DA MEDICALIZAÇÃO DO CORPO À MEDICALIZAÇÃO DO COMPORTAMENTO
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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.18064159
Nilton Pereira da Cunha1
RESUMO
A transição histórica da medicalização do corpo, predominante no século XX, para a medicalização do comportamento humano no século XXI, teve início a partir do final do século XIX, com a industrialização da alimentação introduzindo a farinha e açúcares refinados, gorduras industriais e a substituição do aleitamento materno, tal processo alterou profundamente o ambiente biológico humano, contribuindo para o surgimento das doenças crônicas não transmissíveis e para a consolidação de um modelo médico centrado na gestão contínua do corpo. Cabe salientar que um processo semelhante foi iniciado a partir do final do século XIX, e que deveríamos ter como aprendizado, ou seja, houve apenas um deslocamento do foco médico, o que antes foi para o corpo agora está indo para o cérebro e o comportamento humano. O que antes foi impulsionado pela industrialização agora está sendo impulsionado pelo mundo virtual, especificamente a partir da universalização da internet, das redes sociais, dos smartphones e dos sistemas algorítmicos. O mundo virtual foi projetado para capturar a atenção e retê-la o máximo de tempo possível, com isso, reorganiza a emoção, linguagem, tempo psíquico e socialização, produzindo respostas adaptativas que passam a ser interpretadas como disfunções individuais. Nesse contexto emerge o drama da geração Beta, a primeira a se desenvolver, desde os primeiros dias de vida, integralmente sob mediação algorítmica e inteligência artificial. Por fim, o artigo afirma que a medicalização do comportamento é sintoma de um problema ambiental mais amplo, cuja prevenção exige responsabilidade ética e crítica dos profissionais da saúde, educação, assistência, comunicação e, sobretudo, da conscientização e participação efetiva dos pais e responsáveis, como condição para que o poder público possa desenvolver políticas públicas eficazes.
Palavras-chave: Medicalização do Corpo. Medicalização do Comportamento. Mundo Virtual. Geração Beta.
ABSTRACT
The historical transition from the medicalization of the body, predominant in the 20th century, to the medicalization of human behavior in the 21st century, began in the late 19th century with the industrialization of food, introducing refined flour and sugars, industrial fats, and the replacement of breastfeeding. This process profoundly altered the human biological environment, contributing to the emergence of chronic non-communicable diseases and the consolidation of a medical model centered on the continuous management of the body. It is worth noting that a similar process began in the late 19th century, and that we should learn from it; that is, there was only a shift in the medical focus, what was previously on the body is now shifting to the brain and human behavior. What was once driven by industrialization is now being driven by the virtual world, specifically by the universalization of the internet, social networks, smartphones, and algorithmic systems. The virtual world was designed to capture attention and retain it for as long as possible, thereby reorganizing emotion, language, psychic time, and socialization, producing adaptive responses that are then interpreted as individual dysfunctions. In this context emerges the drama of Generation Beta, the first generation to develop, from the earliest days of life, entirely under algorithmic mediation and artificial intelligence. Finally, the article states that the medicalization of behavior is a symptom of a broader environmental problem, the prevention of which requires ethical and critical responsibility from professionals in health, education, assistance, communication, and, above all, the awareness and effective participation of parents and guardians, as a condition for the public authorities to develop effective public policies.
Keywords: Medicalization of the Body. Medicalization of Behavior. Virtual World. Generation Beta.
1. INTRODUÇÃO
O século XX pode ser compreendido como o século da medicalização do corpo, enquanto o século XXI inaugura, de forma silenciosa e progressiva, a medicalização do comportamento humano.
Essa transição não é casual, tampouco meramente tecnológica; ela expressa uma mudança estrutural no ambiente em que o ser humano vive, se desenvolve e interpreta a própria existência.
A humanidade passou por uma transformação profunda no seu ambiente biológico, no início do século XX. A industrialização dos alimentos alterou drasticamente aquilo que, por milênios, havia sido a base da nutrição humana.
A substituição dos grãos integrais pela farinha refinada, do açúcar natural pelo açúcar refinado, das gorduras tradicionais pela margarina e pelos óleos vegetais industriais, somada à ruptura do aleitamento materno em favor de fórmulas artificiais, criou um novo corpo, um corpo adaptado a uma dieta para a qual não foi evolutivamente preparado.
