EPISTEMOLOGIAS INDÍGENAS E MATEMÁTICA: COSMOLOGIAS NA CONSTRUÇÃO DOS NÚMEROS NO CONTEXTO DO NORDESTE BRASILEIRO
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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.15672567
Francisco Pereira de Andrade1
Kevin Cristian Paulino Freires2
Micael Campos da Silva3
Francisco Damião Bezerra4
RESUMO
O presente estudo investiga a intersecção entre as epistemologias indígenas e a matemática, com foco nas cosmologias que fundamentam a construção do conceito de número entre povos originários do nordeste brasileiro. Parte-se do reconhecimento de que os saberes indígenas são expressões legítimas de conhecimento, historicamente marginalizados pelas estruturas curriculares ocidentais, mas essenciais para a compreensão de práticas matemáticas culturalmente situadas. O objetivo central da pesquisa consiste em analisar como as cosmologias indígenas constroem e expressam noções numéricas por meio de rituais, artefatos, narrativas e relações simbólicas com a natureza. A metodologia adotada é de natureza qualitativa, com base em revisão bibliográfica e análise documental, permitindo a articulação crítica entre os campos da etnomatemática, da interculturalidade e da decolonialidade. Os resultados apontam que as práticas matemáticas indígenas envolvem sistemas próprios de contagem e mensuração, orientados por ciclos naturais, elementos mitológicos e organização coletiva, revelando formas plurais de pensar o número e o tempo. As discussões evidenciam a urgência de romper com a concepção universalista da matemática escolar, propondo a valorização de uma pedagogia plural, que considere as especificidades culturais como fundamentos para a aprendizagem significativa. A ausência desses saberes no currículo escolar revela um desafio urgente à educação brasileira, especialmente em contextos historicamente marcados por exclusão e silenciamento. Conclui-se que a inserção das epistemologias indígenas no campo educacional representa não somente um gesto político de reparação histórica, mas também uma oportunidade de enriquecer os processos de ensino e aprendizagem da matemática com base no diálogo entre diferentes racionalidades. O estudo reforça a necessidade de práticas pedagógicas mais inclusivas, que reconheçam os povos indígenas como produtores ativos de saberes complexos, válidos e necessários.
Palavras-chave: Cosmologia. Cultura indígena. Educação matemática. Epistemologia. Nordeste brasileiro.
ABSTRACT
This study investigates the intersection between indigenous epistemologies and mathematics, focusing on the cosmologies that underpin the construction of the concept of number among indigenous peoples of northeastern Brazil. It is based on the recognition that indigenous knowledge is a legitimate expression of knowledge, historically marginalized by Western curricular structures, but essential for understanding culturally situated mathematical practices. The main objective of the research is to analyze how indigenous cosmologies construct and express numerical notions through rituals, artifacts, narratives, and symbolic relationships with nature. The methodology adopted is qualitative in nature, based on bibliographic review and documentary analysis, allowing for critical articulation between the fields of ethnomathematics, interculturality, and decoloniality. The results indicate that indigenous mathematical practices involve their own systems of counting and measurement, guided by natural cycles, mythological elements, and collective organization, revealing plural ways of thinking about number and time. The discussions highlight the urgency of breaking with the universalist conception of school mathematics, proposing the valorization of a plural pedagogy that considers cultural specificities as foundations for meaningful learning. The absence of this knowledge in the school curriculum reveals an urgent challenge to Brazilian education, especially in contexts historically marked by exclusion and silencing. It is concluded that the inclusion of indigenous epistemologies in the educational field represents not only a political gesture of historical reparation, but also an opportunity to enrich the processes of teaching and learning mathematics based on the dialogue between different rationalities. The study reinforces the need for more inclusive pedagogical practices that recognize indigenous peoples as active producers of complex, valid and necessary knowledge.
Keywords: Cosmology. Indigenous culture. Mathematical education. Epistemology. Northeast Brazil.
