EMBATES DO PARADIGMA HEGEMÔNICO E DO PARADIGMA CONTRA-HEGEMÔNICO NA QUALIDADE DA DOCÊNCIA UNIVERSITÁRIA
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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10345317
Gilvânia dos Santos Trindade¹
Edmilson Siqueira de Sá²
RESUMO
Este artigo traz como tema a docência universitária, questionando assim as epistemologias e implicações na qualidade, na profissionalização e no trabalho docente. Para a compreensão de tal objeto de estudo, usou-se de pesquisa bibliográfica pautando-se na abordagem qualitativa e em uma perspectiva Materialista-Histórico Dialética. Desdobram-se como objetivos esclarecer a construção da ciência, da razão, da epistemologia, dos paradigmas e a relação destes com a sociedade e com a educação; compreender a relação universidade-educação-docência em uma visão histórico-política, econômica e social; refletir as implicações histórico-políticas na qualidade e competência da formação, profissionalização e prática docente universitária. As questões levantadas são: o que se tem pensado por docência universitária? Como ela tem se constituído? Qual contexto histórico-político social e econômico a envolve? E ainda, falar em qualidade e competência na docência universitária significa concordar com o paradigma hegemônico? Considerou-se então que a docência universitária, assim como a universidade pública em seu corpo de docentes e discentes, tem resistido ao engessamento (im) posto pelo neoliberalismo em sua roupagem de “Terceira Via”, mas essa resistência ao paradigma hegemônico só é possível ao desnudar o que está posto e assim ter acesso na formação, na prática e na profissionalização da possibilidade da contra hegemonia.
Palavras-chave: Docência universitária; Paradigmas; Universidade.
ABSTRACT
This article brings university teaching as its theme, thus questioning the epistemologies and implications for quality, professionalization and teaching work. In order to understand this object of study, bibliographic research was used, based on a qualitative approach and a Dialectical Materialist-Historical perspective. The objectives are to clarify the construction of science, reason, epistemology, paradigms and their relationship with society and education; understand the university-education-teaching relationship in a historical-political, economic and social view; to reflect the historical-political implications in the quality and competence of the formation, professionalization and university teaching practice. The questions raised are: what has been thought about university teaching? How has she been formed? What social and economic historical-political context involves it? And yet, does talking about quality and competence in university teaching mean agreeing with the hegemonic paradigm? It was then considered that university teaching, as well as the public university in its faculty and students, has resisted the plastering (im) placed by neoliberalism in its “Third Way” guise, but this resistance to the hegemonic paradigm is only possible by laying bare what is laid down and thus having access to training, practice and professionalization of the possibility of counter-hegemony.
Keywords: University teaching; Paradigms; University.
1. INTRODUÇÃO
A sociedade, seus usos, costumes, princípios, instrumentos, alicerces têm se transformado cada vez mais rápido e com isso posto diversos desafios ao indivíduo. Entretanto, a educação, cabendo aqui a contradição que existe e resiste, permanece baseada em modelos de ensino e aprendizagem fragmentados, desarticulados que não respondem às complexidades do homem e de seu meio. Percebe-se assim a docência em um círculo viciante no qual o professor ensina da mesma forma que aprendeu, não há abertura para um novo paradigma. Até porque essa ruptura não se dá sozinha e nem imediatamente. Por isso, refletir e compreender o paradigma dominante e a possibilidade do paradigma emergente se faz necessário e possível numa universidade pública, criativa, democrática e emancipatória cuja docência universitária seja pensada e discutida articulando formação, profissionalização e trabalho docente.
Queiroz (2014) assim como Souza, Magalhães e Guimarães (2011) afirma sobre a importância do posicionamento ontológico, gnosiológico, epistemológico, metodológico e político para uma investigação que seja coerente, consistente para refletir, construir e também transformar a realidade. Deste modo, em uma abordagem qualitativa, utilizando a metodologia da pesquisa bibliográfica, esse artigo está no método Materialismo-Histórico Dialético.
O método que guia essa pesquisa é o Materialismo-histórico dialética (MHD), já que este, segundo Lima e Mioto (2007), induz o pesquisador a considerar a contradição, o conflito, o ‘devir’, a historicidade, a totalidade, a unidade dos contrários; além de perceber em todo o percurso as dimensões filosófica, política e social que envolve o objeto de estudo. Trata-se de chegar à essência através da aparência, com aproximações sucessivas e não lineares. Desse modo, o conhecimento da realidade é a reflexão crítica da realidade a partir do conhecimento acumulado pretendendo chegar a uma síntese, o concreto pensado. O que prevalece são os elementos produzidos sócio-historicamente que são pensados e repensados em um movimento que permite a mediação.
