CIORAN E A DISTOPIA ABSOLUTA
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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.15852123
Alan de Oliveira Monteiro1
RESUMO
Emil Cioran, escritor romeno do século XX, é uma figura literariamente idiossincrática. Sua escrita, que transita plasticamente entre (e mescla) discurso filosófico e prosa literária, navega numa região de experimentação da linguagem. A partir da perspectiva de seu estranhamento do mundo, Cioran, olhando do século XX, traça um balanço histórico refletindo sobre a própria condição humana, marcada pela consciência da contingência de nossas formas de existência, pela obsolescência dos modelos teóricos que prometiam seguras referências de orientação e pelos desastres advindos das utopias desenhadas nos últimos séculos. Através de uma revisão bibliográfica de orientação hermenêutica, este artigo propõe, por um lado, realizar uma “leitura inspirada”, seguindo a indicação interpretativa de Richard Rorty, articulando as aproximações e diferenças entre a obra de Cioran e a distopia enquanto gênero literário; e, por outro lado, em uma inspiração fenomenológica, levar a sério os pressupostos do autor e encará-lo “em seus próprios termos”. A análise aqui feita propõe uma leitura da obra de Cioran como autor de um discurso que será sugerido como uma “distopia absoluta”, que, não se confundindo com o gênero literário, apresenta semelhanças a este, consolidando um modelo narrativo fragmentado, mas tematicamente consistente que, a partir de um movimento de autorreflexividade radical, articula-se como uma “exegese da decadência”, constituindo uma experiência de violência estética, destacada por sua obsessão pela morte e pela decomposição, resultando em uma linguagem sombria e cínica, indicada pelo autor como uma espécie de “disciplina do horror”.
Palavras-chave: Distopia. Experiência estética. Obsolescência.
ABSTRACT
Emil Cioran, a 20th-century Romanian writer, is an idiosyncratic literary figure. His writing, which artistically moves between (and mixes) philosophical discourse and literary prose, navigates a region of linguistic experimentation. From the perspective of his estrangement from the world, Cioran, looking back from the 20th century, draws a historical balance reflecting on the human condition itself, marked by the awareness of the contingency of our forms of existence, by the obsolescence of theoretical models that promised reliable references for guidance, and by the disasters arising from the utopias designed in recent centuries. Through a hermeneutic bibliographic review, this article proposes, on the one hand, to carry out an “inspired reading”, following Richard Rorty’s interpretative indication, articulating the similarities and differences between Cioran’s work and dystopia as a literary genre; and, on the other hand, in a phenomenological inspiration, to take seriously the author’s assumptions and view him “on his own terms”. The analysis carried out here proposes a reading of Cioran’s work as the author of a discourse that will be suggested as an “absolute dystopia”, which, not to be confused with the literary genre, presents similarities to it, consolidating a fragmented but thematically consistent narrative model that, based on a movement of radical self-reflexivity, is articulated as an “exegesis of decadence”, constituting an experience of aesthetic violence, highlighted by its obsession with death and decomposition, resulting in a dark and cynical language, indicated by the author as a kind of “discipline of horror”.
Keywords: Dystopia. Aesthetic experience. Obsolescence.
Introdução
Em uma entrevista de 2006, um ano antes de sua morte, o filósofo americano Richard Rorty, que ao longo de sua trajetória intelectual esteve em pé de guerra com a filosofia, não obstante engajado em sua prática, em sua linguagem, vivificando seu discurso e desafiando seus limites, disse que
Na maior parte do tempo a Filosofia é apenas uma disciplina acadêmica. De vez em quando há alguém que quebra o molde e revitaliza a imaginação das pessoas. É o que Kant fez – especialmente em seus escritos políticos. John Stuart Mill o fez. Nietzsche o fez. Heidegger o fez – embora tenha levado, creio, as pessoas para a direção errada. Filosofia é primariamente, como a literatura, uma questão da erupção repentina de um gênio que redescreve o que tem acontecido na Filosofia, torna-a nova, revitaliza a disciplina. (...) Eu penso que a filosofia é apenas uma tradição de escrita. Você pode dizer se alguém é um filósofo se eles leram Platão, Aristóteles, Descartes, Locke, Kant, Hegel, Nietzsche, Heidegger, Wittgenstein e coisas do tipo. Não é algo especial. Não é uma ferramenta que você pode pegar e aplicar a isso ou aquilo: é apenas uma tradição intelectual. (De Selby, 2017, tradução livre)
Rorty foi o tipo de filósofo, para todos os efeitos, eclético. Essa posição que defendeu de forma cada vez mais explícita em sua carreira, não muito surpreendentemente, teve que pagar com o ostracismo entre seus colegas no ambiente acadêmico. Foi professor universitário no Departamento de Filosofia da Universidade de Princeton por muitos anos, mas depois, saturado com as platitudes tecnicistas da área, migrou para o Departamento de Literatura na Universidade de Virgínia, à convite do crítico literário E. D. Hirsch Jr. (Castillo, 2015, p. 72). Sua aproximação com a literatura se fez mais intensa ao longo dos anos e a articulou de forma radical com a filosofia, descrevendo esta como um gênero transicional, identificando as formas linguísticas na qual a filosofia foi praticada e escrita na história como nada mais que modelos contingentes de linguagem, vocabulários transitórios que são classificados não por terem alcançado o “jeito correto” de escrever e pensar, mas como formas inovadoras às suas respectivas épocas de usar a linguagem para descrever o real e a experiência humana de maneiras diferentes e interessantes (Rorty, 2007, p. 95). Nesse sentido, a Filosofia não seria muito diferente da Poesia (inclusive o título de um de seus livros, Philosophy as Poetry, ostenta essa afirmação).
Essa vizinhança entre Filosofia e Poesia, possível em primeiro lugar em razão de uma concepção plástica da linguagem, é algo que Heidegger já defendia e que, aliás, formou uma das teses centrais de seu pensamento tardio. Tese que, por sua vez, ressoou com Rorty, quem se apropriou dela para fortalecer sua noção estranha, como era considerada, de filosofia – como apenas mais um discurso, mais uma forma de usar a linguagem e contar uma narrativa sobre nossa experiência, não tendo nenhum privilégio sobre a literatura ou qualquer outra área (ela é, como o disse, “apenas uma tradição intelectual”). Ele mesmo, não se incluindo na lista de gênios, descreve seu próprio empreendimento como o de um sincretista, isto é, crendo que sua “especialidade são narrativas que contam a ascensão e a queda de problemas filosóficos” (apud Castillo, 2015, p. 8).
É nessa categoria de sincretista que, a seu modo, Emil Cioran (1911-1995), escritor romeno do século XX, parece caber também, uma vez que a maior parte de sua obra consiste em narrar, por uma prosa poética fragmentária, a decadência ou esfacelamento (ontológico) do Ocidente e, hiperbolicamente, da própria civilização. Desprendido das unidades formais da língua nas quais é tradicionalmente articulado o discurso filosófico, Cioran privilegia uma linguagem dominada por paroxismos líricos, isto é, movida pelo desejo, de aspiração tipicamente poética, de se expressar em um idioma de barbárie, pois é diante “de uma cultura aprisionada em formas e limites que mascaram tudo” que o lirismo demonstra seu valor “de ser só sangue, sinceridade e chamas” (Cioran, 2011, p. 19). O lirismo de Cioran aparece ao favorecer uma escrita pessoal, altamente estilizada e que se radica na preferência que dispõe pela instabilidade criativa da metáfora, adotando todas as suas potencialidades intensivas, sem pretender submetê-la ao regime da explicação reguladora ou de qualquer forma de compartimentalização taxonômica.
