A EFETIVIDADE DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NO BRASIL: AVANÇOS E DESAFIOS
PDF: Clique aqui
REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.17196319
Angela Pinto dos Santos1
RESUMO
A violência doméstica configura uma grave violação dos direitos humanos, afetando principalmente meninas e mulheres. Este artigo científico analisa a afetividade das políticas públicas brasileiras destinadas ao enfrentamento da violência doméstica, considerando avanços e persistentes desafios. Para tanto, adota-se metodologia qualitativa, descritiva e exploratória, com revisão bibliográfica sistemática e análise crítica de dados secundários. O objetivo é verificar em que medida as políticas públicas implementadas lograram êxito em reduzir a violência, proteger as vítimas e promover transformações sociais. O estudo evidencia que, embora haja inovações legislativas e institucionais relevantes, subsistem dificuldades estruturais, culturais e operacionais que comprometem a plena eficácia das medidas adotadas.
Palavras-chave: Políticas Públicas. Violência Doméstica. Direitos Humanos, efetividade. Brasil.
ABSTRACT
Domestic violence constitutes a serious human rights violation, primarily affecting girls and women. This scientific article analyzes the effectiveness of Brazilian public policies aimed at addressing domestic violence, considering both progress and persistent challenges. To this end, a qualitative, descriptive, and exploratory methodology is adopted, with a systematic literature review and critical analysis of secondary data. The objective is to determine the extent to which implemented public policies have been successful in reducing violence, protecting victims, and promoting social transformation. The study highlights that, although there are significant legislative and institutional innovations, structural, cultural, and operational challenges remain that compromise the full effectiveness of the measures adopted.
Keywords: Public Policies. Domestic Violence. Human Rights, Effectiveness. Brazil.
INTRODUÇÃO
A violência doméstica, em especial aquela praticada contra meninas e mulheres, constitui uma das mais graves e persistentes violações dos direitos humanos nas sociedades contemporâneas. Refletindo desigualdades de gênero profundamente enraizadas, esse tipo de violência manifesta-se de forma recorrente em múltiplos contextos sociais e culturais, sendo marcada por relações de poder e dominação historicamente naturalizadas. No Brasil, o enfrentamento à violência doméstica ganhou visibilidade institucional a partir da promulgação da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), considerada um marco jurídico no combate à violência de gênero. Posteriormente, a criação de novos instrumentos legais, como a Lei do Feminicídio (Lei nº 13.104/2015), reforçou o compromisso do Estado brasileiro com a proteção das mulheres e com a responsabilização dos agressores.
Apesar desses avanços legislativos, os dados estatísticos continuam a revelar um cenário alarmante de agressões, feminicídios e reincidência de casos de violência, evidenciando uma distância significativa entre o arcabouço jurídico-institucional e a realidade vivida pelas vítimas. Essa situação suscita questões relevantes: até que ponto as políticas públicas têm sido eficazes na redução da violência doméstica? Quais barreiras estruturais, culturais e operacionais ainda impedem a implementação plena das medidas previstas em lei? Tais questionamentos constituem o ponto de partida desta pesquisa e demonstram a urgência em aprofundar a análise sobre os mecanismos de enfrentamento à violência doméstica.
O interesse por este tema é motivado pela sua relevância social e pelo crescente volume de estudos que discutem os desafios da implementação de políticas públicas nesse campo. Autoras como Heleieth Saffioti (2004) e Eliane Junqueira (2011) contribuem com reflexões fundamentais sobre as múltiplas dimensões do problema, apontando limites e possibilidades das políticas públicas adotadas até o momento. Esses referenciais teóricos sustentam a base analítica deste artigo e orientam a avaliação crítica das ações desenvolvidas pelos diversos entes federativos no Brasil.
Assim, o objetivo central deste artigo é analisar a efetividade das políticas públicas de enfrentamento à violência doméstica no Brasil, no período compreendido entre 2006 e 2024. Pretende-se avaliar o impacto dessas ações na redução da violência, na proteção das vítimas e na promoção de mudanças sociais duradouras, bem como identificar entraves que dificultam sua plena implementação. Com isso, busca-se contribuir para o avanço do conhecimento acadêmico sobre a temática da violência de gênero e para o aperfeiçoamento das práticas institucionais voltadas à garantia dos direitos das mulheres.
