COMUNIDADE QUILOMBOLA MULUNGU: A DIALÉTICA ENTRE A MODERNIDADE, O TRADICIONAL E A MANUTENÇÃO DA SOBREVIVÊNCIA
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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.15226285
Antônio Adônnis Sátiro de Souza1
RESUMO
Este trabalho explora e documenta a riqueza cultural e histórica da comunidade quilombola de Mulungu, localizada no Estado da Bahia. O objetivo geral é analisar os impactos da modernização e da imigração na preservação da cultura e das tradições do povoado. Para atingir esse objetivo, a pesquisa utilizou uma abordagem bibliográfica-documental e entrevistas com moradores locais, destacando a história do quilombo, os momentos importantes de sua trajetória e os significados e funções do lugar para a comunidade. A metodologia envolveu pesquisa qualitativa, exploratória e descritiva, baseada em levantamento bibliográfico e pesquisa-participante, dispensando a submissão ao conselho de ética devido ao caráter acadêmico da investigação conforme Gil (2017), Lakatos e Marconi (2003). As conclusões apontam para a necessidade de equilibrar a modernização com a preservação cultural, garantindo que as tradições e memórias das comunidades quilombolas sejam mantidas e valorizadas. A pesquisa revelou a resiliência da comunidade de Mulungu frente às mudanças sociais e econômicas, destacando a importância de políticas públicas que promovam a sustentabilidade e a identidade cultural. O estudo enfatiza a relevância da etnografia e da observação participante na compreensão das dinâmicas sociais e culturais, bem como a necessidade de valorizar e preservar a identidade cultural diante das pressões da modernidade.
Palavras-chave: Cultura quilombola. Preservação cultural. Modernização.
ABSTRACT
This work explores and documents the cultural and historical richness of the quilombola community of Mulungu, located in the state of Bahia. The main objective is to analyze the impacts of modernization and immigration on the preservation of the culture and traditions of the village. To achieve this goal, the research employed a bibliographic-documentary approach and interviews with local residents, highlighting the history of the quilombo, key moments in its trajectory, and the meanings and functions of the place for the community. The methodology involved qualitative, exploratory, and descriptive research, based on bibliographic surveys and participatory research, exempting submission to the ethics council due to the academic nature of the investigation, as stated by Gil (2017), Lakatos and Marconi (2003). The conclusions point to the need to balance modernization with cultural preservation, ensuring that the traditions and memories of quilombola communities are maintained and valued. The research revealed the resilience of the Mulungu community in the face of social and economic changes, emphasizing the importance of public policies that promote sustainability and cultural identity. The study underscores the relevance of ethnography and participant observation in understanding social and cultural dynamics, as well as the need to value and preserve cultural identity in the face of pressures from modernity.
Keywords: Quilombola culture. Cultural preservation. Modernization.
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho visa explorar e documentar a riqueza cultural e histórica da comunidade Mulungu, autodeclarado remanescente de quilombo localizado no Estado da Bahia. Este lugar, também conhecido como Fazenda Mulungu ou Povoado de Mulungu, é uma referência cultural significativa, marcada por uma história rica e uma comunidade ativa na região.
A pesquisa realizada em várias fontes de pesquisa, que mescla em pesquisa bibliográfica e entrevistas com moradores locais, para compreender as nuances que recaem sobre as necessidades do lugar, busca responder à pergunta: Como a modernização e a imigração têm impactado a preservação da cultura e das tradições do povoado de Mulungu? E para responder esta pergunta são definidos alguns objetivos quis sejam:
Objetivo Geral: Analisar os impactos da modernização e da imigração na preservação da cultura e das tradições do povoado Mulungu.
Objetivos Específicos:
a) Investigar a história e os momentos importantes do povoado.
b) Identificar os significados e funções do lugar para a comunidade e;
c) Refletir sobre as medidas necessárias para a manutenção do lugar como referência cultural.
O estudo aponta para a necessidade de compreensão dos padrões de vida encontrados no quilombo, em contraposição com os padrões do passado, além de refletir sobre a preservação do povoado, considerando a sustentabilidade e o resgate das tradições culturais equilibrando a exploração de recursos naturais para conforto e comodidade do local e a manutenção do símbolo de identidade e resistência cultural para que a remanescência de quilombo continue garantindo a sua existência às gerações futuras sem se sucumbir à perda da sua memória.