Os indicadores que compõem e traduzem os aspectos fundamentais do método MHD dizem respeito a: a) abordar o objeto na perspectiva histórica, a partir de suas origens; b) buscar na história as origens do problema, do todo e não de tudo; c) trabalhar com os sujeitos típicos a serem pesquisados; d) apresentar o concreto pensado: evidenciar o objeto que estava oculto, movimento dialético; e) utilizar categorias marxistas para análise: trabalho, alienação, ideologia, classe social, contradição, negação, totalidade, universalidade; f) articular teoria e prática e denominá-la práxis; g) apresentar os dados evidenciando seus nexos internos e contraditórios com a totalidade (SOUZA et. al., 2011, pp. 45 e 46).
Assim, pretende-se mediante a abordagem qualitativa e na perspectiva MHD trabalhar valores, atitudes, crenças, hábitos do objeto de estudo. Portanto, utiliza-se da pesquisa bibliográfica para perceber os avanços, as dificuldades e contradições na docência universitária, o que imbrica falar sobre a universidade, a docência, os paradigmas, história e políticas que a envolve.
Assim sendo, este artigo traz como tema a docência universitária, questionando assim as epistemologias e implicações na qualidade, na profissionalização e no trabalho docente. Traçou-se como objetivo principal, o de esclarecer como se deu a construção da ciência, da razão, da epistemologia, dos paradigmas e a relação destes com a sociedade e com a educação, especialmente no que se refere aos embates que surgem no dia a dia das universidades.
2. OS PARADIGMAS
Para a compreensão do tópico em foco, tem-se o que Santos (2006) em “Um discurso sobre as Ciências” e Souza (2014b) no texto “Novos paradigmas na Educação” trazem para a reflexão que o momento presente é de instabilidade, o que revela uma crise paradigmática.
Kuhn (1962; Souza, 2014b) formula que paradigma é um conjunto de crenças, valores, técnicas comuns e aceitas pela comunidade para explicar a realidade; assim ele está antes da teoria e é mais que a teoria se pondo como estrutura que atrai e unifica ideias excluindo teorias diferentes que são excluídas no consenso da comunidade. Morin (1990; 1999; Souza (2014b) ampliando a proposta de Kuhn, conceitua paradigma como noções fundamentais que presidem e controlam o discurso. Para ele conceitos diferentes convivem e se relacionam pela soberania; nesse enfoque relacional há conceitos com mais valor que outros e concomitantemente controla a lógica do discurso. Nessa proposta de Morin (1990; 1999; Souza (2014b) está o desenvolvimento do conhecimento científico que cresce em extensão como também se transforma frente as continuidades e rupturas na passagem de uma teoria a outra.
O paradigma tradicional ou dominante que é intrínseco ao conhecimento, à ciência, ao social segundo Santos (2006) está assentado na ciência moderna que possui um modelo de racionalidade que a orienta. Na cultura ocidental, antes de 1500, Souza (2014b) descreve que sob uma ciência aristotélica havia a concepção de mundo orgânico, uma natureza inter-dependente dos fenômenos materiais e espirituais, havia uma subordinação das necessidades individuais às da comunidade. A ciência, por sua vez, assentada na fé e na razão, não buscava predizer nem controlar, somente compreender o significado dos fenômenos.
A partir do século XV e principalmente do século XVI com mudanças na física e na astronomia pelas descobertas de Copérnico, Galileu e Newton, a revolução científica, o Renascimento colocando o homem como centro do mundo, os descobrimentos marítimos, a alta do mercantilismo. Essa ciência consagrou o racionalismo, o experimento científico da natureza, o homem como senhor do mundo, poderoso para transformar e explorar a natureza e uma concepção de mundo máquina distinto e separado do indivíduo.
Segundo Santos (2006) o novo conhecimento científico distinguiu o senso comum e as humanidades ou estudos humanísticos como não ciência isso porque o caráter racional nega todo e qualquer conhecimento que não se pauta em seus princípios epistemológicos e suas regras metodológicas. Nessa lógica de pensamento há uma só forma de conhecimento verdadeiro que estabelece distinções entre o conhecimento científico e o conhecimento do senso comum, entre a natureza e a pessoa humana.