As consequências tornaram-se visíveis ao longo do século: doenças crônicas como diabetes, obesidade, hipertensão e doenças cardiovasculares, antes raras, tornaram-se epidêmicas.
Diferentemente dos séculos anteriores, marcados sobretudo por epidemias infecciosas, o século XX passou a conviver com enfermidades de caráter crônico e metabólico, exigindo uma resposta médica continua. O corpo passou a ser permanentemente monitorado, regulado e medicado.
No final do século XX, um novo deslocamento começou a se desenhar, não mais o corpo biológico, mas no ambiente cognitivo e comportamental. A chegada da internet às grandes instituições, como universidades, centros de pesquisa e corporações, inaugurou um novo ecossistema informacional.
Contudo, foi no início do século XXI que essa transformação começou a universalizar-se, especialmente, no início da segunda década com o surgimento dos smartphones e, posteriormente, os sistemas algorítmicos passaram a reorganizar o modo como os indivíduos percebem o mundo, se relacionam, constroem atenção, memória, desejo e identidade.
Se no século XX o corpo foi exposto a um ambiente alimentar artificial, no século XXI o cérebro humano passou a habitar um ambiente simbólico informacional artificial. Os algoritmos não apenas mediam a realidade, mas a modelam ativamente, competindo com os estímulos do mundo real e reorganizando padrões de comportamentos, impulsividade, atenção, linguagem e socialização.
A partir de 2022, com a popularização da inteligência artificial generativa, esse processo atinge um novo patamar: não apenas consumimos conteúdos, mas passamos a interagir com sistemas capazes de simular cognição, linguagem e tomada de decisão.
É nesse cenário que emerge o drama da geração Beta, a primeira geração a nascer integralmente dentro de um mundo algoritmicamente mediado, hiperestimulante e continuamente responsivo.
Diferentemente das gerações anteriores, essas crianças não estão apenas utilizando tecnologias; estão se desenvolvendo dentro de um ambiente que disputa, desde a primeira infância, os fundamentos do comportamento humano. Atenção, espera, frustração, linguagem, empatia e autorregulação passam a ser moldados para capturar tempo, engajamento e resposta emocional.
Assim como no século XX os efeitos de um ambiente alimentar artificial foram tratados como falhas individuais do corpo, hoje os efeitos de um ambiente cognitivo artificial começam a ser tratados como disfunções individuais do comportamento.
O resultado é a crescente medicalização de manifestações comportamentais que, em grande medida, são respostas adaptativas a um ambiente profundamente alterado.
Compreender essa transição histórica é essencial para evitar que o século XXI repita, no campo da mente e do comportamento humano, os mesmos erros cometidos no campo do corpo.
2. A RUPTURA DO AMBIENTE BIOLÓGICO NO SÉCULO XX: DA ALIMENTAÇÃO ANCESTRAL À MEDICALIZAÇÃO DO CORPO
O século XX inaugura uma transformação silenciosa e estrutural na relação entre o ser humano e o seu próprio corpo. Mais do que um período de avanços médicos, trata-se de uma mudança profunda no ambiente biológico em que a vida humana passou a se desenvolver.
A industrialização dos alimentos alterou radicalmente aquilo que, ao longo de milhares de anos, havia sido o principal mediador entre o organismo e o meio: a alimentação.
A substituição progressiva de grãos integrais por farinhas refinadas, de açúcares naturais por açúcar refinado, de gorduras tradicionais por margarina e óleos vegetais industriais, introduziu um padrão nutricional para o qual o corpo humano não estava biologicamente preparado2.
Essa ruptura não se limitou à vida adulta. A substituição do leite materno por fórmulas artificiais, especialmente a partir da metade do século XX, antecipou essa mudança ambiental para o início da vida.
O que antes era um processo biologicamente regulado e culturalmente transmitido passou a ser mediado por produtos industrializados, interferindo precocemente na formação metabólica, imunológica e neurofisiológica.
Como aponta Wright e Lenard3, a desestruturação da alimentação tradicional compromete funções fisiológicas básicas, criando condições para disfunções metabólicas e inflamatórias persistentes.
O corpo humano passou a crescer e se desenvolver em um ambiente alimentar artificializado, marcado por excesso calórico, alta palatabilidade e baixa densidade nutricional.
