LETRAMENTO RACIAL CRÍTICO: UMA REFLEXÃO DA (RE) CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES RACIAIS NA EDUCAÇÃO

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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10348794


Daniane Rafaela de Oliveira¹


RESUMO
Observando que a discussão e a reflexão das relações étnico-raciais na educação são importante na formação de sujeitos sociais que (re)constroem suas identidades raciais, este artigo é um recorte de uma pesquisa de Mestrado e tem como objetivo apresenta o conceito de Letramento Racial Crítico, por meio de uma breve análise de sua relevância para promover discussões sobre as identidades raciais.
Palavras-chave: Letramento Racial Crítico. Identidade. Educação.
 
1. INTRODUÇÃO

Ao compreender o conceito de letramento, entendemos o quanto sua prática é essencial em nossas vidas, pois a consciência de que a leitura e a escrita é muito mais do que o ato de codificar e decodificar o código, leva-nos ao entendimento da função social tanto do ato de ler e escrever, quanto da aprendizagem escolar em si. Nessa perspectiva o termo letramento vem sido muito, frequentemente, relacionado à prática de alfabetização, no entanto, ele pode ir além e ligar-se a outras formas de responder a tensões sociais específicas como, a questão racial.

Pensando nisso e considerando a importância do desenvolvimento da reflexão das relações étnico-raciais na educação, dentro de uma prática que valorize o reconhecimento e a construção da pluralidade de identidades raciais, esse artigo tem objetivo apresentar o conceito de Letramento Racial Crítico, por meio de uma breve análise de sua relevância para promover discussões sobre as identidades raciais. Uma vez que, trabalhar as questões raciais é algo fundamental para a construção de uma sociedade antirracista.

Segundo Cope e Kalantzis (2000) o conceito tradicional de letramento compreendia somente a prática de aprender a ler e a escrever em suas formas oficiais, como consequência de um projeto limitado à formalidade das línguas e das culturas únicas e atravessado por regras. Hoje, no entanto, o letramento caminha em uma nova direção. Os estudos de Kleimam (2014) indicam que o letramento é um elemento para o desenvolvimento de sujeitos livres e atuantes nos processos de mudanças sociais. Portanto, o conceito de letramento está atrelado a questões sociais, de modo a relacionar a leitura e a escrita à vida e a suas peculiaridades. Tal movimento fez com que em 2014 chegasse ao Brasil termo de Letramento Racial Crítico, conceito que surgiu a partir da Teoria Racial Crítica, o qual usa raça como ponto de partida para analisar diversas questões sociais.

Vale ressaltar, que uma temática centrada na questão racial é fundamental para a compreensão do racismo, das formas de escravização, das dinâmicas ocorridas no pós-abolição e no sistema de branquitude. Desse modo, quando nos debruçamos sobre a questão racial em determinado âmbito, estamos abrindo um caminho para a compreensão do funcionamento da dinâmica presente nas relações raciais da sociedade, tanto no sentido o qual favorece o desenvolvimento de uma superioridade branca, como no de que pode priorizar a construção de uma sociedade antirracista, capaz de reconhecer e valorizar a pluralidade de identidades negras.

Portanto, evidenciar o conceito de Letramento Racial Crítico, assim como sua relação com as diferentes identidades raciais é uma prática importante destacar que existe a necessidade de ler e interpretar situações raciais tão presentes nas dinâmicas sociais, possibilitando-nos o debate sobre o racismo.

2. RACISMO E ESCOLA

Dentro de uma perspectiva que busca uma constante reflexão sobre a sociedade, a escola deve constituir um espaço de discussão do conceito de raça como sendo algo socialmente, historicamente e culturalmente construído (GOMES, 2005; HALL, 2011; FERREIRA, 2012), de modo a fazer com que os alunos se (re)conheçam positivamente, como sujeitos pertencentes a população negra. Vale ressaltar que a escola, não é neutra ou isenta das questões sociais, incluindo o racismo, pelo contrário, ela é ideológica e recebe as influências sociais. Portanto, se a sociedade é racista a escola, por sua, é racista, pois “Os brancos controlam os meios de disseminar as informações; o aparelho educacional; eles formulam os conceitos, as armas e os valores do país” (NASCIMENTO, 2016, p. 54).