Formado em Filosofia pela Universidade de Bucareste (1932), sua relação com a tradição filosófica, desde a época de sua formação, pode ser enquadrada por um jogo de rejeições categóricas em bloco e admirações inspiradoras pontuais. A aversão aos sistemas teóricos, que chama de “brilhantes tautologias”, é uma de suas principais marcas, e também uma das causas de se recusar a propor qualquer ideia nova ou saída efetiva dessa cratera histórica que diagnostica: Cioran, no lugar, vive, através de sua escrita meditativa e melancólica, o luto da Filosofia e, de forma mais abrangente, o luto da esperança das utopias. Realiza uma experiência estética que reflete, com uma mistura de nostalgia e nojo, sobre as decepções dos últimos dois séculos. Conduz daí uma espécie de balanço geral, olhando retrospectivamente ao incluir o todo da história em um caldeirão de fracassos e ridículos. Mas é precisamente em virtude desse estado de luto permanente expressado em seus ensaios aforismáticos, que o coloca no limite do sentido e na beira desse abismo ontológico; e que o permite articular uma linguagem idiossincrática, rearranjando as teias de significado em uma tentativa radical de redescrever a história tanto intelectual quanto política em termos “infamiliares”. E é nesses termos seus, ao mesmo tempo sombrios e encantadores, sinistros e fascinantes, que conjura um miasma inebriante, colocando o leitor em um estado hipnótico, de uma quase obsessão, sem dúvida mórbida, por essa “grande arte que é a morte de uma civilização” (Cioran, 2022, p. 26).
A partir desse fascínio macabro, quase sádico, Cioran desenvolve um registro de escrita, comum a outras figuras literárias e mesmo filosóficas, localizado na própria lacuna de seu sentido imediato. Oscilando entre a melancolia pessimista de seus momentos mais sincretistas e o êxtase lírico de seus mais sensíveis e frágeis, Cioran estabelece uma linguagem que, ao emular esses estados, apaga (ou no mínimo borra grosseiramente) a linha que separa a filosofia da literatura: consuma de fato a crença de Rorty de que “a filosofia é apenas uma tradição de escrita”. É a concretização máxima daquilo que Deleuze (1997, p. 14) chama de “devir do escritor”. O ofício do escritor, ou ainda, o seu problema, como ele indica, isto é, o pathos propriamente dito da escrita, recebe sua vitalidade do modo como “o escritor, como diz Proust, inventa na língua uma nova língua, uma língua de algum modo estrangeira. Ele traz à luz novas potências gramaticais ou sintáticas. Arrasta a língua para fora de seus sulcos costumeiros, leva-a a delirar” (p. 9). É precisamente nesse fora que acontece a literatura, ou de forma ainda mais ampla, a escrita, no sentido radical que o descreveram Rorty e Deleuze.
Ao embaçar a linha que separa a filosofia da literatura, Cioran subsequentemente problematiza a filosofia enquanto gênero literário autônomo que exige suas próprias regras de análise, como uma disciplina própria, completamente segmentada das outras, detentora de problemas exclusivos e indelegáveis. Aqui, como em Pessoa que, pela heteronímia, consegue articular na sua obra poética tanto categorias estéticas quanto contestações filosóficas a altura de um filósofo de profissão; em Nietzsche que, no caminho inverso, pelas incursões dionisíacas no pensamento, consegue articular na sua obra filosófica tanto categorias teóricas quanto fisionomias estéticas; e em Blanchot (isso só para citar alguns) que, na teoria estética-filosófica, desvincula a escrita de sua submissão a um universo de linguagem intramundana, confundem-se produção de ideias e sensibilidade poética. Não há distinção explícita entre conceito e experiência, entre método e desamparo. A palavra do método e da análise sóbria, é a de quem “está acostumado com o mundo” e “envolvido em sua estabilidade”. A escrita praticada por Cioran, que compartilha com esses outros autores, cabe no tipo que Pessanha (2018a, p. 28-29) chama de “palavra da arte”, “coisa de recém-nascido ou moribundo”, em oposição ao “escritor de meia-idade, estabilizado no mundo”, vivendo “na precedência da palavra e das referências culturais”.
Em vez de escrever sobre o furacão na segurança do centro de meteorologia, o recém-nascido/moribundo está no “olho”, onde, como privilégio da palavra literária, constitui “a última zona de imunidade contra a invasão do dizer objetivante dos especialistas” (p. 29). Em outras palavras, essa zona da arte (na qual Cioran parece habitar) é a dimensão da obra, mais especialmente do tipo de obra cuja verdade “não se pode nunca comprovar e deduzir (...) a partir do que tem valido até agora. O que tem valido até agora é, por meio da obra, desmentido no que diz respeito à sua realidade efetiva exclusiva. Aquilo que a arte institui não pode nunca, por isso, ser contrabalançado e reparado por meio do que está perante e daquilo que está disponível. A instituição é um excesso, um dom”. (Heidegger, 2002, p. 81).
Nesse nível de transfiguração linguagética, esses autores desenham experiências originárias que se fazem irredutíveis a gênero predeterminado. A singularidade de sua escrita se destaca de tal forma que encaixá-los em categorias prévias, de gênero ou disciplina, seria diminuir a força de seu discurso.
Nesse sentido, o que se pretende aqui não se trata de encontrar o “melhor método” para compreender o que Cioran realmente está dizendo. Esta busca, enviesada pelos paradigmas que o próprio escritor romeno renega vigorosamente, implica um debate circular, uma vez que envolve pensar as condições do método, necessariamente insuficiente, para apreender ou autenticamente experimentar o sentido de sua obra. Cabe, paradoxalmente, uma espécie de encarnação fenomenológica: não pensar Cioran de fora, e sim viver Cioran como o fora, considerando sua força como “pensador crepuscular” que triunfa na “decadência” e faz da própria subjetividade a voz do abismo. Não podemos nos submeter à pretensão de interpretá-lo acuradamente, de entendê-lo no sentido tradicional, pois estas são exatamente as empresas que Cioran coloca em xeque nas suas obras. O único modo apropriado para falar de Cioran é levá-lo a sério em sua “autorreflexividade radical”, como um sujeito que “mergulha a vida no parto de uma obra.” (Pessanha, 2018a, p. 153)
Uma vez que é desde o fora dos sistemas simbólicos dominantes que Cioran fala, enquanto um estrangeiro do mundo ostentando na própria pele as cicatrizes de seu estranhamento ontológico, podemos vislumbrar em que sentido seu discurso se articula com o desespero, quer público quer privado; em que medida ele reproduz nos seus aforismos os pesadelos subjetivos que assombram nossa era. Buscamos demonstrar, enfim, como Cioran constrói no seio de sua linguagem, um lamento tão belo quanto aterrorizante, no qual narra, de forma cativante, o cenário que poderíamos chamar, como defenderemos neste texto, de distopia absoluta.