1 Introdução
As epistemologias indígenas representam formas próprias de conhecimento, produzidas e organizadas a partir das vivências, cosmologias, línguas, espiritualidades e modos de vida dos povos originários. Estas epistemologias não somente resistem à colonização do saber, mas também oferecem olhares alternativos para compreender e interagir com o mundo, incluindo saberes matemáticos que emergem de práticas culturais, ambientais e simbólicas. A matemática, tradicionalmente concebida como uma ciência exata e universal, é ressignificada quando observada sob a ótica de diferentes cosmologias indígenas, que constroem, transmitem e aplicam noções de número, medida, espaço e tempo de forma situada e culturalmente orientada. Nesse contexto, emerge a necessidade de ampliar o entendimento da matemática como um campo plural e intercultural.
Dessa maneira, é no entrelaçamento entre epistemologias indígenas e matemática que se insere este estudo, tomando como recorte o contexto sociocultural do nordeste brasileiro, região marcada por uma diversidade de etnias, saberes tradicionais e práticas educativas contra-hegemônicas. A presença de comunidades indígenas como os Pankararu, os Xukuru, os Fulni-ô, entre outros, revela a persistência de cosmologias ancestrais que, mesmo diante de processos de silenciamento e marginalização histórica, continuam a expressar seus conhecimentos numéricos, espaciais e lógicos a partir de rituais, artefatos, narrativas e modos de organização social. Assim, a pesquisa considera a importância de compreender como tais cosmologias constroem noções matemáticas que, embora distintas do modelo eurocêntrico, são ricas em complexidade, funcionalidade e coerência interna. Exemplificando essa diversidade, pode-se citar os sistemas de contagem baseados em ciclos naturais, como as fases da lua ou os ciclos agrícolas, utilizados por diferentes povos indígenas para marcar o tempo e ordenar suas práticas coletivas. Outro exemplo são os padrões geométricos presentes na pintura corporal e na cestaria, que expressam simetrias, proporções e regularidades numéricas. Esses conhecimentos não são apenas funcionais, mas carregam significados espirituais e identitários, demonstrando que a matemática indígena é indissociável de sua cosmovisão e de seus modos de existir no mundo.
Nesse sentido, o problema que guia esta investigação consiste em compreender: como as epistemologias indígenas, a partir de suas cosmologias, constroem e expressam noções matemáticas, especialmente relacionadas à ideia de número, no contexto do nordeste brasileiro?. Essa questão propõe um deslocamento paradigmático do olhar sobre a matemática, desafiando a neutralidade e universalidade atribuídas à disciplina e buscando reconhecer as múltiplas racionalidades que a compõem. Esta pesquisa se justifica pela urgência de descolonizar o currículo escolar e ampliar as fronteiras do conhecimento matemático, reconhecendo e valorizando os saberes indígenas como fontes legítimas de produção científica e educativa. Ao explorar as cosmologias que fundamentam as práticas matemáticas dos povos originários do nordeste brasileiro, pretende-se contribuir para a construção de uma educação mais inclusiva, intercultural e crítica, que dialogue com os saberes locais e respeite a diversidade epistêmica do país.
A relevância da pesquisa reside na possibilidade de provocar reflexões teóricas e pedagógicas sobre os limites e possibilidades da matemática escolar, incorporando saberes indígenas que historicamente foram invisibilizados pelas políticas educacionais e epistemologias dominantes. Além disso, o estudo alinha-se com diretrizes legais como a Lei 11.645/2008, que estabelece a obrigatoriedade do ensino da história e cultura indígena nas escolas brasileiras, promovendo uma prática pedagógica comprometida com a justiça cognitiva. Este trabalho objetiva investigar como as cosmologias indígenas contribuem para a construção e a compreensão do conceito de número, analisando práticas culturais, linguagens simbólicas e formas de organização dos saberes matemáticos nas comunidades indígenas do nordeste brasileiro. Pretende-se, com isso, oferecer subsídios para o ensino de matemática em uma perspectiva intercultural e decolonial.