Na intenção de superar toda forma de dogmatismo e autoridade da ciência aristotélica, a ciência moderna desconfia de todo conhecimento vulgar, ilusório, cujas evidências estejam na experiência imediata. Não que teoria prévia, o pensamento dedutivo ou a especulação sejam dispensáveis, porém a instância última de confirmação é a observação dos fatos. Enquanto isso, a racionalidade explica a natureza como passiva, eterna, reversível, desmontável e explicada por leis e regras. Seus mistérios são desvendáveis para além da contemplação, na ação, pois a natureza é para ser dominada e controlada pelo homem.
O conhecimento rigoroso e profundo da natureza só acontece pela observação e experimentação. Essa é uma ideia vinda da matemática que fornece à ciência moderna o instrumento privilegiado da análise, a lógica da investigação e o modelo de representação da própria estrutura da matéria (SANTOS, 2006; CHAUÍ, 1998; SOUZA, 2014b).
A consequência desse pensamento é, primeiro, a desqualificação para a quantificação e em segundo a divisão e a classificação para reduzir a complexidade. A divisão primordial se dá entre as condições iniciais as quais são o reino da complicação, assim é necessário selecionar as condições que são relevantes para a observação e as leis da natureza que são o reino da simplicidade e da regularidade, por isso é possível observar e medir com rigor. Segundo as leis da natureza a posição absoluta e o tempo absoluto nunca são condições iniciais relevantes. Há uma idéia de ordem e de estabilidade do mundo, cuja ciência (e não senso comum) pode prever e intervir no real pela manipulação e transformação desse real dando assim veracidade e rigor á ciência moderna.
Sendo assim, esse pensamento de um mundo-máquina se torna um dos pilares na ascensão da burguesia. A visão mecanicista, permeando o utilitarismo e o funcionalismo, visou mais dominar e transformar a realidade do que compreendê-la profundamente. Esse movimento de reduzir a complexidade a leis simples no plano cósmico tornou a ciência moderna em um modelo de racionalidade hegemônica que se estendeu do estudo da natureza ao estudo da sociedade.
Nasce assim no século XIX as ciências sociais como empíricas, no entanto, Santos (2006) demonstra duas vertentes nesse tratar as ciências sociais: a primeira e também dominante consistiu em aplicar ao estudo da sociedade os princípios epistemológicos e metodológicos que presidiam o estudo da natureza, a segunda vertente bastante reivindicada entretanto ainda marginal está em um estatuto epistemológico e metodológico próprio das ciências sociais tendo como base o ser humano e sua distinção quanto à natureza.
Essa antagonidade, embora convergente na separação do ser humano e da natureza e impregnador de uma gradativa fragmentação do pensamento e unilateralidade da visão, é o sinal da crise do paradigma dominante. Além disso, outras condições teóricas como o avanço e aprofundamento do conhecimento permitiram identificar os limites, ver a fragilidade dos pilares que sustentam tal modelo, a mecânica quântica que produziu a incerteza, a probabilidade percebendo que o tempo e o espaço eram relativos assim como a criação de uma realidade para observação era apenas a intervenção sobre essa realidade e não ela em si puramente, o rigor da matemática, sobre o qual está o rigor das leis da natureza, carece de fundamento, os avanços da microfísica, da química e da biologia que perceberam:
Em vez da eternidade, a história; em vez do determinismo, a imprevisibilidade; em vez do mecanicismo, a interpenetração; a espontaneidade e a auto-organização; em vez da reversibilidade, a irreversibilidade e a evolução; em vez da ordem, a desordem; em vez da necessidade, a criatividade e o acidente (SANTOS, 2006, p, 10).
Este movimento científico e as demais inovações teóricas que Santos (2006) traz como crises no paradigma dominante advém da reflexão por parte dos próprios cientistas que problematizam sua prática científica buscando para além do conhecimento das coisas o conhecimento do conhecimento das coisas e assim conhecer ao nós. Passou-se a trazer, o que antes era exclusivo e unicamente do campo da sociologia da ciência, a análise das condições sociais, os contextos culturais, os modelos organizacionais da investigação científica como essenciais na reflexão epistemológica.
Esse obstáculo epistemológico que Chauí (1998) aponta como a descoberta de que “os conceitos, os procedimentos, os instrumentos existentes não explicam o que estão observando nem levam aos resultados que estão buscando” é superado com a ruptura epistemológica que conduz a afetar o campo do conhecimento existente com novas teorias, métodos e tecnologias. Por isso o paradigma a emergir dessa revolução científica não pode ser apenas um paradigma científico, mas também um paradigma social.
Para Santos (2006) esse paradigma trata de um conhecimento prudente para uma vida decente, um paradigma contra-hegemônico e até o momento emergente, é estruturado por ele em quatro teses: todo conhecimento científico-natural é científico-social; todo conhecimento é local e total; todo conhecimento é auto-conhecimento; todo conhecimento visa constituir-se em senso comum.