Anátemas intelectuais
“Nosso é o tempo em que todo acontecimento intelectual ou artístico ou moral acaba absorvido por uma envoltura predatória da consciência: a historicização”. É assim que Susan Sontag abre o ensaio de introdução à edição americana de A tentação de existir, primeira coleção de ensaios de Emil Cioran publicados em inglês. Ela descreve ao longo do texto o cenário ontológico típico de nossa modernidade tardia, no qual tudo é assombrado pelo agouro da contingência.
O drama existencial, a ferida aberta de nosso tempo é a consciência da decadência e dissolução da irrefutabilidade de nossos modos de vida, da segurança dos modelos ontológicos que encarnávamos com convicção por séculos e que, agora, estão mais próximas de sua putrefação do que de sua consumação. Ou, se preferirmos, poderíamos dizer que essa decadência é a sua consumação, no duplo sentido de seu aniquilamento e sua plenitude na autoconscientização apropriadora de sua história, como Heidegger (1999, p. 97-98) insinua sobre a Filosofia (que engloba toda a tradição intelectual do Ocidente), cuja consumação ou “acabamento” (na tradução de Ernildo Stein) se faz presente na obsolescência de sua forma tradicional, decantando-se, por sua vez, na técnica moderna, não como sua negação, mas como o destino orgânico de seu desdobramento histórico.
O desafio intelectual que se impõe hoje é o de articular o entendimento com sua tendência negativa de se anular no próprio processo de alargamento de seus horizontes. Vivemos o momento histórico em que se torna incontornável o fato de que “até mesmo o mais relevante dos acontecimentos carrega consigo a forma de sua obsolescência”. (Sontag, 1968, p. 7)
O torvelinho intelectual da modernidade tardia condicionou o pensamento teórico a rejeitar alguns de seus preconceitos prévios, algumas de suas crenças mais básicas que conduziram a tradição, em especial a “ideia de que alguma nova metáfora, alguma nova ideia filosófica, poderia revelar uma matriz de inquirição neutra” (Rorty, 2007, p. 18) que estabeleceria de uma vez por todas os parâmetros universais de compreensão do mundo – “nosso” mundo incluso. Não obstante, parece inegável que a produção intelectual e artística dos dois últimos séculos na tradição ocidental foi “a mais energética, densa, sutil, simplesmente interessante, e verdadeira na vida do homem. E ainda assim o igualmente incontestável resultado de todo esse gênio é nossa sensação de estarmos pairando nas ruínas do pensamento, e à beira das ruínas da história e do próprio homem. (Cogito ergo boom)” (Sontag, 1968, p. 7-8).
O cume da parábola histórica que conduz até esse tempo em que o próprio tempo sofre sua fragmentação absoluta se dá em Hegel. Hegel foi um ponto de contradição importante na história do pensamento ocidental, pois por um lado ele representa uma cisão radical — um verdadeiro acontecimento — em relação ao sentido próprio da atividade filosófica, e por outro, é o pico mais alto de um projeto moderno que se consolida nele como a apoteose da Razão e do Conceito, isto é, na apreensão absolutizante e insuperável do sentido do ser a partir de um sistema de pensamento, que, nesse caso, se destaca dos anteriores por incluir em sua tradicional proposta de autovalidade ahistórica, a própria História dentre seus elementos estruturais. Hegel aparentemente tenta conciliar os acontecimentos políticos de seu tempo, que anunciavam mudanças radicais na história e ameaçavam a segurança e estabilidade dos próprios sistemas formais de compreensão da vida social e da própria experiência, com um sistema filosófico que inclua em si o próprio transcurso histórico que, caso contrário, o negaria.
Assim, Hegel construiu um super-sistema de pensamento que, oferecendo uma explicação para a obsolescência dos sistemas que o precederam, tenta escapar da emergente consciência da transiência incontornável das categorias epocais, apropriando-se desta para se afirmar paradoxalmente como um sistema que resiste a essa mesma transiência. Em outros termos, trata-se de um sistema filosófico, por sua própria natureza ahistórico, que versa sobre a estrutura da própria história, porque considera o tempo e a inconstância de suas categorias, todas fadadas ao seu próprio esfacelamento. (Miguens, 2019, p. 73)
Contudo, por mais que seu sistema assim afirmasse, a especulação teleológica de Hegel a respeito do destino final da história e subsequentemente da humanidade se provaram insuficientes para superar o problema do perspectivismo histórico que ele buscou desmontar. Embora o sistema de Hegel tenha sido ele também engolido pelo tsunami do tempo, seu historicismo ainda pulsa com toda a força, em especial porque talvez a maior qualidade redentora de Hegel tenha sido precisamente sua empreitada até então sem precedentes de encarar de frente a história e o tempo como coisas a serem levadas a sério, como condições necessárias para “fazer filosofia”. O esforço magnânimo de Hegel consistiu, em última análise, numa profunda reflexão e mapeamento histórico do pensamento filosófico como processo indispensável para sequer ser digno de formular qualquer coisa como uma “filosofia” legítima no presente. Com Hegel aprendemos de uma vez por todas que sem história, simplesmente não há filosofia possível.
Foi então que, com a Revolução Francesa e os eventos que a sucederam (dos quais Hegel era contemporâneo — ele viu Napoleão marchar por Iena), as correntes do tempo e da história intensificaram seu fluxo até um ponto que elas não poderiam mais ser ignoradas e deixaram de ser um movimento adaptável e previsível submetido à inércia da continuidade (enquanto sua qualidade fixa e invariável), para uma viagem turbulenta e arrebatadora ao mesmo tempo vítima e provocadora de descontinuidades (reconhecidas pela imprevisibilidade de seus dinamismos).
Nessa mudança de pathos, quando “a ‘história’ usurpou a ‘natureza’” (Sontag, 1968, p. 9), a filosofia também passou a sentir os sintomas de uma época que prenunciava seu fim. A partir de então, a consciência histórica passou a ser o elemento comum de qualquer projeto filosófico que buscasse dizer algo significativo sobre o mundo. Ela se tornou o idioma universal falado por todo intelectual que pretendesse formular alguma espécie de proposta filosófica ou científica — qualquer reivindicação de conhecimento, por assim dizer, passou a ser submetida ao critério da consciência histórica.
De Darwin a Nietzsche, de Bergson a Einstein, de Marx a Freud, qualquer empreendimento intelectual de peso inovou o pensamento através, entre outros fatores, da inclusão do tempo em sua estrutura mais básica. A era dos sistemas chegava ao fim, uma vez que qualquer sistema de pensamento que se pretendesse como verdadeiro, precisaria fazê-lo aquém do tempo e da história.
