LUDICIDADE COMO MEDIAÇÃO PEDAGÓGICA NO ENSINO DA MATEMÁTICA
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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.15540385
Lindsay Figueiredo De Sá1
Átila Barros2
RESUMO
Esta pesquisa tem como objetivo refletir sobre a importância da ludicidade dentro do processo e ensino e aprendizagem da matemática, analisando de que maneira essa abordagem pode contribuir para tornar a disciplina mais atrativa e significativa, especialmente diante do desinteresse frequente por parte dos alunos. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, realizada por meio de revisão de literatura, com base em autores que defendem o uso do lúdico como ferramenta pedagógica e reconhecem o brincar como elemento essencial no desenvolvimento da aprendizagem, como Vygotsky, Kishimoto, Jean Piaget e Paulo Freire. Além disso, o estudo discute como a inserção de práticas lúdicas pode ressignificar a experiência com a disciplina, despertando a curiosidade, promovendo o pensamento crítico e favorecendo uma relação mais próxima com o conteúdo.
Palavras-chave: Ludicidade; Ensino da matemática; Aprendizagem significativa.
ABSTRACT
This article aims to reflect on the importance of playfulness in the teaching and learning process of mathematics, analyzing how this approach can contribute to making the subject more engaging and meaningful, especially in the face of students' frequent disinterest. This is a qualitative research study conducted through a literature review, based on authors who advocate the use of play as a pedagogical tool and recognize play as an essential element in the development of learning, such as Vygotsky, Kishimoto, Jean Piaget, and Paulo Freire. Furthermore, the study discusses how the integration of playful practices can reframe students' experience with the subject, stimulating curiosity, promoting critical thinking, and fostering a closer relationship with mathematical content.
Keywords: Playfulness; Mathematics teaching; Meaningful learning.
INTRODUÇÃO
A Matemática, ao longo da história da educação formal, tem sido reiteradamente identificada como uma disciplina de elevada complexidade, marcada pela abstração conceitual e por metodologias de ensino ancoradas em paradigmas tradicionais e transmissivos. Esta percepção socialmente compartilhada, reforçada por práticas pedagógicas centradas na memorização de fórmulas e na resolução mecânica de exercícios, contribui para a consolidação de um imaginário coletivo que associa o conhecimento matemático a um território inóspito, acessível apenas aos que possuem uma suposta predisposição intelectual para os “números”. Tal quadro, longe de ser casual, revela-se como expressão de uma estrutura escolar que privilegia a homogeneização dos sujeitos e a padronização dos processos de aprendizagem, em detrimento da escuta sensível e da valorização da experiência concreta do educando.
Nesse contexto, a abordagem lúdica emerge como uma estratégia pedagógica que visa ressignificar a experiência do ensino-aprendizagem da Matemática, ao incorporar dimensões afetivas, interativas e criativas ao processo educacional. A ludicidade, conforme argumenta Kishimoto (1994), não se reduz a uma mera atividade de entretenimento, mas configura-se como uma linguagem simbólica de elevada complexidade, por meio da qual a criança reorganiza o mundo e constrói sentidos a partir de sua experiência. O jogo, enquanto estrutura dotada de regras, desafios e objetivos, opera como uma mediação potente entre o sujeito e o saber abstrato, tornando-o tangível, vivenciado e, por isso mesmo, significativo. A importância do brincar para o desenvolvimento cognitivo e emocional do indivíduo encontra respaldo teórico nas formulações de Lev Vygotsky, para quem o jogo constitui um espaço privilegiado de internalização das funções psicológicas superiores. Em A Formação Social da Mente (1998), Vygotsky assevera que “é no brincar que a criança aprende a agir em um mundo imaginário, obedecendo às regras do mundo real”. Essa dialética entre imaginação e realidade permite à criança projetar-se simbolicamente, elaborar hipóteses, testar soluções e, ao fazê-lo, desenvolver capacidades como atenção voluntária, memória lógica e raciocínio abstrato, competências fundamentais para o aprendizado da Matemática.
O pensamento de Jean Piaget (1976) também é fundamental para a compreensão da ludicidade como instrumento de desenvolvimento cognitivo. Em A equilibração das estruturas cognitivas, o autor descreve o processo de aprendizagem como resultado da interação entre os mecanismos de assimilação e acomodação, que permitem ao sujeito construir progressivamente estruturas mentais mais complexas. Nesse sentido, os jogos educativos podem ser compreendidos como situações-problema que promovem desequilíbrios cognitivos desafiadores, ensejando novas formas de organização mental e favorecendo a equilibração. Como afirma Piaget (1970, p. 36), “a verdadeira educação não consiste em preencher vasilhas vazias, mas em ajudar cada mente a florescer por sua própria força e a formar estruturas coerentes”.
