DIREITO A INCLUSÃO DOS DEFICIENTES INTELECTUAIS NAS ESCOLAS

PDF: Clique aqui


REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.15543484


Kéziah da Conceição Marins1
Atila Barros2


RESUMO
O presente estudo aborda a inclusão escolar de pessoas com deficiência intelectual como um imperativo ético-político orientado pela dignidade humana. Para além da normatividade jurídica, expressa na Constituição de 1988, na Lei Brasileira de Inclusão (2015) e na Declaração de Salamanca (1994), defende-se que a efetivação da inclusão demanda práticas pedagógicas sensíveis, escuta ativa e valorização da singularidade dos sujeitos. Ao retomar o histórico de exclusões, como o caso do Hospital Colônia de Barbacena, denuncia-se a persistência de lógicas excludentes nas escolas. A mudança de paradigma requer a superação da ideia de normalidade e a construção de uma cultura escolar plural, sustentada pela formação docente, pelo trabalho colaborativo e pelo compromisso afetivo com a diferença como valor formativo.
Palavras-chave: Inclusão escolar; deficiência intelectual; direitos; formação; compromisso.

ABSTRACT
This study addresses the school inclusion of persons with intellectual disabilities as an ethical-political imperative grounded in human dignity. Beyond legal normativity — as expressed in the 1988 Brazilian Constitution, the Brazilian Inclusion Law (2015), and the Salamanca Statement (1994) — it argues that genuine inclusion requires sensitive pedagogical practices, active listening, and the appreciation of each individual’s singularity. By revisiting the history of exclusions, such as the case of the Hospital Colônia de Barbacena, the text denounces the ongoing presence of exclusionary logics in schools. A paradigm shift entails overcoming the notion of normality and building a plural school culture sustained by teacher education, collaborative work, and an affective commitment to difference as a formative value.
Keywords: School inclusion; intellectual disability; rights; teacher education; commitment.

INTRODUÇÃO

Escrever sobre inclusão, particularmente no âmbito da deficiência intelectual, é instaurar um campo de análise que ultrapassa os limites do cumprimento legal e se inscreve na urgência de uma pedagogia comprometida com a dignidade, com o reconhecimento da alteridade e com a superação histórica dos dispositivos de exclusão que sustentaram práticas normativas e excludentes nos sistemas educacionais. A inclusão não pode ser compreendida como mera adaptação técnica ou concessão protocolar: trata-se, sobretudo, de um posicionamento ético-político que compreende a educação como prática da liberdade, nos termos de Paulo Freire (1996). Durante séculos, corpos considerados “anômalos”, como os das pessoas com deficiência intelectual, foram alvo de processos de medicalização, segregação e invisibilização, tanto no discurso quanto nas práticas sociais. A genealogia dessa exclusão pode ser compreendida a partir das análises de Michel Foucault (2006), que evidencia como, na transição da Idade Média para a modernidade, os “loucos”, os “idiotas” e os “incapazes” foram pouco a pouco capturados por um dispositivo de saber-poder que os silenciou e os confinou sob o manto da anormalidade. Como afirma o autor, “a loucura foi arrancada do espaço social para se tornar objeto da medicina e da segregação” (Foucault, 2006, p. 74), e, com ela, todas as formas de diferença cognitivamente classificadas como inadequadas.

No campo educacional, essa história ecoa de forma contundente. Até fins do século XX, pessoas com deficiência intelectual eram sistematicamente afastadas das escolas regulares no Brasil, confinadas a instituições segregadas, como se o espaço escolar não pudesse suportar a diferença. Essa lógica normativa tem raízes profundas na perspectiva eugenista de Francis Galton (1869), que, ao defender a seleção hereditária da inteligência, naturalizou a exclusão dos “menos aptos” dos processos sociais considerados nobres – como o ensino. A ideia de que a deficiência intelectual inviabiliza a aprendizagem e compromete a participação social é, portanto, uma construção ideológica forjada para justificar a exclusão e manter a escola como espaço de reprodução dos corpos e saberes hegemônicos. Contudo, como enfatiza Paulo Freire (1996, p. 32), “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção”. É nesse sentido que a inclusão deve ser compreendida: como a tarefa coletiva de reinventar as condições de escuta, de diálogo, de significação da experiência, e de valorização dos saberes que emergem dos corpos, das trajetórias e das inteligências múltiplas. A inclusão não é apenas uma resposta a uma demanda legal – embora esta também seja imprescindível – mas a radical afirmação de que todo ser humano, como sujeito inacabado e em constante formação, é portador de potencialidades educativas.

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 2053, afirma que a educação é um direito de todos e dever do Estado e da família, sendo promovida com vistas ao pleno desenvolvimento da pessoa. Complementarmente, a Lei Brasileira de Inclusão (Brasil, 2015), ao instituir o Estatuto da Pessoa com Deficiência, reconhece que a deficiência é um conceito em evolução e resulta da interação entre pessoas com impedimentos e barreiras atitudinais e ambientais que impedem sua plena participação na sociedade. Assim, a deficiência deixa de ser atributo do indivíduo e passa a ser um marcador de desigualdade estrutural. É nesse contexto que a Declaração de Salamanca (1994) torna-se um marco histórico incontornável ao propor que as escolas devem acolher todas as crianças, independentemente de suas condições físicas, intelectuais, sociais, emocionais, linguísticas ou outras. Tal posicionamento fortalece o entendimento de que a escola é o lugar privilegiado para a reconstrução das relações sociais marcadas pela exclusão, e que “não é a deficiência que exclui, mas a sociedade” (Werneck, 1997, p. 21).