A metodologia adotada neste estudo é qualitativa, de natureza exploratória e descritiva. A escolha por essa abordagem se justifica pela complexidade do fenômeno da violência doméstica, que envolve múltiplas dimensões sociais, jurídicas, psicológicas e culturais. O recorte temporal vai de 2006 (promulgação da Lei Maria da Penha) a 2024, contemplando as principais políticas públicas no âmbito federal, estadual e municipal. A análise se restringe ao contexto brasileiro, sem pretensão de comparação internacional.
DESENVOLVIMENTO
A violência de gênero, especialmente a violência doméstica, é um fenômeno histórico que atravessa gerações e culturas, refletindo padrões de dominação e desigualdade entre homens e mulheres. No Brasil, heranças coloniais, patriarcais e machistas consolidaram uma cultura em que a violência contra a mulher foi, por muito tempo, naturalizada e legitimada dentro do espaço privado, especialmente no âmbito familiar. Durante séculos, a agressão contra as meninas e mulheres foi tratada como uma questão de foro íntimo, sem intervenção do Estado ou da sociedade civil.
A legislação brasileira, até meados do século XX, refletia essa lógica de invisibilidade: dispositivos legais permitiam, por exemplo, que o “padrão de honra” justificasse crimes cometidos contra mulheres, evidenciando a tolerância institucionalizada à violência. O Código Penal de 1940, embora tenha trazido avanços em algumas áreas, ainda reproduziu estereótipos de gênero e manteve uma proteção jurídica insuficiente à dignidade feminina.
A naturalização da violência de gênero contribuiu para sua subnotificação e para a perpetuação de um ciclo de silêncio e impunidade. As vítimas eram frequentemente culpabilizadas, e a cultura patriarcal impunha barreiras morais e sociais ao reconhecimento da violência como problema público. A esfera privada, tradicionalmente considerada impenetrável às normas estatais, servia de escudo para práticas de abuso físico, psicológico, sexual e econômico contra as mulheres.
Somente a partir das últimas décadas do século XX a violência doméstica começou a ser reconhecida como uma questão social relevante, exigindo intervenção pública e políticas específicas. Esse movimento foi impulsionado, principalmente, pela atuação dos movimentos feministas e de organizações de direitos humanos.
Os movimentos feministas tiveram papel fundamental na denúncia da violência doméstica e na construção de um novo entendimento sobre a cidadania das mulheres. Desde as décadas de 1970 e 1980, coletivos feministas no Brasil começaram a romper o silêncio em torno da violência de gênero, organizando campanhas, seminários e redes de apoio às vítimas.
O slogan "o pessoal é político", amplamente difundido pelos movimentos feministas, sintetizou a ideia de que a violência doméstica não era apenas um problema individual ou familiar, mas uma manifestação estrutural das desigualdades de poder entre homens e mulheres. A partir dessa perspectiva, a luta feminista visou deslocar a violência doméstica do âmbito privado para o debate público, exigindo a responsabilização do Estado.
O papel dos movimentos feministas também foi crucial na internacionalização da pauta da violência de gênero. A participação do Brasil em conferências internacionais, como a Conferência Mundial sobre as Mulheres em Pequim (1995), contribuiu para a incorporação de diretrizes globais de proteção dos direitos das meninas e mulheres nas políticas públicas nacionais.
Sem a ação contínua e estratégica dos movimentos feministas, a violência doméstica provavelmente teria permanecido na invisibilidade. A luta feminista foi e continua sendo decisiva para transformar a violência de gênero de um problema social oculto em uma questão de direitos humanos prioritária, demandando políticas públicas eficazes, integradas e sustentáveis.
Como resultado dessas mobilizações, surgiram os primeiros serviços especializados de atendimento a mulheres em situação de violência, como delegacias da mulher e casas de abrigo, bem como programas de conscientização e educação para a igualdade de gênero. Esses avanços culminaram em importantes conquistas legislativas, como a aprovação da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), reconhecida como um marco jurídico no enfrentamento da violência doméstica no Brasil.