No entanto, proporcionar o debate e a reflexão sobre raça e racismo na escola traz a muitas crianças e adolescentes a possibilidade de se reconhecerem como pessoas negras, haja vista, que por diversas vezes, não encontram representatividade e estão sempre relacionadas a questões negativas, sendo assim o reconhecimento identitário da identidade negra torna-se enfraquecido. A escola tem, então, uma atuação importante no desenvolvimento da construção e da reconstrução das identidades raciais. 

Grada Kilomba (2020) define o racismo como uma realidade violenta que há séculos é algo fundamental para a ação política da Europa, desde os projetos europeus de escravização e colonização até a atual “Fortaleza Europa”. A autora, também, coloca que o racismo, muitas vezes, é enxergado como algo delimitado em alguma superfície, sendo periférico e marginal. Assim, o racismo não é visto como algo que faça parte da estrutura social, mas algo de fácil remoção. Isso demonstra uma fraqueza do entendimento e da compreensão do racismo e de seu modo operante em sociedade entre as pessoas.

O assunto racismo, ainda, é constantemente negado no Brasil, característica essa desenvolvida em nossas relações como consequência do período escravocrata. O brasileiro acostumou-se a negar a discussão sobre o racismo e a deslegitimar uma luta antirracista ao evitar analises das relações racializadas estabelecidas pelo contexto sociocultural. Na escola, os negros são marcados por uma trajetória difícil e de menos oportunidades do que a dos brancos.

Segundo Munanga (2005), na escola o racismo acontece nos diversos acontecimentos como, nas datas comemorativas, na ausência de figuras e imagens de crianças e famílias negras; quando as datas afirmativas de 13 de Maio ou 20 de Novembro são os únicos dias para se mostrar a história negra e, ainda assim, mostrando imagens caricatas; nos livros didáticos sem a presença de negros e negras em suas páginas, ou com a presença, mas de modo subalterno, marcada por estereotipia; na ausência de histórias contadas por seus professores para os alunos que represente as falas de luta, de cultura e do protagonismo histórico do povo negro. Tais constatações mostram-se como fator preocupante ao se analisar a (re)construção das identidades raciais dos alunos, gerando a necessidade de se fazer reflexões e estudos sobre a educação da população negra. Nesse contexto, o conceito de Letramento Racial Crítico constitue uma preciosa prática.

3. LETRAMENTO RACIAL CRÍTICO

Para iniciar seção trago a definição de Letramento Racial Crítico, que segundo Ferreira (2015) é o ato de refletir sobre raça e racismo, trazendo a possibilidade de enxergar como o entendimento sobre esse assunto é tratado no nosso dia a dia, assim como, compreender como raça e racismo têm impacto em nossas identidades sociais e em nossas vidas. “Letramento racial crítico é uma corrente dos letramentos que se propõe a estudar e entender como as relações de poder são engendradas para modelar as identidades de raça e como essas identidades atuam no seio das sociedades.” (PEREIRA; LACERDA, 2019, p. 95).

O termo Letramento Racial Crítico pode referir-se a uma dinâmica diversa. No Brasil, a primeira pesquisadora a trazer o conceito Letramento Racial Crítico foi Ferreira (2014) e para a autora o conceito é um dos pilares da Teoria Racial Crítica. Tal teoria, parte do entendimento de que a discussão sobre o racismo é fundamental para a compreensão e discussão sobre as desigualdades sociais. A autora também explica o surgimento da Teoria Racial Crítica e coloca que embora sendo usada, especialmente, em pesquisas do campo legal, foi introduzida no campo educacional por Ladson-Billings e Tate (1995). Portanto, é uma teoria que iniciou-se na área do direito englobando discussões sobre questões de raça, classe e gênero das faculdades de direito e mais tarde começou a ser analisada pelo olhar escolar como forma de enfrentamento ao racismo.

Tendo origem primeiramente no campo jurídico, os primeiros estudos sobrea TRC foram estabelecidos em meados dos anos 70, como “uma resposta à falha dos estudos críticos legais”, por meio dos estudos de Derrick Bell (africano- americano) e Alan Freeman (branco). Ambos estavam inconformados com a lentidãoda reforma racial nos Estados Unidos (FERREIRA, A. J. 2014, p. 243).

A Teoria Racial Crítica apresenta cinco princípios que definem a Teoria Racial Crítica que serão apresentados no quadro abaixo.

1A intercentricidade de raça e racismo. A Teoria Racial Crítica na educação começa com a premissa de que raça e racismo são endêmicas e permanentes na sociedade dos EUA (de Bell, 1992) e que o racismo faz a intersecção com as formas de subordinação com base em gênero, classe, sexualidade, linguagem,cultura e status de imigrante (ver Crenshaw, 1991; Espinoza, 1998).
 
