar mercados para seus produtos.

Este artigo científico propõe-se a desvendar criticamente o papel da mídia e da ciência na construção social das doenças mentais, com um foco particular nas narrativas influenciadas por interesses comerciais. Analisaremos como a intersecção entre esses campos pode levar à patologização de experiências humanas normais, à supervalorização de tratamentos farmacológicos e à marginalização de abordagens alternativas. Ao examinar as dinâmicas subjacentes a essas narrativas, almejamos contribuir para uma compreensão mais crítica e informada sobre a saúde mental na sociedade contemporânea, incentivando uma reflexão sobre a autonomia do indivíduo e a ética na promoção da saúde.

Fundamentação Teórica

A Construção Social da Doença e da Saúde Mental

A ideia de que a realidade é uma construção social, e não uma entidade puramente objetiva e preexistente, é um conceito fundamental para compreender como as doenças mentais são percebidas e tratadas em uma dada sociedade. Peter L. Berger e Thomas Luckmann, em sua obra seminal "A Construção Social da Realidade" (1966), argumentam que a realidade é socialmente construída e que o conhecimento que temos dela é resultado de processos interativos e interpretativos. Isso significa que as categorias que usamos para entender o mundo, incluindo as de saúde e doença, não são inerentes à natureza, mas sim produtos de convenções sociais, históricas e culturais.

Aplicando essa perspectiva à saúde e doença mental, percebe-se que o que é considerado "normal" ou "patológico" varia significativamente entre diferentes culturas e épocas. Comportamentos que em uma sociedade podem ser vistos como manifestações de uma doença mental, em outra podem ser interpretados como expressões de espiritualidade, criatividade ou simplesmente como variações da experiência humana. A própria definição de "doença mental" é, portanto, um constructo social, influenciado por valores morais, crenças religiosas, avanços científicos e interesses econômicos de uma determinada época [1].

Um dos aspectos mais marcantes da construção social das doenças mentais é o estigma a elas associado. Historicamente, indivíduos com condições mentais foram marginalizados, isolados e frequentemente submetidos a tratamentos desumanos.

Embora tenha havido avanços significativos na compreensão e no tratamento das doenças mentais, o estigma persiste, alimentado por representações negativas na

mídia, pela falta de informação e pelo preconceito enraizado na sociedade. Esse estigma não somente dificulta a busca por ajuda e tratamento, mas também afeta a qualidade de vida dos indivíduos, suas relações sociais e suas oportunidades no mercado de trabalho.

A medicalização da vida, um fenômeno intrinsecamente ligado à construção social da doença, refere-se ao processo pelo qual problemas não médicos (como comportamentos, emoções ou condições da vida cotidiana) são definidos e tratados como problemas médicos, geralmente em termos de doenças ou transtornos. Esse processo é impulsionado por uma série de fatores, incluindo o avanço da biotecnologia, a influência da indústria farmacêutica, a pressão dos pacientes por soluções rápidas e a expansão do domínio médico sobre diversas esferas da vida. A medicalização, ao transformar problemas sociais em questões individuais de saúde, pode desviar a atenção das causas sociais e estruturais do sofrimento, promovendo soluções individualizadas e, muitas vezes, farmacológicas [2].

Berger, P. L., & Luckmann, T. (1966). The Social Construction of Reality: A Treatise in the Sociology of Knowledge. Anchor Books.

Conrad, P. (2007). The Medicalization of Society: On the Transformation of Human Conditions into Treatable Disorders. The Johns Hopkins University Press.

O Papel da Mídia na Percepção Pública das Doenças Mentais

A mídia, em suas diversas formas – jornais, televisão, rádio, cinema e, mais recentemente, as plataformas digitais e redes sociais – desempenha um papel central na formação da percepção pública sobre as doenças mentais. A maneira como essas condições são retratadas e discutidas nos veículos de comunicação tem um impacto significativo na forma como a sociedade as compreende, no nível de estigma associado e na busca por ajuda e tratamento. Historicamente, a representação midiática das doenças mentais tem sido frequentemente marcada por estereótipos negativos, sensacionalismo e desinformação.

Por muito tempo, a mídia contribuiu para a perpetuação de uma imagem distorcida e estigmatizante dos indivíduos com transtornos mentais, retratando-os como perigosos, imprevisíveis ou incapazes. Essa representação, muitas vezes baseada em casos isolados de violência ou em narrativas melodramáticas, reforçou o preconceito e a exclusão social. A linguagem utilizada, o foco em aspectos patológicos e a falta de contextualização contribuíram para a construção de um imaginário social que associava a doença mental à loucura e à anormalidade, dificultando a empatia e a compreensão por parte do público [3].