As consequências desse novo ambiente não foram imediatas, mas cumulativas. Ao longo do século, doenças crônicas não transmissíveis, como: obesidade, diabetes tipo 2, hipertensão e doenças cardiovasculares, deixaram de ser eventos raros para se tornarem fenômenos estruturais da modernidade.
Diferentemente dos séculos anteriores, marcados principalmente por epidemias infecciosas, o século XX passou a conviver com enfermidades persistentes, de longa duração e manejo contínuo. O adoecimento deixou de ser episódico para tornar-se permanente.
Diante desse cenário, a medicina assumiu um papel central não apenas de cura, mas de gestão contínua da vida biológica. O corpo passou a ser monitorado, regulado e corrigido ao longo de toda a existência.
Esse processo, descrito por Michel Foucault4 como biopolítica, revela uma mudança no exercício do poder: não mais apenas sobre territórios, mas sobre corpos, hábitos e processos vitais. A medicalização torna-se, assim, uma resposta sistemática a um ambiente biologicamente desajustado.
Entretanto, o aspecto mais relevante desse processo não está apenas na expansão do aparato médico, mas na inversão causal que ele produziu. As consequências de um ambiente alimentar artificial passaram a ser tratadas como falhas individuais do organismo.
Wright e Lenard5 destacam que, ao invés de corrigir as condições ambientais que produzem o adoecimento, a medicina moderna passou a administrar seus efeitos de forma contínua, reforçando a dependência terapêutica.
Esse padrão histórico estabelece um precedente fundamental para a compreensão do presente. O século XX ensina que, quando o ambiente humano é profundamente alterado sem que haja adaptação biológica correspondente, os efeitos tendem a ser patologizados no indivíduo. A medicalização do corpo não foi, portanto, apenas um fenômeno médico, mas um sintoma de uma transformação ambiental mais ampla.
Esse movimento, da alteração ambiental à patologização individual, reaparece no século XXI, agora deslocando do corpo para o comportamento humano, da biologia para a cognição.
3. DO CORPO AO CÉREBRO: A TRANSIÇÃO DO FOCO MÉDICO PARA O AMBIENTE COGNITIVO NO FINAL DO SÉCULO XX
Se o século XX foi marcado pela medicalização do corpo em resposta a um ambiente biológico artificial, o final desse mesmo século inaugura uma transição ainda mais profunda: o deslocamento do eixo da intervenção médica e científica para o cérebro, a cognição e o comportamento.
Essa mudança não ocorre por acaso, mas como consequência direta da transformação do ambiente simbólico e informacional em que o ser humano passou a viver.
A chegada da internet, ou seja, do mundo virtual, incialmente restrita a universidades, centros militares e grandes corporações, introduziu um novo tipo de mediação entre o indivíduo e o mundo real.
Não se trata apenas de uma nova ferramenta, mas de um mundo completo, onde trabalhamos, conversamos, estudamos, compramos, vendemos, alugamos, enfim, de um ambiente cognitivo externo, capaz de reorganizar a forma como a informação é acessada, processada e hierarquizada.
Marshall McLuhan6 já havia alertado, décadas antes, que os meios de comunicação não são extensões neutras do homem, mas forças que reconfiguram a percepção, a sensibilidade e a própria estrutura da experiência humana.
Com a universalização da internet no início do século XXI, seguida pela ascensão das redes sociais e, posteriormente, pelos smartphones, essa mediação deixa de ser episódica e torna-se contínua.
O cérebro humano passa a operar em um fluxo permanente de estímulos rápidos, fragmentados e altamente recompensadores. A atenção, a memória e a capacidade de espera passam a ser moldadas por uma lógica externa, algorítmica e orientada à captura do engajamento.
Como resultado, comportamentos que antes eram compreendidos dentro da diversidade humana começam a ser interpretados como disfunções individuais.
É nesse ponto que se consolida a transição da medicalização do corpo para a medicalização do comportamento. Ao invés de se questionar o impacto estrutural desse novo ambiente cognitivo, os efeitos passam a ser localizados no indivíduo: dificuldades de atenção, impulsividade, inquietação, ansiedade e problemas de socialização são tratados como transtornos isolados, dissociados do contexto que emergem.
Segundo Nilton Cunha7, ao analisar o conflito contemporâneo entre o cérebro humano e os sistemas algorítmicos, o que está em disputa não é apenas o comportamento, mas a própria forma de organização da experiência e da consciência do mundo digital.