No Brasil, pensadoras como Maria Teresa Eglér Mantoan (2003, 2006) e ativistas como Romeu Kazumi Sassaki (2009) contribuíram significativamente para essa mudança de paradigma, ao defenderem a inclusão como um direito inalienável e não como concessão. Mantoan (2003) lembra que o direito à diferença é parte constitutiva da democracia, e que não se trata de fazer o diferente “caber” na escola como ela é, mas de transformar a escola para que ela se torne de fato de todos. Essa perspectiva converge com a concepção freiriana de que educar é um ato político, e que não há neutralidade em face das desigualdades sociais. Como assinala Freire (2003, p. 24), “a educação é um ato de amor, por isso, um ato de coragem. Não pode temer o debate. A análise da realidade. Não pode fugir à discussão criadora, sob pena de ser uma farsa”. Entretanto, mesmo com o avanço dos marcos legais e das produções acadêmicas, o cotidiano das escolas revela um cenário ainda permeado por contradições. A inclusão permanece frequentemente restrita à matrícula, e não à convivência, à escuta, ao afeto, à participação efetiva. As barreiras não são apenas arquitetônicas, mas sobretudo epistemológicas e pedagógicas. Educadores, muitas vezes sem formação específica, sentem-se despreparados para lidar com a diversidade, e as práticas continuam centradas em uma lógica conteudista e homogênea, incapaz de dialogar com os modos de aprendizagem que rompem com os parâmetros ditos “normais”. Ainda, a cultura escolar, estruturada historicamente em moldes disciplinadores, como analisa Foucault (1977) em Vigiar e Punir – tende a punir os desvios da norma, dificultando a emergência de sujeitos que não se encaixam nos regimes de visibilidade e produtividade escolar. A deficiência intelectual, nesse quadro, é vista como ruído, como atraso, como obstáculo, e não como diferença legítima e produtiva de sentidos. Daí a urgência de repensar os próprios fundamentos da pedagogia contemporânea, substituindo a lógica da adaptação pela da convivência e da partilha.

A crítica de Cláudia Werneck (1997) à ideia de “dar um jeito” para incluir é fundamental: a escola não deve buscar estratégias paliativas para “tolerar” a diferença, mas sim reinventar suas práticas, seus tempos, seus espaços, sua linguagem, para garantir que todos os sujeitos – e não apenas os ditos normais – possam construir sentidos e pertencer. Como lembra Vygotsky (1997), o desenvolvimento humano é sempre social e mediado, e não há aprendizagem significativa que prescinda da interação e do reconhecimento mútuo. A inclusão de pessoas com deficiência intelectual, portanto, não deve ser vista como uma política de exceção, mas como condição de possibilidade para uma escola democrática, que compreenda o conhecimento como direito e a diferença como valor. A escola precisa assumir sua função política de romper com os legados da exclusão, das normalizações e das hierarquias do saber, para construir um espaço em que a diversidade humana não seja obstáculo, mas horizonte de formação.

A história contada por Daniela Arbex (2013), no livro Holocausto Brasileiro, ao denunciar o massacre silencioso de milhares de pessoas com sofrimento mental no maior hospício do país, revela como a desumanização das diferenças pode assumir formas trágicas quando sustentada por um pacto social de silêncio e omissão. Romper com essa lógica é tarefa inadiável da educação. Por fim, é preciso reconhecer que a construção de uma sociedade inclusiva não se dará por decreto, mas por luta coletiva. Incluir não é apenas aceitar a presença do outro, mas comprometermo-nos com sua dignidade, com sua voz, com sua história. Como bem afirma Freire (1996, p. 25), “é na cordialidade do encontro que o ser humano se faz mais gente”. A inclusão escolar de pessoas com deficiência intelectual é, nesse sentido, uma das faces mais radicais da luta por uma educação verdadeiramente libertadora.

Diante das permanências históricas da exclusão e das novas formas de segregação simbólica que ainda atravessam a escola contemporânea, pensar a inclusão de pessoas com deficiência intelectual é tarefa que exige coragem política, rigor pedagógico e sensibilidade ética. A urgência desse debate não reside apenas na reparação de injustiças históricas, mas na afirmação de um projeto educacional emancipador, que se recusa a pactuar com a desigualdade e assume, como fundamento, a dignidade da diferença. Que a escola, como espaço de invenção de futuros, seja também lugar de acolhimento radical, onde toda pessoa – em sua singularidade, seja reconhecida, ouvida e respeitada como sujeito pleno de direitos e de saberes.

MÉTODO

Esta pesquisa se inscreve no campo das investigações qualitativas de cunho crítico-interpretativo, orientando-se pelos pressupostos da epistemologia da práxis e pelos fundamentos da pedagogia libertadora de Paulo Freire (1996, 2003). A escolha metodológica se justifica pela natureza do objeto de estudo, a inclusão de pessoas com deficiência intelectual no espaço escolar, que exige a compreensão profunda dos sentidos produzidos nas práticas cotidianas, bem como das contradições entre os discursos normativos e as realidades vivenciadas.

O percurso investigativo fundamentou-se em uma abordagem bibliográfica e documental, articulando fontes teóricas, marcos legais e produções científicas que versam sobre deficiência intelectual, inclusão educacional, políticas públicas e práticas pedagógicas. A base empírica do estudo compreendeu a análise de documentos oficiais, como a Constituição Federal de 1988, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/1996), a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015) e a Declaração de Salamanca (1994), além de obras referenciais de autores como Mantoan (2003, 2006), Sassaki (2009), Werneck (1997), Rodrigues (2006), Stainback e Stainback (1999), entre outros.

Foram analisadas, ainda, produções de base filosófica e crítica que contribuem para a compreensão da deficiência como construção social e histórica, especialmente os escritos de Michel Foucault (2006), cuja genealogia da exclusão dos corpos desviantes revelou a constituição dos dispositivos disciplinares e normalizadores nas instituições modernas, incluindo a escola. Da mesma forma, foram incorporadas reflexões de Lev Vygotsky (1997), particularmente no que se refere ao papel mediador da cultura e das relações sociais no desenvolvimento humano.

A análise interpretativa do material coletado buscou identificar as permanências e rupturas nos discursos e nas práticas relacionadas à inclusão escolar, assim como evidenciar os limites e as potencialidades das políticas públicas no enfrentamento da exclusão. Tal análise foi orientada pelo método hermenêutico-dialético, que considera a historicidade dos fenômenos sociais e as tensões entre estrutura e ação, entre o instituído e o instituinte.

O referencial freireano orientou o olhar crítico da pesquisadora para os modos como as práticas escolares podem reproduzir ou superar desigualdades históricas. Partindo do princípio de que “não há educação neutra” (FREIRE, 2003, p. 25), o estudo adotou como horizonte a construção de uma escola democrática, onde a inclusão se realize não apenas como legalidade, mas como ética da presença e da escuta.

