COMO O DIGITAL MUDOU A EXPERIÊNCIA HUMANA NO SÉCULO XXI: O HUMANO HÍBRIDO
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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.15750528
Nilton Pereira da Cunha1
RESUMO
Este texto aborda sobre a profunda transformação antropológica provocada pela digitalização da vida no século XXI, marcando o surgimento do “humano híbrido” – um ser que transita constantemente entre o mundo físico e o digital, afetando a forma como percebe o tempo, constrói vínculos, aprende e se relaciona consigo e com os outros. Essa mudança, embora silenciosa, tem produzido efeitos colaterais significativos, especialmente nas crianças e adolescentes, cujos cérebros em desenvolvimento estão sendo impactados por estímulos dopaminérgicos excessivos e viciantes, característicos do uso precoce e desregulado de telas. Tais impactos vêm comprometendo a atenção, a memória, o autocontrole e, sobretudo, a aprendizagem. Diante desse cenário, é urgente que a escola e a família compreendam juntos o que está em curso, reconhecendo que não se trata apenas de um fenômeno tecnológico, mas de uma reconfiguração profunda da experiência humana. Essa consciência compartilhada é o primeiro passo para mitigar ou mesmo evitar – os danos que o uso das tecnologias pode causar ao desenvolvimento, cognitivo, emocional e social de alunos e filhos. A formação de um pacto educativo entre escola, família e poder público é apresentada como caminho essencial para proteger a infância e garantir condições reais de aprendizagem no século XXI.
Palavras-chave: Antropológica. Digital. Humano híbrido. Século XXI.
ABSTRACT
This text addresses the profound anthropological transformation caused by the digitalization of life in the 21st century, marking the emergence of the “hybrid human” – a being who constantly moves between the physical and digital worlds, affecting the way he perceives time, builds bonds, learns and relates to himself and others. This change, although silent, has produced significant side effects, especially in children and adolescents, whose developing brains are being impacted by excessive and addictive dopaminergic stimuli, characteristic of early and unregulated screen use. Such impacts have been compromising attention, memory, self-control and, above all, learning. Given this scenario, it is urgent that schools and families jointly understand what is happening, recognizing that this is not just a technological phenomenon, but a profound reconfiguration of the human experience. This shared awareness is the first step towards mitigating or even avoiding the damage that the use of technology can cause to the cognitive, emotional and social development of students and children. The formation of an educational pact between schools, families and public authorities is presented as an essential path to protecting children and ensuring real learning conditions in the 21st century.
Keywords: Anthropological. Digital. Hybrid human. 21st century.
1. Introdução
Vivemos uma transformação profunda e silenciosa: nossa experiência de ser humano foi modificada. No século XXI, a tecnologia digital não apenas ampliou nossas capacidades de comunicação e acesso à informação – ela se infiltrou na própria estrutura da vida cotidiana, alterando a maneira como percebemos o tempo, construímos vínculos, aprendemos, sentimos prazer e formamos identidade. O digital não é apenas uma ferramenta externa ao ser humano – ele se tornou parte de nossa forma de estar no mundo
Essa transição não é apenas cultural ou tecnológica, ela é, sobretudo, antropológica. Estamos diante do surgimento de uma nova configuração: o humano híbrido – aquele que transita entre o físico e o digital como se ambos fossem parte de uma mesma realidade. Esse novo ser humano carrega em si uma profunda reconfiguração de percepção. Atenção, linguagem, desejo e convivência.
Essa nova realidade traz oportunidades, mas também enormes desafios – especialmente para quem cuida, educa e forma as novas gerações. O cérebro de uma criança não nasce pronto para a hiperconectividade. Ao contrário: ele precisa de vínculos reais, experiências sensoriais diretas, linguagem compartilhada, repetição, frustração e presença humana. A exposição precoce e excessiva às telas pode interromper ou desorganizar esse processo fundamental de desenvolvimento.