Essa leitura encontra ressonância na filosofia de Martin Heidegger8, para quem a técnica moderna não é apenas um conjunto de instrumentos, mas um modo específico de revelar o mundo, no qual tudo, inclusive o ser humano, passa a ser compreendido como recurso disponível e mensurável.
No ambiente digital, o comportamento humano torna-se dado, métrica e padrão estatístico, passível de previsão, modulação e correção. O cérebro deixa de ser apenas um órgão biológico e passa a ser tratado como um sistema a ser otimizado.
O resultado desse processo é um paradoxo histórico: ao mesmo tempo em que se amplia o conhecimento sobre o funcionamento cerebral, reduz-se a compreensão do papel do ambiente na formação do comportamento.
Assim como ocorreu no século XX com o corpo, o século XXI tende a interpretar respostas adaptativas a um ambiente profundamente alterado como falhas internas do indivíduo.
A neurologia, psiquiatria e psicologia passaram, então, a lidar com sintomas cuja origem não é apenas neurobiológica, mas neurocultural.
Esse deslocamento histórico prepara o terreno para o cenário contemporâneo, no qual o comportamento humano passa a ser continuamente monitorado, ajustado e medicalizado. O cérebro, agora exposto a um ambiente informacional artificial desde a infância, torna-se o novo campo de disputa entre o mundo real e o virtual.
Compreender essa transição é fundamental para evitar que o século XXI repita, no plano da mente e do comportamento, o mesmo erro estrutural cometido no século XX com o corpo: tratar como patologia individual aquilo que é, em essência, um problema ambiental e civilizatório.
4. A CONSTRUÇÃO DO MUNDO VIRTUAL: ALGORITMOS, ECONOMIA DA ATENÇÃO E A ENGENHARIA DO COMPORTAMENTO
O início do século XXI não representa apenas a expansão de tecnologias digitais, mas a consolidação do mundo virtual, no qual o comportamento humano passa a ser continuamente observado, registrado, previsto e modulado.
Diferentemente das tecnologias anteriores, os sistemas digitais contemporâneos não se limitam a mediar a realidade; eles a reorganizam ativamente, criando um ecossistema informacional que disputa, em tempo real, a atenção, o desejo e a ação humana.
Nesse novo ambiente, o comportamento torna-se matéria-prima. Como demonstra Shoshana Zuboff9, os dados comportamentais passaram a ser extraídos, analisados e utilizados para prever e influenciar condutas futuras, inaugurando o que a autora denomina capitalismo de vigilância.
O indivíduo deixa de ser apenas usuário de plataformas e passa a ser objeto de um processo contínuo de moldagem comportamental, no qual cada clique, pausa ou reação emocional é convertido em informação estratégica.
Essa lógica só é possível porque os algoritmos operam dentro de uma economia da atenção, em que o recurso mais escasso não é a informação, mas a capacidade humana de sustentar foco, reflexão e presença. Herbert Simon10 já havia alertado que, em um mundo rico em informação, a atenção se tornaria o verdadeiro bem limitado.
As plataformas digitais, portanto, não competem entre si por conteúdos, mas pela captura e retenção do tempo psíquico do usuário.
Do ponto de vista comportamental, esse ambiente não é neutro. Ele é cuidadosamente projetado para maximizar engajamento por meio de recompensas rápidas, estímulos intermitentes e respostas emocionais intensas.
Essa lógica encontra respaldo em princípios clássicos da psicologia comportamental, como os sistemas de reforço variável descritos por B. F. Skinner11, agora aplicados em escala massiva e automatizada.
O que antes era restrito a laboratórios tornou-se prática cotidiana, incorporada ao design das plataformas digitais.
As consequências desse ambiente começam a se manifestar de forma clara no plano cognitivo. Nicholas Carr12 observa que a exposição contínua a fluxos fragmentados de informação compromete a capacidade de atenção profunda, memória de longo prazo e pensamento reflexivo.
O cérebro humano, moldado evolutivamente para lidar com estímulos intermitentes do mundo natural, passa a operar em um regime de hiperestimulação constante, no qual a pausa, a atenção sustentada, o silêncio e o tédio criativo tornam-se quase insuportáveis. A escola é o espaço em que isso é visto de forma mais clara, as crianças ficam inquietas, impulsivas, até surtam e ficam violentas, diante do choque cultural, estre os estímulos do mundo virtual e os do mundo escolar.