A BREVE HISTÓRIA DA LOUCURA NO BRASIL

A história da loucura no Brasil é, antes de tudo, a história de uma violência simbólica e institucional sistematicamente perpetuada contra os corpos e subjetividades que transgridem a normatividade social. Trata-se de uma narrativa marcada pela marginalização, pelo confinamento e pela patologização da diferença, que se entrelaça com os processos históricos de construção do Estado-nação, de consolidação da psiquiatria como campo de saber e de formação das instituições de controle social. A loucura, enquanto categoria socialmente produzida, foi utilizada como justificativa para o afastamento dos "indesejáveis" da esfera pública e para a contenção dos discursos que escapavam ao ideal moderno de racionalidade, produtividade e autocontrole.

Inspirando-se na análise foucaultiana, é possível afirmar que o surgimento dos primeiros hospitais psiquiátricos no Brasil, a partir do século XIX, não representou um avanço humanitário, mas uma nova forma de gestão da alteridade. Michel Foucault (2006), em História da Loucura na Idade Clássica, demonstra como o internamento dos "loucos" emergiu como estratégia de poder para separar os sujeitos que não se enquadravam no discurso da razão iluminista. No contexto brasileiro, esse movimento foi fortemente influenciado por paradigmas europeus, sobretudo franceses e alemães, mas adquiriu contornos particulares, atravessados pelas relações coloniais, pelo racismo científico e pela desigualdade estrutural.

O primeiro hospício brasileiro, fundado em 1852 sob o nome de Hospício Pedro II, no Rio de Janeiro, já revelava a função social do internamento: retirar da convivência social não apenas os considerados "doentes mentais", mas também alcoóolatras, prostitutas, negros pobres e mulheres "insubmissas". A psiquiatria nascente, nesse contexto, operava como tecnologia de controle social, sustentada por um discurso cientificista que mascarava a violência do enclausuramento sob a pretensão da cura. O caso emblemático do Hospital Colônia de Barbacena, amplamente denunciado pela jornalista Daniela Arbex (2013) em Holocausto Brasileiro, revela o grau extremo de desumanização a que foram submetidas mais de 60 mil pessoas internadas sem diagnóstico médico e sem critérios técnicos. Muitas delas foram encaminhadas ao hospital por razões alheias à saúde mental: pobreza, comportamento considerado "inadequado", ou simplesmente por serem incômodas aos seus grupos familiares e sociais. Tratadas como descartáveis, essas pessoas eram despojadas de suas identidades, submetidas a fome, frio, tortura e morte. A lógica da exclusão, como apontaria Paulo Freire (2003), nega a condição humana do outro ao transformá-lo em objeto de silenciamento e dominação.

Freire (1996), ao defender a educação como prática da liberdade, nos ensina que "não há saber mais ou saber menos: há saberes diferentes". Esse princípio, aplicado ao campo da saúde mental, implica reconhecer que os sujeitos historicamente classificados como "loucos" são portadores de experiências, visões de mundo e modos de ser que não devem ser suprimidos, mas ouvidos e respeitados. O paradigma da escuta, tão caro ao pensamento freireano, se contrapõe à tradição psiquiátrica autoritária, baseada na medicalização forçada, na exclusão social e na anulação da subjetividade.

A partir da década de 1980, impulsionado por movimentos sociais, pela Reforma Sanitária e pela influência das ideias antipsiquiátricas europeias, inicia-se no Brasil um processo de transformação do modelo asilar. O movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira propôs a substituição dos hospitais psiquiátricos por uma rede de cuidados territoriais, centrada na autonomia dos sujeitos e na integração com a comunidade. A Lei nº 10.216/2001, conhecida como Lei Paulo Delgado, representou um marco nesse processo ao estabelecer diretrizes para a proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais, reforçando a necessidade de tratar em liberdade, com base no respeito aos direitos humanos. Entretanto, mesmo com os avanços legislativos e com a ampliação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), ainda persistem resquícios do modelo manicomial na prática cotidiana. A lógica da internação compulsória, o estigma social e a precariedade das políticas públicas desafiam a construção de uma sociedade que acolha a diversidade psíquica. Como adverte Foucault (2006), o saber-poder psiquiátrico continua operando através de dispositivos sutis de controle, mesmo em contextos pretensamente libertários.

A história da loucura no Brasil, portanto, é também a história da lógica do silenciamento, mas também da resistência. A atuação de profissionais como Nise da Silveira, que recusou os métodos violentos da psiquiatria tradicional e apostou na expressão artística como via de comunicação e cuidado, revela que outro caminho é possível. Inspirada pela psicologia junguiana, Nise criou ateliês de pintura e modelagem no Centro Psiquiátrico Pedro II, onde seus pacientes puderam construir narrativas simbólicas de si mesmos, muitas vezes negadas pelo discurso psiquiátrico normativo.

Refletir sobre a história da loucura no Brasil é um gesto político de memória e resistência. Significa reconhecer que a violência contra aqueles que vivem à margem da normatividade psíquica é também uma violência contra os princípios fundamentais da democracia, da justiça social e dos direitos humanos. Inspirado por Paulo Freire, é preciso afirmar que não há educação libertadora sem escuta, sem reconhecimento da alteridade e sem a recusa da lógica do descarte. A história da loucura no Brasil nos convoca, portanto, a repensar nossas instituições, nossas práticas e nossos discursos. E, sobretudo, a construir uma sociedade que não tema a diferença, mas que a reconheça como condição constitutiva da humanidade.

EXCLUSÃO DO DEFICIENTE INTELECTUAL NO ÂMBITO ESCOLAR

A escola, enquanto instituição social por excelência da modernidade, deveria constituir-se como espaço de formação humana, acolhimento da diversidade e promoção de uma cidadania ativa e emancipadora. Entretanto, este ideal encontra-se reiteradamente frustrado diante da persistente exclusão de estudantes com deficiência intelectual, cuja presença nas escolas ainda é marcada por resistências institucionais, negligências pedagógicas e barreiras simbólicas profundamente enraizadas nas estruturas escolares e sociais.