Contudo, frente a revoluções científicas do século XX e a necessidade da ruptura epistemológica do paradigma dominante em crise a um paradigma emergente, Tello e Almeida (2013) trazem que permanece a valorização do individualismo, a lógica de mercado, e o alicerce do pensamento neoliberal nas ciências sociais, especificamente na educação. Esse pensamento neoliberal foi transportado à educação que passou a ter a tarefa de preparar, adaptar e oferecer mão de obra humana aos interesses mercadológicos do capitalismo.
Uma educação assim é frágil, inconsistente e contraditória e tem um Estado, no caso dos países latino-americanos, que perpassa pelas influências históricas da dominação externa; e mesmo com as tentativas de possíveis processos democráticos e mudanças sociais, ainda persiste as ideias e a força da dominação imposta.
Em uma sociedade marcada pela lógica do mercado, cuja educação segue o mesmo padrão e o Estado se anula para a ação privada, o conhecimento vive a contradição do caráter político estratégico ou libertário e o de mercadoria para se fazer valer nos interesses econômicos capitalistas.
A universidade, que tem em si a produção e apropriação do conhecimento científico, tem os interesses privados que perpassam o ethos acadêmico visando uma apropriação do conhecimento para as demandas das empresas. Não que o conhecimento seja para a socialização do saber até porque o conhecimento científico permanece como privilégio de uma elite e a universidade tende a globalização.
3. A UNIVERSIDADE
A Universidade no século XX (anos 70 e 80) passa por três crises segundo Santos (2011): 1) crise da hegemonia, pois desde a Idade Média a universidade era a formadora da elite pensante, com o capitalismo passou a ser responsável também em formar uma mão de obra qualificada. Sua incapacidade de desempenhar ambas funções a retirou da supremacia do ensino superior e da produção de pesquisa. 2) crise da legitimidade porque o tipo de conhecimentos produzidos (questão de hegemonia) tende a alterar-se com a modificação do grupo social a que se destina (questão da legitimidade). 3) crise institucional já que há autonomia universitária de valores e objetivos, mas pressão na submissão dos objetivos a critérios de eficácia e produtividade.
Santos (2011) afirma que a crise institucional se tornou o centro das atenções reformistas, ao mesmo tempo que, a crise da hegemonia foi resolvida pela descaracterização intelectual da universidade e a crise da legitimidade pela segmentação do sistema universitário e desvalorização dos diplomas universitários. Então, a crise institucional é o ponto fraco porque a autonomia científica e pedagógica da universidade está determinada pela dependência financeira do Estado que é o principal assegurador, mas decidiu não ser exclusivo reduzindo a prioridade nas políticas públicas e no financiamento.
O Brasil que viveu da ditadura à democracia nas últimas décadas, tem o neoliberalismo como modelo global do capitalismo, assim a universidade tem a afirmação de uma autonomia (precária e falsa) para a privatização do Ensino Superior e o aprofundamento da crise financeira das universidades públicas. Essa perda da prioridade da universidade pública entre os bens públicos produzidos pelo Estado foi resultado da perda geral de prioridade das políticas sociais (educação, saúde, previdência). Apregoa-se que as debilidades institucionais são insuperáveis, que a Universidade pública é irreformável (tal como o Estado), a única alternativa então foi a criação do mercado universitário (descapitalização e desestruturação da universidade pública em favor do mercado emergente) isso porque uma natureza não criativa não permite expansão.
Diante desse desinvestimento do Estado na Universidade pública, houve a globalização mercantil, pois a mesma procurou ultrapassar a crise financeira gerando receitas próprias pela parceria com o capital o que levou a disseminação por parte do mercado a eliminar a diferenciação entre universidade pública e privada transformando a universidade em empresa, mercado de gestão universitária. Portanto, o paradigma dominante no projeto político-educacional está basicamente em dois pilares com respeito à universidade: sua descapitalização e transnacionalização.
Há uma descapitalização da universidade pública, sendo assim, há uma dicotomia entre a rigidez da formação universitária versus a volatilidade das qualificações exigidas pelo mercado. Assim, Santos (2011) percebe que de criadora de condições para a concorrência e para o sucesso no mercado passa a ser ela própria objeta de concorrência, um mercado. A maior autonomia que foi concedida às universidades não teve por objetivo preservar a liberdade acadêmica, mas criar condições para as universidades se adaptarem ás exigências da economia.