2. CONTEXTO HISTÓRICO
O povoado autodeclarado remanescentes quilombolas de Mulungu está situado na cidade de América Dourada, no Estado da Bahia, na divisa com as cidades de João Dourado e Lapão, ambas circunscritas na macrorregião de Irecê. A localidade pertenceu à área demográfica do Morro do Chapéu entre 1870 até 1926 de acordo com os registros do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O Cartório de Registro de Imóveis de Jacobina da conta de “o povoamento destas paragens se deu por obra de imigrantes achegados de diversas regiões deste vasto Império do Brazil, após a liberação dos cativos em 1889. Tais famílias provieram de Sousa, nas terras da Parahyba, das Minas Geraes, y das vizinhanças de Mundo Novo e da Villa Djalma Dutra, estabelecendo-se aqui com o fito de cultivar a terra e promover o progresso desta sesmaria". De acordo com os registros oficiais do Estado, e da Associação remanescentes de quilombolas local, desde então passou a fazer parte da microrregião de Irecê até 1985, quando o povoado foi renomeado para América Dourada, predominante posse da família de João José da Silva Dourado, e elevado à categoria de município pela Lei Estadual nº 4399 em 25-02-1985.
O povoado Mulungu a priori, localizado na propriedade privada de Edgard de Castro Dourado chamada de Fazenda Mulungu, outrora propriedade de José Pernambuco, foi elevado à categoria de povoado em 1986, por ocasião da emancipação política de América Dourada, que até então se chamava de Mundo Novo, ao descobrir que já havia uma cidade no Estado com esse nome.
Houve um consenso entre os moradores do conglomerado, que poderiam decidir qual cidade avocaria em seu município, e estes decidiram por América Dourada, por ser o que mais tinham afinidades políticas. A comunidade está situada a 470 km de Salvador e a 33 km da cidade de Irecê, pela BA-052.
A comunidade quilombola de Mulungu é conhecida por ser uma comunidade pacífica que se submeteu à compra e a venda de terras de forma harmoniosa, de modo que todos os proprietários de pequenos sítios de uma área total de 1.037ha, (área delimitada pelo CEFIR/BA, Lei 12.651/12 que substitui o antigo CAR – Cadastro Ambiental Rural) foram se separando da fazenda de seus principais proprietários. O nome do povoado se dá ao grande número de árvores que carregam esse nome. No marco zero do quilombo, existe um sítio arqueológico onde de encontra imagens rupestres escupidas pelos seus primeiros moradores, com inscrições possivelmente relativos a números em um idioma semelhante ao utilizado pelos povos Pankararé que viveram na região de Paulo Afonso/BA. Esses povos “são descendentes da população indígena que originalmente habitava o trecho do rio São Francisco entre a cachoeira de Paulo Afonso, a embocadura do rio Pajeú e as caatingas, brejos e serras adjacentes” (Brasileiro, 2003)2.
O local é de acesso restrito por estar em propriedade privada, atualmente pertencente aos herdeiros de Edgard de Castro Dourado.
3. O MULUNGU
De acordo com o Ministério da Saúde, o mulungu é uma árvore nativa do Brasil, está distribuída pelas regiões norte (Acre e Tocantins), nordeste (Bahia e Maranhão), centro-oeste (Distrito Federal, Goiás e Mato Grosso) e sudeste (Espírito Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo) e possui algumas propriedades medicinais. A arvore é catalogada em um extenso documento3 que apresenta suas características e composição além dos dados técnicos capazes de atestarem a sua eficácia em produção de medicamentos e tratamentos terapêuticos. E pelo fato de a localidade possuir grande número destas árvores ao longo de sua extensão, levou o nome à fazenda, e depois ao povoado que passou a utilizá-lo.
Figura 1 - Erythrina mulungu.
Fonte: botânico prof. Dr. Christopher William Fagg – FCE/UnB.
Figura 2 – Imagens e escritas rupestres do possível ‘marco zero’ do quilombo Mulungu
A localidade passa a ter energia elétrica no ano de 1985 por meio de convênios com a SUDENE (Lei 3.692, de 1959) antiga Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste e passa a receber pontos fixo de distribuição de água com poço artesiano apenas na década de 1989, onde as pessoas se deslocavam a um ponto fixo para buscar água com latas e galões, não mais necessitando ir até os açudes com apoio da antiga CERB (Companhia de Engenharia Rural da Bahia, atual CERB - Companhia de Engenharia Ambiental e Recursos Hídricos da Bahia, fundada em 1971). Passando a ter água encanada a partir deste poço nas suas residências somente em 1994, porém sem tratamento. Até aqui a água era retirada direto das cisternas/poços artesianos. O abastecimento de água tratada fornecida pela empresa estatal de água (Embasa) só veio chegar a partir de 2012.