A exclusão desses sujeitos não se apresenta, necessariamente, de forma explícita. Ela se manifesta de modo insidioso, muitas vezes travestida de neutralidade administrativa ou de incapacidade logística. A recusa de matrículas, a alegada falta de "estrutura adequada" e a ausência de mediação pedagógica efetiva constituem formas de violação do direito à educação, garantido pela Constituição Federal de 1988 em seu artigo 205. Nesse sentido, a permanência da exclusão escolar opera como mecanismo de manutenção das desigualdades estruturais que atravessam a sociedade brasileira. Como problematiza Mantoan (2003), as escolas brasileiras ainda operam sob o paradigma da homogeneidade, sustentadas pela crença meritocrática de que apenas aqueles que correspondem aos padrões hegemônicos de aprendizagem merecem lugar no espaço escolar. Essa perspectiva, longe de ser neutra, é atravessada por uma história de exclusão que, como demonstra Foucault (2006), tem suas raízes na formação dos dispositivos modernos de saber-poder que classificam, separam e hierarquizam corpos e saberes. Nesse contexto, a deficiência intelectual é frequentemente tratada não como uma condição diversa, mas como um desvio do ideal normativo de inteligência e produtividade. A inclusão, por sua vez, é reduzida à presença física em sala de aula, sem que se reconfigurem os modos de ensinar, avaliar e interagir com a diferença. Como alerta Freire (1996, p. 39), "ensinar exige respeito à autonomia do ser do educando". Quando esse respeito é negado, instala-se uma prática de exclusão simbólica que compromete a dimensão formativa do processo educativo.

Além da exclusão institucional, observa-se a permanência de barreiras pedagógicas que se expressam na recusa ou na dificuldade de adaptar os conteúdos curriculares, os instrumentos de avaliação e as metodologias às necessidades específicas dos estudantes com deficiência intelectual. O despreparo dos profissionais da educação, que não receberam formação adequada para atuar com a diversidade, é agravado pela ausência de políticas efetivas de formação continuada. A prática pedagógica, assim, permanece aprisionada em modelos conteudistas, excludentes e desprovidos de sentido para os sujeitos concretos que habitam a escola. No plano das relações interpessoais, a exclusão também assume formas corrosivas, ainda que nem sempre visíveis. A marginalização nas atividades coletivas, a ausência de vínculos sociais significativos, o bullying e a superproteção são sintomas de uma cultura escolar que não reconhece a diferença como valor. Como salienta Vygotsky (1997), o desenvolvimento psíquico é resultado da interação social e da mediação simbólica. A exclusão social, nesse sentido, não apenas fere a dignidade do sujeito, mas compromete seu processo de constituição subjetiva e sua experiência de aprendizagem.

A exclusão atitudinal, por sua vez, é talvez a mais persistente. Ela se manifesta nas baixas expectativas, nos discursos que infantilizam ou patologizam o sujeito com deficiência, e nas práticas que o posicionam como objeto de cuidado e não como sujeito de direitos. Tais discursos são, como diria Foucault (2006), "efeitos de poder travestidos de saber", que classificam e hierarquizam as existências a partir de parâmetros de normalidade. Mesmo diante de marcos normativos robustos, como a Declaração de Salamanca (1994), a Constituição Federal de 1988 e a Lei Brasileira de Inclusão (2015), a exclusão persiste, o que evidencia a dissociação entre legalidade e efetividade. A inclusão exige não apenas normas, mas também uma reinvenção das práticas escolares, um deslocamento de lógicas classificatórias para perspectivas emancipatórias. Como propõe Freire (2003), é preciso "lutar para que o direito à educação não se limite ao direito de estar fisicamente na escola, mas de ser sujeito da aprendizagem, do pensamento, da história". O desafio, portanto, é instaurar um ethos escolar que compreenda a inclusão como um imperativo ético-político, que recuse as fórmulas paliativas e se comprometa com a criação de espaços de escuta, participação e reconhecimento.

A exclusão escolar de estudantes com deficiência intelectual, ainda que muitas vezes mascarada por discursos de boa intenção, configura uma expressão concreta da negação da condição humana como pluralidade e potencialidade. Enfrentá-la exige mais que a simples adequação estrutural: implica reposicionar a escola como espaço de produção de sentidos, de reconfiguração das relações sociais e de afirmação incondicional da dignidade humana. Nesse sentido, a luta por uma educação inclusiva não é apenas uma pauta técnica ou administrativa, mas um gesto político de recusa à barbárie e de aposta na potência do comum. A inclusão não é um favor, é um direito. E como tal, não pode ser negociado, relativizado ou adiado. É uma exigência da democracia, da justiça social e, sobretudo, da humanidade que insistimos em construir coletivamente, todos os dias, com todos e para todos.

A PATOLOGIZAÇÃO DA DIFERENÇA E A LÓGICA DA EXCLUSÃO

Durante séculos, a sociedade ocidental instituiu regimes de exclusão baseados na patologização da diferença, reproduzindo uma epistemologia da dominação que legitimava a violência contra os corpos e subjetividades não normatizadas. A deficiência, especialmente a intelectual, foi sistematicamente confundida com a loucura, com a periculosidade ou com a anomalia moral, ensejando o confinamento, o silenciamento e a negação da humanidade daqueles que escapavam ao ideal iluminista de racionalidade e produtividade. Como afirma Michel Foucault (2006), em sua genealogia das práticas manicomiais, a modernidade produziu "lugares de internação" para ocultar o que ameaçava a ordem social e epistemológica. A diferença foi transformada em desvio, e o desvio, em objeto de controle e aniquilamento.

Um dos emblemas mais brutais dessa história é narrado por Daniela Arbex (2013) na obra Holocausto Brasileiro, que denuncia o extermínio de mais de 60 mil pessoas no Hospital Colônia de Barbacena, Minas Gerais. Nesse espaço, não se tratava a loucura; eliminava-se o incômodo social. Indivíduos foram internados não por critérios médicos, mas por serem pobres, indesejados, indisciplinados ou portadores de deficiência intelectual. O manicômio funcionava como tecnologia de poder, conforme Foucault (2006), onde a medicalização e a violência institucional se articulavam para negar a condição humana dos internados.

Em contraponto, emergiram vozes de resistência, como a de Nise da Silveira, que subverteu a lógica psiquiátrica hegemônica ao reconhecer nas expressões artísticas de seus pacientes não sintomas, mas formas de comunicação e potência criadora. Sua abordagem, centrada na escuta e no acolhimento, recuperava a dimensão humana negada pelas práticas manicomiais. A arte, nesse contexto, tornou-se linguagem libertadora, como em Freire (2003), para quem todo processo educativo é também um ato de expressão do mundo. O campo da educação não esteve imune a essa lógica excludente. Por décadas, a deficiência intelectual foi concebida como incapacidade intransponível, justificando a segregação em instituições especializadas e a negação do direito à escolarização comum. A mudança de nomenclatura de "deficiência mental" para "deficiência intelectual" representa, nesse sentido, mais do que uma substituição terminológica: simboliza uma inflexão paradigmática, alinhada à perspectiva dos direitos humanos e da dignidade da diferença. Conforme a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (ONU, 2006), ratificada no Brasil com status constitucional, a deficiência é resultado da interação entre condições pessoais e barreiras sociais.