2O desafio à ideologia dominante. A Teoria Racial Crítica desafia reivindicações de objetividade, neutralidade, raça, meritocracia, não ver cor, e igualdade de oportunidades, alegando que essas posturas mascaram a divisão e problemas associados com poder e privilégio dos grupos dominantes (ver Solórzano, 1997). 
 
3O compromisso com a justiça social. A agenda de pesquisa da justiça social e racial da CRT expõe a "convergência de interesse" dos ganhos de direitos civis, como o acesso ao ensino superior (ver Delgado e Stefancic, 2000), e trabalhos para a eliminação do racismo, sexismo e pobreza (ver Freire, 1970; Solórzano & Yosso, 2001).
 
4A perspectiva interdisciplinar. A Teoria Racial Crítica se estende para além das fronteiras disciplinares para analisar raça e racismo no contexto de outros domínios, tais como a sociologia, estudos da mulher, estudos étnicos, história e psicologia. A utilidade da perspectiva interdisciplinar permite uma análise mais abrangente e multifacetada de como raça, racismo e (des)igualdade racial se manifestam. 
 
5A centralidade do conhecimento experiencial. A Teoria Racial Crítica reconheceo conhecimento empírico das pessoas de cor como credível, altamente valioso e imprescindível para a compreensão, a análise e o ensino sobre a subordinação racial em todas as suas facetas (Carrasco, 1996). A Teoria Racial Crítica solicita, explicitamente, analisa e escuta as experiências vividas das pessoas de cor através de métodos contranarrativos “counterstorytelling”, tais como histórias de família, parábolas, depoimentos e crônicas (ver Delgado e Stefancic, 2000; Solórzano e Yosso, 2001; Yosso, 2005)
 

Adaptado de: Milner e Howard (2013, p. 539)

A Teoria Racial Crítica é importante para a compreensão das desigualdade e traz contribuições para as reflexões sobre aquilo que se necessita mudar socialmente. Segundo Ladson-Billings (1998) a Teoria Racial Crítica para a educação “[...] torna-se uma importante ferramenta intelectual e social para a desconstrução, reconstrução e construção: desconstrução das estruturas e discursos opressivos, a reconstrução da agência humana, e construção da equidade e relações de poder socialmente justas.” (p. 9). 

Lembro-me de um tempo escolar na infância sem referências de pessoas negras. Não existia representatividade preta nas atividades escolares, não escutei nenhuma história com a presença de princesas negras nas rodas de leitura. Entre os brinquedos, não via bonecas pretas, nos assuntos não existia a pauta racial, nos livros didáticos, não apareciam pessoas pretas, os alunos destaques, eram sempre os brancos. Enfim, não havia protagonismo preto e não se discutia essa ausência, essa lacuna.

A minha consciência enquanto pessoa preta na infância e na adolescência veio por meio familiar, mas em nenhum momento pelo espaço escolar. O meu letramento racial na infância aconteceu com a troca de experiências entre os meus familiares como forma de defesa na vivência em uma sociedade racista. E quando coloco aqui minhas experiências, faço: “leitura de mundo juntamente com a leitura da palavra referida ao mundo.” (FREIRE. 1982, p. 4). Essa minha vivência de aluna na escola, retomada hoje em minhas memórias, desperta um sentido crítico que ultrapassa a leitura da palavra e chega na leitura do mundo. 

Levando em consideração o papel das memórias em nossa formação educacional, Djamila Ribeiro (2019) ao falar sobre suas lembranças, expõe que quando criança foi ensinada somente sobre a escravidão e nada sobre a vida da população negra. 

Quando criança, fui ensinada que a população negra havia sido escrava e ponto, como se não tivesse existido uma vida anterior nas regiões de onde essas pessoas foram tirada à força. Disseram-me que a população negra era passiva e que “aceitou” a escravidão sem resistência. Também me contaram que a princesa Isabel Havia sido sua grande redentora. No entanto, essa era a história contada do ponto de vista dos vencedores... (RIBEIRO, 2019, p. 7)

Essas descrições devem levar-nos a uma reflexão sobre o que falta aos alunos para uma criticidade maior sobre a cultura e a história da pessoa negra, a fim de chegarmos a uma pedagogia antirracista e mostrar a grande insuficiência de memória das relações étnico-raciais no ensino. Nesse entendimento é importante pensar na prática de Letramento Racial Crítico.