Apesar do robusto aparato teórico que sustenta a ludicidade como instrumento didático, sua inserção efetiva no cotidiano das práticas escolares, especialmente no ensino de Matemática, ainda se depara com inúmeros entraves. A ausência de materiais didáticos adequados, tanto em quantidade quanto em qualidade, limita a operacionalização de propostas pedagógicas que articulem ludicidade e conteúdo curricular de maneira significativa. Ademais, a insuficiência da formação docente continuada, orientada para o domínio de metodologias ativas e práticas interdisciplinares, compromete a capacidade do professor de atuar como mediador criativo e reflexivo. Conforme salienta Paulo Freire (1996), “ensinar exige curiosidade, exige disponibilidade para o novo, exige humildade para aprender” (p. 41). No entanto, a rigidez das estruturas escolares e a precariedade das condições de trabalho muitas vezes forçam o professor a recorrer a métodos tradicionais, baseados na repetição e na autoridade, por não se sentir respaldado institucionalmente para promover a inovação. Como alerta Freire (2003), em Pedagogia do Oprimido, a educação bancária perpetua a passividade dos educandos e bloqueia a emergência de sujeitos críticos e autônomos. A superação dessa lógica demanda não apenas investimento em infraestrutura pedagógica, mas, sobretudo, um redirecionamento ético e epistemológico do projeto educacional. É necessário afirmar a centralidade do sujeito aprendente, respeitar suas singularidades cognitivas e emocionais, e reconhecer o jogo como forma legítima de expressão e produção de conhecimento. Como nos ensina Vygotsky (1988), “o aprendizado escolar só se torna efetivo quando se apoia no nível de desenvolvimento potencial do aluno, isto é, naquilo que ele é capaz de realizar com a mediação de outro” (p. 112).
Portanto, a ludicidade, quando assumida como mediação pedagógica intencional e estruturada, pode não apenas mitigar o desinteresse pela Matemática, mas também promover uma transformação mais profunda nos modos de relação entre o sujeito, o saber e a escola. Tal transformação exige, todavia, que o professor seja também reconhecido como sujeito em constante formação, cuja autonomia intelectual e criativa seja estimulada por políticas públicas educacionais que valorizem a pesquisa-ação, a troca colaborativa de experiências e a reflexão crítica sobre a prática docente.
Repensar o ensino de Matemática à luz das contribuições teóricas de Freire, Vygotsky, Kishimoto e Piaget implica compreender que o saber não é algo que se impõe, mas que se constrói no entrelaçamento entre razão e afeto, lógica e imaginação, teoria e experiência. A ludicidade, ao ocupar o lugar de mediação didática, permite não apenas o acesso mais efetivo ao conhecimento matemático, mas também a humanização dos processos educativos. É urgente, pois, que a escola abandone a concepção mecanicista de ensino e passe a investir em uma pedagogia emancipadora, capaz de reconhecer no ato de brincar um gesto de resistência, criação e potência.
MÉTODO
Este estudo insere-se no campo da pesquisa qualitativa, alicerçada metodologicamente na revisão de literatura, e tem por escopo examinar a centralidade da ludicidade como estratégia pedagógica transformadora no ensino da Matemática. A pesquisa, de natureza bibliográfica e caráter exploratório-interpretativo, fundamenta-se na análise crítica de contribuições teóricas consagradas que tratam da articulação entre o desenvolvimento cognitivo infantil, a mediação didática e a importância do brincar como processo estruturante da aprendizagem. Nesse sentido, foram mobilizadas obras e pensamentos de autores como Lev Semionovich Vygotsky, Jean Piaget, Paulo Freire e Tizuko Morchida Kishimoto, cujas produções constituem referências paradigmáticas para a reflexão educacional contemporânea.
A escolha da revisão de literatura como método de investigação responde à necessidade de mapear, sistematizar e interpretar os aportes teóricos disponíveis sobre o tema, com o intuito de construir um referencial sólido que subsidie a elaboração de práticas pedagógicas inovadoras, especialmente no enfrentamento do desinteresse recorrente dos estudantes diante da Matemática. Como destaca Bardin (1977), o procedimento de análise de conteúdo, quando orientado por critérios rigorosos de seleção, leitura e categorização, permite extrair sentidos latentes dos textos, identificar convergências conceituais e construir inferências analíticas pertinentes ao objeto investigado.
A seleção das fontes seguiu como critério a relevância teórico-científica dos autores para o campo da Educação, em especial para os estudos sobre a formação do pensamento lógico-matemático, os processos de internalização de conceitos abstratos e a mediação simbólica promovida pelo jogo e pela atividade lúdica. A leitura dos textos não se restringiu à descrição de ideias, mas visou à compreensão profunda das categorias conceituais mobilizadas, à identificação das relações entre os diferentes aportes teóricos e à reflexão crítica sobre as implicações dessas perspectivas para a prática docente na contemporaneidade.
Entre os fundamentos teóricos mobilizados, destaca-se o pensamento de Jean Piaget, cuja teoria epistemológica construtivista postula que o conhecimento é fruto de um processo ativo de construção, no qual o sujeito interage com o meio e organiza cognitivamente as informações por meio de esquemas mentais. Em A equilibração das estruturas cognitivas (1976), Piaget afirma que “o desenvolvimento do conhecimento é um processo contínuo de superação de desequilíbrios, que se dá pela adaptação dos esquemas mentais à realidade por meio da assimilação e da acomodação” (p. 21). No contexto do ensino da Matemática, tal concepção implica reconhecer que o sujeito precisa ser exposto a situações desafiadoras que provoquem desequilíbrios cognitivos, para que a aprendizagem se realize de forma significativa. Nesse sentido, o uso de jogos e atividades lúdicas pode ser compreendido como um meio didático capaz de desencadear processos de equilibração. Como Piaget (1970) observa em Science of education and the psychology of the child, “o jogo não é apenas uma atividade de passatempo: ele representa uma forma de assimilação da realidade à estrutura mental do sujeito” (p. 38). Ao jogar, a criança organiza mentalmente informações, elabora estratégias, testa hipóteses e reconstrói significados, o que é particularmente relevante no domínio da Matemática, onde a abstração pode representar um obstáculo à aprendizagem se não estiver ancorada em experiências concretas.