A adoção da expressão "deficiência intelectual", como reconhecida pela Classificação Internacional de Funcionalidade da OMS (AAIDD, 2010), permite dissociar essa condição de noções patológicas e estigmatizantes, favorecendo um olhar que reconhece o potencial de desenvolvimento e a necessidade de suporte específico, e não de exclusão. Como destaca Freire (1996), "ninguém ignora tudo, assim como ninguém sabe tudo"; todo ser humano é um sujeito em permanente formação, com potencialidades singulares que devem ser mobilizadas e reconhecidas.

No campo educacional brasileiro, a inclusão escolar de estudantes com deficiência intelectual permanece como desafio estrutural e ético. Embora amparada pela Constituição de 1988, pela LDB (Lei nº 9.394/19964) e pela Lei Brasileira de Inclusão (2015), a prática cotidiana nas escolas revela persistências de exclusão, expressas na negação da diferença, na padronização curricular e na ausência de formação docente para lidar com a diversidade. Mantoan (2006) afirma que a presença física do estudante não equivale à inclusão; esta se realiza na participação ativa e na aprendizagem significativa, que exige reconfiguração profunda das práticas escolares.

A Convenção da ONU (2006) impõe aos Estados a responsabilidade de garantir sistemas educacionais inclusivos em todos os níveis, o que pressupõe o reconhecimento da diversidade como princípio constitutivo da escola e não como exceção. A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (2008) propõe a eliminação de barreiras pedagógicas, atitudinais e estruturais, no intuito de efetivar o direito à educação como direito inalienável.

A deficiência intelectual, conforme a AAIDD (2010), compreende limitações significativas no funcionamento intelectual e nas habilidades adaptativas, o que exige práticas pedagógicas responsivas e mediadas. Vygotsky (1997), ao propor a noção de zona de desenvolvimento proximal, enfatiza que a aprendizagem não é um dado estático, mas uma construção social e intersubjetiva. A interação, a mediação e o reconhecimento da singularidade são condições para que a escola deixe de ser reprodutora de exclusão e se converta em espaço de emancipação. Contudo, os entraves à inclusão são numerosos: resistência docente, ausência de formação inicial e continuada, carência de recursos didáticos e barreiras arquitetônicas configuram um panorama de neglicência estrutural. Oliveira (2014) aponta que a insegurança dos professores diante da diversidade reflete a formação tradicional, pouco afeita à reflexão crítica e à flexibilidade curricular. A educação inclusiva exige o rompimento com práticas homogeneizantes e o investimento em metodologias diferenciadas, recursos acessíveis e cultura escolar baseada na escuta e no respeito. O Atendimento Educacional Especializado (AEE), nesse contexto, desempenha papel essencial ao oferecer suporte pedagógico articulado ao projeto político-pedagógico da escola. Mantoan (2003) defende que a inclusão se concretiza quando o educador reconhece a diferença como valor e age como sujeito transformador da prática.

A história de exclusão vivida por pessoas com deficiência intelectual no Brasil, de Barbacena às escolas públicas contemporâneas, revela que a violência não se limita aos atos visíveis, mas se reproduz nos silêncios institucionais, na indiferença política e nas ausências pedagógicas. Superar esse legado exige a construção de uma pedagogia radicalmente comprometida com a liberdade, nos termos de Freire (2003), para quem educar é "um ato de coragem, uma forma de intervir no mundo". A inclusão escolar não é apenas uma meta legal, mas uma tarefa ética e civilizatória. É o compromisso com uma educação que reconhece, respeita e celebra a diferença como condição de humanidade.

A INCLUSÃO ESCOLAR NÃO É APENAS UMA META LEGAL, MAS UMA TAREFA ÉTICA E CIVILIZATÓRIA

A inclusão escolar de pessoas com deficiência intelectual não deve ser compreendida como simples cumprimento de determinação normativa ou como gesto pontual de benevolência institucional. Trata-se de um imperativo ético e civilizatório que convoca toda a comunidade escolar a reconstruir suas bases epistemológicas, suas práticas pedagógicas e suas relações sociais sob o horizonte da dignidade humana. Como destaca Paulo Freire (1996), a educação é sempre um ato político, e toda forma de exclusão, ainda que velada, é um mecanismo de negação da humanidade do outro. Incluir é reconhecer a pluralidade como condição constitutiva do ser e a diversidade como valor formativo.

Embora a Constituição Federal de 1988 estabeleça, em seu artigo 205, que a educação é direito de todos e dever do Estado, e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/1996) reforce o princípio do acesso e permanência na escola, a realidade cotidiana ainda é marcada por contradições, barreiras estruturais e resistências subjetivas. A Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015) e a Declaração de Salamanca (1994) sinalizam caminhos para uma educação inclusiva, mas sua efetivação demanda uma mudança profunda de mentalidade, que transcenda a letra da lei e alcance a íntima convicção de que todos têm direito de aprender, conviver e pertencer.

A educação inclusiva exige, portanto, que se abandonem os dualismos reducionistas entre o "normal" e o "anormal", entre o "capaz" e o "incapaz". Como aponta Mantoan (2006), a escola ainda se organiza sob uma lógica meritocrática e excludente, que valoriza o desempenho padronizado e marginaliza aqueles que não correspondem aos parâmetros hegemônicos de eficiência. Ao insistir na normalidade como critério de pertencimento, a instituição escolar nega a singularidade do processo de aprendizagem e perpetua a violência simbólica contra os corpos dissidentes.

A história da educação brasileira, atravessada por experiências como a do Hospital Colônia de Barbacena, retratada por Arbex (2013), revela que a lógica da exclusão à diferença não é acidental, mas estruturante. Internamentos compulsórios, segregacão institucionalizada e anulação das subjetividades foram, por muito tempo, os pilares do trato com aqueles considerados "loucos", "anormais" ou "incorrigíveis". Essa herança permanece viva na escola contemporânea, não mais sob a forma de hospitais psiquiátricos, mas por meio de exclusões pedagógicas, sociais e atitudinais. Inspirado por Freire (2003), que insiste na educação como prática de liberdade, é preciso deslocar o foco da deficiência do sujeito para as estruturas escolares que o excluem. A deficiência intelectual, conforme a definição da AAIDD (2010), diz respeito a limitações no funcionamento intelectual e no comportamento adaptativo, e não implica, por si só, incapacidade de aprender. Vygotsky (1997), ao formular a noção de zona de desenvolvimento proximal, demonstra que o potencial de aprendizagem está condicionado à qualidade das interações sociais e ao acesso a mediações significativas.