De acordo com Ferreira (2015) o Letramento Racial Crítico em sala de aula possibilita uma reflexão das questões raciais que resultará numa consciência de sua própria identidade racial. Quando o letramento é citado compreende-se a leitura e a escrita como práticas sociais em que são considerados os contextos e as práticas das pessoas, assim como, a forma como essas experiências irão afetar os indivíduos envolvidos. Isso sem deixar de considerar o próprio sujeito e os percursos que serão efetuados por ele. Desse modo é preciso colocar em evidência a ligação do letramento racial com a construção da identidade racial.

4. AS IDENTIDADES RACIAIS E O LETRAMENTO RACIAL CRÍTICO

Ao refletirmos sobre as identidade raciais devemos compreender que a subjetividade do indivíduo é afetado pela colonialidade do ser, consequência de toda a invisibilidade provocada pelo poder e pelo saber, atravessando, assim sua auto-estima e sua construção da identidade, sendo que a atuação eurocentrica vem se fazendo por meio de inferiorização, subalternidade e desumanização da população negra. Segundo Gomes (2005), é a partir da interação com o(s) outros que a(s) identidade(s) é(são) (re)construída(s), assim como, ao mesmo tempo se transformam nesse contato, compreendendo-se de alguma forma na identidade do outro. Desse modo, entende-se que a (re)construção da (s) identidades não acontecem no “isolamento”.

As identidades raciais, também, estão ligadas ao desenvolvimento das experiências vividas que resultarão em memórias positivas ou negativas sobre ser negro na sociedade. Sobre isso, Pollak (1989) reflete sobre a existência das lembranças de uns e as zonas de sombra e os “não-ditos” de outros. Esses “não-ditos”, caracterizados como tipologia de discurso e de silêncios, são moldados pela angústia de não encontrar uma escuta, pelo sentimento de angústia de ser punido por aquilo que se diz ou de se expor a mal-entendidos. Assim, a cultura e a história da negra foram muitas vezes “não- ditas” ou mal-entendidos.

Contudo, é evidente o silenciamento negro na história educacional. Nessa perspectiva, Damascena, Miranda e Silva (2018, p. 251) falam sobre a invisibilidade do negro no cenário educacional:

Na história educacional dos negros a invisibilidade de sua inserção é um grande debate a ser explorado ainda que os mecanismos da escravidão tenham apartado o negro deste contexto, em seu processo de diáspora ele trouxe consigo saberes, práticas e ensinamentos que foram compartilhados e constituem os nossos costumes e práticas sociais, porém são poucas as informações sobre os períodos da colônia e império da inserção do negro na educação.

Essa discussão vai ao encontro da reflexão sobre o papel da construção da identidade da população negra, uma vez que, a história contada nas escolas é baseada, na maioria das vezes, na prática da exploração e da escravidão, esquecendo-se das suas contribuições para a construção da sociedade. E o resultado disso é o apagamento dessa parte tão significativa da história na educação de nossas crianças e jovens.

Assim, ao refletir sobre a memória é importante relacioná-la, mais especificamente, à afro-brasileira, a fim de examinar a importância dessa para a construção ou reconstrução de um povo. Ferreira (2013) escreve sobre a existência de um projeto do colonizador de “apagar” a memória do colonizado para que ele seja o dominado. Ademais, menciona que várias foram as ações para o sucesso desse projeto, entre eles: as formas de esquecimento.

Sabe-se de um projeto do colonizador de ‘apagar’ a memória do colonizado para que este, despido do passado, identidade se tornasse alvo fácil de dominação. Várias foram as ações para o sucesso desse projeto, desde as voltas em torno a uma “árvore do esquecimento”, até a proibição de cultos do candomblé e das demais manifestações culturais de herança africana que surgiram durante o período escravocrata, como a capoeira. (FERREIRA, 2013, p. 14)

Desse modo, o Letramento Racial Crítico nos dá suporte para repensarmos a posição construída por uma sociedade branca sobre a pessoa negra. Já que, pode ser considerado uma forma de contribuição para a compreensão dos contextos sociais, políticos e ideológicos (FERREIRA. 2015). E, ao olhar para aquilo que a sociedade brancocêntrica veio a estruturar ao longo da história, deve-se, então, colocar em evidência a reflexão acerca do mundo globalizado e a necessidade de uma leitura crítica diante dos conflitos. 