Por isso, pais e professores precisam compreender juntos esse novo cenário. Não basta seguir métodos antigos para tempos radicalmente novos. É necessário reconhecer que educar hoje é também lidar com os efeitos invisíveis de uma infância que está sendo moldada por estímulos digitais constantes.
Muitos comportamentos de irritabilidade, desatenção, apatia, agitação e dificuldades sociais não são simples “problemas escolares” ou “fases de idade”, mas sim, de uma adaptação cerebral descompassada ao ritmo das atividades escolares, diante das compensações dopaminérgicas imediatas, rápidas, coloridas que o mundo digital proporciona.
Cabe à família e à escola unirem forças. Nenhum pai deve enfrentar isso sozinho. Nenhum professor pode carregar esse desafio isoladamente. É preciso criar um espaço de diálogo entre quem cuida em casa e quem educa na escola. Juntos, com base na ciência, na empatia e na responsabilidade compartilhada, é possível mitigar – ou até menos evitar – os efeitos negativos dessa nova condição híbrida sobre crianças e adolescentes.
Compreender esse tempo é mais do que um dever: é um gesto de amor responsável, uma urgência ética e uma tarefa coletiva. O futuro das próximas gerações depende de nossa capacidade de enxergar com lucidez o presente que estamos oferecendo as nossas crianças e adolescentes.
2. Do humano analógico ao humano híbrido
Durante milênios, a experiência humana foi construída a partir de interações presenciais, rituais comunitários e aprendizagem por imitação, repetição e convívio. Era o tempo analógico, que perdurou por cerca de 12 mil anos no histórico civilizatório, desde que ser humano deixou de ser nômade e passou a organizar-se de forma sedentária, com o surgimento da agricultura e das primeiras aldeias.
Nesse período, o corpo, o olhar, o silêncio e a convivência não eram periféricos, mas estruturantes da formação psíquica, afetiva e social do sujeito, ou seja, faziam parte da centralidade da vida em comunidade.
Era no convívio cotidiano – entre o preparo do alimento, a partilha das tarefas, as pausas do silêncio e os ritos da vida em comum – que os saberes se transmitiam. A criança aprendia não apenas o conteúdo, mas a forma de estar no mundo, porque via o adulto em ação, sentia o tom da voz, o ritmo do gesto, o olhar atento ou reprovador.
O aprendizado não era fragmentado ou dissociado da vida: ele emergia da experiência, das relações entre gerações e da possibilidade de contemplar o outro por inteiro, em sua integralidade física e emocional. Havia uma pedagogia da atenção que se sustentava em tempos mais lentos, onde a repetição não era vista como falha, mas como parte essencial do processo de formação.
Cada pequeno ensinamento – como calçar os sapatos, cuidar da terra, preparar o corpo para dormir – era envolvido por uma textura de afeto, paciência e presença que moldava não apenas o comportamento, mas a própria estrutura psíquica da criança.
Como nos lembra David Le Breton, “O corpo é o lugar da presença, da escuta, da linguagem silenciosa do gesto2”. No mundo tradicional e pré-digital, o aprendizado se dava no encontro entre corpos, em uma pedagogia da atenção sustentado pelo tempo compartilhado. Aprendia-se olhando, fazendo junto, errando ao lado de quem já sabia. A oralidade e a observação direta eram os principais transmissores de saberes.
O filósofo Byung-Chul Han reforça essa ideia ao dizer que, antes da aceleração digital, a comunicação era marcada por uma “presença densa e significativa, onde o outro se manifesta integralmente e não como um mero dado de informação3”. A presença não era apenas física, mas também simbólica, afetiva e comunitária.
Nilton Cunha, ao discutir a sociedade híbrida, destaca que “essa lógica anterior, moldada pela convivência direta foi desestabilizada por uma cultura digital que fragmenta, acelera e individualização as relações humanas, retirando delas sua densidade simbólica e corporal4”. A transição para o digital, portanto, não é apenas tecnológica, mas representa uma mudança antropológica profunda, que desloca os fundamentos históricos da socialização humana.