A formação docente, nesse sentido, é elemento categórica para a transformação das práticas escolares. Como enfatiza Oliveira (2014), muitos professores ainda se sentem despreparados para lidar com a diversidade em sala de aula, o que compromete a construção de um ambiente inclusivo. A educação inclusiva não se faz apenas com recursos materiais, mas com sensibilização ética, escuta ativa e compromisso coletivo. Como lembram Stainback e Stainback (1999), a inclusão exige uma escola inteira envolvida em práticas colaborativas, não apenas setores especializados.

A atuação de profissionais como Sassaki (2009), Rodrigues (2006) e Werneck (1997) tem sido decisiva para afirmar que a inclusão é direito, não concessão. Para Sassaki, a inclusão implica reconstruir a sociedade em moldes acessíveis a todos. Para Rodrigues, trata-se de um conceito em permanente construção, que exige envolvimento intersetorial. Para Werneck, é fundamental abandonar a ideia de "ser bonzinho" e assumir a diferença como parte da condição humana.

A inclusão escolar de estudantes com deficiência intelectual não se resume à presença física na sala de aula. Ela implica a reinvenção da escola como espaço de produção de sentido, de escuta radical e de afirmação da diversidade como princípio pedagógico. A tarefa de incluir é civilizatória porque nos interpela a decidir, cotidianamente, que tipo de sociedade desejamos construir: uma sociedade da exclusão legitimada pela normatividade ou uma comunidade de sujeitos singulares, autônomos e solidários. Inspirados por Paulo Freire, devemos compreender que incluir é um gesto de amor e de coragem. Amor que reconhece a presença do outro como condição para nossa própria existência. Coragem de transformar as instituições, os discursos e as práticas para que a escola não seja lugar de silêncio, mas de voz. Incluir é, em última instância, humanizar a educação e civilizar a democracia.

A AMPLIAÇÃO DAS MATRÍCULAS E OS DESAFIOS DA INCLUSÃO ESCOLAR DE ESTUDANTES COM DEFICIÊNCIA INTELECTUAL

Nos últimos anos, o Brasil tem apresentado avanços significativos no que diz respeito à ampliação do acesso à educação por parte de estudantes com deficiência intelectual. De acordo com o Censo Escolar de 2023, divulgado pelo Ministério da Educação, o país registrou 952.904 matrículas de alunos com deficiência intelectual na educação básica, o que corresponde a 53,7% do total de 1.771.430 matrículas na modalidade de educação especial (Brasil, 2024). Este crescimento expressivo representa um aumento de 41,6% em relação ao ano de 2019, consolidando uma tendência de expansão do atendimento educacional especializado no interior das redes públicas de ensino.

Contudo, os números, ainda que relevantes, não devem ser lidos como fim em si mesmos. A simples presença do aluno com deficiência intelectual na escola não pode ser confundida com inclusão. A inclusão verdadeira, como aponta Paulo Freire (1996), exige o reconhecimento do outro como sujeito do processo educativo, portador de saberes legítimos e produtor de conhecimento. Em sua obra Pedagogia da Autonomia, Freire afirma que ensinar exige escuta, acolhimento e compromisso com a dignidade do educando, de modo que a prática pedagógica não pode estar pautada na negação da diferença, mas na valorização da pluralidade.

Nesse sentido, é alentador constatar que 95% das matrículas de estudantes com deficiência intelectual entre 4 e 17 anos estão sendo efetivadas em classes comuns do ensino regular, o que denota uma mudança estrutural no paradigma educacional brasileiro, cada vez mais alinhado à Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (2008), à Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (2015) e à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU (2006). No entanto, a presença física nas salas de aula regulares, por si só, não assegura o pertencimento, a participação e o aprendizado significativo desses estudantes.

É nesse ponto que emerge a dimensão ética e civilizatória da inclusão, enquanto construção política orientada pela justiça social e pela superação das desigualdades historicamente produzidas. Como afirma Freire (2003), na Pedagogia do Oprimido, “a desumanização não é destino dado, mas resultado de um contexto histórico concreto”, e só será superada mediante ações que visem à libertação e ao reconhecimento mútuo. Incluir é, portanto, recusar a lógica do descarte que historicamente marginalizou sujeitos considerados "anormais" ou "incapazes", como revela de modo contundente o trágico episódio do Hospital Colônia de Barbacena, investigado por Daniela Arbex (2013). Ali, mais de 60 mil pessoas foram exterminadas sob o argumento de que eram "loucas" ou "inúteis", entre elas, milhares de pessoas com deficiência intelectual que jamais foram diagnosticadas formalmente.

Diante de tal herança excludente, a escola pública contemporânea tem a responsabilidade histórica de construir uma cultura pedagógica da escuta, do acolhimento e do pertencimento. A inclusão, entendida como processo, exige práticas que vão além das normativas: requer formação continuada de professores, projetos político-pedagógicos inclusivos, recursos de acessibilidade, planejamento diferenciado, e, sobretudo, um compromisso coletivo com a humanização das relações educativas. Nesse processo, a contribuição de teóricos como Mantoan (2003, 2006), Sassaki (2009), David Rodrigues (2006) e Cláudia Werneck (1997) é inestimável, pois todos defendem a escola como espaço de afirmação da diferença e não de sua negação.

Conforme destaca Vygotsky (1997), o desenvolvimento humano ocorre pela mediação social, sendo a aprendizagem inseparável da experiência coletiva. Quando estudantes com deficiência intelectual são incluídos em ambientes ricos em interação, onde suas capacidades são reconhecidas, a escola torna-se espaço de produção de sentidos, de subjetividade e de cidadania.

