O FILME CORINGA SOB O VIÉS DA PSICOLOGIA SOCIAL

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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.14915051


Ana Luiza Coelho de Britto Maluf1
Daniela Emilena Santiago2


RESUMO
O presente texto consiste em uma reflexão teórica sobre o filme Coringa sob o viés da Psicologia Social. Metodologicamente o texto foi elaborado partindo da apresentação inicial do filme, com os principais eventos que demarcam a história apresentada. Na sequência foi realizada análise de alguns eventos do filme com base na Psicologia Social, em especial com o aporte do pensamento de Silva Lane. Pudemos inferir que o filme retrata uma série de problemas e questões sociais expressas no personagem principal da trama, o Coringa, e, tais fenômenos são lidos como resultado da realidade social em que o personagem está inserido. Nesse sentido, elementos como a doença mental, a agressão, a segregação e a exclusão social expressas na vida do protagonista são compreendidos como resultado da realidade social em que o personagem estava inserido. Tais elementos salientam a importância do debate em torno de elementos que são caros à Psicologia Social como a defesa das minorias e dos segmentos sociais excluídos bem como o fortalecimento das políticas sociais de defesa a tais públicos.
Palavras-chave: Psicologia Social, Coringa, Compromisso Social.

ABSTRACT
This text consists of a theoretical reflection on the film Joker from the perspective of Social Psychology. Methodologically, the text was prepared based on the initial presentation of the film, with the main events that demarcate the story presented. Subsequently, an analysis of some events in the film was carried out based on Social Psychology, especially with the contribution of Silva Lane's thinking. We were able to infer that the film portrays a series of problems and social issues expressed in the main character of the plot, the Joker, and such phenomena are read as a result of the social reality in which the character is inserted. In this sense, elements such as mental illness, aggression, segregation and social exclusion expressed in the life of the protagonist are understood as a result of the social reality in which the character was inserted. Such elements highlight the importance of the debate around elements that are dear to Social Psychology, such as the defense of minorities and excluded social segments, as well as the strengthening of social policies to defend such groups.
Keywords: Social Psychology, Joker, Social Commitment.

1 INTRODUÇÃO

Aos poucos eu vou percebendo
Os ciclos vão acontecendo
Padrões nos meus comportamentos
Gatilhos e ressentimentos
Sempre prontos pra disparar
Sem mira e sem razão pra estar
Trancado no mesmo lugar
Que esse cara que eu não sei gostar: Eu3

O trecho acima é um recorte da música Casa Assombrada, da banda de rock nacional Fresno. Nela vemos um pequeno retrato de uma pessoa que demonstra ter consciência de suas questões subjetivas, de seus “gatilhos e ressentimentos” e de compreender que os mesmos sempre estão prontos à “disparar”. Escolhemos esse trecho para iniciar o presente texto porque o mesmo evoca a importância de pensarmos sobre os nossos comportamentos, e, mais, ainda que na música isso não seja dito, de refletirmos em que medidas os gatilhos e ressentimentos foram construídos e estruturados a partir de nossa inserção social. Músicas, como a apresentada acima, filmes, séries e outras representações artísticas nos conferem momentos de reflexão, de revisão de conceitos e podem ser lidas pela Psicologia de maneira específica e especial.

A disciplina de Psicologia Social ofertada no curso de graduação em Psicologia da Unip consiste em uma atividade de cunho pedagógico por meio da oferta de aulas expositivas e dialógicas sobre os temas que envolvem o desenvolvimento da Psicologia Social na América Latina e no Brasil. A disciplina é ofertada aos alunos no 3º. e 4º. semestre do curso de graduação e propõe atividades diferenciadas visando a construção do conhecimento. Uma dessas atividades é a elaboração de resenha crítica de filmes, séries, músicas e demais expressões culturais acompanhadas de análise com base nos autores que ofereceram sustentação para a Psicologia Social. A atividade é realizada por meio da elaboração de um trabalho individual sob a orientação do professor responsável pela disciplina. E nela, temos a opção de refletir sobre vários aspectos, e, dentre eles sobre a estruturação da subjetividade, dos “gatilhos” em uma sociedade capitalista, por exemplo.