Nesse contexto, o comportamento humano está deixando de ser compreendido como expressão de uma relação viva com o mundo e estar passando a ser tratado como variável ajustável.
A inquietação, impulsividade, dificuldade de concentração e a necessidade constante de estímulo não surgem no vazio, mas como respostas adaptativas a um ambiente neurocultural que exige velocidade, reação imediata e disponibilidade permanente. Diante disso, essas respostas devem ser interpretadas não como falhas individuais, ou seja, deslocando novamente o foco do ambiente para o sujeito, como ocorreu no século XX com o corpo.
Forma-se, assim, um novo paradoxo civilizatório: quanto mais sofisticados se tornam os sistemas de modulação comportamental, menos se discute a legitimidade ética e antropológica desse processo.
O mundo virtual não apenas influencia o comportamento, mas, ele redefine os parâmetros do que passa a ser considerado normal, aceitável e funcional.
O risco central não está na tecnologia em si, mas na naturalização de um mundo que exige do cérebro humano adaptação contínuas para as quais ele não foi ontologicamente preparado.
Esse cenário prepara o terreno para o estágio seguinte da medicalização contemporânea: quando os efeitos de um ambiente comportamentalmente hostil passam a ser tratados como transtornos individuais, reforça-se a lógica histórica já observada no século XX.
Diferentemente das transformações ocorridas no século XX, cujos impactos se manifestaram predominantemente no corpo já formado, a mudança em curso no século XXI incide diretamente sobre os processos de formação do cérebro e da subjetividade humana.
Trata-se de uma reflexão mais profunda e mais comprometedora, pois não atua apenas sobre funções biológicas estabilizadas, mas sobre estruturas cognitivas, emocionais e simbólicas ainda em constituição.
Quando o ambiente passa a modular, desde a infância, os ritmos da atenção, os circuitos de recompensas, a linguagem, a capacidade de espera e a relação com o outro, não estamos diante de simples alterações comportamentais, mas de uma reorganização das bases da experiência humana.
O cérebro deixa de se desenvolver prioritariamente em interação com o mundo real, marcado por tempo, frustração, silêncio e presença, para ser moldado por sistemas artificiais que operam pela velocidade, resposta imediata e estimulação contínua.
Essa mudança desloca o problema para um patamar inédito: não se trata mais de corrigir disfunções, mas de compreender que a própria noção de normalidade está sendo redefinida por um ambiente que antecede o sujeito.
O risco central não é apenas o aumento de diagnósticos ou de intervenções terapêuticas, mas a naturalização de uma subjetividade configurada por lógicas externas humanas.
É nesse ponto que o debate deixa de ser tecnológico ou clínico e se torna, fundamentalmente, antropológico, ético e civilizatório.
5. A MEDICALIZAÇÃO DO COMPORTAMENTO NO SÉCULO XXI: O NOVO DRAMA HUMANO DA GERAÇÃO BETA
O século XXI inaugura um drama humano qualitativamente distinto daquele vivido no século anterior. Se antes a medicalização incidia sobre o corpo já constituído, agora ela alcança o comportamento em formação, atingindo diretamente os processos pelos quais a formação do cérebro e a subjetividade humana se organizam desde a infância.
A geração Beta, primeira a nascer integralmente dentro de um ecossistema digital algorítmico e mediado por inteligência artificial, não apenas utiliza tecnologias: ela se desenvolve sob a lógica delas.
Nesse novo cenário, o comportamento deixa de ser compreendido como expressão de uma relação viva entre o sujeito e o mundo e passa a ser tratado como um conjunto de respostas a serem ajustadas.
A aceleração contínua da vida, a exigência do desempenho permanente e a intolerância à pausa produzem um ambiente no qual a inquietação, a dispersão e o esgotamento tornam-se experiências normativas.
Byung-Chul Han13 descreve esse processo como uma transição para uma sociedade do desempenho, na qual o sofrimento psíquico não decorre da repressão externa, mas da internalização de exigências impossíveis de sustentar.
O impacto dessa lógica sobre a infância é profundo. A criança, cujo desenvolvimento depende de tempo, repetição, silêncio, frustração e presença do outro, passa a ser inserida precocemente em um ambiente que exige velocidade, resposta imediata e estímulo constante.