O percurso metodológico da pesquisa será de natureza qualitativa, com base em revisão bibliográfica e análise documental, priorizando estudos antropológicos, educacionais e etnomatemáticos que abordem os saberes indígenas no contexto nordestino. Serão utilizados autores que tratam da etnomatemática (como D'Ambrosio), da educação indígena, da epistemologia decolonial (como Quijano e Walsh) e das práticas culturais específicas dos povos originários. Quanto ao percurso teórico, este estudo será ancorado em três eixos principais: a epistemologia decolonial, que permite questionar a supremacia dos saberes ocidentais; a etnomatemática, que reconhece a existência de diferentes matemáticas culturalmente situadas; e os estudos interculturais em educação, que propõem o diálogo entre saberes como prática pedagógica e política. Os autores centrais incluem D’Ambrosio (2002), Santos (2007), Walsh (2009), Quijano (2005), além de produções regionais que tratam da matemática nas culturas indígenas do Brasil.
A estrutura do trabalho está organizada da seguinte forma: inicialmente, esta introdução apresenta a temática, a justificativa, os objetivos e os fundamentos teóricos e metodológicos da pesquisa; no capítulo seguinte, desenvolve-se o referencial teórico, abordando os conceitos de epistemologia indígena, etnomatemática e cosmologias originárias; em seguida, apresenta-se a metodologia utilizada; depois, são discutidos os resultados e análises obtidas a partir do estudo; e, por fim, expõem-se as considerações finais, indicando as contribuições, limitações e possibilidades de aprofundamento futuro.
2 Epistemologias Indígenas e Pluralidade do Saber
Os saberes indígenas resultam de processos históricos que articulam práticas cotidianas, observações da natureza, crenças espirituais e experiências coletivas. Esses conhecimentos são transmitidos por gerações por meio de rituais, narrativas orais e símbolos corporais e materiais, formando uma racionalidade própria. Ao longo da colonização, tais saberes foram deslegitimados e desqualificados, sendo rotulados como mitos ou folclore. Contudo, constituem formas sofisticadas de conhecimento que respondem a uma lógica diferente da ciência ocidental, mas que possuem valor epistêmico autônomo e coerente com seus contextos socioculturais (ALMEIDA, 2021; OLIVEIRA, 2016).
A epistemologia ocidental baseia-se na lógica cartesiana, na fragmentação do saber e na objetividade. Já a epistemologia indígena opera por meio da integração entre razão, emoção, espiritualidade e natureza, desafiando o modelo hegemônico da produção científica. Esse contraste revela uma hierarquização do conhecimento que sustenta a colonialidade do saber, denunciada por intelectuais críticos. A ruptura com essa lógica exige o reconhecimento da coexistência de múltiplos saberes e a superação das dicotomias entre ciência e cultura, técnica e espiritualidade, número e símbolo (QUIJANO, 2005; SANTOS, 2019).
A oralidade desempenha papel fundamental nas epistemologias indígenas. Ela não somente comunica saberes, mas os produz e atualiza em contextos performáticos. Cânticos, narrativas e rituais funcionam como dispositivos de transmissão e elaboração do conhecimento. Esses saberes são performativos e situados, articulando passado, presente e futuro em uma dinâmica de constante reconstrução coletiva. Ao não se submeterem à lógica da escrita, desafiam a estrutura acadêmica que exige a codificação formal e a verificabilidade linear do conhecimento (WALSH, 2009; FREIRES et al., 2023).
3 Cosmologias Indígenas no Nordeste Brasileiro
O nordeste brasileiro abriga uma rica diversidade de povos indígenas, como os Pankararu, Xukuru, Fulni-ô e Potiguara. Cada grupo possui formas próprias de organização territorial, relações com o ambiente e modos de viver que impactam diretamente na produção do conhecimento. As cosmologias desses povos refletem uma compreensão integrada entre território, corpo, ancestralidade e saber, o que se reflete em suas práticas educativas, linguagens e formas de contagem (COSTA, 2017; ALMEIDA, 2012).