Ainda conforme Santos (2011), essa pressão produtivista desvirtua a universidade e a esvazia de preocupações humanistas ou culturais, ela é um serviço que se tem acesso por via do consumo e não da cidadania. A educação permanente e transdisciplinar se reduz à educação disciplinar para o mercado permanente enquanto a docência crítica, humanista, dialógica, libertadora, de qualidade social tende à competência, individualidade e qualidade mercadológica.
A transnacionalização do mercado universitário está na redução do financiamento público, na desregulação das trocas comerciais, na solução mercantil por parte das agências financeiras multilaterais e na revolução das tecnologias de informação e de comunicação. Isso porque se vive em uma sociedade de informação cuja gestão, qualidade e velocidade da informação são essenciais à competitividade e assim necessita de uma mão de obra muito qualificada. Do mesmo modo, a economia é baseada no conhecimento de um capital humano que transfira capacidades cognitivas e aptidões nos constantes processos de reciclagem que a economia obriga. Por isso a necessidade de uma universidade a serviço da sociedade da informação e da economia baseada no conhecimento que se transformam interiormente pelas tecnologias de informação e comunicação e estabeleça novos tipos de gestão e relação entre os trabalhadores de conhecimento e os utilizadores ou consumidores.
Todavia, é imprescindível dizer que o paradigma hegemônico encontra dificuldades em se estabelecer nas universidades por causa do paradigma institucional contrahegemônico e político pedagógico que domina as universidades públicas. Destarte, a luta incessante com o consenso de massa por parte do sistema neoliberal para a substituição do paradigma institucional pelo paradigma empresarial. Há uma ideologia para inculcar que a educação é uma mercadoria como qualquer outra e a liberdade acadêmica é um obstáculo à empresarialização da universidade e à responsabilização da universidade diante das empresas que querem seus serviços. Esse obstáculo está principalmente, segundo o paradigma dominante, no poder dos docentes e na centralidade da sala de aula (que eles acreditam se perderem conforme a generalização do uso de tecnologias pedagógicas online).
A partir das transformações sociais e lutas políticas desencadeadas ao longo do século XX, a universidade se afirma como uma instituição social assume-se como republicana e democrática, acompanha as transformações sociais, econômicas e políticas, estabelece relações (de afirmação e/ou negação) com a sociedade e com o Estado. Contudo, a partir da década de 90, com a determinação do Estado mínimo, pelas políticas neo-liberais, há uma imposição à universidade para que seja considerada como setor de serviços não exclusivos do Estado. Nesse quadro, a educação antes como um direito, considerada do âmbito público, torna-se um serviço que pode ser privado ou privatizado, o que definiu a universidade como uma organização social e não uma instituição social (CHAUÍ, 2003).
A universidade como organização é regida por ideias de gestão eficaz e de sucesso para alcançar um resultado particular; sua referência está em si mesma, sendo pautada pelo processo de competição, instrumentalidade e particularidade. Por outro lado, a universidade como instituição é uma prática social que discute e questiona a si mesma e à sociedade pautando-se na universalidade. Enquanto a referência da organização é a si mesma, ao processo de competição; a instituição tem sua referência nas normas e valores da sociedade. Como organização, a universidade torna-se operacional e assim, alheia à formação e ao conhecimento, inclinando discentes e docentes a exigências que não se referem ao trabalho intelectual.
Contudo, a universidade, em sua essência, assentada nos pilares indissociáveis: ensino, pesquisa, extensão; não pode ser entendida como pronta, acabada, definida e muito menos como uma ideia passageira, provisória, mas como um processo histórico-social, uma instituição acadêmica que reproduz e contesta a vida social da qual emergiu. Por esse motivo, ela é o espaço por excelência do debate, da crítica, da produção social, da dúvida, do confronto de ideias, da indagação dos paradigmas, do questionamento de si mesmo, da ruptura epistemológica.
Pensando assim, a universidade assume-se como instituição acadêmica, que difunde e socializa o conhecimento (ensino); questiona o conhecimento já elaborado e ampliao por meio de novas descobertas (pesquisa); estende à sociedade os conhecimentos acumulados e produzidos (extensão). Se for considerado apenas a articulação entre ensino e extensão, possivelmente o ensino estará voltado aos problemas da sociedade, mas sem a pesquisa, responsável pela produção do conhecimento científico, não haverá inovações. Da mesma forma, se associar o ensino e a pesquisa haverá uma maior reprodução e produção do conhecimento, mas corre o risco de perder a dimensão ético-político-social do saber quando este está desarticulado da sociedade pela ausência da extensão (MOITA;ANDRADE, 2009).