A promulgação da Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, representou um divisor de águas no enfrentamento da violência doméstica e familiar contra as meninas e mulheres no Brasil. Reconhecida internacionalmente como uma das legislações mais avançadas do mundo na proteção dos direitos das meninas e mulheres, a lei introduziu uma série de inovações jurídicas que transformaram a abordagem estatal da violência de gênero.
Entre os principais avanços da Lei Maria da Penha, destacam-se a definição ampliada de violência doméstica, abrangendo não apenas a violência física, mas também a psicológica, sexual, patrimonial e moral. Além disso, a lei estabeleceu medidas protetivas de urgência que podem ser determinadas imediatamente pela autoridade judicial, como a suspensão do porte de armas do agressor, a restrição de contato com a vítima e o afastamento do lar.
Outro aspecto inovador foi a previsão de políticas públicas integradas de prevenção, assistência e reeducação dos agressores, bem como a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, com competência cível e criminal para tratar de forma especializada essas demandas. A lei também rompeu com a exigência da representação da vítima em casos de lesão corporal leve, permitindo a instauração de processo penal mesmo sem a vontade expressa da mulher, em certas situações. A Lei Maria da Penha não apenas ampliou o reconhecimento da violência doméstica como violação de direitos humanos, mas também impôs obrigações claras ao Estado brasileiro no sentido de prevenir, punir e erradicar a violência contra meninas e mulheres.
A aprovação da Lei nº 13.104/2015, que introduziu o feminicídio no rol dos crimes hediondos, constituiu mais um avanço fundamental na luta contra a violência de gênero no Brasil. O feminicídio é definido como o assassinato de meninas e mulheres por razões da condição de gênero, envolvendo situações de violência doméstica e familiar, bem como menosprezo ou discriminação à condição de meninas e mulheres.
A tipificação específica do feminicídio tornou visível a gravidade desse tipo de crime, antes diluído nas estatísticas gerais de homicídio. Mais do que uma mudança terminológica, a lei tem o efeito de induzir transformações culturais e institucionais, ao reconhecer que o assassinato de meninas e mulheres possui raízes profundas nas desigualdades estruturais de gênero.
Além disso, a qualificadora de feminicídio agrava a pena e impõe ao Estado a obrigação de produzir dados desagregados sobre as mortes de mulheres, o que é essencial para a formulação de políticas públicas eficazes. No campo institucional, diversas iniciativas foram implementadas para estruturar o atendimento à mulher em situação de violência, conforme prevê a Lei Maria da Penha e os tratados internacionais de direitos humanos.
As Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAMs), criadas ainda na década de 1980, representam um importante instrumento de acesso à justiça, com atendimento diferenciado e servidores capacitados para lidar com a complexidade da violência de gênero. No entanto, sua implementação ainda é desigual entre os estados brasileiros, o que demanda contínuo investimento público.
A criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar, juntamente com a Casa da Mulher Brasileira (CMB) e os Centros de Referência de Atendimento à Mulher (CRMB), representa um avanço significativo no enfrentamento à violência de gênero, ao oferecer respostas especializadas e integradas, por meio de uma abordagem intersetorial que articula proteção, prevenção e promoção da autonomia das vítimas. Apesar de o Brasil contar atualmente com 11 Casas da Mulher Brasileira (CMB) e 13 Centros de Referência da Mulher Brasileira (CRMB), essas estruturas ainda se mostram ineficazes por não funcionarem em sua totalidade. Na prática, muitos desses espaços acabam sendo utilizados mais como vitrine política do que como instrumentos efetivos de enfrentamento à violência de gênero. A inauguração desses equipamentos, em diversos casos, tem servido principalmente para promover a imagem de parlamentares que destinam emendas ao setor, utilizando a pauta da violência contra meninas e mulheres como capital político, sem garantir a sustentabilidade e operacionalidade contínua dos serviços (SILVA, 2022).
As campanhas de conscientização e os canais de denúncia também se tornaram ferramentas centrais na luta contra a violência de gênero. O Disque 180, canal de atendimento criado pela Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres, funciona como um serviço gratuito e confidencial para receber denúncias, orientar as vítimas e encaminhá-las para a rede de proteção.