Com o avanço da tecnologia digital, especialmente com a internet móvel e os smartphones, essa lógica se inverteu: hoje a vida é mediada por telas, algoritmos e redes sociais. O humano híbrido não vive apenas no corpo – ele vive no perfil, na notificação, na nuvem.
O saber que antes se enraizava na convivência passou a ser acessado da forma instantânea, mas superficial, muitas vezes deslocado do corpo e das relações. A pedagogia do encontro foi substituída pela pedagogia do clique, na qual a mediação dos algoritmos determina o que se vê, o que se pretende e por quanto tempo se permanece interessado.
O tempo compartilhado foi substituído pelo tempo controlado – pelo tempo da produtividade, da resposta imediata da estimulação contínua. Nesse novo contexto, o corpo, antes central no processo de aprendizagem, tornou-se periférico, quase ausente. A escuta foi trocada por estímulos visuais incessante e o olhar – que antes sustentava vínculos e limites – se perdeu na tela. O que está em jogo não é apenas uma mudança tecnológica, mas uma reconfiguração profunda da experiência humana e das formas de transmissão da cultura, que afeta o modo como nos tornamos.
Com o avanço das tecnologias digitais e a mediação constante das telas, passamos a viver em realidades fragmentadas, onde a atenção se dispersa e a presença plena se torna rara. As experiências antes contínuas e integradas ao corpo e ao tempo coletivo foram substituídas por múltiplas conexões simultâneas, que diluem o sentido e desfazem a profundidade das relações.
No entanto, nosso cérebro foi moldado por experiências analógicas, desenvolvendo-se em ritmos naturais, por meio da convivência, da repetição e da atenção plena. Fomos programados para pensar de forma contínua, sensível e integrada ao tempo e ao espaço compartilhado.
3. Tempo, atenção e presença: realidades fragmentadas
Uma das mudanças mais drásticas foi a fragmentação do tempo e da atenção. A lógica linear foi substituída por microinterações digitais constantes. O agora é disputado por múltiplas notificações, o silêncio se tornou incômodo e a presença plena foi substituída por presenças parciais. Esse novo modelo impacta diretamente a forma como construímos vínculos, processamos emoções e enfrentamos frustrações.
Essa fragmentação contínua tem um custo elevado: ela rompe com a linearidade do pensamento, dificulta a elaboração emocional e compromete o desenvolvimento da tolerância à espera e ao desconforto. Em vez de aprender a lidar com o tédio, a frustração ou a ausência momentânea do outro – experiências fundamentais para a maturação psíquica – crianças e adultos passaram a busca compensações imediatas e incessantes.
O cérebro que evoluiu durante milênios em ambientes estáveis e com estímulos graduais, agora é bombardeado por recompensas rápidas, interrompendo ciclos naturais de atenção e reflexão. Como alerta Nicholas Carr, “O que a internet parece estar fazendo é diluir a nossa capacidade de concentração e contemplação. Nossa mente agora parece absorver informação da forma como a internet a distribui: em uma rápida torrente de partículas5”.
Esse padrão de dispersão transforma a qualidade do vínculo humano, que exige presença, escuta e tempo compartilhado para se constituir. Como observa Byung-Chul Han, “A atenção profunda é um pressuposto para a construção de vínculos duradouros, mas a sociedade da informação promove uma atenção dispersa e nervosa, que nos impede de habitar verdadeiramente o presente6”.
O resultado é uma geração que, mesmo hiperconectada, sente-se desconectada de si, dos outros e do mundo – fragilizada para suportar ausências, rupturas, frustrações, ou seja, as inevitáveis dores de viver.