Assim a formação de professores na universidade, que é o lócus da ciência, dos conhecimentos socialmente construídos e organizados com rigor, da teoria e prática, não pretende fazer receitas, modelos prontos; todavia compreendendo a teoria permitir que o discente seja capaz de pensar a sua prática antes e depois e dessa forma, entenda e transforme o real. Logo, a formação do docente, conforme Brzezinski (2008), deve acontecer na universidade para que seja um processo acompanhado de complexidade, crítica, reflexão-ação (práxis), criatividade, reconhecimento das diferentes identidades culturais e das relações que se estabelecem na mediação. Dessa forma, para trabalhar com a educação, o profissional docente precisa ser formado continuamente no espaço da universidade, no ensino-pesquisaextensão, pensando com rigor, apreendendo, socializando e produzindo o conhecimento acumulado socialmente na história, em seu campo específico de interesse, no campo pedagógico, político e científico.
Entretanto, no paradigma dominante, dentro da lógica de uma universidade operacional, a docência universitária é entendida como o lugar daqueles que não tem vocação para pesquisa e sua função é basicamente transmitir e adestrar (CHAUÍ, 2014), por isso qualidade e competência se tornaram palavras-chave do paradigma hegemônico.
4. DOCÊNCIA UNIVERSITÁRIA: QUALIDADE E COMPETÊNCIA
A construção da concepção de qualidade se destaca a partir da década de 90 quando a educação foi reformada segundo os princípios neoliberais que impôs ao campo bases de gestão empresarial para melhorar a educação instrumentalizando mecanismos reguladores para um consentimento ativo. O consenso é essencial para a afirmação e constituição da hegemonia, assim há um processo de regulação, demonstrado principalmente pelos slogans criados e propagados, para que a participação, eficiência e eficácia (vistos como a qualidade hegemônica da educação) sejam aceitos pela comunidade com normas claramente explicitadas, aceitação na participação e concretização efetiva dessas ideias nas práticas.
Assim, a qualidade difundida pela hegemonia foi propagada pelo Banco Mundial, Unesco e outros organismos internacionais que produziram documentos assumidos como governamentais e oficiais. A qualidade aqui pode ser medida por exames impostos afastando a escola, a educação e o professor da relevância social que possuem, retirando sua dimensão política, ética, estética e cultural para focar na atividade técnica. Visa construir pelo consenso ativo um novo homem coletivo que se conforma (por aceitação ou por imposição) com as transformações (im) postas pelo neoliberalismo. Aqui se levanta a estratégia da “Terceira Via” que consiste no voluntariado que tem a missão de suprir a incompetência do professor e concomitantemente a falta de qualidade da educação, no qual a economia tem uma face mais humana, ou seja, o capitalismo é revestido por uma roupagem de democracia e sociabilidade. Dessa forma, o capitalismo seria uma justiça social para manutenção e ampliação do status quo.
Neves (2013), Shiroma e Santos (2014), Evangelista e Triches (2014) em suas discussões afirmam ser essa a nova pedagogia da hegemonia que a todo instante traz a ideologia do que antes era “Educação para Todos” a uma ideia e consenso de “Todos pela Educação”. Na “Terceira Via”. Convida-se a uma coletividade mascarada que no fim é apenas uma individualidade capitalista e não uma solidariedade de união entre pesquisadores, docentes, universidades estruturadas em Rede de cooperação como Santos (2011) propõe.
Observa-se então a alternativa de o domínio dos serviços sociais, entre eles a saúde e principalmente a educação, não devem ser privados e nem estatais, mas uma propriedade pública não-estatal, com isso, são organizações (diferente de instituições) com ações privadas, mas para finalidades públicas. Torna-se atividades não exclusivas do Estado possibilitando uma naturalização da relação entre público e privado. Essa ideologia da hegemonia utiliza de estratégias como a repolitização da política, responsabilização do gestor, do professor, dos pais quanto ao sucesso na educação. Sucesso esse que é definido e medido segundo a produção e comparação com o mercado nacional e internacional de forma que a aprendizagem pode ser medida e posta em rankings.
Contudo, há possibilidade de emancipação na contra hegemonia. Da mesma forma que o professor é o difusor, sujeito e objeto dessa nova pedagogia da hegemonia, ele também é a possibilidade, no conhecimento de todos os arranjos da hegemonia e na investida política porque o intelectual está intrínseco à política e ao trabalho como humanizador, de uma libertação do oprimido e do opressor. Não que o professor seja a última esperança ou a salvação da educação, mas ele é a possibilidade na contra hegemonia.