Outra iniciativa relevante foi a campanha "Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica", lançada em 2020, que orienta mulheres a sinalizarem pedidos de socorro em farmácias e estabelecimentos parceiros por meio de um "X" desenhado na palma da mão. Essa campanha inovadora demonstrou a importância de alternativas discretas para denúncia, especialmente durante a pandemia de Covid-19, que agravou o cenário de violência doméstica. Além dessas ações, programas educativos, como o Programa Mulher, Viver sem Violência, visam sensibilizar a sociedade para a igualdade de gênero e promover mudanças culturais necessárias para a erradicação da violência.
A avaliação da efetividade das políticas públicas de enfrentamento à violência doméstica no Brasil revela um cenário complexo e desafiador. Apesar dos avanços legislativos e institucionais, os dados apontam que os índices de violência contra as meninas e mulheres continuam alarmantes.
Em 2022, o Brasil registrou mais de 245 mil casos de lesão corporal dolosa contra meninas e mulheres no contexto doméstico, o que representa uma média de 28 vítimas por hora. Embora a Lei Maria da Penha tenha aumentado significativamente a visibilidade e a denúncia da violência, ainda persiste uma subnotificação preocupante, dificultando a mensuração precisa do impacto das políticas.
A morosidade do sistema de justiça brasileiro é um dos principais entraves à efetividade das políticas públicas de proteção às meninas e mulheres. Embora a Lei Maria da Penha tenha criado mecanismos para acelerar a concessão de medidas protetivas de urgência, estudos mostram que o tempo médio de concessão ainda é incompatível com a necessidade de respostas imediatas.
Uma pesquisa recente revelou que, em muitos tribunais estaduais, a concessão de medidas protetivas pode demorar entre 48 e 72 horas, tempo considerado crítico para a integridade física e emocional da vítima. Ademais, a carência de varas especializadas e de servidores capacitados contribui para atrasos no julgamento de processos e para a revitimização da mulher no percurso judicial.
A celeridade na tramitação processual e a eficácia na execução das medidas de proteção são fatores fundamentais para garantir a confiança das mulheres no sistema de justiça e sua disposição em denunciar a violência. As medidas protetivas de urgência, previstas na Lei Maria da Penha, representam um instrumento central na proteção das vítimas de violência doméstica. Elas incluem o afastamento do agressor, a proibição de contato com a vítima e seus familiares, e a proteção de bens patrimoniais da mulher. As medidas protetivas de urgência, quando aplicadas de forma eficaz e acompanhadas de fiscalização adequada, têm potencial para interromper o ciclo de violência doméstica.
Quando mencionamos as barreiras estruturais que dizem respeito à organização e ao funcionamento das instituições encarregadas da execução das políticas públicas de proteção às mulheres. A insuficiência de recursos financeiros e humanos constitui uma das principais limitações observadas no sistema de atendimento às vítimas. Em diversas situações, a escassez de profissionais qualificados e a sobrecarga de trabalho enfrentada por delegacias, casas de acolhimento e centros de apoio comprometem significativamente a qualidade e a celeridade no atendimento às mulheres em situação de violência. Soma-se a isso a fragmentação dos serviços disponíveis, evidenciada na ausência de articulação entre os sistemas de saúde, segurança e justiça, o que impede uma resposta integrada e eficiente, resultando em atendimentos descoordenados e, por vezes, ineficazes.
Apesar dos avanços legislativos representados por dispositivos como a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio, a efetividade dessas normas segue limitada por entraves de natureza estrutural, cultural e operacional. Esses entraves dificultam a implementação abrangente das medidas previstas em lei, revelando a complexidade do enfrentamento à violência de gênero e a urgência de uma análise mais aprofundada dos obstáculos existentes.
A dificuldade em garantir a presença e a atuação de serviços especializados em todo o território nacional é outro fator de destaque. Enquanto os grandes centros urbanos contam com maior disponibilidade de recursos e serviços específicos, regiões periféricas e áreas rurais enfrentam obstáculos logísticos e distâncias significativas, que comprometem o acesso das mulheres à rede de proteção. Tal disparidade acentua a desigualdade no acesso à justiça e à segurança, contribuindo para a continuidade do ciclo de violência e dificultando a aplicação das políticas públicas de maneira equânime.