A perspectiva de Lev Vygotsky complementa e aprofunda esse entendimento ao destacar o papel da interação social e da mediação simbólica no desenvolvimento das funções psicológicas superiores. Em A formação social da mente (1998), o autor sustenta que “toda função no desenvolvimento cultural da criança aparece duas vezes: primeiro, no nível social, e depois, no nível individual; primeiro, entre pessoas (interpsicológica) e, depois, dentro da criança (intrapsicológica)” (p. 67). Essa tese da internalização aponta para a importância da mediação do outro, especialmente do professor, como condição para que o sujeito acesse e se aproprie dos conteúdos escolares. O brincar, nesse sentido, não é apenas uma atividade espontânea, mas um espaço de aprendizagem intencionalmente mediado, que favorece a transição do nível de desenvolvimento real para o nível de desenvolvimento potencial. A obra de Paulo Freire, por sua vez, oferece os elementos ético-políticos fundamentais para compreender a ludicidade como prática de liberdade e humanização. Em Pedagogia da autonomia (1996), Freire adverte que “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção” (p. 47), e que a educação exige a compreensão do outro como sujeito histórico, portador de saberes e de experiências que devem ser respeitadas e valorizadas. A ludicidade, nessa chave de leitura, é uma forma de ruptura com o modelo “bancário” de ensino, pois desloca o centro da atividade pedagógica do professor transmissor para o aluno protagonista, que aprende fazendo, interagindo e refletindo sobre suas ações.
A pesquisadora Tizuko Morchida Kishimoto (1994), ao tratar do brincar em contextos educativos, argumenta que o jogo, enquanto atividade estruturada, permite à criança reconstruir o real por meio da imaginação, ampliando suas capacidades de representação e abstração. Para Kishimoto, “o brincar é uma linguagem através da qual a criança expressa sua compreensão do mundo e interage com ele de modo criativo” (p. 19). No ensino da Matemática, essa linguagem simbólica possibilita que conceitos como quantidade, proporção, medida e lógica sejam explorados de maneira concreta e prazerosa, respeitando o ritmo de aprendizagem de cada estudante.
A revisão de literatura realizada neste estudo não incluiu a coleta de dados empíricos, mas oferece subsídios teóricos robustos para a formulação de práticas pedagógicas inovadoras, que articulem o lúdico, o cognitivo e o afetivo no processo de ensino-aprendizagem da Matemática. A análise dos autores permitiu identificar uma convergência significativa quanto à valorização do sujeito em sua integralidade, à centralidade do brincar como mediação pedagógica e à necessidade de um ensino que respeite os processos naturais de desenvolvimento e aprendizagem da criança.
A relevância deste estudo reside na explicitação de fundamentos teóricos que sustentam a ludicidade como prática pedagógica potente, especialmente no ensino da Matemática, disciplina frequentemente envolta em resistências e desinteresse por parte dos estudantes. Ao propor a valorização do jogo, do afeto e da mediação consciente como estratégias educativas, esta pesquisa contribui para o debate sobre a urgência de uma escola que acolha a diversidade dos sujeitos e que promova experiências de aprendizagem significativas, emancipatórias e humanizadoras. É necessário, portanto, que os educadores assumam a ludicidade não como recurso secundário ou periférico, mas como elemento constitutivo de uma pedagogia crítica e libertadora. Como nos lembra Piaget (1970, p. 42), “educar é, antes de tudo, permitir que a criança invente, que descubra, que erre e reconstrua, pois é nesse processo que ela se torna, verdadeiramente, autora de seu conhecimento”. Neste sentido, a ludicidade revela-se não apenas como um recurso didático, mas como uma ética do cuidado e do reconhecimento da infância como tempo de potência e criação.
A MATEMÁTICA COMO CONSTRUÇÃO SIMBÓLICA E FORMATIVA
A Matemática, longe de constituir um conhecimento circunscrito unicamente ao campo das ciências exatas, inscreve-se como um saber estruturante da racionalidade humana, com profundas implicações na formação do pensamento lógico, abstrato, crítico e simbólico. Seu caráter epistemológico ultrapassa os limites do conteúdo curricular escolar, alcançando dimensões antropológicas, culturais e sociais que delineiam modos de conhecer, interpretar e intervir no mundo. Historicamente, a Matemática emergiu como uma das primeiras formas de organização sistemática da experiência, tendo desempenhado papel fundamental na construção das primeiras estruturas cognitivas do ser humano, desde o desenvolvimento de noções elementares de quantidade e proporção até a formalização das leis do movimento e da natureza.
Conforme explicita Jean Piaget (1976), o pensamento lógico-matemático se constrói a partir da ação do sujeito sobre o mundo, por meio de um processo ativo de assimilação e acomodação, no qual estruturas cognitivas vão sendo gradualmente transformadas pela equilibração progressiva. “O conhecimento, para Piaget, não é uma cópia do real, mas uma construção em que o sujeito é protagonista” (Piaget, 1970, p. 45). Essa construção requer experiências significativas que provoquem desequilíbrios e reorganizações sucessivas do pensamento, implicando, portanto, uma pedagogia que vá além da mera repetição mecânica de algoritmos ou da memorização desvinculada do sentido. No que se refere à sua função social, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) reconhece a Matemática como saber indispensável para a formação dos estudantes da Educação Básica, por sua aplicabilidade na vida cotidiana e por sua contribuição à formação cidadã. O documento afirma: “O conhecimento matemático é necessário para todos os alunos da Educação Básica, seja por sua grande aplicação na sociedade contemporânea, seja pelas suas potencialidades na formação de cidadãos críticos, cientes de suas responsabilidades sociais” (BNCC, 2018). Nesse sentido, a Matemática revela-se como ferramenta não apenas técnica, mas ética e política, pois participa ativamente da construção identitária do sujeito, sua autonomia intelectual e sua inserção crítica na sociedade.