Isso posto, o presente artigo foi composto a partir do trabalho que fora elaborado por um dos autores, durante a frequência à disciplina, no ano de 2023. O artigo foi elaborado, no entanto, devido a eminência do segundo filme vinculado ao Coringa, no ano de 2024. Isso porque, a nosso ver, o primeiro filme, Coringa nos apresentou uma abordagem extremamente positiva no aspecto da discussão de elementos que envolvem a saúde mental e também o papel do Estado na garantia dos direitos dos segmentos mais vulneráveis ao passo que o segundo filme: Coringa, delírio a dois, lançado no ano de 2024 acaba fugindo da discussão orientada ao aspecto social destoando assim da primeira plataforma fílmica.

Nesse sentido, consideramos como válida a reflexão realizada no Coringa, ao passo que a mesma se relaciona com os conteúdos da disciplina e se mostra como um importante dispositivo de reflexão e crítica. Realizar a análise do referido filme, sob o viés da Psicologia Social, nos leva a pensar de forma analítica sobre essa expressão artística e sobre outros meios que nos impelem em refletir sobre questões e problemas sociais contemporâneos. Outro elemento que se mostra necessário é o olhar para o outro que é diferente de mim e que, nem sempre é viabilizado. Quando olho para o Coringa consigo ver algo além da patologia, da suposta loucura?. Consigo ver algo além dos sintomas ou apenas percebo esse personagem como a representação da agressão desmedida e desmensurada?.

Com tal intento o trabalho escrito elaborado e sistematizado consistiu na apresentação dos elementos que integram a obra, ou seja, conferir informações sobre a história narrada. Isso se mostra como vital para que possamos compreender informações sobre as especificidades da representação em questão. Por isso, foram recompostos os principais eventos retratados no filme para que seja possível ao leitor compreender, minimamente, aspectos afetos a narrativa, a história contada. Assim, para aqueles que, por ventura, não leram o texto, será possível a compreensão e o entendimento dos principais elementos que caracterizam a narrativa.

Partindo da apresentação inicial dos elementos que deflagram a obra, e, seguindo a proposta de análise, apresentamos a fundamentação conferida pela Psicologia Social. Para fazê-lo apontaremos os principais eixos contidos na plataforma fílmica, e, informações relacionadas a base teórica adotada. Nesse interim, consideramos que seja importante a menção a algumas bases históricas que conferiram o desenvolvimento a novas bases para a Psicologia e que influenciaram e condicionaram a Psicologia contemporânea. Por conseguinte, trata-se do que Minayo (2001) denominou como estudo teórico uma vez que o mesmo foi estruturado em torno de elementos atrelados a reflexão realizada no âmbito do impresso e de fontes que não estão situadas no universo da pesquisa de campo.

Usando assim a perspectiva de Minayo (2001) é possível ainda inferir que temos, no exemplo em pauta, um estudo de natureza qualitativa uma vez que o mesmo aborda elementos e produz conhecimentos que não podem ser quantificados, antes, são saberes que, são produzidos por meio de reflexões em torno de sentidos e de significados estruturados a partir da análise de fenômenos específicos.

Consideramos que essa produção consegue colaborar na seara da Psicologia Social, mas, também problematiza fenômenos sociais que chamam a nossa atenção para além de dados quantitativos ou de percentuais. Para a composição do texto elaboramos um item introdutório em que apresentamos informações genéricas sobre o filme e, na sequência faremos a análise sob o viés da Psicologia Social, compondo o segundo subitem desse texto.

2 O FILME CORINGA: apresentação à obra estudada

O filme Coringa foi lançado em 2019 sendo o mesmo dirigido por Todd Phillips, com duração de 122 minutos. O filme teve como protagonista Joaquim Phoenix e apresentou uma bilheteria impressionável e arrecadou US$ 1,08 bilhão. O filme, no enanto, usou o personagem icônico, Coringa, um vilão fictício que se colocou como um dos ícones na batalha contra o Batman. O personagem figurava entre as histórias em quadrinhos da DC Comics e possuiu várias adaptações em plataforma fílmica. Coringa é  um supervilão fictício que aparece nos livros de histórias em quadrinhos norte-americanos publicados pela editora estadunidense DC Comics. Foi criado por Jerry Robinson, Bill Finger e Bob Kane e apareceu pela primeira vez em Batman e figura como um dos principais antagonistas de obras ficcionais de tal envergadura (Javanian; Rahmani, 2021).

