BLOCKCHAIN E SEUS IMPACTOS ECONÔMICOS: APLICAÇÕES, BENEFÍCIOS E DESAFIOS REGULATÓRIOS
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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.17196306
Thásia Rachell Maia Morais1
RESUMO
Este artigo analisa os impactos econômicos da tecnologia blockchain, abordando sua trajetória desde os fundamentos técnicos e aplicações até os desafios que condicionam sua adoção por empresas e governos. A pesquisa, de natureza qualitativa e descritiva, baseia-se em uma revisão de literatura. Os resultados indicam que, para além das criptomoedas, os princípios de descentralização e imutabilidade da blockchain viabilizam aplicações transformadoras em contratos inteligentes, gestão de proveniência e transparência pública. No âmbito econômico, constata-se um desdobramento paradoxal: em vez de eliminar intermediários, a tecnologia fomentou novos mercados especulativos e novas formas de concentração industrial, como os oligopólios de mineração, ao mesmo tempo que estimulou a reação de autoridades monetárias através do desenvolvimento de Moedas Digitais de Banco Central (CBDCs). A análise revela ainda que a adoção institucional é limitada por barreiras regulatórias significativas, como a ambiguidade jurisdicional, a incerteza sobre a executoriedade de contratos inteligentes e o conflito direto entre a imutabilidade dos dados e as legislações de proteção de dados, como o GDPR. Conclui-se que o futuro da tecnologia aponta para um modelo de hibridização e integração gradual, cuja viabilidade dependerá da construção de marcos regulatórios flexíveis que equilibrem inovação e segurança jurídica.
Palavras-chave: Blockchain. Criptomoedas. Impacto Econômico. Regulamentação. Contratos Inteligentes.
ABSTRACT
This article analyzes the economic impacts of blockchain technology, addressing its trajectory from its technical foundations and applications to the challenges conditioning its adoption by companies and governments. The research, qualitative and descriptive in nature, is based on a literature review to consolidate contemporary debates. The results indicate that, beyond cryptocurrencies, blockchain's principles of decentralization and immutability enable transformative applications in smart contracts, provenance management, and public transparency. In the economic sphere, a paradoxical development is noted: instead of eliminating intermediaries, the technology has fostered new speculative markets and new forms of industrial concentration, such as mining oligopolies, while also stimulating a reaction from monetary authorities through the development of Central Bank Digital Currencies (CBDCs). The analysis further reveals that institutional adoption is limited by significant regulatory barriers, including jurisdictional ambiguity, uncertainty regarding the enforceability of smart contracts, and the direct conflict between data immutability and data protection laws, such as the GDPR. It is concluded that the future of the technology points towards a model of gradual hybridization and integration, the viability of which will depend on the construction of flexible regulatory frameworks that balance innovation and legal certainty.
Keywords: Blockchain. Cryptocurrencies. Economic Impact. Regulation. Smart Contracts.
1 INTRODUÇÃO
A tecnologia blockchain representa um paradigma tecnológico disruptivo, cuja gênese remonta à publicação do artigo sobre o Bitcoin por um autor sob o pseudônimo de Satoshi Nakamoto, Nakamoto (2008). Concebida inicialmente para viabilizar um sistema de transações financeiras peer-to-peer sem a necessidade de intermediários, a blockchain transcendeu rapidamente sua aplicação original. Seus atributos intrínsecos de descentralização, imutabilidade e segurança criptográfica despertaram o interesse de múltiplos setores, que vislumbraram na tecnologia um potencial para redefinir processos em áreas como logística, saúde, gestão de identidade e administração pública, promovendo maior eficiência e transparência, de acordo com Alves et al. (2024).
Apesar do otimismo, a transição da blockchain de um conceito inovador para uma ferramenta institucionalmente adotada tem se mostrado complexa e multifacetada. A evolução das criptomoedas, por exemplo, demonstrou que, em vez de se consolidarem primariamente como meio de troca, tornaram-se ativos de alta volatilidade e objeto de intensa especulação, dando origem a novos mercados financeiros e reconfigurando estruturas industriais de maneira imprevista, segundo Mattos (2020). Simultaneamente, a natureza descentralizada e global da tecnologia suscita debates e desafios significativos para os arcabouços jurídicos e regulatórios existentes, que não foram desenhados para governar interações em um ambiente sem uma autoridade central, criando um cenário de incerteza que dificulta sua adoção em larga escala.