Quando esse descompasso gera sofrimento ou inadequação, a tendência dominante não é revisar o ambiente, mas medicalizar a criança. Assim, respostas adaptativas a um mundo hiperestimulante são convertidas em diagnósticos, deslocando novamente a causa do problema par ao indivíduo.
Esse processo revela um risco antropológico maior: a perda da capacidade de formar uma subjetividade enraizada na experiência concreta do mundo. Hannah Arendt14 alerta que a crise da contemporaneidade não reside apenas nas instituições, mas na ruptura dos processos de formação do humano, especialmente na infância, quando o mundo deveria ser apresentado de forma estável e significativa.
Ao submeter precocemente a criança a um fluxo contínuo de estímulos artificiais, fragiliza-se a construção do sentido, da responsabilidade e da relação com a realidade comum.
A medicalização do comportamento, nesse contexto, funciona como resposta tardia a um problema estrutural. Ivan Illich15 já advertia que sociedade altamente medicalizadas tendem a transformar problemas existenciais e sociais em questões técnicas, esvaziando a capacidade coletiva de reflexão e prevenção.
No século XXI, esse alerta ganha nova atualidade: ao invés de questionar os efeitos de um ambiente digital total sobre a formação humana, opta-se por administrar farmalogicamente seus efeitos colaterais.
A naturalização de um modelo de infância e de subjetividade moldado por sistemas que não foram projetados para o florescimento humano adequado, mas para a capturação da atenção e a modulação do comportamento humano, torna-se ainda mais preocupante na geração Beta do que na geração Alpha, em que já temos dados alarmantes.
O desafio contemporâneo não é apenas clínico ou educacional, mas civilizatório: reconhecer que a medicalização do comportamento é o sintoma visível de uma crise mais profunda da forma como o mundo adulto está reorganizando o ambiente em que o humano aprende a ser humano, isso, só é possível pelas relações humanas, de estímulos do mundo real e não do mundo virtual e dos algoritmos otimizados para reter, influenciar e orientar o comportamento humano.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise histórica desenvolvida ao longo deste artigo evidencia que os processos de medicalização não surgem de forma isolada, tampouco podem ser compreendidos apenas como avanços técnicos da medicina. Eles são, antes de tudo, respostas sociais a transformações profundas nos ambientes em que o ser humano vive e se forma.
O século XX demonstrou que a alteração artificial do ambiente biológico, especialmente alimentar, produziu um conjunto de adoecimentos crônicos que passaram a ser tratados como falhas individuais do corpo. O século XXI, por sua vez, repete essa lógica em um plano ainda mais sensível: o da formação do comportamento, da cognição e da subjetividade humana.
A universalização do mundo virtual, mediado por plataformas, algoritmos e, mais recentemente, por sistemas de inteligência artificial, deslocou o eixo da relação humana com o mundo. Atenção, linguagem, tempo psíquico, socialização e capacidade de espera passaram a ser modulados por sistemas externos, projetados segundo lógicas que não correspondem as mesmas do mundo real, do desenvolvimento humano adequado e equilibrado. Que exigido e necessário, por exemplo, na escola.
Nesse contexto, manifestações comportamentais que emergem como respostas adaptativas a um ambiente hiperestimulante tendem a ser interpretadas como disfunções individuais, reforçando a medicalização do comportamento desde a infância.
O caso da geração Beta revela a gravidade inédita desse processo. Pela primeira vez, uma geração se desenvolve integralmente dentro de um ecossistema cognitivo artificial em que a IA e a tecnologia está totalmente integrada, que antecede o sujeito a estrutura, desde os primeiros meses de vida, os modos de perceber, sentir e agir no mundo.
A medicalização do comportamento, nesse cenário, deixa de ser apenas um recurso terapêutico e passa a funcionar como um mecanismo de ajuste do humano a um ambiente que não foi pensado para ele.
O risco central não reside apenas no aumento de diagnósticos ou no uso crescente de intervenções farmacológicas, mas na naturalização de uma subjetividade moldar por lógicas externas à experiência humana concreta.
Diante desse quadro, torna-se evidente que a resposta contemporânea não pode se limitar ao campo clínico. Assim como o século XX ensinou que tratar os efeitos de um ambiente alimentar disfuncional sem revisá-lo estruturalmente produz um ciclo permanente de adoecimento, o século XXI exige uma revisão reflexiva do ambiente cognitivo e cultural imposto às novas gerações. A prevenção, nesse sentido, não é apenas médica, mas antropológica, educativa e política.