No campo cultural, a violência contra a mulher encontra raízes profundas em normas sociais, padrões de gênero e práticas machistas amplamente disseminadas na sociedade brasileira. A naturalização da violência no âmbito doméstico, frequentemente compreendida como um problema de cunho privado, e a manutenção de estruturas patriarcais que colocam meninas e mulheres em posição de subordinação dentro da família e da sociedade configuram barreiras significativas à superação desse tipo de violência. Tais fatores contribuem para a perpetuação de comportamentos abusivos e dificultam a eficácia das medidas institucionais de proteção.
Adicionalmente, o estigma social imposto às vítimas de violência doméstica atua como um mecanismo de silenciamento. Medo, vergonha, dependência financeira ou emocional em relação ao agressor e a internalização da violência como algo corriqueiro e aceitável fazem com que muitas mulheres hesitem em denunciar. Esses elementos dificultam não apenas o reconhecimento da violência como um fenômeno social, mas também a adesão das vítimas às políticas públicas disponíveis para sua proteção.
A construção sociocultural que atribui à mulher o papel de mantenedora da unidade familiar também se apresenta como um entrave. Esse ideal reforça sentimento de culpa e receio em relação à denúncia, levando muitas mulheres a permanecerem em contextos de violência por temerem desestruturar o núcleo familiar ou não encontrarem apoio social.
No que tange às barreiras operacionais, observam-se falhas no cotidiano da implementação das políticas públicas. Entre os principais desafios destacam-se a carência de formação continuada dos profissionais envolvidos no atendimento às vítimas, bem como a ausência de capacitação adequada para lidar com situações de risco, acolhimento psicológico e encaminhamentos apropriados. Ademais, o sistema de investigação e o processo judicial ainda enfrentam morosidade, o que compromete a aplicabilidade e a efetividade da Lei Maria da Penha.
Outro ponto crítico refere-se à fiscalização e ao monitoramento das medidas protetivas de urgência previstas na legislação. Embora o afastamento do agressor e a proibição de contato com a vítima estejam legalmente previstos, a ausência de mecanismos eficazes de acompanhamento como o uso sistemático de tornozeleiras eletrônicas ou a adoção de outras tecnologias de vigilância fragiliza a proteção das mulheres e permite a reincidência de episódios de violência. Estudos indicam que o monitoramento eletrônico pode ser uma ferramenta eficaz para proteger as vítimas, mas enfrenta desafios na interpretação de alguns direitos fundamentais dos agressores e a falta de regulamentação específica aplicada no âmbito da Lei nº 11.340/2006 quanto ao crime de descumprimento de medida protetiva de urgência.
Além disso, a falta de fiscalização eficaz e a morosidade do sistema judiciário fazem com que muitas dessas medidas não sejam cumpridas. Para aumentar a efetividade das medidas protetivas, é fundamental investir em tecnologia e fiscalização. O uso de tornozeleiras eletrônicas para monitoramento de agressores tem se mostrado uma ferramenta eficaz, mas ainda não é amplamente adotado (SANTOS, 2024).
Diante desse panorama, torna-se evidente que a implementação plena das medidas previstas em lei enfrenta obstáculos complexos e interconectados. A articulação entre falhas institucionais e resistências socioculturais demanda uma resposta multidimensional e contínua, que envolva tanto o Estado quanto a sociedade civil. A superação dessas barreiras requer não apenas o fortalecimento das instituições públicas, mas também uma profunda transformação das normas e valores que sustentam a desigualdade de gênero.
A análise sistemática dessas barreiras é essencial para a formulação de estratégias mais eficazes, que extrapolem a mera elaboração de leis e promovam, de fato, um sistema de proteção integral, com garantias reais de segurança, acolhimento e justiça para as vítimas. A responsabilização dos agressores, aliada à desconstrução das práticas machistas e à promoção de uma cultura de igualdade, deve estar no centro das políticas públicas.