A docência universitária aqui defendida considera a educação no mesmo ponto de vista de Souza (2014a) que a concebe como Bildung, um conceito de Hegel (1988; SOUZA, 2014a), que entende a educação como processo integral de formação histórica baseada na liberdade e com progresso da realidade da mesma forma que da história. Bildung é o progresso pessoal e social pelo qual o sujeito constrói sua autonomia, é a resistência ao processo desumanizador exigindo postura ética.
Oliveira (2003); SOUZA, 2014a) defende a Bildung como aspecto essencial no processo de formação de professores, tanto para aqueles que são formados como docentes quanto aos que como docentes formam professores. Assim, Souza (2014a) estrutura indicadores de qualidade social para a formação docente partindo de construções históricas e sociais e dos contextos políticos e culturais. Esses indicadores de qualidade percebem a educação como bem público e não atrelada aos interesses neoliberais e também estão em constante reformulação e aperfeiçoamento.
Assim é importante, no processo de formação docente, a dinamicidade e a autorreflexão (metacognição) que é a capacidade de refletir sobre os próprios pensamentos na dimensão social, intelectual, técnica, interna e espiritual. A metacognição no campo do conhecimento realça a negação do pensamento reducionista, a identificação do saber e o seu sabor, a discussão da ética em todo conhecimento.
Para Oliveira (2003); Souza (2014a) a formação necessita aprofundar os caminhos e a necessidade de relacionar-se com dignidade consigo mesmo e com o outro. Isso porque o professor precisa ser formado em sua complexidade, na reflexão e pensamento crítico, valorizando o pensamento emancipatório e libertário, criativo e inovador. Com isso, o movimento formador, Bildung, tem em seu centro fornecer as bases para que os sujeitos formem suas autonomias, como também, criem e transformem realidades individuais e coletivas.
Severino (2003); Souza (2014a) contribui com esse pensamento ao considerar a formação para além de aquisição técnica, didática ou de informação. Para esse autor a formação, e assim como qualidade social e de competência, está atrelada a totalidade do ser humano, a sua subjetividade e objetividade, a sua vida sócio-cultural, ao mesmo tempo que, a compreensão histórica da sociedade; o que contrapõe o uso da qualidade e da competência pela “Terceira Via” como uma formação aligeirada e bem treinada para atender os requisitos de eficiência e eficácia do mercado.
Cunha (2006); Souza (2014a) contribui ao trazer que o processo de formação carece de inovação, emancipação e rupturas. As autoras afirmam que há necessidade de resistir a tudo quanto desprestigia o conhecimento pedagógico e defender uma educação emancipatória e solidária. Ainda mais em refletir com criticidade as realidades, perceber os discentes como sujeitos no processo de aprendizagem e como produtores de conhecimentos, considerar a subjetividade e o sabor do saber, trabalhar com a dúvida e compartilhá-la, permitir o diálogo com outros campos do saber, contextualizar o conhecimento e sua historicidade, permitir e promover o autoconhecimento para a compreensão sócio-histórica de si mesmo.
Igualmente, Souza (2014a); Bernardes; Ferreira; Anes (2014) afirmam que é necessário superar a ideia de função docente tradicional, alicerçada na transmissão e reprodução do conhecimento. Rancière (2004); SOUZA, 2014a) aponta que no ensino tradicional o mestre mantém seu aluno como incapaz para que ele permaneça como o único detentor e transmissor do conhecimento.
Fiscarelli (2012); Souza (2014a) traz que há diferença entre a transmissão e comunicação, enquanto a transmissão implica na subordinação e dominação eliminando toda e qualquer relação recíproca, a comunicação se refere à dialogicidade permitindo diálogo mútuo. A Bildung considera a noção de mente no aspecto social, ecológico, ativo, complexo e o ato de aprender é uma ação compartilhada, solidária, cooperativa e não solitária pois o processo de tornar-se pessoa se constitui na complexa rede de relações.
Bruner (1996); Souza (2014a) apontou a dificuldade dos professores de apropriarem das mudanças paradigmáticas, por exemplo, do explicar e do compreender. O explicar pensa no discente como aquele que recebe acriticamente o que lhe é transmitido e imposto, um indivíduo passivo, domesticável, alienado, incapaz de crescer, produzir conhecimento ou intervir na realidade. Mas, romper com essa realidade que é histórica e diretamente relacionada com a estrutura da sociedade durante a história não é simples e nem automático.
Mesmo que existam contradições nas instituições formadoras, que como já discorrido em respeito às universidades públicas, são espaços embates ideológicos e de (pro) reprodução dos interesses da classe dominante, que condicionam, mas não determinam o processo formativo. O próprio professor em sua interação com seu alunado determina a prática formadora emancipadora ou condicionadora.