No declínio das construções de edifícios teóricos totalizantes como modo legítimo de produzir ideias, fizeram-se iminentes novos critérios para a contribuição genuína no enfrentamento das questões prementes de nosso tempo. Surgiu, nesse momento, espaço para um novo tipo linguagem filosófica, uma que não dependesse do arquimedismo arquitetônico moldado em torno de axiomas autoevidentes, que tentavam afastar a possibilidade de sua obsolescência escudando-se estrategicamente de qualquer questionamento a qualquer de suas partes, invocando o apoio de “verdades apodíticas”.
É onde entra Cioran, pertencente a uma tendência cada vez mais crescente no século XX, de pensadores e artistas dos mais astutos emergindo como “arqueólogos precoces dessas ruínas-em-formação, diagnosticadores indignados ou estoicos da derrota, coreógrafos enigmáticos dos complexos movimentos espirituais úteis para a sobrevivência individual em uma era de apocalipse permanente.” (Sontag, 1968, p. 8) Com a queda dos dogmáticos programas intelectuais que reinaram na Modernidade, instalou-se um novo paradigma que esbanjava, paradoxalmente, como sua característica principal, o desprendimento de qualquer paradigma engessador. Em outras palavras, no entardecer das concepções mecanicistas e das definições cristalizadoras do mundo, é a fragmentação propriamente dita que insurgiu como novo horizonte estético do pensamento.
Para além da explicação
A morte do pensamento filosófico, enquanto criação especulativa, como o modo dominante de engajamento intelectual, marcou, junto do desaparecimento de macroestruturas eternas com suas previsões escatológicas, o aparecimento, por sua vez, do discurso objetivante trazido pela avalanche dos dados empíricos que se acumulavam nas mais diversas disciplinas com suas respectivas e vertiginosas especialidades.
Nos últimos cem anos, não só novas realidades saíram da clausura e da latência para entrar no mundo (os átomos, os quarks, o DNA, os genes, o sistema imunológico), mas também realidades que se encontravam fora do regime explicativo foram objetivadas e colonizadas pelo saber explicitante: a sexualidade por Freud; os sonhos, também pela psicanálise (Jung e Freud); a relação de dependência mãe-bebê por Winnicott; o mundo do outro, da outra cultura, por Lévi-Strauss e outros antropólogos; o mundo do trabalho por Marx; a moralidade por Nietzsche e Freud etc. (Pessanha, 2018a, p. 26)
O que se estabeleceu nesse contexto foi uma verdadeira arregimentação do real, apesar do esfacelamento dos sistemas totalizantes. Contudo, foi precisamente esse imperialismo do dado, na profusão das especialidades disciplinares, que colonizou a experiência intelectual dos últimos dois séculos, eclipsando as megalomaníacas abstrações da tradicional arquitetura racional-especulativa da filosofia. Esta, por sua vez, foi esvaziada de sentido, uma vez que “seus vagarosos procedimentos não pareciam mais se endereçar a qualquer coisa; o que quer dizer, que eles não eram mais substanciados pelo senso que homens inteligentes tinham de sua experiência” (Sontag, 1968, p. 10). Significa, em outros termos, que a filosofia já não parecia mais capaz de “cumprir sua aspiração tradicional: aquela de providenciar os modelos formais para entender qualquer coisa” (p. 11).
Legado do Iluminismo, o espírito analítico ganhou uma forma sólida nesse período de efervescência intelectual, marcando o avanço da explicação como o regime semântico dominante, especialmente no século XIX e se expandindo ao longo do século XX. A velocidade sônica com que novas tecnologias eram criadas desde a Revolução Industrial e com a qual o capitalismo afundava suas garras nos nervos sociais, determinou em nível coletivo, não apenas as práticas políticas e econômicas que daí se consolidaram, esquadrinhando a existência humana, mas também — e principalmente, como reclamou o Romantismo (Sayre; Löwy, 2021, p. 13-14) — os confins de suas possibilidades subjetivas, atadas aos dogmas da eficiência e da utilidade e governadas por uma linguagem excessivamente técnica, que busca descrever e explicitar, em definitivo, todas as regiões do ente.
Entretanto, para além da difusão de esforços intelectuais antropologizantes (descrições complexas dos mecanismos de significação social), o pensamento anti-sistemático, evitando as análises impessoais da experiência, emergiu como o modo alternativo de “filosofar”. Embora tome a forma de uma escrita quase sempre pessoal, estilizada, flertando com o poético, ela ao mesmo tempo, assume também, paradoxalmente, uma tonalidade impessoal. Porém, essa “impessoalidade” não se manifesta no sentido cientificista que dominava o universo acadêmico (pretendendo ter atingido a camada fundamental de seu objeto, crendo tê-lo desvelado em seu aspecto mais puro e objetivo). A impessoalidade que surge em autores como Nietzsche, Heidegger (especialmente nos seus escritos tardios), Blanchot, e que é extrapolada em Cioran, é a expressão de uma experiência de estranhamento, um deslocamento em bloco das redes de sentido, de toda identificação coletiva, que os lança a uma singularidade abismal, onde a palavra é a região de sua própria realização, experimentando o devir da obra na posição instável daquele para quem a linguagem é “a continuação do arrepio neste hóspede ligeiro que somos, é a continuação de um canto de assombro e de agradecimento” (Pessanha, 2018a, p. 34).
É como e desde a desidentificação derradeira e o destacamento da familiaridade simbólica, contra o totalitarismo técnico da linguagem, que essas obras são escritas. Encontram ressonância, assim, para além da filosofia, sendo tão reconhecíveis na estetização desta como na visceralidade poética de figuras como Kafka ou Pessoa. Mais poetas que teóricos, esses escritores habitam um lugar que “é um outro de qualquer mundo, e o poeta é aí conduzido pela exigência da obra. A exigência da obra arranca o escritor do mundo e o coloca fora, num lugar exterior e distante daquele onde vigora a digital e o ‘batismo’ do sentido (província da cultura)” (Pessanha, 2018a, p. 37). Suas descrições, antes de tentarem determinar a experiência, encaixando-a em alguma interpretação formal de suas categorias, visam dizer nosso mundo, isto é, mostrar (zeigen), como queria Wittgenstein, os limites da sua configuração vigente: no lugar de uma linguagem proposicional, articulam uma linguagem que se aproxima do poético, não para capturar a essência das coisas, mas para expor, na sua nudez, “a estância humana na terra” (Sabino, 2007, p. 79).
No ápice desse exílio, experimentado na “desertificação” trazida por esses modelos objetivantes (Nietzsche, apud Loparic, 2004, p. 28), Cioran exclama essa exclusão ao renegar o espírito profetizador tão comum ao homem e que ele aponta como sua natural tendência narcisista. Aquém do desejo, da esperança e toda forma de assertividade subjetiva, se afasta da “província cultural”. “Outrora, eu tinha um ‘eu’; agora, sou apenas um objeto... Empanturro-me com todas as drogas da solidão; as do mundo eram demasiado fracas para me fazerem esquecer. Tendo matado o profeta que havia em mim, como poderia ter ainda um lugar entre os homens?” (2022, p. 16).