No entanto, o papel da mídia não é unidirecional. Embora possa ser um vetor de estigma, também possui um potencial significativo para a conscientização e a desmistificação das doenças mentais. Iniciativas que promovem a ressocialização de pacientes psiquiátricos e divulgam ações para minimizar preconceitos, como as abordadas no artigo de Gomes (2014) sobre o livro "Tecnologias em rede: oficinas de fazer saúde mental", demonstram como a comunicação midiática pode ser utilizada construtivamente. A criação de conteúdos alternativos, como chats, blogs, fotografias e programas radiofônicos por usuários de serviços de saúde mental, permite que suas próprias vozes sejam ouvidas, desafiando as narrativas dominantes e promovendo uma compreensão mais humana e empática [4].

As plataformas digitais e as redes sociais trouxeram novas complexidades para essa dinâmica. Por um lado, elas oferecem espaços para a disseminação rápida de informações, o compartilhamento de experiências pessoais e a formação de comunidades de apoio, o que pode ser benéfico para a saúde mental. Por outro lado, a proliferação de informações não verificadas, a cultura da comparação social e a pressão por uma imagem idealizada podem agravar sentimentos de ansiedade, solidão e inadequação, impactando negativamente o bem-estar mental dos usuários [5].

É crucial, portanto, analisar criticamente as narrativas midiáticas sobre saúde mental, questionando suas fontes, seus propósitos e seus potenciais impactos. A mídia, como um poderoso agente de construção social, tem a responsabilidade de promover uma representação precisa, ética e sensível das doenças mentais, contribuindo para a redução do estigma e para a promoção de uma sociedade mais inclusiva e informada.

Wahl, O. F. (1992). Media Madness: Public Images of Mental Illness. Rutgers University Press.

Gomes, D. C. A. (2014). A mídia como forma de construção social do conhecimento em saúde mental. Revista Comunicação Midiática, 9(3), 155-158.

Primack, B. A., et al. (2017). Use of multiple social media platforms and symptoms of depression and anxiety: A nationally representative survey of US young adults. Computers in Human Behavior, 69, 1-9.

A Ciência e a Classificação das Doenças Mentais

A ciência, em particular a psiquiatria, tem sido historicamente a principal disciplina encarregada de definir, classificar e tratar as doenças mentais. Desde suas origens, a psiquiatria buscou estabelecer um corpo de conhecimento baseado em observações clínicas e, mais recentemente, em evidências empíricas, para diferenciar o que é considerado normal do que é patológico. Contudo, essa busca por objetividade e cientificidade não está isenta de influências sociais, culturais e, como veremos, econômicas.

Um marco fundamental na história da psiquiatria e na classificação das doenças mentais são os manuais diagnósticos, como o Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM), publicado pela American Psychiatric Association (APA), e a Classificação Internacional de Doenças (CID), da Organização Mundial da Saúde (OMS). Esses manuais, especialmente o DSM, tornaram-se ferramentas hegemônicas na padronização dos diagnósticos psiquiátricos, influenciando a pesquisa, o ensino, a prática clínica e até mesmo as políticas de saúde ao nível global. A evolução do DSM, desde sua primeira versão em 1952 até o DSM-5, publicado em 2013, reflete uma tendência crescente de expansão das categorias diagnósticas, com um número crescente de condições sendo classificadas como transtornos mentais [6].

Essa expansão, no entanto, tem sido alvo de intensas críticas. Muitos pesquisadores e clínicos argumentam que a proliferação de diagnósticos leva à patologização da vida cotidiana, transformando reações e emoções humanas naturais em transtornos que necessitam de intervenção médica. A crítica à medicalização da vida, já mencionada, ganha força nesse contexto, pois a ampliação das categorias diagnósticas abre caminho para a intervenção farmacológica em situações que antes seriam consideradas parte da experiência humana normal ou que poderiam ser abordadas por meios não medicamentosos [7].