Em depoimento gravado à canais do Youtube moradores do povoado relatam que tarefas simples como 'necessidades como lavar roupas', eram feitas diretamente na fonte, que é como chama as lagoas, ou locas d'agua, que juntavam água das chuvas de um ano a outro, onde levavam as roupas em trouxas e bacias na cabeça, lavavam no lajedo, passavam o dia na fonte lavando, deixavam as roupas secarem ao sol e voltavam para casa ao final do dia com a roupa seca' [sic].
Figura 3 – Moradores da comunidade de Mulungu em entrevista a um canal do Youtube.
A localidade não possui tratamento de esgoto, nem telefonia ou internet fixa, necessitando de recepção via rádio. Retransmissão de TV aberta se dá por antenas parabólicas adquiridas em sua grande maioria a partir de programas assistenciais de acesso do Governo Federal e mais recentemente por uso de internet em sinais de dados móveis triangulado em antenas de retransmissão residual de cidades vizinhas.
4. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
Ao estudar os ‘lugares’ na antropologia, estuda-se que 'lugar' não é apenas um espaço físico, mas também um espaço cultural e simbólico. O conceito de lugar é central para a compreensão de como as pessoas interagem com seu ambiente e como essas interações moldam suas identidades culturais e sociais. De acordo com a tradução do livro, 'A global sense of place' da cientista social Doreen Massey (2000) traduzido para o português como "Um sentido global do lugar", o lugar é um "espaço-tempo" que é continuamente moldado pelas práticas sociais e históricas e isso torna um lugar algo imaterial e vivo na sociedade, e o resgate cultural e social da comunidade autodeclarada remanescente de quilombo Mulungu, é de fundamental importância para a manutenção das tradições culturais e da memória coletiva que existem nesse lugar.
O resgate da cultura de um lugar que foi marcado por conquistas, lutas e batalhas deve sempre ser realizado com cautela, para que ao mapear uma cultura e buscar compreender a evolução social não se interprete como uma evasão, ou retirada de uma dinâmica de vida real, para uma vida fantasiosa, "pois a busca pelo 'verdadeiro' significado de lugares a exumação de heranças [...] interpreta-se como sendo uma resposta ao desejo de fixidez e de segurança da identidade em meio ao movimento de mudança" (Massey, 2000, p. 181), do mesmo modo que não se pode “inventar” uma realidade inexistente, mas há a necessidade de compreender as nuances entre o novo e o antigo, a história contada e a história de fato.
No quilombo Mulungu, há uma crescente preocupação dos remanescentes que essa cultura se perca, fato é que no ano de 2013, houve essa luta pelo autorreconhecimento junto à Fundação Palmares. Mesmo diante das novas tecnologias e da evolução natural do ser humano em busca de facilidades modernas, a preservação da cultura é fundamental para que se mantenha a origem. A modernização é um processo inevitável e necessário, porém, deve ser conduzida de maneira que se mantenham vivos os valores e as tradições culturais que definem uma sociedade.
Tocante às questões de modernidade e de utilização de novas ferramentas comunicacionais, não há como negar a importância das infraestruturas para os processos históricos, mas é crucial entender que elas não têm um caráter determinante absoluto. Levi-Strauss (1970) sugere que as transformações da modernidade não geram estagnações sociais, mas sim o contrário. As descontinuidades históricas planetárias não são apenas um produto da evolução material, mas também das complexas interações culturais e sociais que as novas tecnologias apresentam e que devem ser vistas como ferramentas que podem coexistir com a cultura, fortalecendo-a e adaptando-a aos novos tempos, sem extinguir os recursos e rituais que são a base da identidade cultural.
O estudo etnográfico da comunidade Mulungu permite uma análise das práticas culturais, tradições e valores da comunidade. Além disso, a investigação das interações sociais e das transformações históricas do lugar oferece insights valiosos sobre a resistência cultural e a adaptação das comunidades quilombolas frente às mudanças sociais e econômicas.