Sua condição de estrangeiro é intercambiável com seu cinismo teórico, que o retroalimenta. Segundo Cioran, indo na contramão da explicitação objetivante dominante na era da técnica moderna, é o próprio esforço de atribuir definição às coisas que esvazia nossa experiência de sentido (2022, p. 16). O ato de definir as coisas é um modo de estarmos para com elas – é uma forma de nos implicarmos existencialmente. Não há, então, separação explícita entre os desejos e empenhos intelectuais e nossa colocação no mundo. Nossas pretensões científicas, cognoscitivas são elas mesmas atos, modos de ser e de nos entregarmos à vida. E o efeito de adotarmos uma coisa pela definição que a damos, “é rejeitá-la, torná-la insípida e supérflua, aniquilá-la. (...) Sob cada fórmula jaz um cadáver: o ser ou o objeto morrem sob o pretexto a que deram lugar. É o deboche frívolo e fúnebre do espírito” (2022, p. 16).
Todo trabalho teórico começa com o impasse de onde extrai sua força. Para refletir sobre uma ideia, é preciso, até certo ponto, tê-la definida, ao menos para reconhecê-la no registro de experiência em que ela se localiza, isto é, na medida em que ela nos atravessa, que somos condicionados e movidos por ela. Aferrarmo-nos a uma definição implica trancarmo-nos no horizonte de experiência em que a definição foi concebida e, portanto, fecharmos-nos para o campo de possibilidades que a definição, enquanto meta genérica do conhecimento. Debater a legitimidade epistemológica de uma definição, nesse nível, envolve, além dele, a aceitação implícita da legitimidade da própria epistemologia. O triunfo histórico da epistemologia é ao mesmo tempo seu fracasso em reconhecer a circularidade de sua existência. Cioran então se incumbe da tarefa de delatar a corrupção implícita nesse triunfo histórico, de diagnosticar as sequelas que essa tradição infligiu sobre o próprio corpo.
O trabalho de Cioran (2022, p. 16), portanto, é como o de um coveiro, vagando contemplativamente pela vastidão do “cemitério das definições”, eternamente cético quanto à capacidade do conhecimento e suas fórmulas de salvarem o homem. É no seio da era das definições que o homem condena sua alma a fenecer em sua própria insipidez, conjurando a vacuidade infinita, o vazio que ele tentara tapar com os dados fabricados pela razão reguladora. O paraíso das objetividades é o deserto do sentido, em que, tornando a própria vida objeto, esteriliza-a. “A descoberta da Vida aniquila a Vida”. (Cioran, 2022, p. 132)
Ontologia da distopia (ou distopia absoluta)
Definindo-se como “antifilósofo”, um “pensador de segunda mão”, Cioran se identifica muito mais com a poesia, apesar de jamais ter declarado ser um poeta. É nela que realiza seus autoexorcismos, “pensando contra si mesmo”, como diz em um de seus ensaios (1968, p. 33). É nítido que quando fala dos poetas fala de si próprio, mesmo conjurando o poeta como essa figura outra, uma entidade alheia, numa vaga alteridade. Mas é discursando sobre a poesia que revela os mais íntimos aguilhões de seu pensamento. “Entre a poesia e a esperança, a incompatibilidade é total; pelo que o poeta é vítima de uma ardente decomposição”. “O” poeta, não coincidentemente como Cioran, “não consegue escapar a si mesmo nem evadir-se do âmago da sua própria obsessão: mesmo os seus êxtases são incuráveis e sinais anunciadores de desastres. Inapto para se salvar, para ele tudo é possível, exceto a sua vida...”. (2022, p. 119)
Tais invocações indicam que essa impessoalidade do discurso sobre “o poeta”, no exílio oriundo desse vácuo subjetivo, no coração do estranhamento, seja sua própria forma aberrante de identificação. A melancolia sôfrega de seu vazio se torna, paradoxalmente, sua última gota de singularidade. Seus delírios poéticos compensam a decepção de sua impotência ontológica (sua incapacidade de participar, sem vomitar, dos ritos supérfluos do mundo estabilizado da cultura), que reconhece não só em si mesmo, mas que projeta no todo da própria humanidade, na sua História, através da repetição incessante de seus ciclos de decomposição.
Navegando pelas galáxias do silêncio, Cioran passeia “sem convicções, e sozinho, no meio das verdades” (2022, p. 121). Suas inspirações poéticas revelam suas aspirações igualmente poéticas: sua prosa canibaliza o verso e incorpora dele “sua matéria”, “suas indecências, as suas humilhações, os seus fingimentos e os seus suspiros” (p. 120). Vivendo na instabilidade perpétua, ele só consegue ter intimidade com os autores que o lançam para fora de si, que o auxiliam no seu esforço interminável de exorcizar-se:
É assim que reconheço um verdadeiro poeta: quando, ao frequentá-lo, ao viver muito tempo na intimidade da sua obra, algo se modifica em mim: não tanto as minhas tendências ou os meus gostos mas o meu próprio sangue, como se uma maleita subtil se tivesse introduzido nele, alterando-lhe o curso, a espessura e a natureza. (Cioran, 2022, p. 119)
Antítese manifesta do pudor e da sobriedade psicológicos, como um vampiro condicionado por sua insaciável sede maldita, Cioran busca freneticamente os transbordamentos de si, as epilepsias da subjetividade, os desmoronamentos do “eu” – ato que, por outro lado, configura o veneno para aqueles acostumados com o mundo e que sucumbiram “à tentação da felicidade” (2022, p. 119). Ele, criatura natural da noite2, só consegue se interessar verdadeiramente por autores do êxtimo:
um Shelley, um Baudelaire e um Rilke intervêm no mais profundo do nosso organismo, que os incorpora, como aconteceria com um vício. Na sua vizinhança, um corpo fortifica-se e, depois, amolece e desagrega-se. Porque o poeta é um agente de destruição, um vírus, uma doença disfarçada e o perigo mais grave, ainda que maravilhosamente impreciso, para os nossos glóbulos vermelhos. Viver na sua proximidade? É sentir o sangue a diluir-se, é sonhar com um paraíso de anemia e ouvir, nas veias, lágrimas a correr... (2022, p. 120)
Como conciliar o deleite da criação poética com sua força de aniquilação pessoal? Nesse contexto, a linguagem, em Cioran, se mostra como o mais intenso dos paradoxos: nunca expressará a inefabilidade extática do ser, mas é o próprio meio no qual ele a denuncia, como que numa performance vazia e, talvez justamente por isso, tão mais justificável fazê-lo num ato de delírio lírico, dançando com as palavras como se dançasse euforicamente sobre seu próprio túmulo.
Escrever, para Cioran, é algo feito no liame da sintaxe, na fronteira do sentido, no êxtase das metáforas e na terra inculta do pensamento teórico. O pensador romeno faz filosofia sem conceitos, pois desintegra todos até virarem cinzas, já que é refletindo sobre eles que constata sua insipidez inata: a fecundidade de uma civilização é devida às instâncias de transfiguração dos conceitos em mitos, à sua saída da abstração vazia em direção à sua infiltração concreta, à eficiência de sua difusão, que por sua vez enfraquece – momentaneamente – sua (inevitável) potência destruidora (2022, p. 129).