Nesse cenário, a presente pesquisa tem como objetivo discutir os impactos econômicos da tecnologia blockchain, analisando sua trajetória desde os fundamentos técnicos até as barreiras que hoje condicionam sua plena implementação por empresas e governos. Para tanto, este estudo se organiza em três eixos centrais de investigação. Primeiramente, explora os conceitos fundamentais da tecnologia e suas aplicações nos negócios digitais. Em seguida, analisa seus efeitos sobre a economia, com foco na criação de novos mercados e no impacto sobre emprego e renda. Por fim, examina os principais desafios regulatórios e institucionais que se impõem como obstáculos à sua adoção. Para atingir tal propósito, adotou-se como procedimento metodológico a revisão de literatura, buscando consolidar os debates e oferecer uma análise integrada sobre as promessas e os desafios da blockchain na atualidade.
Esta pesquisa é de natureza qualitativa, com abordagem descritiva, fundamentada em revisão bibliográfica. Segundo Gil (2008), a revisão de literatura consiste na análise sistemática de publicações já existentes sobre determinado fenômeno, permitindo a construção de uma base teórica consolidada e a ampliação do conhecimento sobre o tema investigado.
O objetivo central deste estudo é analisar os impactos econômicos da tecnologia blockchain em contextos institucionais e de mercado, considerando sua aplicação nos negócios digitais, os efeitos sobre emprego e renda, e os desafios para sua regulamentação e adoção por governos e empresas. Para tanto, foram realizadas buscas em bases de dados como Scopus, Scielo e Google Acadêmico, utilizando como termos-chave em português e inglês: blockchain technology, cryptocurrency regulation, economic impact of blockchain, employment and digital economy, regulatory barriers, smart contracts e institutional adoption of blockchain.
A seleção dos textos priorizou artigos e relatórios institucionais que tratam das implicações técnicas, econômicas e jurídicas da tecnologia. O processo de análise seguiu três etapas: (1) leitura exploratória para identificação das publicações mais relevantes; (2) leitura seletiva para delimitação dos materiais diretamente relacionados aos eixos temáticos do estudo; e (3) interpretação crítica, com destaque para convergências e tensões teóricas nos debates contemporâneos.
As contribuições extraídas foram organizadas de modo a sustentar os três eixos principais da investigação: (1) fundamentos técnicos e aplicações da tecnologia blockchain nos negócios digitais; (2) seus impactos econômicos, com foco em emprego, renda e surgimento de novos mercados; e (3) os desafios regulatórios e institucionais que dificultam sua adoção plena por governos e empresas. O encadeamento entre os tópicos permitem uma análise integrada, contemplando tanto os benefícios quanto os obstáculos relacionados à tecnologia.
2 FUNDAMENTOS DA TECNOLOGIA BLOCKCHAIN E SUA APLICAÇÃO NOS NEGÓCIOS DIGITAIS.
Com base em uma arquitetura distribuída e descentralizada, a tecnologia blockchain emergiu como um paradigma para o registro de transações de forma que estas não possam ser alteradas retroativamente, garantindo assim a imutabilidade do registro. Para Nakamoto (2008), a sua concepção, intrinsecamente ligada ao surgimento das criptomoedas através do modelo proposto para o Bitcoin, representa uma evolução frente aos modelos de processamento de transações tradicionais. Enquanto arquiteturas centralizadas, como os mainframes dos anos 60 e 70, e o posterior modelo cliente/servidor, concentravam o controle e o processamento de dados em uma única entidade, gerando dependência e riscos de segurança. De acordo com Alves et al. (2024), a blockchain propõe uma alternativa na qual a confiabilidade e a auditabilidade são garantidas por um controle descentralizado.