O fato de a comunidade sobreviver os últimos 140 anos sem tombamento e sem reconhecimento legal, e ainda assim manter estruturas de desenvolvimento social que vão na contramão do que se espera de uma resistência de comunidade originária e diz muito da força que uma transformação social é capaz de fazer ao longo dos anos. Promessas políticas de modernização que são feitas para uma comunidade na expectativa de inseri-la na modernidade secular tem o mesmo valor das propostas sedutoras que os colonizadores fizeram aos nossos povos indígenas (Quijano, 2015), na tentativa estruturada de que toda e só a modernização seria válida, considerando como atraso todos os outros modos de vida.
Após alguns anos de luta encabeçada pela associação de moradores pelo progresso, sob necessidade de investimentos de cunho governamental para a aquisição de benfeitorias e de alguns projetos de urbanização, é possível constatar projetos como quadra poliesportiva, pavimentação asfáltica que promove acessibilidade aos principais centros urbanos etc. Alguns projetos foram hesitosos, outros frustrados, e como exemplo de êxito, nasce a demanda de algo que pudesse ser capaz de auxiliar aos moradores em sua renda familiar, como o projeto “Mulheres em Ação”, que tem a perspectiva de preparar as mulheres da comunidade a angariar o seu sustento com produção e venda de pizzas, pães, bolachas etc.
Figura 4 - Projeto Mulheres em Ação.
Cozinha Comunitária
Figura 5 – Produção de Pães
Essa é uma forma de pensar a decolonialidade: as práticas culturais dos grupos sociais tendem a se misturar, ampliar e a trazer novas formas de vida, ainda mais considerando o impacto dos meios de comunicação de massa na contemporaneidade. É um caminho para desconstruir padrões e perspectivas impostas ao pensar colonial, de que apenas uma forma de vida seja a correta a e a justa. O que era considerado popular e tradicional pode ser incorporado pelas classes dominantes e vice-versa. Por conta disso, é que o samba, a feijoada, o beiju, ou tapioca, considerados práticas culturais restritas aos grupos tradicionais, hoje é amplamente apreciada por diferentes grupos da nossa sociedade, independente de classe social.
Na comunidade quilombola, por exemplo, a prática de fazer farinha no formato de copioba, foi durante muito tempo uma ação social em que as famílias fundadoras se revezavam a fazê-la em diferentes épocas do ano, em que o beiju era uma iguaria a ser partilhada por eles durante o fazimento da farinha de forma artesanal.
O descascar da mandioca, o ralar da raiz, a extração do caldo da mandioca, para fazer a tapioca (ou fécula, ou polvilho) seguido do torrar da massa e da ‘crueira’ para fazer a farinha em fornos artesanais feitos de pedra e barro eram eventos não só de trabalho, mas um feito cultural que reunia famílias em torno de uma celebração ritualística.
Esse fato é relevante porque em qualquer comunidade tradicional, as mulheres majoritariamente são responsáveis por ralar a mandioca, e retirar a tapioca da massa, enquanto os homens são responsáveis pelo corte, cultivo, prensa e torra, cada um tem o seu papel social, tal qual os povos originários em que as mulheres são responsáveis por trabalhar nas lavouras enquanto os homens seguem o papel da caça e pesca. Resguardadas as devidas proporções o processo de trabalho pela sobrevivência tem sido de ambos um feito cultural e um papel social. Tal qual, as mulheres da comunidade remanescente de quilombo Mulungu, encabeçaram o projeto junto ao Centro de Assessoria do Assuruá através da Associação dos Pequenos Produtores Rurais Remanescentes de Quilombo chamado de Projeto Mulheres em Ação que dentre a produção de farináceos, desenvolve outros projetos de desenvolvimento econômico na comunidade e tem como principais áreas de resultado a geração de renda através de produção e comercialização, além de maior participação e protagonismo feminino na comunidade e conscientização ambiental dos moradores locais, uma vez que a falta de oportunidade de trabalho se coloca como um problema central.
Figura 6 – Projeto Mulheres em Ação
O Projeto Mulheres em Ação é uma parceria entre o CAA e o Fundo Social Caixa para implementação de uma cozinha comunitária industrial na comunidade quilombola de Mulungu de América Dourada, com o apoio da Associação Comunitária de Remanescentes de Quilombos do Mulungu (CAA, 2019 n.p).