É o pêndulo natural das civilizações — percorrendo dialeticamente o caminho entre a abstração conceitual e a mitologização (arregimentação dos hábitos de ação coletivos) — e o rosto da nossa própria decadência em curso: “A consciência infiltrou-se em tudo e, inclusivamente, tomou posse da medula; de tal modo que o homem já não vive no seio da existência, mas sim no seio da teoria da existência...” (2022, p. 135). A civilização condena-se ao túmulo, vítima de sua própria abstração. Poderíamos falar de pós-filosofia, no sentido que ele, enquanto filósofo, opera uma autópsia do próprio cadáver desta: da mesma forma que Heidegger identifica o “acabamento” da Filosofia na sua dissolução nas ciências técnicas modernas, alcançando sua plenitude na difusão e descentramento de sua essência, Cioran (2022, p. 123) diagnostica a decadência da filosofia no seu próprio triunfo como plenitude do conceito. No nível sócio-histórico, esse triunfo que na verdade é o ápice que precede a queda, é representado pela autoconscientização absurda da contingência de nossas formas existenciais.
Desse modo, pratica uma filosofia que é no seu seio distópica – traz a distopia ao pensamento: faz daquela a própria condição deste. É um modo radical de experimentá-la: uma distopia conceitual – não tomando a distopia na sua solidez enquanto conceito, mas fazendo do próprio conceito um registro distópico. Não se trata de imaginar um futuro ou condição possível do mundo em que se instaure uma realidade material recheada de contradições opressoras, do esvaziamento subjetivo da existência social, mas de viver a distopia desde a raiz; é ser espontaneamente avesso à utopia, não por cinismo ou desesperança (ausência de crença na transformação do mundo), e sim por condição humana, que é a provocação que Alex Gendler (TED-Ed, 2016) define como o propósito histórico da distopia como gênero literário, ou ainda, mais profundamente, poderíamos acrescentar, como experiência estética.
Gendler afirma que “na sua essência, distopias são contos preventivos – não sobre um governo ou tecnologia particular, mas a própria ideia de que a humanidade pode ser moldada em uma forma ideal”. A distopia, seguindo essa sugestão, é o discurso anti-utopia, não porque prega a destruição e o sofrimento, mas porque a utopia, enquanto sonho, provou-se na realidade o pretexto macabro para a precarização da vida material e subjetiva da maior parte da civilização mundial. O papel histórico da distopia é o de reagir aos pesadelos do real, criando cenários hiperbólicos. Ela surge como “um método de criar violência estética para lutar contra a barbárie” (Schargel, 2022).
Cioran, por outro lado, se opõe à utopia não em razão das injustiças materiais que resultaram de suas realizações ou mesmo em razão da desigualdade teórica presente na própria idealização de algumas delas, mas apesar dessas assimetrias conceituais. A utopia, para Cioran, é corrupta na sua raiz: não é falha por ser o discurso de supremacistas, declarados ou mentirosos, e sim na sua superficialidade ideológica, por ser ingênua a ponto de crer que, mesmo no caso ideal de uma utopia que sonha com a ausência de desigualdade entre os homens e as nações, é sequer desejável moldar a vontade humana em uma forma homogênea, livre de contradições e diferenças, despida da quintessência da vida, da heterogenia rebelde que corre em nossas veias. Em uma palavra, as utopias são farsas, e seu sucesso é assinalado pela sua categórica insensibilidade. (Cioran, 1998, p. 84-85)
A distopia, mesmo que não apareça na sua obra como objeto de análise ou como ferramenta de ficção literária, é incorporada por Cioran como condição paradigmática de sua escrita: faz dela a sua própria experiência de pensamento. É essa violência estética o seu método reflexivo: hiperbolizando os fracassos da história, exacerbando as decadências e amplificando a melancolia sombria de uma espécie biológica que ele diagnostica em pleno crepúsculo.
Distopia, enquanto conceito, enquanto gênero, é fruto da experiência típica de nosso tempo. Ora, Cioran se adequa a esses termos, integra essa experiência epocal em sua escrita, porém elevada até as últimas consequências. Ao contrário do gênero literário e suas intenções temáticas, as descrições de Cioran não são narrativas ficcionais que hiperbolizam características das concretizações possíveis das utopias ingenuamente pregadas. No lugar de usar a violência estética para combater os “pesadelos do real”, Cioran, quando fala sobre “o homem”, invoca a história dos horrores e de nossas contradições mais profundas como provas de nossa sede do ridículo, como argumentos de uma arrogância que beira ao metafísico e, ainda assim, apesar de todo esse excesso de insignificância, também conjura imagens de um ser que é identificado por sua sensibilidade visceral, pelos seus apetites poéticos, pelos êxtases líricos, que alcança sua humanidade nos paroxismos de seus afetos, no fogo das heterogenias extáticas de sua experiência, que as utopias desejam mais que tudo apagar. O que ele denuncia são os pesadelos da utopia.
A distopia é vivida nele não como imaginação crítica frente aos dramas éticos e políticos do presente, mas como atestado derradeiro de nossa infertilidade histórica – são jogos vazios, nada mais. O distópico, em Cioran, não diz respeito a condições materiais determinadas, a organizações políticas específicas, mas a uma experimentação peculiar da própria linguagem, pensada e articulada enquanto a dimensão humana originária, o fator condicionante da nossa humanidade. É sob esses termos que a filosofia é ela mesma uma forma de linguagem, sendo a própria linguagem, reciprocamente, o campo de batalha do pensamento filosófico, o palco onde é encenado o teatro dos conceitos, onde sistemas teóricos, como impérios, digladiam-se um com o outro até sobrar desolação e ruína.
Cioran constantemente descreve um mundo moribundo que insiste teimosamente em construir edificações sobre uma estrutura carcomida, tão estável quanto uma torre de cartas. Em um de seus Silogismos, afirma a partir de uma citação de Valéry: “‘Nós, civilizações, sabemos agora que somos mortais’. Sendo nosso mal a história, o eclipse da história, devemos insistir nas palavras de Valéry, agravar seu alcance: sabemos agora que a civilização é mortal, que galopamos em direção a horizontes de apoplexia, a milagres do pior, à idade de ouro do pânico”. (p. 40)
Começamos a compreender em que sentido podemos considerar Cioran um autor distópico. Não se trata aqui de abordar a distopia, por um lado, enquanto conceito fechado e definido, e o seu lugar no pensamento de Cioran, por outro. Essa cisão pode ser enganosa. Este artigo não ostenta pretensões catalogais de classificação ou rotulação. Buscamos fazer uma experiência da escrita de Cioran.
Ele parece conduzi-la por uma espécie de distopia transcendental: aquela que não diz respeito às configurações concretas do real, mas ao modo como, a partir desse balanço histórico, denota como nós estamos condicionados (ou condenados) a repetir o ciclo de nossos fracassos, destinados à decadência e à decomposição como o único telos possível. Em outros termos, Cioran descreve como a distopia, para além do gênero literário, entendida genericamente3 enquanto crítica ou desmonte das utopias, é a própria condição agourenta de possibilidade da experiência humana em sua intrínseca historicidade, reificada pela consciência histórica moderna. Ele faz viver uma ontologia da distopia.