FORMAÇÃO DOCENTE E RUPTURA COM A PEDAGOGIA DO DESEMPENHO

A formação docente, em seu sentido mais profundo, deve ser compreendida como um processo permanente de constituição ética, política e epistemológica do educador como sujeito reflexivo e comprometido com a transformação social. No entanto, ao longo das últimas décadas, tal processo tem sido progressivamente capturado por uma lógica tecnicista e performativa, centrada na aquisição de competências e habilidades mensuráveis, em detrimento da dimensão humanizadora da prática pedagógica. Trata-se da consolidação do que se convencionou chamar de pedagogia do desempenho, um modelo hegemônico de formação que reduz o ensino à eficiência, o professor ao executor e o aluno ao objeto de intervenção. Como denuncia Paulo Freire (1996), essa pedagogia, baseada em "receitas" e "treinamentos", impede que o professor se perceba como sujeito histórico, negando-lhe o direito de refletir criticamente sobre sua própria prática e sobre as condições sociais em que ela se insere. Em Pedagogia da Autonomia, Freire afirma categoricamente que "ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção". Nesse sentido, a formação do educador não pode restringir-se à instrumentalização técnica; ela deve provocar inquietação, questionamento, movimento.

A pedagogia do desempenho, por sua vez, se ancora na ideologia da mensuração e do controle, reproduzindo lógicas neoliberais que tratam o processo educativo como um produto gerenciável, passível de avaliação quantitativa. Essa perspectiva, ao colonizar a formação docente, subordina a escola a indicadores de rendimento e metas de produtividade, desconsiderando as complexidades inerentes ao ato de educar. Como observa Oliveira (2014), esse modelo de formação desumaniza o educador e dificulta a construção de uma prática pedagógica inclusiva e sensível à diversidade.

Para romper com essa lógica, é urgente retomar a formação como um processo dialógico, colaborativo e emancipador, nos moldes propostos por Freire (2003) em Pedagogia do Oprimido. A formação docente freireana parte da escuta e da experiência concreta do professor, compreendido como sujeito inacabado, em permanente construção. Tal perspectiva é radicalmente oposta ao modelo tecnocrático, pois valoriza o saber da experiência, a capacidade de pensar criticamente a realidade e de intervir nela. No campo da educação inclusiva, a pedagogia do desempenho revela-se particularmente nociva. Ao exigir resultados homogênos e padronizados, ela inviabiliza a personalização das práticas pedagógicas, exclui os estudantes que não se enquadram nos parâmetros esperados e compromete o direito de todos à aprendizagem significativa. Como mostram Mantoan (2006) e Rodrigues (2006), a verdadeira inclusão não se efetiva por adaptações pontuais, mas pela transformação das concepções de ensino, aprendizagem e avaliação.

Sassaki (2009) lembra que a educação inclusiva exige professores que saibam dialogar com a diversidade e rejeitem a lógica da homogeneização. Nesse contexto, o papel da formação é formar sujeitos conscientes de sua função social, preparados para atuar em realidades complexas e dispostos a transformar a escola em espaço de acolhimento e pertencimento. Para isso, é fundamental que os cursos de licenciatura abandonem a fragmentação disciplinar e a formação bancária, adotando propostas curriculares integradoras, interdisciplinares e voltadas para a formação crítica.

Werneck (1997), ao afirmar que "incluir não é ser bonzinho, é ser justo", nos lembra que a formação docente não pode se furtar às questões éticas e políticas que atravessam o cotidiano escolar. A construção de uma escola inclusiva é indissociável da formação de professores capazes de reconhecer e enfrentar o capacitismo, o racismo, o sexismo e outras formas de opressão presentes nas relações escolares. A formação docente orientada pela ruptura com a pedagogia do desempenho é condição para o florescimento de uma educação inclusiva, emancipadora e transformadora. Trata-se de reconduzir o ato de ensinar ao seu sentido mais humano: um gesto de implicação com o outro, de escuta da diferença, de abertura ao novo. Inspirado por Paulo Freire, é preciso afirmar que não há educação sem amor, sem coragem e sem compromisso ético com a superação das injustiças. Romper com a pedagogia do desempenho é, em última instância, afirmar a educação como direito, e a docência como ofício de liberdade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Promover a inclusão de estudantes com deficiência intelectual no âmbito escolar exige muito mais do que a existência de marcos legais protetivos. Embora a Constituição Federal de 1988, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/1996) e a Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015) assegurem o direito inalienável à educação, a efetivação desse direito demanda uma profunda reconfiguração dos imaginários pedagógicos, das práticas institucionais e das formas de organização curricular. Trata-se de um desafio político, ético e epistemológico que convoca a escola a abandonar dicotomias anacrônicas entre o "normal" e o "especial", reconhecendo que todos os sujeitos aprendem de maneira singular, a partir de seus tempos, ritmos, condições e experiências. Como aponta Paulo Freire (1996), não há educação neutra. Todo ato educativo é uma escolha e um gesto político. Recusar-se a acolher plenamente a diferença é reafirmar uma concepção bancária do ensino, que impõe conteúdos prontos e invisibiliza a experiência vivida dos educandos. Incluir, ao contrário, é apostar na relação dialógica e na potência da diversidade como condição para o ato de conhecer. Como sublinha o autor, "ensinar exige o reconhecimento de que a realidade não é algo estático" (Freire, 1996, p. 67), e incluir é justamente abrir-se para realidades que escapam aos padrões hegemônicos.

A formação docente, inicial e continuada, emerge como um dos eixos centrais para a consolidação de uma educação inclusiva. A ausência de preparo específico para lidar com a diversidade, aliada a currículos formativos excessivamente teóricos e descolados da prática, compromete a capacidade de a escola responder às singularidades dos estudantes com deficiência intelectual. Stainback (1999), argumentam que formar para a inclusão não significa apenas oferecer técnicas, mas sobretudo cultivar uma postura aberta à escuta, ao acolhimento e à construção compartilhada do conhecimento.

As práticas pedagógicas, por sua vez, devem romper com a rigidez dos modelos tradicionais e conteudistas, propondo estratégias que reconheçam os diferentes estilos de aprendizagem. Metodologias ativas, como a aprendizagem baseada em projetos, o ensino colaborativo e o multinível, são caminhos fecundos para garantir o acesso à aprendizagem por todos os estudantes. David Rodrigues (2006), ao propor a "Pedagogia da Inclusão", reafirma a centralidade do sujeito no processo educativo, destacando que é preciso respeitar não apenas o que o aluno aprende, mas como aprende e em que condições esse processo se realiza. A inclusão, todavia, não se efetiva exclusivamente nas interações em sala de aula. Ela exige uma estrutura de suporte articulada e colaborativa. Equipes multiprofissionais compostas por psicólogos, terapeutas, fonoaudiólogos e especialistas em educação especial desempenham papel indispensável na elaboração de planos de ensino individualizados e no acompanhamento das trajetórias de aprendizagem. Tais dispositivos, longe de substituir a atuação docente, devem potencializá-la por meio da cooperação interdisciplinar.