Entretanto, apesar da centralidade atribuída à Matemática no discurso educacional e em sua função formativa, o cotidiano escolar revela um cenário em que este saber é frequentemente vivenciado como obstáculo, e não como possibilidade. A disciplina ainda é amplamente percebida por grande parte dos estudantes como difícil, abstrata, inacessível e desmotivadora, percepção que se reproduz ao longo das trajetórias escolares e se consolida como um imaginário social negativo em torno da Matemática. Diante desse quadro, impõe-se uma indagação fundamental: por que, apesar de sua inegável importância, a Matemática continua sendo fonte de rejeição, ansiedade e desinteresse para tantos alunos?
As respostas a essa questão remetem à forma como o ensino da Matemática tem sido historicamente concebido e praticado. O modelo tradicional, fortemente centrado na transmissão de conteúdos prontos, na rigidez metodológica e na valorização do acerto em detrimento do processo de aprendizagem, reforça uma lógica excludente e autoritária, desconsiderando os ritmos, as experiências e os saberes prévios dos estudantes. Paulo Freire (1996), ao criticar a pedagogia bancária, já denunciava o ensino como ato de depositar informações em sujeitos passivos, deslegitimando a curiosidade, a criatividade e a autonomia como dimensões constitutivas do aprender. “Ensinar exige respeito aos saberes dos educandos” (Freire, 1996, p. 27), e é justamente essa ausência de respeito ao saber construído na prática cotidiana que transforma a Matemática em linguagem estrangeira dentro das escolas. Nesse contexto, a incorporação de práticas pedagógicas baseadas na ludicidade surge como um caminho promissor para reconfigurar a relação dos estudantes com o conhecimento matemático. Tizuko Kishimoto (1994) argumenta que o brincar, enquanto linguagem simbólica e estruturada, favorece a apropriação de saberes complexos por meio de experiências significativas. Ao brincar, a criança reconstrói o real, experimenta hipóteses, mobiliza competências cognitivas e emocionais, estabelecendo conexões entre o mundo concreto e os conceitos abstratos. Para Piaget (1970), o jogo simbólico representa um estágio essencial do desenvolvimento cognitivo, no qual a criança assimila o mundo a partir de estruturas mentais cada vez mais elaboradas. “A assimilação lúdica da realidade é o ponto de partida de toda construção lógica posterior” (Piaget, 1970, p. 39).
Vygotsky (1998), por sua vez, reforça essa perspectiva ao compreender o brincar como espaço privilegiado de mediação simbólica e internalização de funções psicológicas superiores. Em sua teoria da zona de desenvolvimento proximal, o autor destaca que a aprendizagem ocorre de forma mais eficaz quando mediada por outro mais experiente, sendo o jogo uma das formas mais ricas dessa mediação. Em A Formação Social da Mente, Vygotsky afirma: “O que a criança consegue fazer hoje em colaboração, conseguirá fazer sozinha amanhã” (Vygotsky, 1998, p. 112), evidenciando que o potencial de aprendizagem extrapola aquilo que é imediatamente observável. Assim, a ludicidade, ao articular interação, imaginação e desafio, torna-se estratégia didática potente para ressignificar o processo de ensino-aprendizagem da Matemática. Além disso, não se pode ignorar que a resistência dos estudantes à Matemática também se relaciona com o modo como a escola ignora os aspectos afetivos envolvidos no ato de aprender. A ansiedade matemática, os bloqueios emocionais, o medo do erro e a vergonha do fracasso escolar são sintomas de um modelo educacional que dissocia razão e emoção, que valoriza o desempenho em detrimento da experiência, e que silencia os sujeitos em nome da objetividade. Freire (2003), em Pedagogia do Oprimido, assevera que a educação deve ser um ato de amor, coragem e diálogo, e que o erro, longe de ser punição, é parte constitutiva do processo de aprender.
Assim, compreender a Matemática como instrumento de construção de subjetividades e como saber historicamente mediado pela cultura exige, por parte da escola e dos educadores, uma profunda revisão das práticas pedagógicas. É necessário que a docência matemática se liberte da lógica puramente técnica e se comprometa com a escuta, com a ludicidade, com a problematização do cotidiano e com a formação de sujeitos críticos e autônomos. Como argumenta Piaget (1976), “ensinar não é fazer compreender, mas criar as condições para que o sujeito reconstrua, por si mesmo, a compreensão” (p. 33). Assim, torna-se urgente que a Matemática, enquanto linguagem universal de modelagem da realidade, seja também linguagem de acolhimento, de diálogo e de humanização.
O DESINTERESSE PELO ESTUDO DA MATEMÁTICA
A recorrente dificuldade enfrentada por estudantes no processo de aprendizagem da Matemática tem sido objeto de amplas reflexões no campo educacional. Longe de se tratar de uma mera questão de desempenho individual ou de predisposição cognitiva, o desinteresse pela Matemática manifesta-se como um fenômeno multifatorial, profundamente enraizado em práticas escolares cristalizadas, na desarticulação entre os conteúdos e a realidade vivenciada pelos sujeitos, e em uma tradição pedagógica que, muitas vezes, negligencia a dimensão afetiva do processo educativo. A disciplina, usualmente concebida como árida, abstrata e técnica, é comumente associada a sentimentos de frustração, insegurança e incapacidade, o que contribui para a formação de crenças limitantes e para o afastamento do estudante do conhecimento matemático enquanto construção significativa.