Além disso, a influência da indústria farmacêutica na elaboração e revisão desses manuais tem sido amplamente debatida. A participação de especialistas com laços financeiros com empresas farmacêuticas nos comitês de elaboração do DSM levanta questões sobre a imparcialidade e a objetividade das classificações. A criação de novos diagnósticos ou a ampliação dos critérios para diagnósticos existentes pode, intencionalmente ou não, expandir o mercado para novos medicamentos, gerando lucros significativos para a indústria [8].

Em suma, embora a ciência psiquiátrica e seus manuais diagnósticos busquem oferecer uma estrutura para a compreensão e o tratamento das doenças mentais, é fundamental reconhecer que essas ferramentas são produtos de um contexto social e econômico específico. A análise crítica de sua evolução e de suas influências é essencial para desvendar as narrativas que moldam nossa compreensão sobre a saúde mental e para questionar se essas narrativas servem primariamente ao bem-estar dos indivíduos ou a outros interesses.

American Psychiatric Association. (2013). Diagnostic and statistical manual of mental disorders (5th ed.). American Psychiatric Publishing.

Caponi, S. (2014). Loucos pela vida: a medicalização da existência. Editora Fiocruz.

Whitaker, R. (2010). Anatomy of an Epidemic: Magic Bullets, Psychiatric Drugs, and the Astonishing Rise of Mental Illness in America. Crown.

Interesses Comerciais e a Construção das Narrativas

A Indústria Farmacêutica e a Psiquiatria: Uma Relação Complexa

A relação entre a indústria farmacêutica e a psiquiatria é um dos pilares centrais na construção das narrativas sobre doenças mentais, especialmente no que tange à medicalização e à promoção de tratamentos farmacológicos. Historicamente, essa relação tem sido marcada por uma crescente interdependência, onde os avanços na psicofarmacologia, a partir da metade do século XX, abriram um vasto mercado para a produção e comercialização de medicamentos destinados a tratar condições mentais. No entanto, essa interdependência não está isenta de conflitos de interesse e de questionamentos éticos [9].

A indústria farmacêutica investe bilhões de dólares em pesquisa e desenvolvimento de novos medicamentos, mas também em estratégias de marketing e promoção que visam influenciar a prescrição médica e a percepção pública sobre a necessidade de intervenções farmacológicas. Essas estratégias incluem o financiamento de pesquisas, a organização de congressos e eventos científicos, o patrocínio de associações médicas e a contratação de líderes de opinião para disseminar informações favoráveis aos seus produtos. A proximidade entre a indústria e a academia, bem como a classe médica, pode gerar um viés na pesquisa e na prática clínica, favorecendo abordagens farmacológicas em detrimento de outras formas de tratamento [10].

Um dos pontos mais críticos dessa relação é a influência da indústria na elaboração dos manuais diagnósticos, como o DSM. A participação de especialistas com laços financeiros com empresas farmacêuticas nos comitês de revisão desses manuais levanta sérias preocupações sobre a objetividade e a imparcialidade das classificações. A

criação de novos diagnósticos ou a ampliação dos critérios para diagnósticos existentes pode, de fato, expandir o mercado para novos medicamentos, gerando lucros significativos para a indústria. Por exemplo, a medicalização de comportamentos considerados normais, como a timidez excessiva ou a tristeza após uma perda, pode levar à criação de novas categorias diagnósticas e, consequentemente, à prescrição de medicamentos para condições que antes não eram vistas como patologias [11].

Além disso, a indústria farmacêutica tem sido criticada por promover uma visão reducionista das doenças mentais, focando exclusivamente em desequilíbrios químicos cerebrais como a causa primária dos transtornos. Essa narrativa, embora simplista, é eficaz para justificar a necessidade de medicamentos que atuem sobre esses supostos desequilíbrios. No entanto, essa abordagem desconsidera a complexidade dos fatores psicossociais, ambientais e culturais que contribuem para o sofrimento mental, negligenciando a importância de terapias não farmacológicas e de intervenções sociais [12].

A transparência e a regulamentação são essenciais para mitigar os conflitos de interesse e garantir que a pesquisa e a prática psiquiátrica sejam guiadas primariamente pelo bem-estar dos pacientes, e não por imperativos comerciais. A discussão sobre essa relação complexa é fundamental para desvendar as narrativas influenciadas por interesses comerciais e promover uma compreensão mais ética e abrangente da saúde mental.

Gøtzsche, P. C. (2013). Deadly Medicines and Organised Crime: How Big Pharma Has Corrupted Healthcare. Radcliffe Publishing.

Moynihan, R., & Cassels, A. (2005). Selling Sickness: How the Drug Companies Are Turning Us All Into Patients. Nation Books.

