AS MARCAS DAS DORES, SAUDADES, MALDADES E CRUELDADES: VIOLÊNCIA ESTRUTURAL, MEMÓRIA E SOFRIMENTO HISTÓRICO DA POPULAÇÃO NEGRA NO BRASIL
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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.18080353
Clodoaldo Reis Azarias1
RESUMO
Este artigo analisa as múltiplas dimensões da dor historicamente impostas à população negra no Brasil, compreendendo-a como resultado de um processo estrutural de violência colonial e racial. A partir de uma abordagem qualitativa, bibliográfica e de orientação decolonial, o estudo discute como a escravização produziu não apenas sofrimento físico, mas também profundas marcas psíquicas, simbólicas e espirituais, que permanecem atuantes na constituição das desigualdades raciais contemporâneas. São examinadas as experiências de violência corporal, o desenraizamento forçado, a ruptura dos vínculos ancestrais e a normalização da crueldade como elementos constitutivos da colonialidade do poder. Destaca-se o conceito de banzo como expressão histórica do sofrimento psíquico da população negra escravizada, evidenciando a dor como categoria social, coletiva e política. Ao articular dor, memória e resistência, o artigo sustenta que o sofrimento negro não pode ser compreendido como evento episódico ou individual, mas como experiência histórica produzida e reproduzida por estruturas de dominação racial, cujos efeitos persistem na sociedade brasileira.
Palavras-chave: Violência estrutural. Dor histórica. População negra. Escravidão. Memória.
ABSTRACT
This article analyzes the multiple dimensions of pain historically imposed on the Black population in Brazil, understanding it as the result of a structural process of colonial and racial violence. Through a qualitative, bibliographic, and decolonial-oriented approach, the study discusses how enslavement produced not only physical suffering but also deep psychological, symbolic, and spiritual wounds that continue to shape contemporary racial inequalities. The analysis addresses bodily violence, forced uprooting, the rupture of ancestral ties, and the normalization of cruelty as constitutive elements of the coloniality of power. Special attention is given to the concept of banzo as a historical expression of psychological suffering among enslaved Black people, highlighting pain as a social, collective, and political category. By articulating pain, memory, and resistance, the article argues that Black suffering cannot be understood as an episodic or individual phenomenon, but rather as a historically produced experience sustained by racial domination structures whose effects persist in Brazilian society.
Keywords: Structural violence. Historical pain. Black population. Enslavement. Memory.
1. INTRODUÇÃO
A formação social brasileira é indissociável de uma longa duração histórica de violência racial, cujas bases se assentam no processo colonial e na escravização de africanos e africanas, compreendida não apenas como engrenagem econômica de exploração extrema do trabalho, mas como dispositivo de desumanização, disciplinamento e silenciamento sistemático.
Tal dinâmica se articula ao que Quijano (2005) define como colonialidade do poder, isto é, uma matriz de hierarquização racial, política, epistêmica e econômica que excede o colonialismo formal e continua estruturando as instituições e as relações sociais no presente, em associação à racialização dos corpos e à divisão global do trabalho (QUIJANO, 2005; MIGNOLO, 2008).
Nesse horizonte, a dor experimentada pela população negra não pode ser tratada como efeito colateral do passado escravista, tampouco como experiência meramente individual ou moralizável, pois integra um projeto histórico de dominação racial que opera simultaneamente sobre o corpo, a subjetividade e os regimes de visibilidade social.
A persistência de práticas contemporâneas de morte e vulnerabilização, como a letalidade policial e o encarceramento em massa, evidencia a atualização desse regime de poder, que Mbembe (2014) descreve como necropolítica, na medida em que o Estado e seus aparelhos administram diferencialmente as condições de vida e morte de populações racializadas.