Essa sensação de desconexão, apesar da hiperconectividade, revela uma das maiores contradições da era digital: nunca estivemos tão ligados por dispositivos e, ao mesmo tempo, tão distantes emocionalmente. A atenção que antes era sustentada pelo encontro com o outro, pelo olhar compartilhado e pela escuta ativa, foi substituída por respostas rápidas, emojis e distrações constantes.
Essa superficialidade das interações compromete a construção de vínculos autênticos e o desenvolvimento da empatia, uma vez que relações profundas exigem tempo, silêncio, presença e afeto – elementos cada vez mais escassos no cotidiano digitalizado. A presença parcial se torna a nova norma, e com ela perdemos a capacidade de escutar com profundidade, de esperar o outro concluir o raciocínio, de tolerar o desconforto de uma pausa ou de um desacordo.
Além disso, o excesso de estímulos imediatos fragiliza a capacidade de autorregulação emocional. Crianças e adolescentes que crescem em ambientes de estímulos constantes e recompensas instantâneas têm mais dificuldade de lidar com frustrações, pois o cérebro, condicionado à dopamina fácil e rápida, reage com irritação, ansiedade ou apatia diante de qualquer experiência que não ofereça gratificação imediata.
Isso cria um ciclo vicioso: quanto mais estímulo, menor a tolerância à ausência dele – e, com isso, perde-se também a habilidade de refletir, de elaborar emoções complexas e de sustentar projetos de longo prazo. A cultura da distração infinita se impõe como norma, enfraquecendo o pensamento crítico, a introspecção e a profundidade das relações humanas.
Como resultado, temos um novo perfil subjetivo humano emergindo, marcado pela oscilação entre: excesso e vazio, presença corporal e ausência emocional, aceleração e exaustão.
4. A infância digital: a formação do humano híbrido desde o berço
Se antes a infância era formada por experiências sensoriais, contato humano e exploração do mundo real, por exemplo, através do tato, hoje ela começa muitas vezes em frente a uma tela. Crianças estão sendo formadas em um ambiente digitalizado desde os primeiros meses de vida, o que tem consequências profundas no desenvolvimento da linguagem, da atenção, da empatia e da autorregulação emocional. A dopamina digital substituiu o afeto e o brincar espontâneo
As primeiras experiências de vida são determinantes para a construção das conexões neurais que moldam o cérebro humano. Durante essa fase, o contato com o mundo físico, os gestos de carinho, as expressões faciais, o som das palavras e o tempo compartilhado com adultos são os pilares para o desenvolvimento saudável.
No entanto, ao serem expostas precocemente a estímulos digitais intensos e contínuos, as crianças passam a viver em um ciclo artificial de recompensas imediatas, o que inibe o amadurecimento de habilidades fundamentais para a vida em sociedade.
Ao contrário da crença de que o uso de telas pode ser inofensivo quando “controlado”, as evidências científicas mostram que a própria presença constante de dispositivos altera o comportamento e a disposição cerebral para o aprendizado e a convivência. O que antes se adquiria pela repetição de gestos afetivos e interações reais está sendo substituído por cliques, vídeos automáticos e respostas instantâneas.
Segundo o neurocientista Michel Desmurget: “Quanto mais tempo as crianças passam diante das telas, maiores são os riscos de impactos negativos no QI, na capacidade de concentração e no desenvolvimento emocional”7.
A linguagem, por exemplo, não se desenvolve apenas pelo ouvir das palavras, mas pelo diálogo vivo, pela escutar ativa, pela repetição emocional significativa. Quando a criança interage com uma tela, não há reciprocidade real, não há emoção partilhada, não há olhar respondido. Isso empobrece a qualidade do vínculo e compromete o alicerce da comunicação humana.
Nesse sentido, Jane Healy nos alerta que: “A imaturidade neurológica da criança pequena a torna altamente vulnerável aos efeitos da mídia eletrônica, principalmente porque seu cérebro necessita de experiências ricas e multissensoriais no mundo real8”
Mais do que distração, o uso precoce de dispositivos digitais representa uma distorção da infância. O que está em jogo não é apenas o excesso de tempo de tela, mas a perda de oportunidades cruciais de desenvolvimento – brincar livre, a curiosidade pelo mundo, a interação com os pais e das bases da empatia e do autocontrole.