Já o filme, Coringa, conforme Javanian;Rahmani (2021), nos indicam, é ambientado na cidade fictícia de Gotham City, sendo estimado o ano de 1981 como em que os fatos teriam acontecido. O filme conta como surgiu o arqui-inimigo do Batman: o Coringa. O solitário Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) trabalha como palhaço para uma agência de talentos e tem como aspiração tornar-se um astro do stand up comedy, uma espécie de humorista famoso ao estilo stand-up. No entanto, no trabalho Arthur foi constantemente alvo de piadas e acusações constantes, principalmente em função do seu jeito tímido e por seus problemas de saúde mental (em especial o fato de ser portador do transtorno neurológico síndrome pseudobulbar e que é caracterizada por choro ou riso fora de contexto).

Na narrativa, há um momento que a hostilização chega à agressão física, contexto em que Arthur é exposto e agredido por pessoas na rua. Também há várias situações de opressão por parte do patrão de Arthur. Além disso, a hostilização é presente em transportes públicos, com metrô, ónibus e outros espaços, não apenas pela patologia apresentada por Arthur mas pela maneira com que ele se veste, como conversa e se comunica. O filme ilustra de maneira impactante a dificuldade de aceitação e inclusão de pessoas que fogem do esperado padrão normal da sociedade e o impacto desse desamparo da sociedade nela mesma. O foco da presente explanação não é defender ou justificar a violência, mas explanar sobre a interação do indivíduo com a sociedade e a dialética dessa relação. E mais, há que se considerar que na narrativa a violência aparece como uma resposta a segregação e a exclusão vivida pelo personagem.

No aspecto da vida pessoal vemos que Arthur vive com a mãe idosa, aliás, por quem é responsável no sentido de viabilizar todos os cuidados necessários, inclusive a mãe é apresentada como uma pessoa doente. Ela é morta por Arthur quando os surtos de violência e agressão começam, porém, o gatilho disparador para a morte da genitora foi o fato de Arthur descobrir sua história de vida. Nela, a mãe de Arthur havia o abandonado devido a possuir problemas mentais que a impediram de cuidar do filho. A mãe de Arthur ficara internada em instituições de tratamento específicas devido a intervenção externa. A genitora também havia lhe indicado como pai, Thomas Wayne, onde trabalhou durante muito tempo. No entanto, no filme essa ideia é desconstruída pois é indicado que a paternidade criada provinha de delírios da mãe de Arthur.

Arthur apresenta um histórico de problemas neurológicos e psicológicos e faz acompanhamento com uma profissional através de um programa do governo. As cenas que ilustram essa relação mostram uma relação fria, sem empatia, sem escuta ativa: um atendimento robotizado. Além disso, ele é portador de um transtorno neurológico chamado síndrome pseudobulbar - caracterizada por choro ou riso fora de contexto, o que dificulta ainda mais suas relações, pois as pessoas acreditam que sua risada seja irônica ou provocativa, além de torná-lo ainda mais “estranho”. O que observamos, na descrição, como um dos influenciadores para a piora, digamos assim, do quadro clínico de Arthur, foi a perda desse atendimento e, dos medicamentos que auxiliavam no controle de sua síndrome. Sem o acompanhamento e a medicação necessária, as crises passam a sair do controle.

A história nos apresenta o momento em que, após um incidente onde é espancado na rua por alguns jovens, um colega seu de trabalho lhe entrega uma arma. Inicialmente Arthur se mostra assustado com o objeto mas, aos poucos ele acostuma-se com a arma e passa a permanecer com ela o tempo todo, até que em uma de suas performances a arma cai e ele é demitido.

Em determinado momento, ao retornar para casa, depara-se dentro do metrô com jovens fazendo algazarra e importunando uma moça. Ao rir da situação, em função do seu transtorno (riso fora do contexto: na verdade ele estava nervoso) ele é agredido pelos rapazes, que acreditam que sua “risada” é direcionada a eles. Inicialmente para defender-se, mas posteriormente tomado por uma sensação de poder, ele atira e mata os três jovens: isso representa sua libertação! Na cena seguinte ele dança em frente a um espelho e pensa “até pouco tempo atrás as pessoas não me viam. Era como se eu não existisse. Mas eu existo e elas estão começando a me notar”.