Além disso, a reprodução histórica do sofrimento negro envolve também a dimensão epistêmica: a desqualificação e a exclusão de conhecimentos africanos e afro-diaspóricos como formas legítimas de produção de saber. Autores como Walsh (2005) e Santos (2009) descrevem tal processo como colonialidade do saber, enquanto Carneiro (2005) o explicita como racismo epistêmico, mecanismo que invisibiliza a África como sujeito histórico e produz silenciamentos simbólicos e intelectuais que retroalimentam a marginalização social.
Dessa forma, este artigo tem como objetivo analisar as marcas das dores, saudades, maldades e crueldades impostas à população negra no Brasil, tratando a dor como categoria histórica e estrutural, produzida e naturalizada no interior de dispositivos coloniais de dominação.
Para tanto, mobiliza-se a contribuição de Almeida (2021), para quem o racismo estrutural não se reduz a atos discriminatórios isolados, mas integra as engrenagens institucionais, econômicas e jurídicas do Estado e do mercado; e de Fanon (2008), cuja crítica enfatiza que a superação da opressão colonial exige uma reconfiguração ontológica do humano, articulada à recuperação da memória histórica como fundamento da dignidade e da justiça.
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA OU REVISÃO DA LITERATURA
A violência física constituiu uma das faces mais visíveis, sistemáticas e estruturantes do sistema escravista moderno. Castigos corporais, chicotadas, mutilações, trabalhos extenuantes e punições públicas não eram práticas ocasionais ou desvios morais, mas instrumentos centrais de uma racionalidade disciplinar voltada à domesticação dos corpos negros e à manutenção da ordem colonial. Como afirma Frantz Fanon, ao analisar a lógica do mundo colonial,
O mundo colonial é um mundo maniqueísta. Não basta ao colono limitar-se a constatar a existência do colonizado. O colono fabrica o colonizado. […] O colonizado é um ser encurralado, cuja existência é constantemente questionada pela violência (FANON, 2008, p. 30)
A violência, portanto, não aparece como exceção, mas como linguagem constitutiva do poder colonial, inscrita diretamente no corpo negro. Nesse regime, o corpo da pessoa escravizada foi reduzido à condição de coisa, mercadoria e força produtiva, destituído de dignidade e humanidade. Essa redução encontra eco na análise clássica de W. E. B. Du Bois, ao tratar da construção histórica da raça e da desumanização negra no mundo moderno, “O problema do século XX é o problema da linha de cor, a relação entre os homens mais escuros e os mais claros na Ásia, na África, na América e nas ilhas do mar”, (DU BOIS, 1999, p. 01).
Ao nomear a “linha de cor”, Du Bois evidencia que a violência contra os corpos negros não se limita à exploração econômica, mas funda uma ordem racial global, na qual a humanidade negra é permanentemente colocada em suspensão. Essa lógica se expressa na escravidão por meio da transformação do corpo negro em objeto plenamente disponível à punição, ao controle e à expropriação.
A violência física, nesse sentido, não se restringia a atos isolados de crueldade individual, mas integrava um sistema racionalizado de dominação, juridicamente sustentado e socialmente naturalizado. O controle do corpo negro funcionava como mecanismo pedagógico do terror, cujo objetivo não era apenas punir, mas produzir subjetividades marcadas pelo medo, pelo silenciamento e pela internalização da inferioridade.
Fanon descreve esse processo de interiorização da violência de modo contundente, “A violência que governou a ordem colonial, que ritmou incessantemente a destruição das formas sociais indígenas, foi também a violência que presidiu a construção do mundo colonial.”