A persistência desse quadro, intergeracionalmente reproduzido, aponta para a existência de uma cultura escolar e social que associa a Matemática à lógica da decoreba, à autoridade do professor transmissor e à valorização do acerto como critério absoluto de validação do saber. Como destaca Piaget (1976), o conhecimento não é uma mera internalização passiva de conteúdos prontos, mas o resultado de um processo ativo de construção, que pressupõe a interação do sujeito com o objeto e com o meio. “O conhecimento é sempre uma construção do sujeito em interação com o meio e com os outros, implicando processos de assimilação e acomodação que geram progressivos equilíbrios cognitivos” (Piaget, 1970, p. 38). Diante disso, a ausência de práticas pedagógicas que dialoguem com as vivências e os repertórios dos alunos inviabiliza a construção de significados, comprometendo o vínculo com a disciplina. A descontextualização do ensino da Matemática, amplamente denunciada nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), figura como um dos principais fatores do desinteresse discente. O documento é explícito ao afirmar: “A insatisfação revela que há problemas a serem enfrentados, tais como a necessidade de reverter um ensino centrado em procedimentos mecânicos, desprovidos de significados para o aluno” (Brasil, 1997). Essa crítica evidencia a urgência de superar práticas que reduzem o conhecimento matemático a uma sucessão de técnicas e fórmulas desarticuladas do cotidiano, ignorando sua dimensão histórica, cultural e criativa. Quando o aluno não reconhece a relevância do que está sendo ensinado para sua realidade, o conteúdo torna-se alheio, fragmentado e desmobilizador.
A esse respeito, a teoria histórico-cultural de Lev Vygotsky oferece aportes fundamentais para a reconstrução do ensino da Matemática a partir da mediação simbólica e da internalização de experiências significativas. Em A formação social da mente (1998), Vygotsky sustenta que o desenvolvimento das funções psicológicas superiores ocorre por meio da interação social, sendo o outro, especialmente o professor, um mediador indispensável. A aprendizagem precede o desenvolvimento, desde que se realize na zona de desenvolvimento proximal, espaço entre aquilo que o aluno já sabe fazer de forma autônoma e aquilo que consegue realizar com apoio. Nesse sentido, o ensino da Matemática precisa estar ancorado em experiências colaborativas, na problematização de situações reais e no estímulo à reflexão crítica, de modo a tornar o saber acessível, vivo e apropriado. Entretanto, não se pode negligenciar o papel fundamental da afetividade no processo educativo, especialmente em uma disciplina como a Matemática, tão marcada pelo medo do erro e pela exigência de resultados imediatos. Paulo Freire, em Pedagogia da autonomia (1996), afirma com contundência: “Ensinar exige respeito aos saberes dos educandos” (p. 27), destacando a necessidade de estabelecer uma relação dialógica, horizontal e acolhedora entre professor e aluno. O afeto, longe de se opor à exigência, é condição para que o sujeito se engaje com segurança no processo de aprendizagem, reconhecendo-se como protagonista do próprio percurso formativo. Um ambiente seguro, em que o erro seja compreendido como parte natural do aprendizado, contribui para o fortalecimento da autoestima intelectual do estudante e para a emergência de uma relação positiva com o conhecimento.
Nesse horizonte, a ludicidade emerge como estratégia pedagógica potente para a ressignificação da Matemática no cotidiano escolar. Conforme argumenta Kishimoto (1994), o brincar constitui uma linguagem estruturante do pensamento infantil, que permite à criança interpretar, simbolizar e transformar a realidade. No contexto da Matemática, jogos, desafios e atividades lúdicas possibilitam a apropriação de conceitos complexos de maneira criativa e contextualizada. Jean Piaget (1970), ao investigar o jogo simbólico, ressalta que ele não apenas expressa o desenvolvimento da inteligência, mas o impulsiona: “Toda construção lógica tem suas raízes nas atividades sensorio-motoras da criança, que se manifestam, entre outras formas, no jogo e na exploração do ambiente” (p. 41). Assim, o ensino que incorpora o lúdico valoriza o processo de construção do conhecimento, respeita os tempos de aprendizagem e torna o conteúdo matemático mais próximo da experiência do sujeito. Do mesmo modo, Vygotsky (1988) concebe o brincar como uma forma superior de desenvolvimento, na medida em que permite à criança antecipar situações, assumir papéis e operar simbolicamente com elementos da realidade. Em um jogo de regras, por exemplo, a criança aprende a lidar com noções matemáticas como sequência, quantidade, correspondência e estratégia, ao mesmo tempo em que desenvolve atenção voluntária, memória lógica e raciocínio inferencial. Tais competências, muitas vezes inibidas em práticas de ensino rigidamente conteudistas, são estimuladas e fortalecidas no contexto de interações lúdicas e cooperativas.
Reverter o desinteresse pela Matemática implica repensar profundamente os fundamentos epistemológicos, pedagógicos e afetivos que sustentam o ensino da disciplina. A simples transmissão de conteúdos, desprovida de contextualização e de vínculos afetivos, tende a perpetuar a lógica da exclusão e a cristalizar a ideia de que a Matemática é um saber para poucos. Ao contrário, é preciso compreender que o conhecimento matemático, quando mediado de forma dialógica, lúdica e respeitosa, pode se tornar linguagem de empoderamento, de expressão e de transformação. Em consonância com Freire, Vygotsky, Piaget e Kishimoto, este estudo defende que a construção do saber exige envolvimento emocional, interação significativa e valorização das experiências prévias dos sujeitos aprendentes. É nesse encontro entre cognição e afeto, entre conhecimento e realidade, que reside a possibilidade de uma educação matemática verdadeiramente emancipadora, capaz de restituir aos estudantes o direito de aprender com sentido, prazer e dignidade.