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Moncrieff, J. (2008). The Myth of the Chemical Cure: A Critique of Psychiatric Drug Treatment. Palgrave Macmillan.

A Medicalização da Vida Cotidiana

A medicalização da vida cotidiana é um processo multifacetado pelo qual aspectos da existência humana que antes eram compreendidos em termos sociais, morais, espirituais ou pessoais passam a ser definidos e tratados como problemas médicos. Isso implica que comportamentos, emoções, fases da vida (como a infância, adolescência, menopausa, envelhecimento) e até mesmo características de personalidade são redefinidos como condições patológicas que requerem intervenção diagnóstica e terapêutica, frequentemente farmacológica [13].

Esse fenômeno não é novo, mas tem se intensificado nas últimas décadas, impulsionado por uma série de fatores interligados. Entre eles, destacam-se os avanços tecnológicos na medicina, que permitem a identificação de cada vez mais condições biológicas; a expansão do poder e da autoridade da profissão médica; a demanda crescente da população por soluções rápidas e eficazes para o sofrimento e o desconforto; e, crucialmente, a influência da indústria farmacêutica, que se beneficia diretamente da ampliação do escopo das doenças tratáveis [14].

A indústria farmacêutica desempenha um papel significativo na promoção da medicalização. Por meio de campanhas de marketing direcionadas tanto a profissionais de saúde quanto ao público, ela contribui para a criação de novas categorias de doenças ou para a ampliação dos limites das já existentes. A publicidade de medicamentos, muitas vezes, foca em sintomas vagos e comuns, transformando experiências universais em sinais de uma patologia subjacente que necessita de tratamento. Essa estratégia não somente aumenta a venda de medicamentos, mas também reforça a ideia de que a solução para o mal-estar reside na intervenção médica, em detrimento de abordagens psicossociais ou mudanças no estilo de vida [15].

As consequências da medicalização excessiva são amplas e complexas. Ao nível individual, pode levar à patologização de experiências normais, ao uso desnecessário de medicamentos com seus potenciais efeitos colaterais, à dependência de intervenções médicas e à desresponsabilização do indivíduo em relação ao seu próprio bem-estar. Ao nível social, a medicalização pode desviar a atenção das causas sociais e estruturais do sofrimento (como desigualdade, pobreza, estresse no trabalho), transformando problemas coletivos em questões individuais de saúde. Isso pode levar a uma visão reducionista da saúde mental, onde a complexidade da experiência humana é simplificada a desequilíbrios químicos que podem ser corrigidos por uma pílula [16].

É fundamental, portanto, uma análise crítica sobre o processo de medicalização, questionando suas origens, seus impulsionadores e suas implicações. Reconhecer que nem todo sofrimento é uma doença e que nem toda solução é farmacológica é um passo importante para promover uma abordagem mais holística e humana da saúde mental.

Illich, I. (1976). Limits to Medicine: Medical Nemesis, The Expropriation of Health. Pantheon Books.

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Mídia e Interesses Comerciais: A Construção de Consensos

A mídia, para além de seu papel na representação e disseminação de informações sobre saúde mental, atua como um poderoso veículo para a construção de consensos sociais, muitas vezes alinhados a interesses comerciais. Como as notícias são enquadradas, as histórias são contadas e os especialistas são apresentados pode influenciar significativamente a percepção pública sobre as doenças mentais e as soluções propostas para elas. Quando esses processos são permeados por interesses comerciais, as narrativas podem ser distorcidas para favorecer determinados produtos ou abordagens [17].

A indústria farmacêutica, por exemplo, utiliza a mídia de diversas maneiras para promover seus produtos e influenciar a opinião pública. Isso pode ocorrer mediante publicidade direta ao consumidor (permitida em alguns países), mas também de formas mais sutis, como o financiamento de reportagens sobre doenças específicas, a criação de campanhas de conscientização sobre condições recém-definidas ou a divulgação de resultados de pesquisas favoráveis aos seus medicamentos. Essas ações, embora possam parecer informativas, muitas vezes visam criar uma demanda por tratamentos farmacológicos, mesmo para condições que poderiam ser abordadas de outras formas [18].