(FANON, 2008, p. 54)
O sofrimento físico, portanto, não pode ser interpretado como excesso ou efeito colateral da escravidão, mas como parte constitutiva de seu funcionamento. A dor infligida aos corpos negros cumpria uma função política: garantir a reprodução da hierarquia racial e a estabilidade do regime colonial. Essa leitura dialoga com a noção de morte social elaborada por Orlando Patterson, para quem a escravidão moderna institui uma condição extrema de negação da existência social,
A escravidão não é apenas exploração ou dominação extrema; ela é, acima de tudo, uma forma de morte social, na qual o escravizado é violentamente separado de sua comunidade, de sua história e de qualquer direito reconhecido (PATTERSON, 2008, p.5)
Ao reduzir o corpo negro à condição de coisa, o regime escravista instaurou uma lógica de desumanização que ultrapassou o período colonial e se projetou historicamente. Essa herança se manifesta, na contemporaneidade, em práticas de violência racial que seguem incidindo de forma desproporcional sobre corpos negros, como a seletividade penal, a letalidade policial e a naturalização da morte em territórios racializados.
Como observa Achille Mbembe, ao refletir sobre as continuidades entre colonialismo e modernidade, “A raça foi o operador fundamental por meio do qual a modernidade distribuiu a humanidade e organizou a exposição diferencial à morte.”
(MBEMBE, 2018, p. 42).
Dessa maneira, o corpo negro permanece como espaço privilegiado de inscrição da violência histórica, revelando que a escravidão não constitui apenas um evento do passado, mas um paradigma durável de poder, cujos efeitos seguem estruturando as relações raciais, institucionais e simbólicas das sociedades contemporâneas.
3. METODOLOGIA
A pesquisa adota uma abordagem qualitativa, de natureza bibliográfica e documental, orientada por uma perspectiva decolonial. O estudo fundamenta-se na análise crítica de obras clássicas e contemporâneas sobre escravidão, racismo estrutural, memória social e sofrimento histórico da população negra no Brasil. Parte-se do entendimento de que o conhecimento é situado e atravessado por relações de poder, sendo necessário reconhecer a experiência histórica negra como fonte legítima de produção teórica.
O procedimento metodológico privilegia a leitura interpretativa dos textos, articulando dados históricos, conceitos teóricos e narrativas sobre a experiência da escravidão, com o objetivo de compreender a dor não como fenômeno individual, mas como construção social e política.
4. RESULTADOS E DISCUSSÕES OU ANÁLISE DOS DADOS
Considerando o caráter teórico-bibliográfico desta pesquisa, os resultados aqui apresentados decorrem da análise crítica da literatura mobilizada ao longo do artigo. Assim, os resultados não se expressam por meio de dados empíricos quantitativos ou qualitativos, mas pela sistematização analítica das contribuições teóricas que permitem compreender a dor, a memória e a resistência da população negra como categorias históricas e estruturais. A discussão a seguir articula esses elementos, evidenciando suas implicações para a compreensão do racismo estrutural no Brasil.
4.1. Saudade, Banzo e Sofrimento Psiquico
Para além da violência física, a escravidão produziu profundas dores psíquicas e existenciais que atravessaram o cotidiano da população negra escravizada. O sequestro forçado de africanos e africanas implicou a ruptura abrupta de vínculos familiares, comunitários, culturais e espirituais, instaurando uma experiência radical de desenraizamento.
Tal ruptura não significou apenas deslocamento territorial, mas a perda violenta de pertencimento, memória e continuidade histórica, configurando aquilo que Orlando Patterson (2008) descreve como a destruição dos laços sociais fundamentais da existência humana.
Nesse contexto, o banzo emerge como uma das expressões históricas mais significativas do sofrimento psíquico negro no período escravista. Longe de ser uma curiosidade médica ou um fenômeno individual isolado, o banzo foi amplamente reconhecido por cronistas, médicos e historiadores como uma experiência recorrente entre africanos escravizados no Brasil.
Conforme demonstra Oda (2007, p. 3), o termo tem origem no quimbundo mbanza, que significa aldeia, sendo posteriormente ressignificado para designar a saudade profunda da terra natal e da vida anterior à escravização. Oda descreve o banzo como uma condição marcada por profunda melancolia, apatia e recusa alimentar, frequentemente associada à morte, ressaltando que se tratava de uma “paixão da alma” produzida pela violência do cativeiro. Em estudo posterior, o autor reforça que,
O banzo era compreendido como uma moléstia grave que acometia os africanos escravizados, caracterizada pela tristeza profunda, pela saudade da pátria e pela perda do desejo de viver, podendo levar à inanição ou ao suicídio (ODA, 2008, p. 3).