Portanto, a investigação dos entraves estruturais, culturais e operacionais representa um passo fundamental para o aprimoramento das políticas de enfrentamento à violência contra as meninas e mulheres. A conjugação de esforços institucionais, legislativos, educativos e sociais é indispensável para assegurar o direito das menina e mulheres a uma vida livre de violência, conforme estabelecido na Constituição Federal de 1988 e nos tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A análise da efetividade das políticas públicas de enfrentamento à violência doméstica no Brasil evidencia um cenário complexo, no qual avanços legislativos e institucionais coexistem com entraves estruturais, administrativos e culturais. Apesar da existência de importantes instrumentos legais, como a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) e a Lei do Feminicídio (Lei nº 13.104/2015), a concretização dos direitos por elas assegurados ainda é comprometida pela ineficácia na implementação de mecanismos de proteção e assistência às vítimas.
No âmbito das políticas públicas, observa-se que iniciativas como a implantação das Casas da Mulher Brasileira (CMB) e dos Centros de Referência da Mulher Brasileira (CRMB) representam avanços em direção a uma rede de atendimento integrada e humanizada. No entanto, o funcionamento incompleto dessas unidades, aliado à frequente instrumentalização política desses espaços, compromete sua efetividade. A falta de recursos financeiros, a descontinuidade de gestão e a ausência de avaliação sistemática também contribuem para a precariedade dos serviços prestados. Muitas dessas unidades têm sido inauguradas mais como estratégia de visibilidade parlamentar do que como resposta real às demandas das mulheres em situação de violência.
Ademais, a fiscalização das medidas protetivas de urgência permanece um dos maiores desafios. Embora legalmente previstas, a sua efetividade está condicionada à existência de mecanismos de monitoramento e de uma rede articulada de atendimento. A falta de aplicação sistemática de tornozeleiras eletrônicas, por exemplo, expõe as vítimas a novos riscos, revelando a fragilidade de um sistema que ainda é reativo e pouco preventivo. A atuação deficiente de alguns órgãos do sistema de justiça, como polícias civis, defensorias e Ministérios Públicos, por vezes desarticulados, também dificulta a celeridade e a efetividade das medidas.
Apesar disso, não se pode ignorar os avanços obtidos ao longo das últimas décadas. A ampliação da legislação protetiva, a mobilização da sociedade civil e a emergência do tema da violência contra as meninas e mulheres na agenda política nacional são conquistas importantes. A criação de delegacias especializadas, centros de acolhimento, linhas de atendimento como o Ligue 180, campanhas educativas e medidas judiciais são elementos que demonstram a relevância crescente do enfrentamento à violência de gênero.
Para que o país avance na consolidação de um sistema eficaz de enfrentamento à violência doméstica, torna-se imprescindível ampliar os investimentos em políticas públicas voltadas à prevenção, proteção e acolhimento das vítimas. É igualmente necessário fortalecer a capacitação contínua dos agentes públicos envolvidos no atendimento, promover a integração efetiva entre os diversos órgãos e serviços que compõem a rede de proteção e, sobretudo, incentivar mudanças culturais e educacionais profundas capazes de desconstruir o machismo estrutural arraigado na sociedade brasileira.
O desafio contemporâneo, portanto, não reside apenas na formulação de políticas públicas, mas também na garantia de sua implementação de forma eficaz, abrangente e sustentável. Apenas mediante ações articuladas, investimentos estruturais consistentes e compromisso político contínuo será possível assegurar a todas as meninas e mulheres o pleno exercício do direito a uma vida livre de violência, conforme assegurado pela Constituição Federal de 1988 e pelos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Estado brasileiro. Dessa forma, a superação da violência doméstica demanda uma atuação multidimensional e permanente, reafirmando o papel do Estado e da sociedade civil na promoção de uma cultura de igualdade, respeito e justiça social.