A arquitetura fundamental da blockchain pode ser compreendida como um livro-razão público, mantido pela cooperação e interação de nós em uma rede, eliminando a necessidade de uma autoridade central, como uma instituição bancária, para o processamento de transações. Essa rede opera tipicamente sob o modelo peer-to-peer, no qual os nós atuam simultaneamente como clientes e servidores, compartilhando responsabilidades para alcançar um objetivo comum, segundo Tanenbaum (2010). A comunicação e o compartilhamento de dados sobre as transações são frequentemente realizados por meio de uma técnica de inundação da rede, conhecida como flooding, que, embora possa impactar a performance, assegura a transparência ao garantir que todos os nós recebam as informações das operações ocorridas.
A unidade de dados basilar desta tecnologia é o bloco, uma estrutura de dados que armazena um conjunto de transações. Segundo Xu et al. (2016), a blockchain consiste em uma lista ordenada de blocos que reúnem as informações das transações. Para assegurar a unicidade e a rastreabilidade histórica, cada bloco contém um identificador único (hash) e o hash de seu bloco anterior, formando assim uma cadeia de blocos interligados. Somado a isso, a inclusão de um timestamp, que registra a data e a hora da criação do bloco, dificulta a manipulação da cadeia por um agente mal-intencionado.
A integridade e a segurança da rede são sustentadas por mecanismos de consenso, que são protocolos utilizados para alcançar um acordo entre os nós sobre qual bloco será adicionado à cadeia. O Proof of Work (PoW), utilizado pelo Bitcoin, baseia-se na resolução de problemas matemáticos complexos, um processo denominado mineração, que demanda um elevado gasto de poder computacional e energia, de acordo com Nakamoto (2008). Os mineradores que primeiro solucionam o problema são recompensados. Para Alves et al. (2024), este mecanismo, embora oneroso, torna fraudes extremamente difíceis, pois um ataque exigiria o controle de mais de 51% do poder computacional da rede, um cenário atualmente impraticável e financeiramente desvantajoso para os mineradores. Segundo Zheng et al. (2016), como alternativa ao alto consumo energético do PoW, o Proof of Stake (PoS) propõe que o criador de um novo bloco seja escolhido de forma determinística, com base em sua participação ou "riqueza" (stake) no sistema.
A tecnologia permite ainda diferentes níveis de acesso e permissão, podendo ser classificada como pública, privada ou híbrida. Uma blockchain pública, como a do Bitcoin, permite que qualquer usuário participe do processo de consenso. Já em uma blockchain privada, o acesso e a participação são restritos a um grupo pré-definido, sendo útil para cenários que envolvem informações sensíveis ao negócio. A blockchain híbrida, por sua vez, combina características de ambas, permitindo, por exemplo, que um consórcio de organizações compartilhe o controle da rede, mas disponibilize o acesso para consulta ao público.
A aplicação inaugural e mais conhecida da tecnologia blockchain são as criptomoedas, ativos digitais que permitem a transferência de valores sem intermediários. O Bitcoin, como projeto pioneiro, demonstrou a viabilidade de um sistema de caixa eletrônico peer-to-peer, segundo Nakamoto (2008). A popularidade desses ativos digitais é impulsionada por fatores como a liberdade para realizar transações internacionais com taxas reduzidas, a ausência de uma entidade reguladora central e, em muitos casos, uma natureza deflacionária, como a do Bitcoin, que possui um limite de 21 milhões de moedas a serem mineradas.
Para além das moedas digitais, a tecnologia blockchain viabilizou a implementação dos contratos inteligentes (smart contracts). O conceito, proposto originalmente por Nick Szabo em 1994, foi materializado com a criação da plataforma Ethereum, de acordo com Buterin (2014). Um contrato inteligente pode ser definido como um código autoexecutável, armazenado e replicado na blockchain, que executa automaticamente os termos de um acordo quando condições predefinidas são satisfeitas. Sua natureza imutável e a ausência de ambiguidade - visto que o código é interpretado pela máquina - oferecem uma forma de automatizar e garantir relações contratuais com maior segurança e sem a necessidade de intermediários.
As possibilidades de aplicação transcendem o setor financeiro e os acordos contratuais. Na gestão de identidade, a blockchain pode ser utilizada para criar um repositório de dados único e criptografado para cidadãos, onde a validação da identidade poderia ser feita por meio de uma chave privada, reduzindo a vulnerabilidade associada à centralização de dados em múltiplos serviços. Outra aplicação de grande valor para os negócios é a gestão de proveniência, que permite rastrear um produto ao longo de toda a sua cadeia produtiva. O projeto Everledger, que registra as etapas de produção de diamantes em uma blockchain, exemplifica como essa abordagem pode ser usada para garantir a autenticidade e combater a falsificação de produtos, fornecendo ao consumidor final um registro imutável de sua origem.