Exercícios negativos
Ecoando seu discurso, a estrutura de suas obras é sempre marcada pela forma fragmentada, composta de aforismos aparentemente desconexos reunidos somente pelo seu fetiche mórbido pela decadência do homem. Ela emula uma “caminhada da vergonha”, como se passeássemos pelas ruínas de um império caído, um dia reconhecido por seus castelos majestosos e muralhas colossais – de Roma à Crítica da Razão Pura. Da forma ao conteúdo, a obra de Cioran pode ser identificada pela assimetria rítmica de uma linguagem cantando sua morte, como um paciente de câncer experimentando o mais intenso êxtase existencial precisamente por conta da consciência iminente de sua mortalidade. É justamente a fragilidade ontológica de sua composição que confere ao escritor romeno a capacidade de pintar o vazio nos tons mais vibrantes, que lhe permite articular as mais hediondas das violências estéticas... e vivê-las em exaltação, como se estivesse num “paraíso de anemia”.
É na forma também, portanto, que se manifesta sua revolta contra o “pesadelo real” da humanidade, assumido pela tradição intelectual do Ocidente – uma reação não só (anti-)conceitual, mas sobretudo estética. O estilo aforismático é o substituto do ensaio sistemático e do tratado. No lugar de escrever como se tecesse um teorema conceitual, crava assertivamente com licença poética. Não pretende estar fazendo teoria séria, costurando uma teia coesa de sentido do real – não age como se quisesse cristalizar a realidade, fixá-la em sistema conceitual para apreendê-la e seguramente se orientar nela.
“Toda a filosofia sincera renega os valores da civilização, cuja função consiste em tapar com uma peneira os nossos segredos e em travesti-los com efeitos rebuscados” (Cioran, 2022, p. 18). O que sobra ao pensamento e à ação quando “a história não é mais do que um desfile de falsos Absolutos, uma sucessão de templos erigidos em pretextos, um aviltamento do espírito face ao Improvável” (2022, p. 11)? Cioran oferece na mesma linha uma resposta, ao imaginar o “homem idealmente lúcido”, que diz:
“Isentado de objetivo, de todos os objetivos, dos meus desejos e das minhas amarguras conservo apenas as fórmulas. Tendo resistido à tentação de concluir, venci o espírito, bem como a vida, através do horror de procurar nela uma solução”. (...) Só há nobreza na negação da existência, num sorriso que paira sobre paisagens dizimadas”.
Em tom sádico, o homem idealmente lúcido é aquele que, na consumação máxima de sua lucidez, esgotando os recursos e excursos de suas apropriações racionalizantes e objetivantes dos processos históricos, da própria existência, chafurda na ruína do pensamento, à deriva no esvaziamento do sentido, desolado no deserto que sobrou de seus sistemáticos desmontes de todos os modos de imersão na vida, sufocado pela contingência de todas as suas formas.
Se a distopia, historicamente, se configura como conto preventivo contra os perigos das pretensões absolutas expressas em nossas utopias, Cioran se junta ao coro e oferece a advertência absoluta, que se estende como diagnóstico de mão dupla na linha do tempo: “A História: manufatura de ideais... mitologia lunática, frenesi das hordas e dos solitários... recusa de encarar a realidade tal qual ela é, sede mortal de ficções...” (2022, p. 15). Cioran prega não somente contra a utopia como a religião dos fanáticos, mas contra a ingenuidade latente na própria noção de identidade subjetiva ou simbólica, pois é ela a origem de toda “mitologia lunática” e, portanto, a crê corrupta na sua raiz: “A loucura de pregar está tão enraizada em nós que emerge de profundezas desconhecidas ao instinto de preservação. Cada qual aguarda o seu momento para propor alguma coisa: não importa o quê. Tem uma voz: e isso basta.” (2022, p. 14-15)
Mais uma vez, a distopia, nos termos aqui colocados, nos seus exemplos literários históricos, seguindo a genealogia do seu conceito, não é apenas uma advertência sobre o que podemos nos tornar caso sigamos ingenuamente por determinado caminho, mas uma espécie de eulogia sobre o que somos. A distopia se apresenta hiperbolizada em Cioran como a própria condição humana: “o profeta que há em cada um de nós é, na verdade, uma semente de loucura que nos faz florescer no nosso vazio” (2022, p. 15). O terror está em que é nessa tendência autofágica da autoconsciência, esvaziando a existência através de sua reificação, que sequer se torna possível uma tal reflexão sombria, da qual resta, então, após expurgarmos da ontologia qualquer vestígio de necessidade coletiva, apenas a solidão poética do indivíduo dessubjetivado, “demitido da metafísica”, como diz Pessanha, condenado à “estranheza do exílio” (2018b, p. 68); o sujeito kafkiano, que teve a espessura de seu ser intramundano esvaziada (p. 70). No lugar da ontologia da substância ou da coisa (topologias do Dentro, ancoradas na familiaridade), Cioran escreve desde uma xenontologia (topologia do Fora, exilada no estranhamento do mundo). E o resultado é uma experiência distópica — cuja única promessa é o florescimento de desertos — ou ainda, a experiência da distopia absoluta, pois atesta o histórico fracasso dos empreendimentos do espírito em seu nível mais fundamental.
A vontade é oprimida, nesse cenário, pela infecção causada por sua imersão em uma terra subjetiva devastada, assombrada por sua incontornável contingência, diante de “horizontes de apoplexia”, pois o único destino da civilização é o desvanecimento, da mesma forma que para o indivíduo é a morte; é a contradição e o desespero humanos elevados a nível metafísico (Cioran, 2022, p. 145).
Rearranjando o argumento, se a distopia é a hiperbolização ficcional de nossos pesadelos, por meio de uma violência estética que visa denunciar e combater a barbárie e advertir contra o ímpeto de moldar o humano em uma forma ideal, Cioran cria uma hiperbolização da própria distopia: produz uma violência estética através de sua poesia em prosa, obcecada com a morte e com a decomposição, que visa denunciar não uma das possibilidades de desfecho da humanidade, mas a condição da própria humanidade, não como conto preventivo contra sua decadência, mas como consciência cínica de sua inevitabilidade. Suas obras aparentam estar anunciando o apocalipse como se fossem epigramas cravados em tumbas dispersas. A sequer existência de seus livros, a insistência de seu discurso, porém (Cioran não parou de escrever até sua morte, aos 84 anos), implicam um método para lidar com essa condição, que ele mesmo indica em seu Breviário (p. 21), nos dando uma sugestão de como experimentar sua obra:
Contra a obsessão da morte, os subterfúgios da esperança, tal como os argumentos da razão, revelam-se ineficazes: a sua insignificância limita-se a exacerbar o apetite de morrer. Para vencer, só existe um “método”: trata-se de vivê-lo até ao fim, de experimentar todas as suas delícias, todos os seus tormentos, e de nada fazer para lhes fugir. Uma obsessão vivida até à saciedade anula-se no seio dos seus próprios excessos. (...) Aquele que não se entregou às voluptuosidades da angústia, que não saboreou, em pensamento, os perigos da sua própria extinção, nem provou as aniquilações cruéis e doces, jamais se curará da obsessão da morte: será sempre atormentado por elas, por lhes ter resistido; ao passo que aquele que, acostumado a uma disciplina do horror, e meditando na sua podridão, se reduziu deliberadamente a cinzas, esse verá a morte no passado – e, ele próprio, será apenas um ressuscitado que não pode mais viver. O seu “método” tê-lo-á curado, tanto da vida como da morte.