Portanto, conclui-se que, embora o Brasil tenha acumulado avanços significativos na formulação de políticas públicas voltadas ao enfrentamento da violência doméstica, a sua efetividade ainda é limitada por uma série de fatores interdependentes. Torna-se imprescindível o fortalecimento institucional, com maior integração entre os órgãos de atendimento, investimento em capacitação dos profissionais envolvidos, aumento do financiamento e a consolidação de mecanismos de avaliação e controle social. A violência contra a mulher é um fenômeno complexo, que demanda ações coordenadas, sustentáveis e com base em evidências empíricas, de modo a garantir o direito das mulheres a uma vida livre de violência e com plena dignidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARSTED, Leila Linhares. Violência contra a mulher: a legislação brasileira e os novos desafios. Rio de Janeiro: CEPIA, 2011.
BOCHENEK, Mariana. Medidas protetivas e a efetividade da Lei Maria da Penha. Curitiba: Juruá, 2018.
BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Diário Oficial da União, 8 ago. 2006. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm Acesso em: 16 mar. 2025.
BRASIL. Lei nº 13.104, de 9 de março de 2015. Altera o Código Penal para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do homicídio. Diário Oficial da União, 10 mar. 2015. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13104.htm Acesso em: 16 mar. 2025.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ). Relatório Justiça em Números 2022. Brasília: CNJ, 2022. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/justica-em-numeros-2022-judiciario-julgou-269-milhoes-de-processos-em-2021/ Acesso em: 16 abr. 2025.
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA (FBSP). Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023. São Paulo: FBSP, 2023. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf Acesso em: 06 abr. 2025.
INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). Atlas da Violência 2023. Brasília: IPEA, 2023. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/artigos/9350-223443riatlasdaviolencia2023-final.pdf Acesso em: 06 mar. 2025.
JUNQUEIRA, E. (2011). Políticas públicas e violência contra as mulheres: avanços e desafios. Revista Estudos Feministas, 19(3), 833-844.
NOGUEIRA, Lia Zanotta Machado. Violência de gênero: reflexões sobre o poder, direitos, justiça e cidadania. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 24, n. 2, p. 527-545, 2016.
ONU MULHERES. Violência contra mulheres e meninas: desafios e respostas globais. Brasília: ONU Mulheres Brasil, 2019/2020.
PASINATO, Wânia. Violência contra a mulher e políticas públicas no Brasil: avanços e desafios. Cadernos Pagu, Campinas, n. 44, 2015.
SAFFIOTI, Heleieth I. B. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004.
SANTOS, Cecília MacDowell. Direitos humanos, violência e feminismos: perspectivas interamericanas. São Paulo: Cortez, 2020.
SANTOS, Julio Cesar Andrade. O uso de tornozeleiras eletrônica em agressor vinculado à Lei Maria da Penha na jurisdição de Porto Alegre: Uma análise das implicações jurídicas e sociais. Trabalho de Conclusão de Curso, Departamento de Ciências Penais da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2024. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/285127/001218125.pdf?sequence=1&isAllowed=y Acesso em: 26 mar. 2025.
SOARES, Bárbara Soeiro. Movimentos feministas e a luta pelo enfrentamento da violência doméstica no Brasil. Revista de Direitos Humanos, v. 16, n. 1, p. 89-110, 2018.
1 Mestra em Bioética pela Universidad Europea del Atlántico, MBA em Gestão de Serviços Sociais e Políticas Públicas, Especialização em Educação Inclusiva pela Universidade Castelo Branco – Rio de Janeiro/RJ, Especialização em Saúde do Idoso – Gestão e Assistência em Gerontologia pela Universidade Estácio de Sá – Rio de Janeiro /RJ, Especialização Internacional de Qualidade e Segurança do Paciente pela FIOCRUZ/RJ, Bacharel em Serviço Social pela Universidade Luterana do Brasil - ULBRA – Canoas/RS, Conteudista dos cursos da UFMA/EAD, Pesquisadora Bolsista CNPQ do Projeto CER Brasil e do projeto Programa Especial de Inclusão Social, Igualdade e Cidadania, Consultora da OPAS/OMS, Bolsista da FIOTEC/MS nas áreas do envelhecimento, oncologia pediátrica, pessoa com deficiência, saúde da pessoa idosa, atenção domiciliar e cuidados paliativos. E-mail: [email protected]. Link CV LATTES: http://lattes.cnpq.br/1391459345673848. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2140-6128