LUDICIDADE COMO INSTRUMENTO PEDAGÓGICO
A ludicidade, compreendida não como mera atividade recreativa, mas como um processo estruturante da experiência infantil, ocupa lugar central na constituição dos sujeitos em sua integralidade cognitiva, emocional e social. Desde a infância, o brincar se apresenta como uma prática carregada de intencionalidade, através da qual a criança age, representa, simboliza e reconstrói a realidade. Como ressalta Kishimoto (1994, p. 29), “o lúdico não se restringe ao entretenimento, mas desempenha um papel fundamental no desenvolvimento cognitivo, social e emocional da criança”. Nessa perspectiva, o ato de brincar não se configura como algo periférico ao processo educativo, mas como uma dimensão epistemológica fundamental para a constituição do pensamento, da linguagem e da autonomia.
À luz da teoria histórico-cultural, Lev Vygotsky (1998) compreende o brincar como espaço privilegiado para o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, sendo a brincadeira capaz de projetar a criança para além de suas ações habituais. Ao operar em um campo simbólico mediado, a criança assume novos papéis, testa possibilidades, internaliza normas e valores e, assim, expande sua zona de desenvolvimento proximal. Em A formação social da mente, Vygotsky afirma que “na brincadeira, a criança sempre se comporta além de sua idade média, acima de seu comportamento diário; na brincadeira ela é, por assim dizer, uma cabeça mais alta do que ela mesma” (Vygotsky, 1998, p. 102). Essa superação momentânea do estágio atual de desenvolvimento, mediada por elementos simbólicos, constitui o solo fecundo para a aprendizagem intencional. A aplicação da ludicidade ao contexto escolar, especialmente no ensino da Matemática, emerge como uma estratégia didática potencializadora da aprendizagem, especialmente diante do cenário recorrente de desinteresse e dificuldade enfrentado por parte significativa dos estudantes. A Matemática, frequentemente concebida como uma disciplina abstrata e excludente, pode ser ressignificada quando integrada a práticas pedagógicas que privilegiam o jogo, a criatividade, a experimentação e a mediação afetiva. Como apontam os Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, “as crianças pequenas agem conforme a própria realidade dentro de seu cotidiano” (Brasil, 1998, v. 1, p. 27), o que impõe à escola o desafio de dialogar com as experiências concretas dos sujeitos e de construir pontes entre o saber escolar e o mundo vivido.
Nesse sentido, a ludicidade opera como linguagem simbólica e pedagógica que permite à criança externalizar conteúdos internos, experimentar hipóteses, reorganizar esquemas mentais e atribuir novos significados ao conhecimento matemático. Jean Piaget (1976), em sua teoria da equilibração, defende que o desenvolvimento cognitivo decorre de um processo dinâmico de interação entre o sujeito e o objeto de conhecimento, mediado pelos mecanismos de assimilação e acomodação. Os jogos e atividades lúdicas, ao colocarem a criança diante de situações-problema, promovem desequilíbrios cognitivos que exigem reorganizações mentais, favorecendo, assim, a construção ativa do saber. “A verdadeira aprendizagem não se limita a acumular informações, mas requer que o sujeito reestruture sua compreensão a partir de experiências significativas” (Piaget, 1970, p. 43).
A LUDICIDADE COMO METODOLOGIA NO ENSINO DA MATEMÁTICA
O ensino da Matemática, quando estruturado sobre bases lúdicas, torna-se mais acessível, significativo e transformador. Para Vygotsky (1998, p. 101), “o aprendizado adequadamente orientado impulsiona o desenvolvimento”, o que reforça a importância de práticas educativas intencionais e mediadas que promovam a aproximação entre os estudantes e o conteúdo. A ludicidade permite inserir o aluno em contextos educativos menos hierarquizados e mais participativos, favorecendo a construção coletiva do conhecimento, a valorização da experiência concreta e a superação de bloqueios afetivos comumente associados à disciplina.
O protagonismo na construção do saber, elemento basilar da pedagogia freiriana, encontra ressonância nas práticas lúdicas, ao oferecer ao educando a possibilidade de experimentar, questionar, errar e reconstruir. Como enfatiza Paulo Freire (1996), “ensinar exige respeito aos saberes dos educandos” (p. 27), e esse respeito implica considerar o universo cultural, emocional e cognitivo dos alunos, incluindo o jogo como uma forma legítima de expressão e aprendizagem. Ao assumir papel central na resolução de problemas, na construção de estratégias e na tomada de decisões, o estudante fortalece sua autoestima acadêmica e sua capacidade reflexiva. Nesse processo, os jogos matemáticos, as dinâmicas de grupo, os desafios baseados no cotidiano e os simuladores digitais configuram-se como instrumentos didáticos que dialogam com os princípios da aprendizagem construtivista. De acordo com Piaget (1976), “a construção do conhecimento matemático exige experiências que permitam à criança elaborar noções fundamentais a partir de sua ação sobre os objetos” (p. 47). A ludicidade, portanto, atua como mediadora entre a experiência concreta e a abstração formal, promovendo o desenvolvimento de competências cognitivas superiores.