O mundo globalizado contemporâneo carrega consigo a aproximação e uma certa junção de culturas e povos diferentes, marcados muitas vezes por falta de entendimentos e choques. Tais desentendimentos, podem ser transformados na medida em que os envolvidos realizem a prática de leitura crítica de suas posturas, observando suas próprias posições e as de seus adversários. Assim é importante que os educandos estejam preparados para os conflitos com todos os tipos de diferenças e para que esse objetivo pedagógico aconteça, a prática do Letramento Crítico torna-se um meio fundamental.

Portanto, a reflexão sobre o mundo globalizado contribui com uma prática pedagógica focada no desenvolvimento do Letramento Racial Crítico, de modo a proporcionar leituras críticas sobre os conflitos gerados por culturas e povos diferentes. Pereira e Lacerda (2019) contribuem dizendo que o Letramento Racial Crítico proporciona aos indivíduos a capacidade de refletir e atuar para a transformação do status quo, com o questionamento das desigualdades naturalizadas pelo discurso hegemônico na procura por uma sociedade mais justa e igualitária. 

Paulo Freire (1982), já desenvolvia teorias e práticas em favor da cultura e da transformação social quando traz a importância de se desenvolver leitura de mundo e usar a leitura da palavra como forma de transformar a realidade vivida, de modo a escrevê-la e reescrevê-la. De fato, as práticas em sala de aula devem ser sempre repensadas para a construção de uma pedagogia que transforme a sociedade.

E fazendo um panorama sobre o Letramento Racial Crítico no ensino de Línguas Janks (2016) traz a importância dos textos, já que eles têm efeitos sociais e são construídos para dar uma versão da verdade. Por isso, é importante saber que textos não são neutros e que a língua pode ser direcionada para intuitos diferentes. O autor também fala da importância de se entender a posição de quem fala e de quem escreve. 

É relevante fazer algumas perguntas críticas: quem se beneficia e para quem essa posição ofertada é desvantajosa? Quem inclui? Quem exclui? Como essa situação, pessoa ou ação são construídas? Há outras possibilidades de caminhos de interpretar o que acontece? Quais as possíveis consequências sociais dessa visão de mundo? Essas questões não são mais do que variações da pergunta-chave para o letramento crítico: quais interesses estão sendo atendidos? (JANKS, 2016, p. 21)

Sobre o compromisso pedagógico da luta antirracista, a Teoria Racial Crítica surgiu recentemente e se engaja na discussão sobre o campo educacional vem sendo usada nos Estados Unidos para analisar as experiências de estudantes africano-americanos, latinos e, sobretudo, intersecção com classe, gênero e sexualidade. É importante saber que “a Teoria Racial Crítica tem algumas especificidades em sua abordagem que têm contribuído para discutir raça e racismo, contribuição essa que vem sendo demonstrada pelas várias pesquisas que a utilizam para a abordagem de suas pesquisas.” (FERREIRA. 2014, p. 238)

Oliveira (2019) traz para o debate a importância de se conhecer a Teoria Racial Crítica, o qual tem o termo raça como fundamental para se compreender e discutir as desigualdades sociais. Segundo a autora a Teoria Racial Crítica teve sua origem primeiramente no campo jurídico em meados dos anos 70 em resposta à fenda deixada pelos estudos críticos legais. Segundo Billings (2002) uma das premissas da Teoria Racial Crítica é o desenvolvimento da noção do conceito de raça na sociedade.

Uma das premissas é que a noção de raça tem não sido suficientemente teorizada. Há significativa teorização a respeito de classe e gênero, mas há muito pouco sobre a questão da raça. Parte do que existe apenas enfatiza a inferioridade genética e mesmo a marxismo e o neo-marxismo não falam suficientemente de raça. No entanto, sabemos que raça é uma categoria importante. Essa é, portanto, a base do esforço de constituir a teoria racial crítica. Em uma sociedade capitalista, essa teoria é profundamente necessária porque a sociedade fundamenta-se na propriedade e no direito de propriedade. Uma das coisas absurdas que aconteceu na história dos Estados Unidos é que seres humanos foram transformados em propriedade. (BILLINGS, 2002, p. 276)

Percebe-se, então, que a educação, na prática, exerce uma desigualdade quanto ao direito ao conhecimento, tal desigualdade é desenvolvida, também, pela condição racial, por isso é importante o estudo sobre raça e sua relação com a propriedade do conhecimento. Existe uma desigualdade histórica nos processos de escolarização da população, de modo a determinar as condições sociais das gerações. Isso devido ao fato de o racismo ser um importante elemento de estratificação social, materializando-se nas organizações sociais, inclusive, na escola. Desse modo, o Letramento Racial Crítico é uma ferramenta importante de combate ao racismo, por isso deve estar sempre presente na escola. 