Vygostsky (1997); SOUZA (2014a) defende a mediação como primordial na construção do conhecimento e fundamental na formação de docentes como algo social, histórico, crítico, emancipador e contra hegemônico. Com isso, os autores supracitados confirmam que as potencialidades humanas são desenvolvidas no movimento das relações, dos enfrentamentos, contradições e não automaticamente. Já Souza (2014a) assim levanta mais alguns indicadores como essa relação dialética entre a teoria e a prática que se faz a práxis, a sensibilidade artística e a função mediadora.
Santos (2002) contribui nessa reflexão ao realizar a crítica à razão indolente, o modelo de racionalidade ocidental, que segundo o referido autor diz respeito a:
“[...] um impotente (determinismo, realismo), arrogante (livre arbítrio, construtivismo), metonímica (a parte tomada pelo todo) e proléptica (o domínio do futuro sob a forma do planeamento da história e do domínio da natureza)” (SANTOS, 2002, p. 241).
A partir disso, Santos (2002) levanta a necessidade de desafiar a razão indolente que planificou a história, a sociedade e a natureza e propor um novo modelo de racionalidade, a racionalidade cosmopolita, na sociologia das ausências e na sociologia das emergências em um movimento de dilatar o presente e contrair o futuro valorizando os diferentes saberes e experiências.
A sociologia das ausências pretende transformar o impossível em possível, fazendo das ausências, presenças. Isso porque a razão metonímica faz de tudo que não cabe em sua totalidade e linearidade como uma não existência. Aqui Santos (2002) traz a ideia de que a realidade não pode ser reduzida ou minimizada. Por isso ele propõe a ecologia dos saberes, ecologia de temporalidades, ecologia de reconhecimentos e ecologia de produções e distribuições sociais como critica às lógicas da razão metonímica de dispensar, desresidualizar, desracializar, deslocalizar e desproduzir. A sociologia das emergências está em abandonar a ideia de futuro sem limites por um futuro com algo concreto que está a emergir. É viver as experiências que não estão dadas, mas que são possíveis no presente. E então, está a tradução que o autor acrescenta como criadora de condições concretas para a emancipação social, para a esperança da transformação.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante desse quadro, na posição de docente, perceber e se confrontar com mudanças em seus próprios pensamentos e práticas pedagógicas pode trazer a insegurança ou a ideia de em mudar a visão e estrutura de professores explicadores, a estrutura tradicional ou até mesmo a estrutura imposta pelo neoliberalismo a partir dos anos 90 da tecnicidade, eficiência, competência.
Contudo, fica claro, durante o movimento de participação na disciplina de mestrado “Docência universitária: epistemologias, implicações na qualidade, na profissionalização e no trabalho docente” no Programa de Pós-Graduação em Educação principalmente nas universidades públicas ainda é desafiador, isto porque o processo de ensino e aprendizagem ainda requer melhorias.
A considerar pela realidade vivenciada nas universidades em relação aos embates do paradigma hegemônico e do paradigma contra-hegemônico na qualidade da docência universitária, primeiro torna-se interessante frisar que a estrutura e a imposição da hegemonia não ocorrem de repente, o que suscita afirmar tem-se muito a fazer e a mudar.
Desse modo, o objetivo do estudo foi esclarecer como se deu a construção da ciência, da razão, da epistemologia, dos paradigmas e a relação destes com a sociedade e com a educação, especialmente no que se refere aos embates que surgem no dia a dia das universidades, foi alcançado á medida que os tópicos abordados trataram de modo claro sobre o tema.
Logo, concluiu-se que a docência universitária, assim como a universidade pública em seu corpo de docentes e discentes, tem resistido ao engessamento (im) posto pelo neoliberalismo em sua roupagem de “Terceira Via”, mas essa resistência ao paradigma hegemônico só é possível se discutir o que está posto e assim ter acesso na formação, na prática e na profissionalização da possibilidade da contra hegemonia.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BERNARDES, Cyntia Aparecida de Araújo; FERREIRA, Ione Mendes Silva; ANES, RodrigoRoncato Marques. Docência Universitária e Inovação: perspectivas para práticas pedagógicas emancipadoras. In: Docência Universitária: construções, utopias e inovações. Goiânia: Editora América, 2013.
BRZEZINSKI, Iria. Políticas contemporâneas de formação de professores para os anos iniciais do Ensino Fundamental. In: Revista Educação e Sociedade, Campinas, vol. 29, n. 105, p. 1139-1166, set./dez. 2008.