A partir desse momento, ele mune-se de coragem e tem iniciativas até então impensáveis para ele: enfrenta e mata ex-colegas de trabalho, faz um stand up onde assassina o entrevistador ao vivo e imagina estar namorando a vizinha. A repercussão do caso e como as pessoas reagem a notícia de que um homem fantasiado de palhaço e que cometeu um assassinato (ruptura social) reforça seu comportamento, pois pela primeira vez ele se considera aceito, integrado socialmente.

Ao final da trama máscaras semelhantes à sua são usadas em protestos pela cidade. A sensação de poder sobre a vida das pessoas (após os assassinatos que cometeu) e da aceitação o fortalecem: ele finalmente faz parte da sociedade!. Tanto que o filme demonstra, ao final da apresentação, uma Gotham que celebra os atos do Coringa. Considerando que o filme acontece em Gotham City, cidade onde a violência extrema convive com a sociedade de maneira habitual, podemos dizer que há duas sociedades em uma: Arthur deixa a sociedade onde ele não se ajustava e entre como Coringa na sociedade onde ele torna-se uma referência, ainda que seja com base nos crimes em que cometeu.

A ideia conferida, de acordo com o filme, é de que Arthur acaba ficando resignado a uma segunda categoria ao passo que o Coringa é aceito socialmente, é respeitado e é apresentado como uma figura de referência ao mundo do crime. Partindo de tais elementos passaremos, na sequência do presente manuscrito, para refletir a respeito da obra com base nos contributos da Psicologia Social.

3 O FILME CORINGA E A PSICOLOGIA SOCIAL

O ser humano é um ser social: ele precisa de outros para sua sobrevivência. Lane (2017) nos coloca que o desenvolvimento humano, desde o nascimento, é mediado. Amparada no pensamento de Vigotski, a autora destaca a importância do adulto para a sobrevivência da criança e para a manutenção de suas necessidades fisiológicas básicas. De acordo com a autora, é o adulto que realiza a mediação de conceitos cotidianos, por meio da linguagem, e que nem sempre estão associados à sobrevivência.

Nesse processo de mediação e de construção de conceitos e de conhecimentos é que o ser humano vai se constituindo, e, vai estruturando sua subjetividade. Apesar da autora indicar que os principais dispositivos de construção da subjetividade são a família e a escola, ela aponta a importância da inserção do ser humano em vários grupos sociais, os quais, também são relevantes na delimitação da subjetividade humana. De tal forma, a subjetividade é, para Lane (2017) fundada na vida em sociedade.

Por conseguinte, conforme a autora, apesar de cada indivíduo ter suas características próprias e individuais, muito do que somos é fruto do ambiente em que estamos e das relações que vivemos. Apesar de acreditarmos que “somos aquilo que queremos ser”, em cada grupo social encontramos normas que regem a relação entre os indivíduos e modelam seu papel social (aquilo que a sociedade espera do indivíduo) e determinam nossas relações sociais. São essas relações sociais que delimitam e definem papéis sociais, os quais, buscamos corresponder na escolha e adoção de comportamentos que são inerentes. Tido de outra maneira, nos apropriamos de conceitos, conteúdos ao longo de nosso desenvolvimento e são tais referências que nos orientam na adoção de papéis sociais a serem correspondidos, alcançados e contemplados.

No filme nota-se claramente que Arthur não se enquadra dentro desse papel social: ele é “estranho”, solitário, filho único adotado de uma mãe delirante e com distúrbio de personalidade narcisista. Por mais que ele busque ser gentil, atencioso, prestativo com a mãe e com os outros, ele é rejeitado, em um contexto no qual quem não se enquadra simplesmente não pertence. A roupa “alegre” de palhaço contrapõe seu verdadeiro estado de espírito e deixa claro que seu único papel nessa sociedade é realmente ser alvo de risadas. Como ele mesmo cita durante uma de suas consultas: “a pior parte de ter uma doença mental é que as pessoas querem que você se porte como se não a tivesse.”