A simplificação e o sensacionalismo na cobertura de saúde mental são fenômenos comuns na mídia, e podem ser exacerbados por interesses comerciais. A complexidade das doenças mentais é frequentemente reduzida a manchetes chamativas ou a explicações simplistas, como a teoria do desequilíbrio químico, que justificam o uso de medicamentos. Essa abordagem não somente desconsidera a multifatoriedade das condições mentais, mas também pode gerar expectativas irrealistas sobre a eficácia dos tratamentos e minimizar os potenciais efeitos colaterais [19]. Com o advento das redes sociais e a ascensão dos influenciadores digitais, a dinâmica entre mídia e interesses comerciais ganhou novas dimensões. Empresas farmacêuticas e outros atores comerciais podem patrocinar influenciadores para promover produtos ou ideias relacionadas à saúde mental, atingindo um público vasto e muitas vezes menos crítico. A linha entre conteúdo editorial e publicidade torna-se cada vez mais tênue, dificultando para o público discernir a origem e o propósito das informações que consomem. A busca por visibilidade e engajamento nas redes sociais também pode

levar à disseminação de informações não verificadas ou à promoção de soluções rápidas e milagrosas para problemas complexos de saúde mental [20].

Em suma, a mídia, em sua intersecção com interesses comerciais, desempenha um papel ativo na construção de narrativas sobre as doenças mentais. É fundamental que o público desenvolva um senso crítico apurado para questionar as informações que recebe, buscando fontes diversas e confiáveis, e que os veículos de comunicação e os influenciadores digitais atuem com responsabilidade e transparência, priorizando a saúde e o bem-estar da população acima de quaisquer interesses comerciais.

Petersen, A., & Lupton, D. (1996). The New Public Health: Health and Self in the Age of Risk. Sage Publications.

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Análise Crítica das Narrativas Dominantes

A análise das narrativas sobre doenças mentais, conforme construídas pela mídia e pela ciência sob a influência de interesses comerciais, revela um panorama complexo e, por vezes, problemático. A hegemonia de um modelo biomédico, impulsionado pela indústria farmacêutica, tem levado à prevalência de explicações reducionistas para o sofrimento humano e à supervalorização de soluções farmacológicas. Essa dinâmica cria um ciclo onde a mídia amplifica as mensagens da ciência (muitas vezes já influenciadas por interesses comerciais), que por sua vez reforçam a necessidade de produtos e tratamentos específicos.

Um exemplo claro dessa construção de narrativas pode ser observado na forma como o Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) tem sido abordado. A mídia apresenta frequentemente o TDAH como uma condição neurobiológica com causas genéticas e desequilíbrios químicos, necessitando de tratamento medicamentoso. Essa narrativa, embora baseada em pesquisas científicas (muitas delas financiadas pela indústria), simplifica a complexidade do transtorno, negligenciando fatores psicossociais, educacionais e ambientais que podem contribuir para os sintomas. A promoção de medicamentos para TDAH, muitas vezes, é acompanhada de campanhas de conscientização que, ao mesmo tempo, em que informam, também podem gerar uma demanda por diagnósticos e tratamentos farmacológicos, mesmo em casos onde outras intervenções seriam mais apropriadas [21].

Outro caso emblemático é a medicalização da tristeza e da ansiedade. Em uma sociedade que valoriza a felicidade constante e a alta desempenho, sentimentos como tristeza, luto ou ansiedade, que são inerentes à experiência humana, são frequentemente patologizados e transformados em transtornos depressivos ou de ansiedade. A mídia, ao retratar a depressão como uma doença cerebral causada por um "desequilíbrio químico" (uma teoria que carece de evidências científicas robustas), reforça a ideia de que a solução está em medicamentos que "corrigem" esse desequilíbrio. Essa narrativa, amplamente difundida, desconsidera o contexto social, as experiências de vida e os fatores psicológicos que contribuem para o sofrimento, promovendo uma visão simplista e medicalizada da saúde mental [22].

Os mecanismos de influência e persuasão são sutis, mas eficazes. A repetição de mensagens, a associação de medicamentos a uma vida "normal" e "produtiva", o uso de depoimentos de "especialistas" (muitas vezes com conflitos de interesse não declarados) e a simplificação de conceitos científicos complexos contribuem para a construção de um consenso social em torno da medicalização. A mídia, ao dar visibilidade a certas pesquisas e especialistas em detrimento de outros, e ao enquadrar as discussões de uma determinada maneira, exerce um poder significativo na formação da opinião pública e na legitimação de certas abordagens [23].