Essa leitura é corroborada por Silva B. (2017), ao afirmar que o banzo expressava uma forma de sofrimento emocional extremo, resultante da separação forçada dos laços familiares e comunitários, bem como da impossibilidade de retorno à terra de origem. Segundo o autor,
O banzo era uma das principais moléstias que acometiam os escravos, uma ‘paixão da alma’ causada pela saudade da pátria, pela perda da liberdade e pela violência cotidiana do cativeiro, extinguindo-se, muitas vezes, apenas com a morte (SILVA B., 2017, p. 4).
Dessa forma, o banzo não pode ser compreendido como patologia individual ou fragilidade psíquica, mas como produto direto da violência estrutural da escravidão. Ele evidencia que a dominação colonial não operou apenas sobre os corpos, por meio do castigo físico, mas também sobre as emoções, os afetos e a memória dos sujeitos escravizados. Nesse sentido, o sofrimento psíquico constitui parte essencial da engrenagem colonial, funcionando como mecanismo de destruição subjetiva e silenciamento existencial.
Essa dimensão subjetiva da violência encontra ressonância nas reflexões de Frantz Fanon, para quem a colonização produz não apenas corpos feridos, mas consciências dilaceradas. Para Fanon (2008, p. 30–55), a violência colonial não atua apenas sobre os corpos, mas produz efeitos profundos sobre a psique, reorganiza a experiência do tempo e desestrutura a relação do sujeito colonizado consigo mesmo e com o mundo.
Ainda que Fanon analise contextos coloniais posteriores ao período escravista, sua reflexão permite compreender o banzo como uma forma histórica de sofrimento psíquico produzido pela colonização, no qual a dor emocional se converte em sintoma político de uma existência negada. Nessa perspectiva, a saudade experimentada pelos africanos escravizados não era simples nostalgia, mas uma experiência-limite de ruptura ontológica, marcada pela impossibilidade de retorno, pela perda do passado e pela incerteza radical do futuro.
Assim, a dor psíquica expressa pelo banzo deve ser reconhecida como parte constitutiva da experiência histórica da população negra no Brasil. Ela revela que a escravidão foi também um projeto de destruição subjetiva, cuja herança se projeta no presente por meio de traumas coletivos, memórias silenciadas e desigualdades raciais persistentes. Compreender o banzo como categoria histórica permite, portanto, ampliar a análise da violência colonial, incorporando a dimensão emocional e psíquica como elemento central da colonialidade do poder.
4.2. Maldades, Crueldade e a Normalização do Horror
As maldades e crueldades praticadas contra a população negra ao longo do regime escravista não podem ser interpretadas como desvios morais individuais ou excessos ocasionais, mas como práticas sistemáticas inscritas na racionalidade colonial. A violência cotidiana da senzala, dos navios negreiros e dos mercados de escravizados foi juridicamente autorizada, economicamente funcional e simbolicamente legitimada por discursos religiosos, científicos e legais que sustentavam a inferiorização racial.
Como demonstra Hannah Arendt (1999, p. 290), a violência moderna não se sustenta apenas pela brutalidade explícita, mas pela sua inserção em sistemas burocráticos que normalizam o mal e o tornam parte do funcionamento ordinário das instituições. No contexto colonial-escravista, a crueldade assume a forma da banalização do sofrimento, na qual o horror deixa de causar espanto e passa a integrar a rotina social.