Importante ressaltar que isso impacta também em sua inserção laboral. Ora, sabemos que a sociedade capitalista também requer padrões, saberes e que definem os espaços e postos de trabalho. Arthur não possuía formação e sobrevivia de sua arte. No entanto, nem sempre a sociedade capitalista confere valor a expressões ou representações artísticas.

Isso porquê a doença mental e também a aparência de Arthur são diferentes, distintas daquilo que se tem idealizado como referência para o período. Vemos com Lane (2017) que a sociedade capitalista nos impõe papeis sociais a serem seguidos. A vestimenta acaba sendo um dos dispositivos que fortalece as representações conferidas às pessoas na sociedade. Como Arthur desfoca dos papéis sociais atribuídos ao homem naquele contexto acaba sendo excluído e hostilizado. Arthur não se encaixa nos padrões sociais postos como referência nos grupos sociais em que transita.

[...] em relação a todos existem expectativas de
comportamentos mais ou menos definidos e quanto
mais a relação social for fundamental para a
manutenção do grupo e da sociedade, mais precisas e
rígidas são as normas que a definem (Lane, 2017, p. 14)

Porém, Arthur acabou se encaixando em outros grupos sociais onde a violência empregada por ele não só era aceita como sancionada. Sabemos que atos de tal envergadura nunca foram defendidos pela Psicologia ou pela Psicologia Social. Mas, o que a corrente postula é que as experiências e vivências da pessoa advém, provém de uma realidade social em que está inserida e da qual foi alimentada, da qual recebeu influência. Para tanto, Lane (2017) nos coloca que há possibilidade de mudança do ser humano, ou seja, as pessoas não estão fadadas a algo. Quando a sua base, ou melhor, as suas referências para a ação mudam, os atos humanos também podem mudar.

Por analogia a nosso personagem seria possível que Arthur não cometesse os atos de violência?. Sim, poderia haver outro desfecho se a ele fosse viabilizadas outras vivências, outras bases e referências. Nesse interim há demanda por destacarmos a possível doença mental atribuída à Arthur, a loucura expressa por meio de assassinatos. Nesse caso a narrativa não nos dá informações precisas sobre as possíveis patologias do Coringa, contudo, os atos mais agressivos advém do momento em que ele perde o emprego e associado à isso é excluído do atendimento público que lhe conferia, inclusive, medicamentos. Por conseguinte, é lícito supor, ainda que de forma rudimentar, que as intervenções públicas assumiriam um papel fundamental na minimização da doença apresentada por Arthur, podendo, também nesse aspecto, interferir nas crises e na violência.

Bem, estamos pensando uma cidade hipotética, como apresentamos no início do artigo e nela, Gotham, não vemos um Estado consolidador de políticas públicas. Aliás, ao final do filme é apresentado o reino do Coringa em uma situação de grande anomia. Em tempos, a imagem retratada ao final do filme demonstra poucas e intervenções ineficientes a partir do aparato policial. No entanto, sabemos que as intervenções sociais voltadas à população mais vulnerável, em situações reais e mesmo em hipotéticas como apresentado em nosso objeto de discussão carecem de intervenção preventiva e por parte do Poder Público.

A Psicologia Social por sua vez empreendeu, no contexto do seu desenvolvimento, esforços pela defesa das minorias sociais, já excluídas do acesso à bens e serviços em geral. De acordo com Lane (2017) compete à Psicologia, como ciência e profissão, a adoção de abordagens que permitam às pessoas a construção de sua consciência de classe. E, no âmbito do cotidiano constituiria responsabilidade dos profissionais de Psicologia assumir o chamado Compromisso Social expresso pela defesa às minorias e pela consolidação e fortalecimento das políticas sociais de responsabilidade estatal.

No âmbito do entendimento ao outro, Lane (2017) propõe o rompimento do entendimento do sujeito com base em padrões previamente estabelecidos no contexto da sociedade capitalista. De acordo com a autora a Psicologia permaneceu por muitos períodos adotando a análise e categorização de sujeitos visando sua qualificação e enquadramento à padrões burgueses. Por conseguinte, Arthur deveria ser compreendido como um ser que representa parte das mazelas geradas e potencializadas na sociedade capitalista e abordado enquanto tal visando sua proteção e sua segurança, o que, poderia evitar muitas intercorrências. A noção de ter sido negligenciado desde a infância, a adolescência e vida adulta comprometida precisariam ser lidas como pedido de socorro e ajuda e nunca de condicionamento ou de exclusão social.