Apesar de seus reconhecidos benefícios, a inserção da ludicidade no cotidiano escolar, em especial nas aulas de Matemática, enfrenta obstáculos significativos. A ausência de materiais pedagógicos apropriados, a sobrecarga curricular, a limitação de tempo e, sobretudo, a falta de formação específica dos docentes são fatores que inviabilizam uma efetiva integração das práticas lúdicas ao planejamento pedagógico. Muitas vezes, o receio dos professores em utilizar abordagens inovadoras decorre da insegurança metodológica e da escassez de apoio institucional. Como sublinha Paulo Freire (1996), o professor deve ser compreendido como sujeito ético e político, agente de transformação e não mero repetidor de fórmulas. No entanto, sua autonomia pedagógica só pode ser exercida plenamente em contextos que valorizem a formação contínua e o trabalho colaborativo.
É elementar que a instituição escolar assuma o compromisso de criar condições materiais e simbólicas para que a ludicidade possa ser incorporada de forma sistemática ao processo de ensino. Isso inclui o investimento em infraestrutura adequada, a ampliação do repertório metodológico dos docentes, a articulação entre os diferentes componentes curriculares e o reconhecimento do brincar como prática pedagógica legítima. Para Freire (1996), “a educação é um ato coletivo e dialógico”, e nesse sentido, gestores, professores, estudantes e famílias devem ser corresponsáveis na construção de propostas educativas que coloquem o aluno no centro do processo de aprendizagem. A escuta ativa dos estudantes, a identificação de seus interesses, dificuldades e modos de ser e aprender constituem elementos imprescindíveis para a efetivação de uma pedagogia lúdica e significativa. Envolver os discentes na construção das propostas educativas é reconhecer que não há aprendizagem sem desejo, sem afeto, sem pertencimento. A ludicidade, ao permitir que o aluno se reconheça no processo de aprendizagem, rompe com a lógica da padronização e reafirma a escola como espaço de produção de sentidos. A ludicidade, em suas múltiplas expressões, revela-se como uma poderosa ferramenta pedagógica capaz de tensionar e transformar os modos tradicionais de ensinar e aprender Matemática. Ao integrar cognição, afetividade, linguagem simbólica e mediação social, o brincar se afirma como eixo estruturante de práticas educativas que reconhecem o aluno como sujeito histórico, criativo e ativo em sua própria formação. Com base nas contribuições de Freire, Vygotsky, Piaget e Kishimoto, é possível afirmar que a ludicidade não constitui um recurso periférico, mas uma abordagem epistemologicamente consistente, didaticamente eficaz e eticamente necessária.
Repensar a educação matemática a partir da ludicidade é, portanto, um gesto de resistência e de reinvenção, que desafia o conformismo pedagógico e aposta na potência criadora do educando. É reconhecer que todo ato de ensinar deve ser também um ato de escuta, de acolhimento e de esperança, pois, como lembra Freire (2003), “ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A inserção da ludicidade no ensino da Matemática constitui, na contemporaneidade, uma das mais potentes alternativas para ressignificar a relação dos estudantes com esta disciplina. Longe de se configurar como recurso meramente auxiliar ou suplementar, o brincar, enquanto linguagem estruturante da infância e prática educativa simbólica, apresenta-se como estratégia metodológica essencial para fomentar um processo de ensino-aprendizagem que seja, ao mesmo tempo, crítico, afetivo, significativo e contextualizado. Fundamentado nas contribuições de teóricos como Lev Vygotsky, Jean Piaget, Paulo Freire e Tizuko Kishimoto, este estudo evidencia que a ludicidade, em sua dimensão pedagógica, promove a mobilização de competências cognitivas, emocionais e sociais, indispensáveis à formação integral do sujeito.
A Matemática, com frequência tratada sob um prisma reducionista e tecnicista, é, por vezes, desvinculada de suas origens históricas, de seus usos sociais e de sua dimensão criadora. Essa abordagem, baseada na abstração precoce, na memorização mecânica de fórmulas e na resolução repetitiva de exercícios, contribui para consolidar, entre os estudantes, um imaginário de inacessibilidade e aversão à disciplina. Como apontam os Parâmetros Curriculares Nacionais, “a insatisfação revela que há problemas a serem enfrentados, tais como a necessidade de reverter um ensino centrado em procedimentos mecânicos, desprovidos de significados para o aluno” (Brasil, 1997). A desconexão entre o conhecimento matemático e a realidade vivida pelos sujeitos compromete não apenas o desempenho escolar, mas também o sentido formativo da educação matemática. Nessa direção, a ludicidade emerge como possibilidade epistemológica e metodológica de ruptura com o modelo escolar tradicional. Como destaca Kishimoto (1994), o brincar não é uma atividade acessória, mas um instrumento privilegiado para a construção do conhecimento, pois através dele a criança se comunica, experimenta o mundo, resolve conflitos e atribui significados às suas vivências. No campo da Matemática, essa perspectiva permite que o conteúdo seja apropriado de forma ativa e criativa, colocando o estudante em posição de protagonismo na construção de saberes, ao invés de simples receptor de conteúdos abstratos.
Para Vygotsky (1998), o brincar potencializa o desenvolvimento ao permitir que a criança atue além de seu comportamento cotidiano. É na brincadeira que se configura, com maior intensidade, a chamada zona de desenvolvimento proximal, definida como o espaço entre aquilo que a criança já consegue realizar sozinha e o que ela é capaz de realizar com o auxílio de um mediador. Em A formação social da mente, o autor afirma que “o que a criança é capaz de fazer hoje em cooperação, será capaz de fazê-lo sozinha amanhã” (Vygotsky, 1998, p. 112). A atividade lúdica, portanto, opera como elemento desencadeador da aprendizagem significativa, pois integra emoção, cognição e interação social em um mesmo movimento formativo.