Ao anestesiar as crianças com vídeos coloridos e sons hipnóticos, os adultos deixam de oferecer aquilo que nenhuma tecnologia pode substituir: a presença emocional, o limite amoroso, o tempo de qualidade e o exemplo de humanidade.
Pais, olhem com coragem para a infância de seus filhos. Perguntem-se com honestidade: que tipo de ser humano estou ajudando a formar? Um que saiba esperar, se frustrar, criar, sentir e amar? Ou alguém que precisa o tempo todo de estímulos para não desmoronar no tédio?
A infância não pode ser adiada, as telas podem. Elas roubam silenciosamente aquilo que deveria ser vivido com os pés no chão, com as mãos sujas de brincar, com os olhos brilhando de descobertas. Quando você entrega um celular para acalmar seu filho, não está apenas ganhando tempo – está entregando tempo que jamais voltará.
O fluxo constante de estímulos artificiais acaba por comprometer também a construção da identidade. A criança que cresce em meio a recompensas digitais imediatas aprende, ainda sem saber, que seu valor depende de reações externas. Pouco a pouco, vai sendo moldada por um sistema que a ensina a performar para agradar, a buscar atenção para se sentir vista, e a depender do olhar alheio para reconhecer quem é.
Nesse contexto, a formação da identidade deixa de ser um processo interno, construído no silêncio das experiências reais, para se tornar uma vitrine ansiosa por aprovação. Desde muito cedo, meninos e meninas são induzidos a medir sua importância pelo número de curtidas, visualizações ou emojis recebidos.
Ou seja, em vez de se conhecerem a partir do mundo concreto, passam a se construir em função da validação digital – frágil, efêmera e viciante. É nesse terreno instável que muitos perdem o senso de si antes mesmo de tê-lo encontrado.
5. A identidade no espelho digital: curtidas, filtros e validação
A construção da identidade, que sempre foi mediada pelo olhar do outro e pela experiência no mundo real, agora é profundamente influenciada pelos filtros das redes sociais. O humano híbrido depende da validação digital para se sentir existente.
Antes a criança descobria-se a partir da convivência com os adultos significativos, da troca afetiva, da escuta atenta e do tempo compartilhado. Hoje, essa formação está sendo substituída por algoritmos, curtidas, avatares e performances online que moldam não o ser, mas a aparência do ser.
Essa transição silenciosa, porém, profunda, começa ainda na primeira infância – quando se entrega um celular a um bebê para distrai-lo ou acalmá-lo. Sem perceber, muitos pais estão introduzindo os filhos em uma lógica de recompensa extrínseca e aprovação externa.
O que poderia ser um tempo de formação da interioridade, do autoconhecimento e da solidez emocional, se transforma em um tempo de exposição, comparação e necessidade constante de visibilidade. A criança passa a se perceber não a partir do que sente, mas a partir do que recebe do mundo digital: emojis, corações, reações.
Na adolescência, essa distorção atinge níveis alarmantes. A fase em que o jovem busca sua identidade, autonomia e pertencimento se torna o ápice da dependência emocional das redes. O que antes era uma fase de busca de si mesmo se torna fase de fuga de si, onde o medo de não ser aceito online pode provocar angústias intensas. O corpo é moldado para agradar, as emoções são postadas para render reações, e o valor pessoal passa a ser medido por métricas superficiais.
Como firma a socióloga Sherry Turkle: “Estamos criando uma geração de jovens que prefere mil curtidas a um abraço, que troca a intimidade real por conexões digitais frágeis e que tem medo de estar só consigo mesma9”. Esse quadro contribui para o aumento dos quadros de ansiedade, depressão e baixa estima. Os jovens não conseguem sustentar sua identidade fora das telas porque não a construíram dentro de si. Não sabem quem são sem o espelho das redes sociais.