A cosmovisão indígena integra todas as dimensões da existência. O tempo não é linear, mas cíclico e simbólico, associado a ritmos naturais como as fases da lua, os períodos de plantio e colheita e os ritos de passagem. A espiritualidade não é separada do conhecimento, mas o atravessa e o fundamenta. Essa visão holística desafia as estruturas escolares tradicionais e propõe um modo alternativo de compreender a relação entre ser humano, saber e mundo (SANTOS, 2010; WALSH, 2009).
Os saberes indígenas também se expressam por meio de objetos, grafismos, construções e danças. A pintura corporal, as cestarias e os artefatos rituais revelam padrões geométricos e numéricos complexos que se articulam ao pensamento matemático. Tais elementos não têm função meramente estética, mas são portadores de narrativas, classificações e códigos que estruturam o cotidiano e o pensamento das comunidades (COSTA, 2017; SOUZA, 2013).
4 Etnomatemática como Campo Teórico e Pedagógico
A etnomatemática surge como um campo que reconhece a existência de diferentes formas de pensamento matemático desenvolvidas por culturas diversas. Essa perspectiva rompe com a ideia de uma matemática universal e objetiva, defendendo que ela é culturalmente situada e historicamente construída. O campo propõe o reconhecimento da diversidade de saberes matemáticos e a inserção dessas perspectivas no ambiente escolar para promover uma educação mais justa e significativa (D’AMBROSIO, 2002; D’AMBROSIO, 1990).
A matemática deixa de ser entendida como um conhecimento neutro sendo concebida como produto de contextos socioculturais específicos. As práticas cotidianas de diferentes povos revelam formas próprias de organização numérica, espacial e temporal, coerentes com suas necessidades, crenças e modos de vida. Nesse sentido, a matemática indígena é uma manifestação legítima de racionalidade, ainda que muitas vezes invisibilizada pela escola (SOUZA, 2013; COSTA, 2017).
A etnomatemática contribui para uma educação que reconheça a diversidade epistêmica e combata o epistemicídio. Ao dialogar com os saberes indígenas, permite a construção de um currículo que valorize os territórios, as histórias e as lógicas dos sujeitos. Essa abordagem fortalece a identidade dos estudantes indígenas, amplia as possibilidades de aprendizagem para todos e propõe uma transformação profunda nas relações pedagógicas e institucionais (FREIRES et al., 2024; SANTOS, 2019).
5 A Construção de Números nas Cosmologias Indígenas
Nas cosmologias indígenas, os números não são abstrações isoladas, mas expressões que organizam o tempo, o espaço e os ciclos da vida. A contagem é muitas vezes ligada a elementos da natureza, como o som dos passos, as fases lunares ou os ciclos das colheitas. Essas formas de contagem revelam lógicas próprias que desafiam a normatividade da aritmética ocidental, ao priorizarem a relação com o ambiente e o coletivo (COSTA, 2017).
A matemática está presente em artefatos cotidianos e simbólicos. Pinturas corporais seguem padrões geométricos com simetrias e proporções, que também são encontrados em cestarias, instrumentos musicais e objetos cerimoniais. Esses elementos não são aleatórios: obedecem a princípios de contagem, ordenação e classificação profundamente ligados ao modo de viver dos povos indígenas (SOUZA, 2013; OLIVEIRA, 2016).
Os ciclos naturais organizam o tempo e, por consequência, o uso dos números nas práticas indígenas. O número torna-se parte do ritual, do calendário, da memória ancestral. A vinculação entre tempo, natureza e número revela uma matemática que não se limita ao cálculo, mas que opera na estruturação da experiência coletiva e no vínculo com a ancestralidade (ALMEIDA, 2021; FREIRE, 2021).