No setor público, a transparência inerente à tecnologia pode ser empregada para o monitoramento de gastos governamentais, permitindo que a sociedade audite o fluxo de recursos públicos, desde a arrecadação de impostos até sua aplicação final. Segundo Alves et al. (2024), o governo da Suécia, tem experimentado o uso de uma blockchain privada para o registro de propriedades, visando conferir maior agilidade e reduzir o risco de fraudes no processo. Essas aplicações demonstram o potencial disruptivo da blockchain para agregar eficiência, segurança e transparência a diversas áreas de negócio, redefinindo a maneira como as transações e os acordos são realizados na era digital.
3 BLOCKCHAIN, CRIPTOMOEDAS E O IMPACTO ECONÔMICO: EMPREGO, RENDA E NOVOS MERCADOS.
A gênese das criptomoedas, em particular do Bitcoin, foi fundamentada em um ideal de contestação ao sistema monetário tradicional, buscando contornar a regulação e a supervisão governamental por meio da criptografia, de acordo com May (1992). Para Mattos et al. (2020), a proposta de um sistema de pagamentos descentralizado e peer-to-peer, operando sobre uma tecnologia de registros distribuídos (Distributed Ledger Technology - DLT), visava retirar o controle da moeda das mãos de bancos e autoridades monetárias. Contudo, a evolução desses instrumentos ao longo da última década não resultou na substituição da moeda fiduciária, mas sim na geração de novos mercados, na reconfiguração de estruturas industriais e na imposição de desafios inéditos às próprias autoridades monetárias, com significativos impactos econômicos.
Apesar de sua concepção como meio de troca, o comportamento do Bitcoin assemelha-se muito mais ao de um ativo especulativo altamente volátil, caracterizado por valorizações abruptas e intensas variações diárias em sua cotação. Essa instabilidade intrínseca compromete sua função como reserva de valor e unidade de conta, afastando-o do conceito de moeda em uma economia capitalista contemporânea. A demanda por tais ativos é sustentada quase que exclusivamente pela perspectiva de valorização futura, o que fomentou a criação da maior bolha especulativa da história em 2017. Sob uma ótica keynesiana, a retenção de riqueza em ativos puramente especulativos pode subtrair a demanda por ativos reprodutíveis, que são efetivamente os geradores de emprego e renda na economia, segundo Carvalho (1992).
Segundo Mattos et al. (2020), o desenvolvimento do ecossistema de criptomoedas promoveu o surgimento de novas indústrias e intermediários financeiros, gerando novos mercados e formas de renda. A necessidade de converter moedas fiduciárias em criptoativos e vice-versa levou à proliferação de casas de câmbio especializadas, que, ironicamente, reintroduziram uma forma de intermediação e centralização em um sistema que se pretendia desintermediado. De forma ainda mais impactante, o processo de "mineração", essencial para a validação de transações através do mecanismo de proof-of-work, tornou-se progressivamente mais difícil e intensivo em energia para controlar a oferta de novas moedas. Esse aumento exponencial do custo energético restringiu a entrada de novos mineradores e estimulou a formação de um oligopólio no setor, controlado por grandes empresas de tecnologia, como a chinesa Bitmain, que chegou a deter uma parcela significativa da capacidade de processamento da rede Bitcoin. Assim, o oligopólio bancário, alvo original das críticas dos desenvolvedores de criptomoedas, foi substituído por um oligopólio tecnológico.
Longe de permanecer um sistema isolado, o mercado de criptoativos tem sido progressivamente integrado às finanças tradicionais, expandindo seu impacto econômico. Um marco dessa integração foi o lançamento de contratos futuros e de opção de Bitcoin pela Bolsa de Mercadorias de Chicago (CME Group), o que legitimou as criptomoedas como uma nova classe de ativos passíveis de derivativos sofisticados e atraiu investidores institucionais. Adicionalmente, em cenários de instabilidade econômica aguda, como a crise bancária no Chipre, os criptoativos foram utilizados como um mecanismo de fuga por depositários que buscavam proteger seu capital, evidenciando seu potencial como uma via financeira alternativa, ainda que de alto risco, de acordo com Chuen (2015).