A cultura da validação constante mina a formação emocional. A adolescência, que já é uma fase vulnerável por natureza, torna-se ainda mais frágil diante da comparação permanente, da exposição exacerbada e da ilusão de que só é importante quem é visível.
Estudos recentes mostram que quanto maior o tempo de exposição às redes sociais, maior a incidência de sintomas depressivos, principalmente entre meninas adolescentes.
A formação de uma identidade dependente da visibilidade digital faz com que a ausência de curtidas, comentários ou respostas sejam interpretados como rejeição. A subjetividade adolescente, ainda em estruturação, se torna refém de um “mercado de aceitação” onde quem mais aparece vale mais.
No entanto, quando não são validados, esses jovens muitas vezes se sentem inexistentes, desinteressantes ou indignos de afeto. Isso compromete profundamente a autoestima e leva a quadros de ansiedade, isolamento, distúrbios alimentares e, em casos mais graves, automutilação e ideação suicida.
A psicóloga Jean M. Twenge, que há décadas estuda os comportamentos das novas gerações, alerta: “Adolescentes que passam mais tempo nas mídias sociais são mais propensos à infelicidade. Aqueles que passam três horas ou mais por dia em dispositivos eletrônicos têm 35% mais chance de apresentar risco elevado de suicídio10”.
Essa constatação deve servir como um alerta para os pais. O que começa como uma distração na infância pode se transformar, na adolescência, em sofrimento emocional profundo, silencioso e invisível aos olhos desatentos.
6. Cuidar em tempo híbridos: um chamado aos pais na Era da Distração Infinita
A experiência humana fragmentada exige que repensemos o papel da escola e os modelos de cuidado, vínculo, criação e até mesmo de espiritualidade. A cultura da distração infinita, impulsionada por recompensas dopaminérgicas imediatas digitais, afeta a educação, a saúde mental e os vínculos familiares. É preciso compreendermos que estamos na sociedade híbrida, no entanto, nós, seres humanos, pensamos de forma analógica e necessitamos compreender isso de forma muito clara para podermos educar, acolher e orientar as nossas crianças e adolescentes.
Vivemos um dos momentos mais desafiadores da história da humanidade, no que diz respeito à formação das novas gerações. Nunca foi tão difícil educar, acolher e proteger nossos filhos – não por falta de amor, mas porque o mundo que os cerca mudou profundamente.
O mundo em que vivemos se tornou fragmentado, disperso, saturado de estímulos e carente de vínculos reais. A escola, a família, a saúde mental e até mesmo a espiritualidade estão sendo afetadas por esse novo cenário de distração permanente. E quem mais sofre são justamente os mais frágeis: nossas crianças e adolescentes.
A cultura digital não é neutra. Ela molda comportamentos, altera estruturas cerebrais, redefine valores. Ao entregarmos precocemente nossos filhos às telas dominadas por algoritmos, não estamos apenas entretendo-os, mas condicionando seus cérebros a um padrão de funcionamento voltado para o imediatismo, para o prazer fácil e para a excitação constante.
As recompensas dopaminérgicas – disparadas a cada curtida, vídeo curto ou notificação – roubam dos nossos filhos a capacidade de sustentar a atenção, lidar com frustrações e desenvolver autocontrole. O que parece apenas “uma fase” ou “coisa da idade” pode ser, na verdade, um sintoma de um cérebro que está sendo treinado para não suportar o tédio, o esforço e o silêncio.
É importante entender que, embora vivamos em uma sociedade digital e híbrida, nossos corpos e cérebros ainda são analógicos. A biologia humana não acompanhou o salto tecnológico.