O grito torna-se silêncio, o corpo violentado converte-se em paisagem, e a dor alheia perde seu estatuto ético. Esse processo encontra ressonância na análise de Zygmunt Bauman (1998, p. 28), para quem a modernidade foi capaz de produzir formas de violência extremas justamente por meio da racionalização, da rotinização e da neutralização moral dos atos cruéis. A naturalização da violência constitui, assim, um dos traços mais perversos da colonialidade, pois transforma a desumanização em algo socialmente aceitável e culturalmente transmissível.
No caso da escravidão, a crueldade não era apenas tolerada, mas ensinada, repetida e socialmente validada como instrumento legítimo de controle. Nesse sentido, Achille Mbembe observa que, “a vida do escravizado é uma vida constantemente exposta à violência, ao risco e à morte, sem que isso produza escândalo moral” (MBEMBE, 2018, p. 87).
A crueldade colonial, portanto, não se limita à violência física direta, mas envolve a produção de uma economia moral da indiferença, na qual a dor do outro é desprovida de valor. Essa lógica se articula ao que Frantz Fanon (2008, p. 39–40) descreve como a compartimentação do mundo colonial, no qual a violência estrutura as relações sociais e define quem é reconhecido como humano e quem pode ser ferido sem consequências éticas.
Tal racionalidade não se extingue com a abolição formal da escravidão. Ao contrário, ela se reconfigura em práticas institucionais que continuam a produzir desigualdades e violências, mantendo a população negra em condições sistemáticas de vulnerabilidade e exclusão. A seletividade penal, a letalidade policial e a precarização das condições de vida em territórios racializados revelam a persistência de uma lógica que naturaliza a morte e o sofrimento negro.
Conforme analisa Silvio Almeida (2021, p. 47), o racismo estrutural opera precisamente por meio da normalização das desigualdades e da legitimação institucional da violência. Nesse sentido, a crueldade colonial não deve ser compreendida apenas como herança histórica, mas como paradigma durável de poder, cujos efeitos se atualizam no presente por meio de dispositivos jurídicos, econômicos e simbólicos.
A normalização do horror constitui, assim, um elemento central para a compreensão da continuidade das violências raciais no Brasil, evidenciando que o fim legal da escravidão não significou o fim das estruturas que produziram e legitimaram a desumanização da população negra.
4.3. Dor, Memória e Resistência
Apesar da brutalidade do sistema escravista e da violência estrutural que marcou a experiência histórica da população negra, múltiplas formas de resistência foram construídas no interior e nas margens da ordem colonial. A preservação de práticas culturais, religiosas e comunitárias, a transmissão de saberes ancestrais, a oralidade, a musicalidade e a formação de quilombos constituíram estratégias fundamentais de sobrevivência, recomposição identitária e afirmação da humanidade negada.
Como observa Beatriz Nascimento, os quilombos não devem ser compreendidos apenas como refúgios físicos, mas como “formas de organização social que expressam uma concepção própria de liberdade, território e memória” (NASCIMENTO, 2006, p. 120).
Nesse horizonte, a resistência negra não se opõe à dor, mas emerge a partir dela. A experiência do sofrimento coletivo, longe de produzir apenas silenciamento ou submissão, alimentou processos de reelaboração simbólica e política da existência. Paul Ricoeur, ao refletir sobre memória e violência, afirma que, “a memória ferida não é apenas um depósito de dores passadas, mas um campo de disputas, no qual se decide o que será lembrado, esquecido ou transformado em ação” (RICOEUR, 2007, p. 88).
A memória da violência, portanto, não se reduz à rememoração do sofrimento, mas constitui um fundamento ético e político da resistência. No caso da população negra, essa memória foi transmitida por meio de narrativas, rituais, espiritualidades e práticas comunitárias que permitiram a continuidade histórica mesmo sob condições extremas de desumanização.
Conforme argumenta Michael Pollak (1989, p. 9), as memórias de grupos subalternizados tendem a se organizar como memórias subterrâneas, frequentemente silenciadas no espaço público, mas fundamentais para a manutenção da identidade coletiva e da coesão social. A dor, nesse sentido, não pode ser interpretada apenas como experiência passiva ou como marca de vitimização. Ela se converte em memória ativa, em denúncia histórica e em força mobilizadora de resistência.