Talvez o impacto econômico mais profundo das criptomoedas não resida em suas operações privadas, mas na reação que provocaram junto às autoridades monetárias globais. A desconfiança gerada pela crise de 2008, somada ao surgimento de moedas digitais descentralizadas, levou os Bancos Centrais a investigarem ativamente a tecnologia DLT e a prospectarem a emissão de suas próprias moedas digitais, as chamadas Central Bank Digital Currencies (CBDCs). Iniciativas como o "Projeto Jasper" do Banco do Canadá, que testou uma moeda digital interbancária (a CAD-coin), e propostas teóricas como o "Fedcoin" para o varejo, demonstram um movimento de apropriação da tecnologia. Mattos et al. (2020), defende que nesse novo modelo, o Estado retém o controle central da emissão e garante a soberania monetária, mas utiliza a criptografia e a arquitetura peer-to-peer para modernizar o sistema de pagamentos, o que poderia, no futuro, impactar diretamente a condução e a eficácia da política monetária.
4 DESAFIOS RAGULATÓRIOS E BARREIRAS PARA A ADOÇÃO INSTITUCIONAL DA BLOCKCHAIN.
A integração da tecnologia blockchain em sistemas institucionais e comerciais é marcada por um paradoxo: ao mesmo tempo que oferece soluções para transparência, segurança e descentralização, sua adoção em larga escala é significativamente restringida por uma complexa teia de desafios legais e regulatórios. A natureza descentralizada e transfronteiriça da tecnologia desafia as estruturas jurídicas tradicionais, que foram desenhadas para um mundo centralizado e com fronteiras bem definidas. Consequentemente, a ausência de marcos regulatórios claros e harmonizados representa uma das principais barreiras para a adoção institucional, gerando incertezas que desestimulam investimentos e a implementação de soluções em escala, para Tostes (2019).
Um dos desafios regulatórios mais fundamentais reside na ambiguidade jurisdicional e no consequente conflito de leis. Em transações que atravessam múltiplas fronteiras de forma digital e sem intermediários, torna-se intrincado determinar qual sistema legal é aplicável, criando um vácuo de segurança jurídica. Somado a isso, há a questão da admissibilidade legal das evidências baseadas em blockchain. De acordo com Berto & Spring (2019), embora os registros na blockchain sejam, por concepção, à prova de adulteração, a sua aceitação em processos judiciais ainda é um campo incipiente, dificultada pela falta de precedentes e padrões legais bem definidos que permitam aos juízes aferir sua autenticidade e confiabilidade. Sem diretrizes claras, o potencial da blockchain como uma fonte de prova segura permanece subutilizado no âmbito legal.
Os autores Raskin (2016) e Suff (1997) defendem que a aplicabilidade dos contratos inteligentes (smart contracts) constitui outra barreira crítica. Tais contratos, que se autoexecutam com base em regras predefinidas em código, podem não se alinhar aos conceitos jurídicos tradicionais de formação de um contrato, como oferta, aceitação e consideração. De acordo com Zhuk (2025), embora algumas jurisdições, como Estados Unidos, Reino Unido e Singapura, já tenham começado a desenvolver arcabouços legais para reconhecer sua validade e executoriedade, a falta de uma abordagem global harmonizada cria um ambiente regulatório fragmentado que dificulta sua utilização em transações internacionais.
As questões de conformidade e proteção de dados impõem barreiras institucionais igualmente severas. A natureza pseudônima das transações em blockchain representa um desafio direto para a implementação de regulamentações de Prevenção à Lavagem de Dinheiro (AML) e Conheça seu Cliente (KYC), que são cruciais para o setor financeiro. Talvez o conflito mais notório seja entre a característica de imutabilidade da blockchain e as leis de proteção de dados, como o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (GDPR) da União Europeia. O direito ao esquecimento (ou direito à exclusão), um pilar do GDPR, colide diretamente com a impossibilidade técnica de apagar dados de um bloco uma vez que ele tenha sido adicionado à cadeia, criando um dilema de conformidade para as organizações, segundo Schellinger et al. (2022).