6 Educação Escolar Indígena e Descolonização do Currículo
A promulgação da Lei nº 11.645/2008 representou um avanço no reconhecimento institucional dos saberes indígenas. No entanto, sua efetivação enfrenta inúmeros desafios, como a ausência de materiais pedagógicos específicos, a formação insuficiente dos docentes e a resistência de sistemas escolares ainda marcados por lógicas coloniais. A lei é um marco legal importante, mas sua implementação ainda carece de políticas consistentes (BRASIL, 2008; ALMEIDA, 2012).
A interculturalidade propõe um processo de diálogo horizontal entre diferentes culturas, promovendo o reconhecimento mútuo e a aprendizagem recíproca. No contexto da educação matemática, isso significa criar espaços curriculares que acolham e integrem as formas de pensar e fazer dos povos indígenas. A interculturalidade não se resume à inclusão de conteúdos, mas implica transformação nas relações de poder e no próprio conceito de conhecimento (WALSH, 2009; SANTOS, 2010).
Diversas experiências educativas têm demonstrado o potencial da inserção dos saberes indígenas no ensino da matemática. Essas práticas desafiam a linearidade do currículo tradicional e propõem metodologias participativas, baseadas na vivência, no território e na oralidade. O reconhecimento desses saberes como legítimos amplia a compreensão do que é ensinar e aprender matemática, valorizando a pluralidade de caminhos para o conhecimento (COSTA, 2017; FREIRES et al., 2024).
7 Resultados e Discussões
Este capítulo analisa os principais achados da pesquisa, relacionando-os ao percurso teórico apresentado. A partir da leitura crítica de documentos, produções acadêmicas e estudos etnomatemáticos, evidencia-se a riqueza dos saberes matemáticos indígenas e os desafios de sua inserção no contexto escolar. Para facilitar a compreensão, quadros-síntese organizam os dados em categorias, sendo cada um analisado em profundidade logo após sua apresentação.
As cosmologias indígenas nordestinas expressam lógicas matemáticas que emergem da vida cotidiana, dos ciclos naturais e das práticas simbólicas e espirituais. O conceito de número, nesses contextos, não é abstrato, mas situado, funcional e integrado ao tecido social. Para sistematizar essas expressões, elaborou-se o seguinte quadro:
Quadro 1 – Formas de Construção Numérica nas Cosmologias Indígenas
Prática Cultural | Expressão Numérica Associada | Finalidade |
---|---|---|
Ciclos lunares | Contagem de fases (até 29 ou 30) | Marcação de tempo e organização de rituais |
Cestaria e pintura corporal | Repetição de padrões e simetrias geométricas | Representação identitária e cultural |
Calendário agrícola | Sequência de estações e períodos de plantio/colheita | Planejamento coletivo das atividades produtivas |
Narrativas míticas | Relação com números simbólicos (3, 4, 7, etc.) | Transmissão de valores e organização cosmogônica |
Fonte: Elaborado pelos autores (2025)
A análise do quadro evidencia que a matemática indígena opera a partir de referenciais próprios, em que a contagem está sempre vinculada à experiência concreta. Ao contrário da abordagem escolar, que muitas vezes dissocia número e sentido, os povos indígenas atribuem função existencial aos elementos numéricos. As fases lunares organizam o tempo de forma cíclica; os padrões geométricos nas cestarias e pinturas não somente seguem princípios estéticos, mas representam estruturas familiares, espirituais e narrativas. A construção numérica, portanto, é indissociável da cosmovisão desses povos.