Concluir que o problema não é tecnológico, mas ambiental e humano, implica reconhecer que a responsabilidade recai sobre profissionais da saúde, educação, assistência social, comunicação e da conscientização de toda a sociedade, especialmente do engajamento dos pais e responsáveis.
No caso dos profissionais, os campos citados ocupam a linha de frente na mediação entre o indivíduo, a infância e o ambiente contemporâneo, e deles se espera não apenas intervenção técnica, mas discernimento reflexivo sobre as condições que produzem o sofrimento que tratam.
Sem que esses profissionais, participação efetiva dos pais e de toda sociedade, assumam seu papel ético, formativo e preventivo, em relação à infância, qualquer ação do poder público tende a se tornar inócua ou meramente burocrática.
É somente a partir desse compromisso profissional, fundamentado em conhecimento, responsabilidade e coragem institucional, que o Estado pode formular políticas públicas eficazes, capazes de proteger os processos de formação do cérebro e da subjetividade humana.
Caso contrário, corre-se o risco de perpetuar um modelo que administra sintomas, mas silencia sobre as causas estruturais do adoecimento contemporâneo, ou seja, simplesmente sairemos da lógica da medicalização do corpo, que ocorreu no século XX, para a medicalização do comportamento humano, que está ocorrendo no século XXI, sem nenhuma reflexão e aprendizado.
O que remete uma preocupação ainda maior, já que agora se trata da medicalização da essência humana: o cérebro humano. Diante disso, essa preocupação se multiplica exponencialmente quando comparamos ambas e compreendemos que na medicalização do comportamento, o que está em jogo é a disputa da Economia da Atenção, ou seja, a disputa, entre dois mundos (real e virtual), pela nossa atenção, os quais possuem lógicas, regras e estímulos próprios, muito desses estímulos são profundamente divergentes.
Não se trata de a criança simplesmente consumir conteúdos, mas de ser formada por eles, pelo fato de que, esses estímulos passam a integrar sua própria leitura da realidade.
Assim, o que é vivido de modo recorrente no mundo virtual deixa de ser apenas experiências externa e passa a atuar como matriz organizadora do pensamento, afeto e percepção, tornando-se, em última instância, parte constitutiva da própria configuração neural.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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1 Nilton Pereira da Cunha é Professor, Pesquisador, Escritor e Coordenador Educacional do Instituto Nacional de Evolução Humana. Graduado e Pós-graduação Lato e Stricto Sensu na área da Educação, também graduado e pós-graduado em Direito, com artigos e livros publicados em português e castelhano em vários países: Brasil, Argentina e Colômbia, tais como: O autismo e a interação social: Como desenvolver uma criança saudável na Era Digital; El autismo y la interacción social: como desarrollar una crianza saludable en la Era Digital; Educação, Família e Geração Digital: os desafios e perspectivas da pós-modernidade. @nilton.cunha.900. WhatsApp: +54 11 4989-3292.
2 POLLAN, Michel. Em defesa da comida: um manifesto. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2008.
3 WRIGHT, Jonathan; LENARD, Lane. Why stomach acid is good for you. New York: M. Evans, 2001.
4 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Gral, 1979.
5 WRIGHT, Jonathan; LENARD, Lane. Idem. 2001.
6 McLUHAN, Marshal. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Cultrix, 1964.
7 CUNHA, Nilton Pereira da. O cérebro humano em disputa: de Kant aos algoritmos. Disponível em: https://revistatopicos.com.br/artigos/o-cerebro-humano-em-disputa-de-kant-aos-algoritmos. Consultado em: 20/12/2025.
8 HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. In: Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2007 [1954].
9 ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2019.
10 SIMON, Herbert A. Designing organizations for na information-rich world. In: GREENBERGER, Martin (Org.). Computers, communications, and the public interest. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1971.
11 SKINNER, B. F. Sobre o Behaveorismo. São Paulo: Cultrix, 2011.
12 CARR, Nicholas. A geração superficial: o que a internet está fazendo com os nossos cérebros. Rio de Janeiro: Agir, 2011.
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14 ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2016.
15 ILLICH, Ivan. A expropriação da saúde: nêmesis da medicina. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975.