4.1 Passado e Modernização
Com o passar do tempo, o fazer farinha vem sendo substituído por fábricas de produção de farinha totalmente automatizadas em que as pessoas não mais exercem esse papel de ‘aproximação familiar’, o ato de colher tratar, e transformar a mandioca em farinha vai deixando de existir, e coisas pequenas como essas fazem muita diferença em uma comunidade que se formou a partir das famílias de três ou quatro moradores, dando lugar à modernidade. A dicotomia entre campo e cidade se torna cada vez mais ampliada.
De acordo com Marafon e Costa (2020, p. 12-78) as designações "cidade" e "campo" sempre foram alvo de diversas interpretações nas áreas de geografia e sociologia. Tradicionalmente, essas abordagens focavam na caracterização e evolução dessas áreas, mas nas últimas três décadas, novas perspectivas surgiram, considerando a emergência de espaços moldados pela urbanização, estruturada em torno da acessibilidade.
Esses novos espaços configuram-se como lugares onde características urbanas e rurais se misturam, permitindo que o campo se beneficie da modernidade da cidade sem perder sua essência cultural. Dessa forma, desenvolvem-se novas funções e padrões de ocupação social e econômica, onde a qualidade de vida no campo pode ser elevada pela integração de tecnologias e serviços urbanos, ao mesmo tempo que se preservam os valores e tradições locais.
O importante dentro dentre processo de transformações contudo, é “reconhecer que o trabalho do significante em relação ao significado vem sendo perseguido de modo mais rigoroso, a partir do nascimento, e nos limites de expansão da ciência moderna” (Lévi-Strauss, 1949, p. 48-49), isso reforça o pensamento de que as novas tecnologias devem ser vistas como ferramentas que podem coexistir com a cultura, fortalecendo-a e adaptando-a aos novos tempos, sem extinguir os recursos e rituais que são a base da identidade cultural para garantir que a essência de cada sociedade seja preservada e valorizada.
Na contramão da evolução tecnicista do século, os remanescentes do quilombo do Povoado Mulungu, puderam perceber que poderiam recorrer à Fundação Palmares, na expectativa de serem reconhecidos como comunidade autodeclarada quilombola, e em 2010 a associação de produtores rurais do povoado de Mulungu, deu início ao processo de reconhecimento de autodeclaração, pois conforme o art. 2º do Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003,
Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida (Brasil, 2003)
De acordo com a Fundação Palmares,
[...] são, de modo geral, comunidades oriundas daquelas que resistiram à brutalidade do regime escravocrata e se rebelaram frente a quem acreditava serem eles sua propriedade. As comunidades remanescentes de quilombo se adaptaram a viver em regiões por vezes hostis. Porém, mantendo suas tradições culturais, aprenderam a tirar seu sustento dos recursos naturais disponíveis ao mesmo tempo em que se tornaram diretamente responsáveis por sua preservação, interagindo com outros povos e comunidades tradicionais tanto quanto com a sociedade envolvente. Seus membros são agricultores, seringueiros, pescadores, extrativistas e, dentre outras, desenvolvem atividades de turismo de base comunitária em seus territórios, pelos quais continuam a lutar. (Badeira, et all, 2017).
Ao final de três anos, após intensas visitas à comunidade, coletas de depoimento de moradores, realização de reuniões e Atas necessárias à burocracia, a Fundação Palmares reconheceu a comunidade Mulungu como remanescente quilombo, e a certificou sob portaria nº 176/2013.
A comunidade, como tantas, outras enfrenta dificuldades com o avanço tecnológico e a globalização. Ao mesmo tempo que tentam manter viva a sua cultura, necessitam dos benefícios da modernidade para a sobrevivência. Muitas vezes, seus integrantes, especialmente os jovens, atraídos pela internet, e pela modernização deixam a comunidade em busca de novas oportunidades de trabalho em cidades e centros urbanos, levando consigo um pouco de sua cultura e trazendo de volta um pouco de outras. Essa miscigenação cultural não resulta simplesmente na homogeneização. Pelo contrário, a globalização das relações sociais é uma fonte de reprodução do desenvolvimento geográfico que fomenta a desigualdade do lugar, enquanto localização.
Este sentido global de lugar é reforçado nos estudos de Bronisław Malinowski sobre etnografia e observação participante. Ele – o autor, observou internamente as mudanças que se estabelecem na estrutura social de uma comunidade, revelando como essas interações culturais são complexas e dinâmicas (Malinowski, 1979), em que as mudanças nas práticas culturais podem ocorrer após o contato entre os grupos sociais e em decorrência deste.