Essa compreensão dialoga com a reflexão de Walter Benjamin, para quem a rememoração do sofrimento dos vencidos é condição para qualquer projeto de justiça, “articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma lembrança tal como ela relampeja no momento de um perigo ” (BENJAMIN, 2012, p. 243).
Ao recuperar a memória da violência escravista, a população negra não busca apenas reconhecimento simbólico, mas reivindica justiça histórica e reparação material. Nesse processo, a dor assume um papel paradoxal: ela revela a profundidade da violência sofrida, mas também sustenta práticas de resistência que atravessam gerações.
Como afirma Achille Mbembe (2018, p. 179), a memória da escravidão e do colonialismo constitui um dos principais campos de disputa do presente, pois dela dependem as possibilidades de reimaginar o humano, o político e o comum. Dessa forma, dor, memória e resistência articulam-se como dimensões indissociáveis da experiência histórica da população negra no Brasil.
A memória da violência não aprisiona o sujeito negro ao passado, mas o convoca à ação, à denúncia e à construção de futuros possíveis. Reconhecer essa articulação é fundamental para compreender que a resistência negra não é apenas reação à opressão, mas produção ativa de sentido, dignidade e reexistência frente às continuidades da colonialidade e do racismo estrutura
5. CONCLUSÃO
A análise das marcas das dores, saudades, maldades e crueldades sofridas pela população negra no Brasil evidencia que o sofrimento negro não pode ser compreendido como efeito colateral do passado escravista, tampouco como experiência individual ou episódica. Trata-se de um processo histórico de violência estrutural, inscrito na formação social brasileira e articulado à colonialidade do poder, que produziu e continua a produzir desigualdades materiais, simbólicas e existenciais profundamente racializadas.
A dor, nesse sentido, emerge como experiência coletiva, historicamente construída e socialmente reproduzida por dispositivos institucionais, culturais e políticos que permanecem em operação. Ao tratar a dor como categoria histórica, este artigo desloca o debate sobre racismo para além de abordagens moralizantes ou superficiais, evidenciando que a violência racial não se restringe a práticas explícitas de discriminação, mas se enraíza em estruturas que naturalizam a desumanização, o silenciamento e a morte de corpos negros.
A escravidão, longe de constituir um evento encerrado no passado, configura um paradigma de poder cujos efeitos se atualizam no presente por meio da normalização do sofrimento, da precarização da vida e da negação sistemática da dignidade. Entretanto, a dor não se reduz à vitimização. Conforme demonstrado ao longo do artigo, ela também se converte em memória ativa, denúncia histórica e fundamento de resistência.
A preservação de práticas culturais, espirituais e comunitárias, a transmissão de saberes ancestrais e a luta por reconhecimento e reparação revelam que a população negra construiu, a partir da dor, formas próprias de reexistência e afirmação da humanidade negada. A memória da violência, longe de aprisionar o sujeito negro ao passado, constitui um campo de disputa no qual se articulam justiça, dignidade e projeto de futuro.
Reconhecer as dores históricas da população negra é, portanto, condição indispensável para a construção de uma sociedade comprometida com a justiça racial e com a superação efetiva do racismo estrutural. Tal reconhecimento exige não apenas políticas de memória, mas transformações profundas nas estruturas sociais, jurídicas e simbólicas que sustentam a desigualdade racial.
Somente ao enfrentar as raízes históricas da violência será possível avançar na construção de uma ordem social que reconheça plenamente a dignidade humana e a centralidade da memória como fundamento ético da vida coletiva.
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1 Doutorando no Programa de Pós-graduação em Integração da América Latina, pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), Foz do Iguaçu, PR, Brasil. E-mail: [email protected]