As implicações éticas e sociais dessas narrativas são profundas. A patologização de experiências normais pode levar à superdiagnóstico e ao uso desnecessário de medicamentos, com seus potenciais efeitos colaterais e riscos de dependência. Além disso, ao focar exclusivamente em soluções individuais e farmacológicas, desvia-se a atenção das causas sociais e estruturais do sofrimento mental, como a desigualdade, a exclusão social, o estresse no trabalho e a falta de acesso a serviços de saúde mental de qualidade. Essa abordagem individualizante e medicalizante pode, paradoxalmente, aumentar o estigma, ao reforçar a ideia de que o problema reside no indivíduo e não em um sistema social que pode ser adoecedor.

É imperativo, portanto, que a sociedade, os profissionais de saúde, os pesquisadores e os veículos de comunicação adotem uma postura crítica em relação às narrativas dominantes sobre doenças mentais. Questionar as fontes de informação, analisar os conflitos de interesse, promover uma compreensão mais holística e contextualizada do sofrimento humano e valorizar abordagens não farmacológicas são passos essenciais para desconstruir narrativas influenciadas por interesses comerciais e promover uma saúde mental verdadeiramente integral e ética.

Conrad, P., & Potter, D. (2000). The social construction of ADHD: The way to a medicalized society. Social Problems, 47(1), 1-18.

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Moynihan, R., & Cassels, A. (2005). Selling Sickness: How the Drug Companies Are Turning Us All Into Patients. Nation Books.

Conclusão

Este artigo buscou analisar criticamente o papel da mídia e da ciência na construção social das doenças mentais, com um foco particular nas narrativas influenciadas por interesses comerciais. Demonstramos que a compreensão das doenças mentais vai além de uma mera categorização biológica, sendo profundamente moldada por processos sociais, culturais e econômicos. A mídia e a ciência, embora com funções distintas, atuam em conjunto na edificação dessas narrativas, influenciando a percepção pública, a prática clínica e as políticas de saúde.

Evidenciamos que a relação entre a indústria farmacêutica e a psiquiatria é um fator crucial nessa dinâmica. A influência dos interesses comerciais se manifesta na expansão das categorias diagnósticas, na promoção de tratamentos farmacológicos e na disseminação de narrativas que simplificam a complexidade do sofrimento mental. A medicalização da vida cotidiana, impulsionada por essa intersecção de interesses, transforma experiências humanas normais em patologias, desviando a atenção das causas sociais e estruturais do mal-estar e reforçando a dependência de soluções individualizadas e medicamentosas.

A mídia, por sua vez, atua como um poderoso amplificador dessas narrativas, muitas vezes de forma acrítica, contribuindo para a construção de consensos que podem favorecer interesses comerciais em detrimento do bem-estar integral dos indivíduos. A simplificação, o sensacionalismo e a falta de transparência na veiculação de informações sobre saúde mental podem perpetuar estigmas, gerar expectativas irrealistas e desinformar o público.

As implicações para a saúde pública são significativas. A patologização excessiva e a supervalorização de abordagens farmacológicas podem levar ao uso desnecessário de medicamentos, com seus potenciais efeitos adversos, e à negligência de intervenções psicossociais e comunitárias. Além disso, ao individualizar o sofrimento, essas narrativas podem obscurecer a necessidade de transformações sociais e políticas que abordem as raízes do mal-estar mental.

Para uma abordagem mais ética e abrangente da saúde mental, é imperativo que a sociedade adote uma postura crítica em relação às narrativas dominantes. Isso implica questionar as fontes de informação, analisar os conflitos de interesse, promover uma compreensão mais holística e contextualizada do sofrimento humano e valorizar a diversidade de abordagens terapêuticas. A ciência deve buscar uma maior autonomia em relação aos interesses comerciais, e a mídia deve assumir sua responsabilidade social, promovendo uma cobertura mais precisa, ética e sensível sobre as doenças mentais.

Futuras pesquisas poderiam aprofundar a análise de casos específicos de construção de narrativas, investigar o impacto das redes sociais na medicalização e na percepção pública da saúde mental, e explorar modelos alternativos de cuidado que desmedicalizem o sofrimento e promovam a saúde mental em uma perspectiva mais ampla e socialmente engajada. Somente através de uma análise crítica e contínua poderemos desvendar as complexas interações entre mídia, ciência e interesses comerciais, e trabalhar para uma compreensão da saúde mental que priorize o bem- estar humano acima de tudo.

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