Precisamos do olhar, do toque, da conversa, da presença real. O afeto que forma a personalidade e estrutura a saúde emocional das crianças não é transmitido por emojis, mas por olhos que se encontram, por abraços que acolhem, por vozes que escutam com paciência. A ausência desse contato real está gerando uma geração de meninos e meninas com altos níveis de ansiedade, depressão, intolerância à frustração, dificuldade escolares e problemas de socialização.
Diante disso, é urgente repensar o papel da escola, sim, mas ainda e mais urgente é repensar o nosso papel como pais. Não podemos terceirizar a formação emocional e moral dos nossos filhos às telas.
Necessitamos voltar a sentar à mesa, contar histórias, olhar nos olhos, ouvir suas angústias, impor limites e, acima de tudo, estar presentes emocionalmente e não apenas fisicamente. Não basta estar ao lado – é preciso estar junto. A presença ativa e amorosa de um pai ou de uma mãe é o maior antídoto contra a fragmentação do mundo atual.
Esse é um desafio não só educacional, mas também ético e espiritual. A sociedade híbrida exige de nós uma nova postura: consciente dos riscos, mas confiantes na nossa capacidade de proteger o que há de mais humano em nós. Como pais, precisamos ser os guardiões da infância.
Necessitamos defender a infância do excesso de estímulo, do consumo de atenção, da colonização digital. Educar nesse tempo é nadar contra a corrente, mas é justamente isso que o amor verdadeiro faz: resiste ao que desumaniza, protege o que é essencial, insiste no que é bom.
Não se trata de negar a tecnologia, mas de colocá-la em seu devido lugar. Nossos filhos não precisam de mais telas. Eles precisam de nós. Eles precisam de tempo, escuta, calma, paciência, histórias, desafios, natureza, rituais.
Precisam de adultos que saibam dizer “não” com amor e que tenham coragem de frustrar o desejo imediato em nome de algo maior: o crescimento emocional e humano.
Essa nova antropologia híbrida exige a nós pais e mães, um salto de consciência – mas é justamente aqui que reside o maior desafio: a maioria dos pais ainda não compreende o que, de fato, as telas fazem com o cérebro em formação de suas crianças. Não se trata de excesso de zelo ou de moralismo, mas de ciência e de responsabilidade.
É por isso que a escola precisa assumir um novo papel, como agente ativo na mediação entre o conhecimento científico e a realidade familiar. E o poder púbico, por sua vez, deve deixar de omitir essa discussão e assumir a tarefa de informar, orientar e conscientizar a população sobre os impactos reais da cultura digital na infância.
Educar os pais sobre a antropologia híbrida do século XXI é, hoje, tão urgente quanto alfabetizar seus filhos. Só assim poderemos proteger esta geração – não do futuro, mas de um presente que exige lucidez, coragem e presença.
7. Conclusão
Estamos diante de uma mudança antropológica sem precedentes. O digital não apenas criou novas ferramentas – ele configurou o próprio ser humano. Reconhecer essa nova condição híbrida e o primeiro passo para compreendermos os desafios que enfrentamos nas famílias, nas escolas e nas relações sociais. Mais do que resistir ou aderir cegamente, precisamos refletir sobre que tipo de humanidade que queremos e estamos formando – e qual presente e futuro queremos para os nossos filhos e alunos.
Por isso, é preciso dizer com clareza: não estamos apenas diante de um problema educacional ou comportamental, mas de uma transformação profunda no modo como o ser humano percebe, sente e interage com o mundo.
A infância e a adolescência, fases críticas do desenvolvimento cerebral, estão sendo moldadas por estímulos artificiais, algoritmos de recompensa e relações mediadas por telas. Esse cenário exige que pais, professores e gestores públicos deixem de tratar o uso precoce e excessivo das tecnologias como algo neutro ou inevitável.
Os pais, muitas vezes, não têm consciência do que realmente acontece no cérebro de seus filhos diante das telas. Mas essa ignorância não é culpa individual – ela é resultado da ausência de um esforço coletivo de esclarecimento.