Sua obsessão pela decadência tenta conciliar o ímpeto erótico, a paixão ardente pela plasticidade da linguagem com a lucidez negra que vem da consciência funesta de nossa mortalidade. Cioran oferece ao leitor, em experimentações rítmicas (pois há uma musicalidade inegável na sua escrita, manifestados tanto na sua obsessão pela música e pela poesia como únicos registros de engajamento dignos de uma legitimação ontológica, quanto na opção ao mesmo tempo deliberada e impulsiva pelo aforismo, pelos fragmentos mordazes, como que numa espécie de pugilismo lírico), exercícios negativos, paroxismos poéticos: sua obra é uma eloquente exaltação lúgubre que nos convida, através de sua obsessão, a pensar sobre a morte – não só como indivíduos, mas também como civilização e como espécie! Sob a forma de uma experiência estética, busca, pelo êxtase lírico, em uma série de masoquismos tonificantes, viver essa obsessão “até à saciedade”.
Com o pêndulo suspenso no extremo que representa a consumação de nossas formas de existência e a expiação de nossos vocabulários já inanes e ressecados, o verdadeiro agente da transformação não é aquele que se apega aos valores que se esfacelam, não é o utopista que imagina, apesar dos pesares, uma saída inusitada que prometa salvaguardar os modelos aos quais até então insistimos em nos ajustar, e sim aquele que dá o empurrão final, o aceleracionista da obsolescência. Cioran (2022, p. 139) não poderia ser mais claro quanto à sua posição nesse contexto, acompanhando ao vivo o processo irreversível dessas “ruínas-em-formação”:
O erro daqueles que apreendem a decadência é quererem combatê-la quando seria necessário encorajá-la: ao desenvolver-se, ela esgota-se e permite o advento doutras formas. O verdadeiro precursor não é aquele que propõe um sistema quando ninguém o quer, mas sim aquele que precipita o Caos, que é seu agente e turiferário. É comum apregoar dogmas no meio de eras extenuadas em que todos os sonhos de futuro parecem delírios ou imposturas. (...) Mas nós, os descrentes, morremos com os nossos cenários e demasiado cansados para que nos iludamos com os faustos prometidos aos nossos cadáveres...
É isto que implica, para Cioran, a descrição dessa paisagem apocalíptica, estar envolvido com um diagnóstico de distopia absoluta — um compromisso ante-ético, ou seja, anterior à ética e a qualquer dever impessoal. Uma auto-injunção ácida de lucidez, um mantra estoico, um memento mori elevado ao quadrado: viver a morte por uma disciplina do horror, bebendo sua cicuta a doses homeopáticas, não para ficarmos imunes a ela, mas para nos intimarmos dela de tal forma que, infiltrada em nosso sangue, sua presença não será mais sinônima de um acontecimento deslocador, aquele choque desnorteador que abala a estrutura de nossas ilusões, de nossas imersões diárias que tentam negar a morte, cobrir sua face com nossos elaborados e engenhosos panos de fundo, nossos cenários fabricados, nossas redomas consoladoras.
A distopia, para além da ficção (ou mesmo antes dela), como potencial paradigma discursivo, como um vocabulário à altura dos dramas de nosso tempo. Para reafirmar a tese de Rorty: ela é articulada como uma forma interessante de usar a linguagem para redescrever nossa experiência. Cioran transcende o gênero e transforma a distopia em disciplina (suplício estético que quer ensinar às palavras a fragilidade da carne). Seu objetivo é injetar na nossa linguagem, já moribunda, a dose letal de delírio que lhe falta, induzir seu ocaso, desafiando-a e testando seus limites; seu aguilhão é experimentar a linguagem com “essa veemência que dilata as palavras até as fazer estourar” (Cioran, 2022, p. 83).
Essa afronta estética perante a morte, ou mediante ela, como prega Cioran (2022, p. 27-29), é uma tentativa de tornar a escrita uma “exegese da decadência”, o idioma privilegiado de nosso tempo: terapia para decrépitos, ela é a expressão maculada de nossas decepções, catalisadora da amargura capital, exercício catártico que cumpre o papel de nos chafurdar em nosso ódio e em nossa angústia, e erguer-nos mais leves, livres (exorcizados) de um excesso insuportável. (Cioran, 2012)
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1 Licenciado em Filosofia pela Universidade Católica de Santos (UNISANTOS). Email: [email protected]
2 Cioran era um notório insone e falava extensivamente sobre isso em suas obras.
3 Embora Cioran não faça uso do termo “distopia” para descrever suas tendências intelectuais ou os diagnósticos que realiza, o termo é articulado aqui, como se tentou explicar até agora e que se tentará fazer ainda mais claro ao longo do texto, enquanto metáfora útil a fim de compreender o “espírito” de sua obra, por assim dizer, tentando encontrar o denominador comum que atravessa suas leituras históricas, não com o intuito de determinar a “essência” de seu pensamento ou mesmo desvelar o significado intrínseco que Cioran estaria construindo quando fala sobre decomposição. A “encarnação fenomenológica” nomeada anteriormente enquanto princípio hermenêutico adotado neste texto, assume pretensões pragmatistas no sentido que coloca Rorty, enquanto um tipo de leitura antípoda da leitura “metódica” (aquela que, partindo de um conjunto de pressupostos metateóricos, empreende um esforço de interpretação orientado por chaves-de-leitura que antecedem a leitura do texto). A leitura inspirada, como a chama, ao contrário desta última, é aquela que crê que “não existe tal coisa como uma propriedade intrínseca, não-relacional” (Rorty, 1999, p. 135) e que é movida por aquilo que “Kermode, seguindo Valéry, chama de ‘um apetite por poesia’” (p. 145). Toda leitura, seguindo o posicionamento de Rorty, é delimitada pelo feixe de relações que ela privilegia. “Ler textos é uma questão de lê-los à luz de outros textos, pessoas, obsessões, pedaços de informação, ou o que seja, e então ver o que acontece” (p. 144). Disso podemos dizer que usar o termo “distopia” para descrever o trabalho de Cioran não nos deixa mais perto de seu sentido intrínseco do que, por exemplo, nos atermos a uma leitura mais estritamente estruturalista, pois o “pragmatista antiessencialista inspirado” não crê que sequer exista um tal sentido intrínseco a ser desvelado em primeiro lugar. Esta é apenas uma leitura que, com esperança, tenta propor algo interessante e provocador, suficientemente convincente para gerar ou inspirar discussão sobre a obra discutida ou a leitura dela feita.