Apesar da riqueza e coerência dos saberes indígenas, a escola ainda apresenta sérias limitações em reconhecê-los como legítimos. A ausência de práticas pedagógicas interculturais revela a permanência de um currículo monocultural e excludente, que valoriza somente a epistemologia ocidental. Para compreender os entraves que dificultam a inserção dos saberes indígenas na matemática escolar, apresenta-se o quadro a seguir:
Quadro 2 – Barreiras à Inclusão dos Saberes Indígenas no Ensino da Matemática
Barreira Identificada | Impactos Observados | Possíveis Superações |
---|---|---|
Ausência de formação docente intercultural | Insegurança ao abordar conhecimentos indígenas | Formação continuada com ênfase intercultural |
Currículos descolados da realidade local | Baixa identificação dos estudantes com os conteúdos escolares | Reformulação curricular com participação indígena |
Carência de materiais didáticos específicos | Impossibilidade de aplicação prática dos saberes plurais | Produção coletiva de recursos contextualizados |
Fonte: Elaborado pelos autores (2025)
O quadro demonstra que o maior desafio não é a inexistência dos saberes indígenas, mas sua sistemática exclusão. Essa exclusão revela a persistência de uma lógica colonial, que considera somente um tipo de conhecimento como científico. A falta de formação adequada leva professores a evitarem ou abordarem estereotipadamente os saberes tradicionais. Além disso, os currículos pouco dialogam com o território e com a diversidade dos sujeitos escolares. A ausência de materiais didáticos adequados reforça essa lacuna. No entanto, a superação desses desafios passa pela valorização da interculturalidade como princípio organizador da ação pedagógica.
Reconhecer a validade dos saberes indígenas não é somente um gesto ético, mas uma exigência pedagógica diante das desigualdades históricas que permeiam o ambiente escolar. A etnomatemática surge como campo teórico e prático que legitima diferentes modos de pensar, fazer e ensinar a matemática. Com base nessa perspectiva, apresentam-se caminhos possíveis para transformar a educação matemática em um processo dialógico e intercultural:
Quadro 3 – Caminhos para uma Matemática Intercultural
Eixo de Ação | Proposta Pedagógica | Resultados Esperados |
---|---|---|
Formação de professores | Inserção de conteúdos sobre etnomatemática e culturas indígenas | Ampliação da competência crítica e sensível dos docentes |
Desenvolvimento curricular | Integração dos saberes indígenas como conteúdos estruturantes | Construção de currículos mais contextualizados |
Práticas pedagógicas em sala | Uso de narrativas, artefatos e símbolos tradicionais | Aprendizagem significativa e valorização da identidade |
Fonte: Elaborado pelos autores (2025)
Este quadro sintetiza as possibilidades concretas para a valorização dos saberes indígenas no ensino da matemática. Ao investir na formação docente, é possível construir práticas mais seguras e respeitosas. A reformulação curricular permite que o conhecimento tradicional não seja um apêndice exótico, mas parte central da experiência escolar. E as práticas em sala de aula, quando articuladas com os modos de vida e linguagens indígenas, promovem sentido, pertencimento e respeito mútuo entre os sujeitos.
Diante do exposto, a análise dos dados revelou não apenas a complexidade dos saberes matemáticos indígenas, mas também as profundas lacunas que ainda marcam sua inserção no espaço escolar. Os quadros apresentados sistematizaram evidências que demonstram a existência de uma racionalidade matemática ancestral, articulada a cosmologias, rituais e práticas cotidianas, ao mesmo tempo em que evidenciaram os obstáculos estruturais que impedem seu reconhecimento curricular. A invisibilização desses saberes não decorre da ausência de valor epistêmico, mas da permanência de uma lógica educacional excludente, centrada em padrões eurocêntricos de conhecimento. Assim, reafirma-se a necessidade de uma matemática intercultural, construída a partir do diálogo com os territórios e das experiências vividas pelos sujeitos. Essa mudança não se limita à inclusão de conteúdos, mas exige uma reconfiguração ética e política das práticas pedagógicas, possibilitando que diferentes formas de saber coexistam em condições de respeito, legitimidade e valorização mútua.
Considerações Finais
Dessa forma, ao retomar o objetivo geral desta pesquisa — que consistiu em investigar como as cosmologias indígenas contribuem para a construção e compreensão do conceito de número no contexto do nordeste brasileiro —, pode-se afirmar que ele foi plenamente atingido. Isso porque o estudo conseguiu demonstrar, com base em fontes bibliográficas e documentais, que as epistemologias indígenas estruturam compreensões matemáticas próprias, que emergem da relação simbiótica entre natureza, cultura, espiritualidade e práticas cotidianas, oferecendo outras racionalidades para além do pensamento lógico-formal ocidental.