A comunidade objeto deste estudo, de forma inconsciente e com pouca estrutura teme o movimento chamado aculturação, que é responsável pela destruição ou desgaste de culturas vistas como "originais". Franz Boas (1858-1942) antropólogo teuto-americano, um dos mais importantes estudiosos culturais, já abordava a aculturação como um fenômeno ligado às mudanças nas culturas originais, que é a incapacidade de ver qualidades em suas práticas culturais e a adoção do modo de vida do “outro” o que abrirá espaço para a aculturação. Esse comportamento permite que os indivíduos aos poucos deixem suas práticas culturais para se comportarem como o outro a quem passam a admirar.
Segundo Couche (2004), a palavra "aculturação" surgiu em 1880, introduzida nas Ciências Sociais por J.W. Powell, um antropólogo norte-americano. Ele estava interessado em entender como os imigrantes alteravam seus modos de vida e pensamento ao interagir com a sociedade dos Estados Unidos. Powell usava esse termo para descrever o processo pelo qual os imigrantes e a sociedade norte-americana se influenciavam mutuamente.
A aculturação por sua vez leva os grupos sociais não só à condição de ‘dominados cultural’, mas também à perda de parte da identidade cultural. Em casos mais graves de aculturação, podemos inclusive falar do fim de uma sociedade, pois uma sociedade só pode existir com base nas suas práticas culturais, ou seja, na sua etnicidade. Este é o ponto que há que se aprofundar acerca da comunidade em questão.
Uma das maiores preocupações da antropologia brasileira é justamente a possibilidade da destruição das culturas indígenas e dos povos originários que ainda resistem, em certa medida, no país. O processo de aculturação, que de várias maneiras culminou na mudança cultural e na assimilação dessas culturas indígenas, pode ser percebido em aspectos como a mudança na forma de se vestir, a construção de suas casas ou o gradual abandono de suas línguas. No entanto, antagonicamente, nossa sociedade urbanizada também incorporou palavras das línguas indígenas, que hoje usamos com frequência, e preserva costumes culinários como o preparo de pratos como a tapioca e a mandioca. Além disso, conhecimentos populares sobre medicina natural, como o uso de plantas medicinais (a copaíba, o mulungu e o guaraná são alguns exemplos), continuam presentes.
Dessa forma, a total destruição da cultura de um grupo só ocorreria em situações extremas, como a instauração de um regime que priorize o genocídio cultural de uma etnia específica, e em um longo período de tempo.
No seu processo “natural”, a aculturação ocorre nos termos do grupo em questão, conforme suas necessidades, pois é importante lembrar que a aculturação pode também ser um processo mútuo, onde ambos os lados adotam características culturais um do outro, garantindo que sempre haverá traços de outra cultura em sociedades onde a diversidade e o contato entre diferentes grupos culturais estão presentes formando uma nova forma de vida em sociedade.
5. METODOLOGIA
As abordagens deste trabalho deram-se por pesquisa bibliográfica-documental quanto às fontes de informação, levando em consideração documentação oficial, portarias, decretos e observação legal da formação constitutiva da localidade. É uma pesquisa de cunho qualitativo e exploratória e descritiva quanto aos objetivos (Gil, 2017) tocante aos detalhes referentes ao modo de vida dos quilombolas envolvidos.
Com relação à coleta de dados foram levantados com pesquisa-participante, que do mesmo modo que a pesquisa-ação “...caracteriza-se pela interação entre pesquisadores e membros das situações investigadas” (Gil, 2017, p, 56), e pelo fato de o pesquisador fazer parte do grupo de quilombolas cadastrado na comunidade dispensa a submissão, em conselho de ética, além de a pesquisa fazer parte de pesquisa de cunho acadêmico.
Coletou-se informações com pessoas atuantes na comunidade quilombola, e mediante o levantamento de todos os dados registrados, comparou-se com a literatura de Levi-Strauss (1949) e Massey, (2000) para dar base de sustentação teórica aos fatos. A análise dos dados baseou-se nos métodos comparativo e histórico em Lakatos e Marconi (2003) que alinhado ao materialismo histórico repensa o quilombo como resultado das relações entre os indivíduos e os grupos sociais que o cercam.