Contudo, vale ressaltar, que desenvolver a prática de Letramento Racial Crítico é diferente de inserir, apenas, o “Letramento Racial”. É importante compreender que o papel da escola não é o de somente encaixar os conteúdos sobre a história e a cultura negra, mas de também, e principalmente, desenvolver análises sobre a atuação da população negra no desenvolvimento social. Portanto, trago o quadro ipsis litteris apresentado por Ferreira (2015) com o objetivo de mostrar as definições dos conceitos de “Letramento Racial Crítico” e “Letramento Racial.”

O quadro 1 abaixo mostra três definições de “Letramento Racial” de diferentes autores e, ao final, uma definição de “Letramento Racial Crítico”. Percebe-se, em todas as definições, perspectivas de construção de conhecimento que contemple a luta antirracista e o reconhecimento da importância da população negra, sendo que, em sua última parte, o evidenciado no quadro foi a ligação do conceito de “Letramento Racial Crítico” com as práticas pedagógicas. O “Letramento Racial Crítico” seria o responsável por trazer ferramentas para o “Letramento Racial”.

Quadro 1 – Conceitos de Letramento Racial e Letramento Racial Crítico

Terminologia
 
Definições de: Letramento Racial e Letramento Racial Crítico
 
Letramento Racial
 
"Letramento Racial é uma compreensão das formas poderosas e complexas em que raça influencia as experiências sociais, econômicas, políticas e educacionaisde indivíduos e grupos." (SKERRETT, 2011, p. 314).
 
Letramento Racial 
 
Letramento Racial, [...] obriga-nos a repensar a raça como um instrumento de controle social, geográfico eeconômico de ambos brancos e negros." (GUINIER, 2004, p. 114). 
 
Letramento Racial Crítico
 
"Ensino do letramento racial crítico é um conjunto deferramentas pedagógicas para a prática do letramento racial em ambientes escolares com crianças, com os pares no ambiente de trabalho, colegas, e assim por diante [...]. " (MOSLEY, 2010, p. 452).
 
Letramento Racial Crítico 
 
“Letramento racial crítico é refletir sobre raça e racismoe nos possibilita ver o nosso próprio entendimento de como raça e racimo são tratados no nosso dia a dia, e o quanto raça e racismo têm impacto em nossas identidades sociais e em nossas vidas, seja no trabalho, seja noambiente escolar, universitário, seja em nossas famílias,seja nas nossas relações sociais. No caso desta pesquisa, como formadora de professoras/es que sou, entender a importância de utilizar o letramento racial crítico na minha prática pedagógica é de extrema relevância para que assim possa também colaborar para que tenhamosuma sociedade mais justa, com igualdade e com equi- dade.” (FERREIRA, 2015a, p. 138) 
 
Fonte: Oliveira e Ferreira (2020)

Desse modo, as discussões propostas nessa seção mostram como o Letramento Racial Crítico é um elemento fundamental para a construção da identidade racial, bem como sua importância nas práticas educacionais, pois o estudo sobre raça e racismo propicia à sociedade uma maior compreensão sobre as estruturas que compõem nossas relações. E, uma vez que, consigamos desenvolver identidades raciais fortalecidas, a luta antirracista tornar-se-á maior e poderá propiciar aos pretos e pretas um rompimento com a cisão criada por uma sociedade marcada por pensamentos e ideias da branquitude.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo mostrou que a conceito de Letramento Racial é uma prática comprometida com a luta contra o racismo e com a formação de sujeitos sociais ativos e conscientes. Desse modo, entende-se, então, que o Letramento Racial Crítico contribui com a formação de educandos críticos e que valorizam o (re)conhecimento racial. É importante salientar, também, que o Letramento Racial Crítico possibilita uma nova forma de ler o mundo, trazendo as questões ligadas a raça como ponto de partida para mudanças nos diversos âmbitos da sociedade.

Portanto, por meio da formação da consciência gerada pelo conhecimento da história e da cultura da população negra, bem como, do entendimento crítico e reflexivo desses saberes, poderemos desenvolver a construção de sujeitos transformadores por meio da (re)construção de suas identidades raciais.

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¹ Mestranda em Linguística Aplicada Interdisciplinar do Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da Universidade Federal do Rio de Janeiro e-mail: [email protected]