Jean Piaget, por sua vez, oferece importantes subsídios à compreensão do papel do jogo no desenvolvimento das estruturas cognitivas. Em sua obra A equilibração das estruturas cognitivas (1976), Piaget demonstra que a aprendizagem decorre da interação dialética entre assimilação e acomodação, conduzindo à formação de novos esquemas mentais. O jogo, ao propor desafios e situações-problema, instiga desequilíbrios que exigem reorganizações cognitivas, favorecendo, assim, a construção do conhecimento. “O conhecimento não é cópia do real, mas construção ativa do sujeito, em permanente reorganização” (PIAGET, 1970, p. 37). Quando inserido no ensino da Matemática, o jogo permite que o estudante manipule conceitos, explore hipóteses, cometa erros e refaça caminhos, constituindo-se como ferramenta heurística de alta potência formativa. O ato pedagógico, entretanto, não se limita à mediação técnico-instrumental. Paulo Freire (1996), ao propor uma pedagogia da autonomia, reforça a indissociabilidade entre conhecimento, ética e afetividade. Em sua perspectiva libertadora, o educador deve reconhecer o educando como sujeito histórico, portador de saberes e experiências que precisam ser acolhidos, respeitados e mobilizados no processo de ensino. “Ensinar exige respeito aos saberes dos educandos” (Freire, 1996, p. 27), e esse respeito pressupõe a construção de um ambiente educativo que valorize a escuta ativa, o diálogo e o acolhimento das emoções. O erro, nessa pedagogia, é compreendido não como falha, mas como etapa natural do processo de aprendizagem e como expressão do inacabamento do ser que aprende.
Dessa forma, a ludicidade no ensino da Matemática não se resume a uma estratégia para “facilitar” o conteúdo, mas se configura como prática epistemologicamente fundamentada, ética e humanizadora. Ela cria condições para que o estudante exerça sua curiosidade, desenvolva sua autonomia, sinta-se pertencente ao processo de aprendizagem e se reconheça como sujeito capaz de pensar, criticar e transformar sua realidade. Jogos matemáticos, desafios colaborativos, dinâmicas interativas e práticas gamificadas não são apenas instrumentos didáticos, mas espaços de elaboração simbólica e de engajamento ativo com o conhecimento. Para que a ludicidade possa ser efetivamente integrada ao ensino da Matemática, é imprescindível uma profunda mudança de postura pedagógica e institucional. O professor, como defende Freire (2003), deve assumir seu papel como intelectual orgânico e agente transformador, sensível às especificidades de seus alunos e comprometido com uma prática educativa que valorize a diversidade de saberes e de ritmos de aprendizagem. Contudo, essa transformação não pode ser delegada exclusivamente ao docente. A escola, em sua totalidade, deve comprometer-se com a criação de condições materiais e simbólicas para a implementação de metodologias lúdicas: isso implica investir em formação continuada, garantir recursos pedagógicos adequados, flexibilizar o currículo e fomentar uma cultura institucional de valorização do brincar.
A gestão escolar e os coletivos docentes têm papel decisivo na institucionalização de práticas pedagógicas mais sensíveis, interativas e democráticas. O planejamento colaborativo, a avaliação dialógica e a escuta das experiências dos estudantes constituem caminhos possíveis para consolidar uma educação matemática mais inclusiva e significativa. Como defende Freire (1996), a educação é ato coletivo e dialógico, e só se realiza plenamente quando todos os sujeitos envolvidos no processo participam ativamente da construção do conhecimento.
A presente reflexão demonstrou que a ludicidade deve ser compreendida como eixo estruturante do ensino da Matemática, e não como recurso esporádico ou complementar. Ao integrar cognição, emoção, experiência e mediação social, o brincar transforma a relação do aluno com a disciplina, promovendo o engajamento, o protagonismo e a significação dos conteúdos. A ludicidade, longe de comprometer a seriedade do processo formativo, contribui para aprofundá-lo, conferindo-lhe densidade humanizadora e potência emancipatória. É imperativo que continuem sendo produzidas investigações teóricas e experiências práticas que ampliem o entendimento sobre o impacto das práticas lúdicas no desempenho, na autoestima e na percepção que os estudantes constroem sobre a Matemática. Essa agenda de pesquisa é urgente para o fortalecimento de práticas pedagógicas mais criativas, afetivas e libertadoras, que enfrentem os desafios de um sistema educacional ainda marcado pela rigidez, pela homogeneização e pela desumanização.
Que o brincar, como linguagem ancestral e força criadora, continue ocupando seu espaço legítimo nas salas de aula, contribuindo para que a Matemática deixe de ser temida e passe a ser descoberta, com alegria, com sentido e com liberdade. Como propõe Freire (2003), educar é um ato de amor e coragem. E é por meio da ludicidade que este ato pode se tornar também gesto de escuta, de diálogo e de reinvenção do aprender.
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1 Discente do Curso de Pedagogia pela Universidade Estácio de Sá (Campus Teresópolis).
2 Docente dos Cursos de Pedagogia, Análise e Desenvolvimento de Sistemas e Ciências da Computação (UNESA-RJ). Doutorando em Educação pela Universidade Nacional de Rosário (UNR-ARG). Mestrado em Educação (UNESA-RJ). MBA em Data Warehouse e Business Intelligence (FI - PR). Pós-Graduado em Engenharia de Software, Antropologia, Psicopedagogia, Neuropsicopedagogia, Educação no Campo, Filosofia e Ciência da Religião (FAVENI-MG). Historiador pela Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU-SP). E-mail: [email protected]