Além dos obstáculos puramente legais, existem barreiras estruturais e técnicas. A governança de sistemas descentralizados é um desafio complexo, que exige um equilíbrio delicado entre a descentralização, que garante a segurança e a ausência de um ponto único de falha, e um certo grau de centralização, necessário para a tomada de decisões e a eficiência operacional, de acordo com Böhme et al. (2015). A falta de interoperabilidade, ou seja, de um padrão comum que permita a comunicação entre diferentes redes de blockchain, fragmenta o ecossistema e impede a criação de aplicações mais robustas e interconectadas. Por fim, barreiras como o alto custo de desenvolvimento, a limitada escalabilidade de transações por segundo em muitas redes e o elevado consumo de energia de alguns mecanismos de consenso, como o Proof of Work, representam impedimentos práticos e de sustentabilidade para a adoção em larga escala.
Para superar esses desafios, a abordagem regulatória tem se inclinado para a criação de ambientes controlados de teste, como os sandboxes regulatórios, que permitem às empresas inovar enquanto os legisladores estudam os impactos da tecnologia. A premissa é que a regulamentação não deve incidir sobre a tecnologia em si, mas sobre o seu ecossistema de aplicações, buscando um equilíbrio que ofereça segurança jurídica sem sufocar a inovação. Essa abordagem, no entanto, exige um esforço colaborativo e contínuo entre especialistas do setor, legisladores e a academia para desenvolver marcos regulatórios flexíveis e informados, capazes de acompanhar a rápida evolução da blockchain e destravar seu potencial transformador, segundo Tostes (2019).
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente pesquisa buscou analisar a trajetória da tecnologia blockchain desde sua concepção, explorando seus fundamentos técnicos, suas aplicações e, sobretudo, seus complexos impactos na esfera econômica e regulatória. A análise demonstrou que, partindo de um ideal de disrupção do sistema financeiro tradicional, a blockchain evoluiu para um paradigma tecnológico com potencial para redefinir uma vasta gama de setores. Seus alicerces, baseados na descentralização, imutabilidade e segurança criptográfica, de fato viabilizaram aplicações inovadoras que vão desde as criptomoedas e contratos inteligentes até sistemas de gestão de identidade, proveniência e transparência pública, evidenciando sua versatilidade e capacidade de agregar eficiência e confiança aos processos.
Contudo, o estudo revelou que a jornada da blockchain é marcada por um profundo paradoxo. As mesmas características que a tornam revolucionária são a fonte de seus maiores desafios. No campo econômico, a promessa de um sistema de pagamentos desintermediado deu lugar à emergência de novos intermediários, como as casas de câmbio, e à formação de novas estruturas de poder centralizado, como os oligopólios de mineração. A natureza de suas implementações mais notórias, como o Bitcoin, desviou-se para a esfera da especulação de ativos voláteis, suscitando a reação das próprias autoridades monetárias que, por meio das CBDCs, buscam agora internalizar e controlar a inovação.
No âmbito jurídico e institucional, a tensão é igualmente evidente. A ausência de uma autoridade central colide com a necessidade de definição de jurisdição e de mecanismos para a resolução de conflitos. A imutabilidade dos registros, um pilar de sua segurança, cria um impasse com direitos fundamentais, como a proteção de dados e o direito ao esquecimento. A falta de interoperabilidade, os custos de implementação e as preocupações com a sustentabilidade energética somam-se às barreiras que impedem uma adoção mais ampla e sistêmica. Diante disso, conclui-se que o futuro da blockchain não reside em uma substituição abrupta dos sistemas legados, mas em um processo gradual de integração e hibridização, no qual seus benefícios são aproveitados de forma pragmática. A superação dos desafios identificados dependerá, fundamentalmente, de um esforço colaborativo contínuo entre desenvolvedores, empresas, governos e a academia, a fim de construir marcos regulatórios flexíveis e inteligentes, como os sandboxes, que fomentem a inovação ao mesmo tempo que oferecem a segurança jurídica necessária para a consolidação desta que é uma das mais promissoras tecnologias do século XXI.
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1 Enfermagem. Psicopedagogia e Neurociências. Mestranda em Administração pela Must University. [email protected]