Além disso, os principais resultados revelaram que os povos indígenas nordestinos desenvolvem formas complexas de contagem, mensuração e organização temporal, que estão inseridas em contextos culturais profundamente simbólicos. Destacaram-se práticas como a marcação do tempo pelos ciclos da natureza, o uso de padrões geométricos em artefatos e rituais, bem como a presença de narrativas orais que vinculam números a significados cosmológicos. Tais elementos evidenciam que a matemática, nesses contextos, é indissociável de uma visão de mundo holística, em que número, espaço e tempo se entrelaçam com o viver coletivo. Consoante a isso, as contribuições teóricas desta pesquisa se concentram em três eixos fundamentais: primeiro, no fortalecimento da etnomatemática como campo legítimo de estudo e ensino; segundo, na valorização das epistemologias indígenas como fontes autênticas de conhecimento; e terceiro, na proposição de uma educação intercultural que não somente inclua, mas respeite e aprenda com os saberes originários. Ao problematizar o currículo escolar e suas ausências, este estudo oferece elementos para uma prática pedagógica que se inscreva no horizonte da justiça cognitiva e do diálogo de saberes.
À vista disso, ressalta-se que não foram encontradas limitações significativas que comprometessem o desenvolvimento e a consistência dos resultados. A metodologia qualitativa baseada em revisão bibliográfica e análise documental foi suficiente para alcançar os objetivos propostos e sustentar a interpretação teórica dos dados. Mesmo sem aplicação empírica direta com comunidades indígenas, a profundidade e abrangência dos estudos utilizados permitiram uma análise crítica e representativa sobre o tema. Sendo assim, para trabalhos futuros, sugere-se o aprofundamento empírico a partir de etnopesquisas colaborativas com povos indígenas nordestinos, valorizando suas vozes, práticas cotidianas e linguagens. Investigações que articulem observações de campo, registros audiovisuais e parcerias com lideranças e escolas indígenas podem enriquecer o debate e trazer contribuições práticas para a reformulação de materiais didáticos e propostas curriculares interculturais. Ainda, pesquisas comparativas entre diferentes regiões do Brasil também se mostram promissoras para ampliar a compreensão sobre a pluralidade matemática dos povos originários.
Com isso, este estudo pretende contribuir para a construção de uma pedagogia verdadeiramente plural, que reconheça o valor dos saberes ancestrais na formação do pensamento crítico e no rompimento com a monocultura epistemológica que historicamente permeia o ensino da matemática. Ao trazer as cosmologias indígenas para o centro do debate acadêmico e educacional, rompe-se com o paradigma excludente da ciência única e abre-se caminho para novas possibilidades de aprender, ensinar e viver a matemática de forma mais significativa, humana e justa. Assim sendo, para concluir-se o que foi discutido nesta pesquisa, tem-se o quadro abaixo como maneira de sintetizar e encerrar as ideias aqui analisadas.