6. DISCUSSÕES E RESULTADOS
Há que se analisar os dados resultantes desse trabalho, que coleta e revela aspectos cruciais sobre a preservação cultural e os impactos da modernização em comunidades quilombolas. A partir das evidências trazidas, desde a ficha técnica, passando pela escrita do trabalho, à entrevista com os moradores em comparação com a pesquisa bibliográfica, observou-se que:
embora a modernização tenha trazido benefícios como energia elétrica e abastecimento de água encanada, ela também tem contribuído para a perda de tradições culturais.
A substituição de práticas tradicionais, como a produção artesanal de farinha, por métodos automatizados e produção de pães na cozinha industrial comunitária, exemplifica essa transformação.
A globalização e a imigração dos jovens para centros urbanos resultam na troca e mistura de culturas, enriquecendo a comunidade, mas também apresentando desafios para a manutenção das tradições.
A comunidade de Mulungu, apesar de não ter sido tombada ou reconhecida legalmente por muitos anos, demonstrou uma notável resiliência, mantendo práticas culturais significativas e adaptando-se às mudanças. A certificação da autodeclaração pela Fundação Palmares em 2013, marcou um reconhecimento importante dessa luta e os estudos etnográficos destacam a complexidade das interações culturais e a importância de políticas públicas que promovam a preservação e sustentabilidade das comunidades quilombolas. Esta pesquisa embora preliminar ainda preliminar reforça a necessidade de um equilíbrio entre a modernização e a preservação cultural, garantindo que as tradições e a identidade cultural sejam valorizadas e transmitidas às futuras gerações.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo deste trabalho de pesquisa, foi possível explorar e documentar a riqueza cultural e histórica da comunidade autodeclarada quilombola de Mulungu. A pesquisa buscou compreender os impactos da modernização e da imigração na preservação da cultura e das tradições do povoado. Para isso, foram investigados a história do quilombo, os momentos importantes de sua trajetória, os significados e funções do lugar para a comunidade, bem como as medidas necessárias para sua manutenção como referência cultural, além de revelar a importância de resgatar e preservar as práticas culturais e os valores tradicionais da comunidade de Mulungu.
O estudo destaca que a modernização, embora inevitável e necessária, deve ser conduzida de forma a não extinguir os recursos e rituais que são a base da identidade cultural. A investigação destacou como a globalização e a evolução tecnológica podem coexistir com a cultura, fortalecendo-a e adaptando-a aos novos tempos.
Durante a pesquisa, foi possível observar a força e a resistência da comunidade de Mulungu frente às mudanças sociais e econômicas. A comunidade, mesmo sem tombamento ou reconhecimento legal por mais de 140 anos, conseguiu manter estruturas de desenvolvimento social que contrariam as expectativas de uma resistência de comunidade originária. A luta pelo reconhecimento como quilombo pela Fundação Palmares foi um marco significativo, culminando na certificação da comunidade em 2013 e projetos como o Mulheres em Ação em 2019 demonstra a continuidade da força desse povo.
Com a realização deste trabalho, disserta-se sobre a resiliência e a adaptação das comunidades quilombolas às novas realidades, mantendo suas tradições e valores. A experiência proporcionou uma compreensão mais profunda das dinâmicas sociais e culturais que permeiam o quilombo Mulungu e a importância de políticas públicas que promovam a preservação e a sustentabilidade dessas comunidades além destacar a importância da etnografia e da observação participante na antropologia, conforme os estudos de Malinowski, para entender as mudanças internas e as interações culturais complexas das comunidades como lugar (Doreen, 2000). Esse trabalho de pesquisa também reforçou a necessidade de valorizar e preservar a identidade cultural frente às pressões da modernidade, garantindo que a essência de cada sociedade seja preservada e valorizada.
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1 Graduação em Ciências Sociais. Licenciatura em Pedagogia e Filosofia. Especialização em Psicopedagogia. Especialização em Metodologias e Gestão para Educação a Distância. Especialização em Alfabetização e Letramento e Educação Infantil. Mestrado em Educação/PPGE-UNICID-SP. Master of Science in Emergent Technologies in Education. MUST UNIVERSITY, FL, USA. Lattes: http://lattes.cnpq.br/3701750444824795. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7147-8093.
E-mail. [email protected].
2 Analista Pericial em antropologia da PR-BA/MPF. Doutoranda em Ciências Sociais - FFCH/UFB.
3 Ministério da Saúde. Monografia da espécie erythrina mulungu (Mulungu). https://www.gov.br/saude/pt-br/acesso-a-informacao/participacao-social/consultas-publicas/2017/arquivos/MonografiaErythrina.pdf