Ainda assim, é imprescindível reconhecer que a inclusão autêntica se constrói no cotidiano da convivência, na gestão escolar democrática, na mobilização da comunidade e na promoção de uma cultura escolar voltada à solidariedade e ao pertencimento. Projetos interdisciplinares, rodas de conversa, atividades de sensibilização e tutoria entre pares são exemplos de experiências concretas que geram ambientes mais justos e afetuosos. A experiência da Escola Secundária de D. Pedro V, em Lisboa, com programas de tutoria entre alunos com e sem deficiência, ilustra a potência de iniciativas que integram dimensões pedagógicas e éticas da convivência.

No Brasil, a atuação de Cláudia Werneck e do movimento "Escola para Todos" tem sido decisiva para deslocar o discurso da inclusão da esfera da benevolência para o campo do direito. A inclusão não é concessão, mas imperativo constitucional e prática educativa emancipadora. Como afirma Werneck (1997), é preciso rejeitar a ideia de que a inclusão é um favor e compreender que a escola deve se reorganizar para acolher a diversidade, e não o contrário. A inclusão de estudantes com deficiência intelectual é um compromisso que transcende as dimensões legais ou administrativas. Trata-se de uma tarefa que interpela a ética da escuta, a radicalidade da convivência e o compromisso político com a dignidade da diferença. Como insiste Paulo Freire (2003), não há transformação autêntica sem amor, sem justiça e sem a coragem de lutar por um mundo onde todas as pessoas tenham lugar.

Promover a inclusão é, pois, construir cotidianamente uma escola mais humana, mais plural e mais fiel ao seu princípio formativo: educar para a liberdade e para a vida em comum.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARBEK, Daniela. Holocausto Brasileiro: a história do maior hospício do Brasil. São Paulo: Geração Editorial, 2013.

ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE DEFICIÊNCIAS INTELECTUAIS E DO DESENVOLVIMENTO – AAIDD. Definição, classificação e sistemas de apoio. 11. ed. Porto Alegre: ARTMED, 2010.

BRASIL. Ministério da Educação. Matrículas na educação especial chegam a mais de 1,7 milhão. Brasília: MEC, 26 mar. 2024. Disponível em: <https://www.gov.br/mec/pt-br/assuntos/noticias/2024/marco/matriculas-na-educacao-especial-chegam-a-mais-de-1-7-milhao>. Acesso em: 25 maio 2025.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 25 maio 2025.

BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em:<https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm>. Acesso em: 25 maio 2025.

BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm>. Acesso em: 25 maio 2025.

DECLARAÇÃO DE SALAMANCA. Declaração de Salamanca e Linha de Ação sobre Necessidades Educativas Especiais. Salamanca: UNESCO, 1994.

FOUCAULT, Michel. História da loucura na idade clássica. São Paulo: Perspectiva, 2006.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 4. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 41. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.

GALTON, Francis. Hereditary Genius: An Inquiry into Its Laws and Consequences. London: Macmillan, 1869.

MANTOAN, Maria Teresa Eglér. Inclusão escolar: o que é? Por quê? Como fazer? São Paulo: Moderna, 2003.

MANTOAN, Maria Teresa Eglér. O direito de ser, sendo diferente, na escola. Revista CEJ, Brasília, v. 8, n. 28, p. 12-19, set. 2004.

MANTOAN, Maria Teresa Eglér. A escolarização de alunos com necessidades educacionais especiais: os caminhos da inclusão. Revista Brasileira de Educação, v. 11, n. 33, p. 387-405, set./dez. 2006.

ONU. Organização das Nações Unidas. Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Nova Iorque, 2006. Ratificada pelo Brasil com status de emenda constitucional pelo Decreto Legislativo nº 186, de 9 de julho de 2008.

OLIVEIRA, Mônica Pereira. Educação inclusiva e formação docente: limites e possibilidades. Cadernos CEDES, Campinas, v. 34, n. 93, p. 109-125, abr. 2014.

RODRIGUES, David. Educação inclusiva: um conceito em construção. São Paulo: Summus, 2006.

SASSAKI, Romeu Kazumi. Inclusão: construindo uma sociedade para todos. Rio de Janeiro: WVA, 2009.

STAINBACK, Susan; STAINBACK, William. Inclusão: um guia para educadores. Porto Alegre: Artmed, 1999.

SILVEIRA, Nise da. Imagens do Inconsciente. Rio de Janeiro: Alhambra, 1981.

VYGOTSKY, Lev S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

WERNECK, Cláudia. Ninguém mais vai ser bonzinho: em defesa das diferenças. Rio de Janeiro: WVA, 1997.


1 Discente do Curso de Pedagogia pela Universidade Estácio de Sá (Campus Teresópolis). Email: [email protected]

2 Docente dos Cursos de Pedagogia, Análise e Desenvolvimento de Sistemas e Ciências da Computação (UNESA-RJ). Doutorando em Educação pela Universidade Nacional de Rosário (UNR-ARG). Mestrado em Educação (UNESA-RJ). MBA em Data Warehouse e Business Intelligence (FI - PR). Pós-Graduado em Engenharia de Software, Antropologia, Psicopedagogia, Neuropsicopedagogia, Educação no Campo, Filosofia e Ciência da Religião (FAVENI-MG). Historiador pela Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU-SP). E-mail: [email protected]

3 A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 205, estabelece: "A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (BRASIL, 1988).

4 Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, é um dos marcos normativos fundamentais da educação brasileira. Ela estabelece os princípios, fins e organização da educação nacional em todos os seus níveis, modalidades e etapas. Trecho principal relacionado à inclusão de pessoas com deficiência: Art. 4º, inciso III: O dever do Estado com educação escolar pública será efetivado mediante a garantia de: "atendimento educacional especializado gratuito aos educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, preferencialmente na rede regular de ensino". Art. 58, §1º: Haverá, quando necessário, serviços de apoio especializados, na escola regular, para atender às peculiaridades da clientela de educação especial (Brasil, 1996).