Quadro-Síntese: Resultados e Contribuições da Pesquisa
Aspecto Investigado | Principais Resultados | Contribuições Teóricas |
---|---|---|
Construção de números nas cosmologias indígenas | Sistemas de contagem baseados em ciclos naturais, artefatos e espiritualidade | Ampliação do conceito de número em contextos culturais diversos |
Saberes indígenas e matemática escolar | Relações entre oralidade, ritual e simbolismo com estruturas matemáticas | Valorização dos saberes não ocidentais na construção de práticas educativas interculturais |
Epistemologias e educação decolonial | Ruptura com a lógica universalizante da matemática ocidental | Defesa da justiça cognitiva e do currículo plural |
Aplicações educacionais no nordeste brasileiro | Práticas matemáticas locais ainda pouco consideradas em sala de aula | Relevância de práticas pedagógicas contextualizadas e baseadas nos territórios |
Metodologia e abordagem de estudo | Revisão qualitativa bibliográfica e documental com foco interdisciplinar | Fundamentação sólida para futuras pesquisas empíricas com protagonismo indígena |
Fonte: Elaborado pelos autores (2025)
A partir da sistematização apresentada no quadro, é possível observar que a construção de números nas cosmologias indígenas nordestinas não se limita a uma perspectiva funcional ou técnica. Pelo contrário, trata-se de um saber impregnado de significado simbólico, cultural e espiritual. Os modos de contar e ordenar os elementos do mundo são articulados a partir da observação da natureza, dos ciclos da vida e das relações comunitárias. Essa dimensão amplia a concepção tradicional de número, ao evidenciar que ele não é somente um signo abstrato, mas uma expressão de pertença, de tempo e de vivência coletiva. Isso desafia a visão dominante da matemática escolar, geralmente pautada em esquemas lógicos e descontextualizados.
Ao se debruçar sobre os saberes indígenas e sua relação com a matemática, constata-se uma clara discrepância entre o conhecimento praticado nas comunidades e aquele validado pela escola formal. O silenciamento de práticas culturais que expressam noções matemáticas legítimas revela uma lógica de exclusão que ainda persiste nos espaços educativos. A oralidade, os rituais e os padrões estéticos presentes em manifestações culturais indígenas demonstram que existe um pensamento estruturado sobre quantidade, simetria, repetição e ordem. No entanto, esses elementos continuam sendo ignorados na maioria das propostas pedagógicas, revelando um distanciamento entre o conhecimento escolar e a realidade sociocultural dos povos originários.
Ao analisar as contribuições teóricas do estudo, percebe-se um movimento de valorização dos saberes outros, que propõem uma nova forma de pensar o ensino da matemática. O reconhecimento da diversidade epistêmica implica compreender que existem diferentes formas de organizar o raciocínio matemático, todas igualmente válidas dentro de seus contextos de origem. Essa compreensão leva à necessidade de ressignificar as práticas educativas, substituindo uma abordagem única e padronizada por uma proposta plural e contextualizada. O ensino da matemática, nesse sentido, é visto como um processo de diálogo entre diferentes visões de mundo, e não como imposição de um modelo universal.
O quadro também permite refletir sobre o papel da educação escolar no nordeste brasileiro, onde ainda predominam práticas pedagógicas descoladas das realidades locais. A presença indígena nessa região é expressiva, e seus saberes resistem ao tempo por meio de tradições que ensinam, aprendem e constroem sentidos. No entanto, a ausência de reconhecimento institucional, a carência de formações docentes voltadas à interculturalidade e a limitação dos materiais didáticos específicos impedem que esses conhecimentos sejam efetivamente valorizados no ambiente escolar. Essa lacuna compromete o potencial de construção de uma educação mais equitativa e significativa.
Diante do conjunto de resultados apresentados, percebe-se que este estudo aponta para a urgência de novos caminhos investigativos e pedagógicos. A sistematização teórica já evidencia uma diversidade rica e profunda de práticas matemáticas indígenas, mas é preciso agora avançar para o campo prático, com escuta ativa, presença em territórios e construção de saberes com os próprios povos. A valorização da matemática indígena não deve ser somente um exercício teórico, mas uma transformação curricular, institucional e humana. Portanto, o quadro-síntese, mais do que um resumo de dados, revela a potência crítica de uma pedagogia comprometida com a justiça epistêmica e com o reconhecimento da pluralidade como princípio formativo.
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1 Mestre em matemática: UFERSA. E-mail: [email protected]
2 Doutorando em Ciências da Educação pela Facultad Interamericana de Ciencias Sociales (FICS). E-mail: [email protected]
3 Doutorando em Ciências da Educação pela Facultad Interamericana de Ciencias Sociales (FICS). E-mail: [email protected]
4 Doutorando em Ciências da Educação pela Facultad Interamericana de Ciencias Sociales (FICS). E-mail: [email protected]