Diante disso, é essencial compreendermos que os impactos da cultura digital sobre a infância não são apenas questões de uso ou acesso, mas sim transformações profundas no desenvolvimento neurobiológico, emocional e social das novas gerações.
Cada vez mais especialistas alertam para os efeitos das telas sobre o cérebro em formação: desde alterações no sistema de recompensa e atenção até prejuízo nas habilidades sociais e afetivas. Essa não é uma constatação alarmista, mas científica – e precisa que a ciência chegue com clareza e acessibilidade às famílias, educadores e gestores.
Assim, a escola e o poder público deverão ser parceiros fundamentais no despertar dessa consciência coletiva. Professores, gestores, psicopedagogos, equipes de saúde e assistência social necessitam ser capacitados por essa realidade. É a partir de então, construir pontes entre a ciência e a vida cotidiana das famílias, e orientar pais e mães sobre como prevenir ou mitigar os efeitos perverso do uso precoce e excessivo das telas.
Não basta proibir – é preciso compreender. Não basta alertar – é preciso formar. E essa formação deve ser compartilhada entre os adultos que mais convivem com crianças e adolescentes: pais e professores. Quando a escola entende esse desafio e o poder público o assume como prioridade, abre-se o caminho para uma grande aliança educativa: aquela que une ciência, afeto, cuidado e compromisso com a vida.
A tarefa de proteger nossas crianças não é apenas um dever individual, mas uma missão coletiva. E é a partir desse compromisso conjunto – família e escola, pais e educadores – que poderemos recuperar o tempo da infância, o valor do vínculo humano e a esperança de um futuro mais saudável, mais presente e mais plenamente humano.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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1 Nilton Pereira da Cunha é Professor, Mestre em Ciência da Educação, Doutorando, Psicopedagogo e Escritor, com graduação e pós-graduação lato e stricto sensu na área da educação e também graduado e pós-graduado em Direito. Professor de Educação Especial por mais de uma década pela Secretaria de Educação de Pernambuco. Autor de dezenas de artigos publicados em vários países da América Latina, por exemplo: Brasil, Argentina e Colômbia. Também com mais de uma dezena de livros publicados na língua portuguesa e em castelhano, entre eles: O autismo e a interação social: como desenvolver uma criança saudável na Era Digital; El autismo y la interación social: cómo desarrollar una crianza saludable en la Era Digital; Educação, Família e Geração Digital: desafios e perspectivas da pós-modernidade.
2 LE BRETON, David. A sociologia do corpo. Petrópolis: Vozes, 2007.
3 HAN, Byung-Chul. No enxame: perspectiva do digital. Petrópolis: Vozes, 2015. ↑
4 CUNHA, Nilton Pereira da. A Sociedade híbrida: e suas implicações no desenvolvimento infantil. Disponível em: https://revistatopicos.com.br/artigos/a-sociedade-hibrida-e-suas-implicacoes-no-desenvolvimento-infantil. Consultado em: 24/06/2025.
5 CARR, Nicholas. A geração Superficial: o que a internet está fazendo com os nossos cérebros. Rio de Janeiro: Agir, 2011.
6 HAN, Byung-Chul. Sociedade da Informação e da Transparência. Petrópolis: Vozes, 2017.
7 DESMURGET, Michel. A fábrica de cretinos digitais: os perigos das telas para nossas crianças. Rio de Janeiro: Vestígio, 2020.
8 HEALY, Jane. Failure to Connect: How Computers Affect Our Children’s Minds – and What We Can Do About It. New Yorl: Simon & Schuster, 2004.
9 TURKLE, S, Alone. Together: Why We Expect More fron Technology and Less from Each Other. New York: Basic Books, 2017
10 TWENGE, Jean M. iGen: Why Today’s Super-Connected Kids Are Growing Up Less Rebellious, More Tolerant, Less Happy – and Completely Unprepared for Adulthood. New York: Atria Books, 2018.