Bernardes (2016) nos coloca que a Psicologia brasileira por muitos anos recorreu a base experimental para o desenvolvimento de intervenções voltadas ao ajuste e ao controle dos corpos. Porém, o que Lane (2017) nos indica é a possibilidade de rompimento com práticas que já estavam enraizadas no fazer dos profissionais e que fossem mais orientadas para a proteção dos segmentos sociais mais vulnerabilizados. Possivelmente, se olhássemos a obra sob o viés do enquadramento poderíamos desenvolver julgamentos de forma a responsabilizar Arthur pelo sofrimento e violência que viveu antes de torna-se Coringa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao falar dos papéis sociais, Silvia Lane (2017) diz que ao assumirmos que nossa identidade social é fruto de escolhas feitas devido nossa genética, constituição física e personalidade estamos reproduzindo o que é esperado pelo grupo que busca nos definir como “bem ajustados” ou não. Essa é a realidade de Arthur até o momento da ruptura (assassinato no metrô): ele claramente faz parte dos não ajustados e consequentemente, dos excluídos. Quando não compreendemos Arthur como resultado do meio social mas da genética ou da falta de vontade dele mesmo em superar suas questões estaremos retomando e fortalecendo o discurso opressor e agressor de toda uma sociedade que julga e condena aquele que já padece de exclusão social.

A partir desse momento, ele passa a enfrentar e questionar o papel á ele imposto até então e busca as razões históricas que explicam a sua maneira de ser, seu papel na sociedade (“até pouco tempo atrás as pessoas não me viam. Era como se eu não existisse. Mas eu existo e elas estão começando a me notar”): ele está aí desenvolvendo a consciência de si mesmo!. No caso apresentado, no entanto, observamos que Arthur desenvolveu atos agressivos, chegando até o assassinato, porém, isso também poderia ter sido evitado se ele tivesse tido uma rede de apoio para sua proteção de si mesmo, englobando ai ações empreendidas pelo poder público em prol de sua proteção.

No que diz respeito a Psicologia Social a consideramos como extremamente importante a medida que nos permite ler a realidade e a sociedade de forma crítica. Além disso, a atividade proposta pela disciplina é vital para que possamos compreender e ler a realidade apresentada e expressa em obras ficcionais.

E mais, ainda que seja ficcional nos traz elementos que estão presentes na realidade das populações excluídas. A Psicologia, por outro lado, se coloca em prol da defesa dos segmentos excluídos e também se posiciona em favor da consolidação de políticas sociais que possam diminuir o abismo social existente na sociedade capitalista, recorrendo assim a todos os elementos, como a arte, que nos façam problematizar sobre as questões sociais. Há aliás, um destaque para o fato de que as pessoas podem ter momentos de catar-se em representações artísticas e culturais, as quais, eventualmente, não teriam por meio de abordagens ou intervenções tradicionais fortalecendo assim a importância da arte para o ser humano e para a subjetividade humana como um todo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Bernardes, J. de S. História. In: STREY, M. N; JACQUES, M. G. C. (Orgs.) Psicologia social contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2016.

JAVANIAN, M. H.; RAHMANI, F.. Killing Joke: A Study of the Carnivalesque Discourse in Todd Phillips’ Joker. Bakhtiniana: Revista de Estudos do Discurso, v. 16, n. 3, p. 39–56, jul. 2021.

LANE, S. T. M. O que é psicologia social. São Paulo: Brasiliense, 2017.

MINAYO, M. C. S. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 25. ed. rev. atual. Petrópolis: Vozes, 2001.


1 Discente do Curso Superior de Psicologia do Instituto de Ciências Humanas da UNIP, Campus Assis. E-mail: [email protected]

2 Docente do Curso Superior de Psicologia do Instituto de Ciências Humanas da UNIP, Campus Assis-SP. Mestre em Psicologia pela Unesp, Mestre em História pela Unesp e Doutora em Unesp. E-mail: [email protected]

3 Disponível em https://www.letras.mus.br/fresno/casa-assombrada/. Acesso em 22 de fev. de 2025.