IMPACTO DOS OPIÓIDES LIPOFÍLICOS NA ESTABILIDADE HEMODINÂMICA E EFEITOS COLATERAIS EM RAQUIANESTESIA PARA CESARIANA: UMA REVISÃO SISTEMÁTICA DA EVIDÊNCIA SOBRE FENTANIL E SUFENTANIL

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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.18080330


Christian Henrique de Carvalho Adamy
Maria do Carmo Cardia Julião Freitas


RESUMO
A combinação de opioides lipofílicos com morfina intratecal em anestesia espinhal para cesariana é amplamente utilizada para otimizar a analgesia intraoperatória; no entanto, seu impacto na estabilidade hemodinâmica materna permanece controverso. Esta revisão sistemática teve como objetivo avaliar os efeitos do fentanil e do sufentanil, quando combinados com morfina intratecal, na incidência de hipotensão, bradicardia, náuseas e vômitos em gestantes submetidas a cesariana sob anestesia espinhal. A metodologia seguiu as diretrizes PRISMA 2020, com busca sistemática realizada nas bases de dados PubMed/MEDLINE, LILACS e SciELO. Dos 312 registros inicialmente identificados, 18 estudos atenderam aos critérios de elegibilidade e foram incluídos na síntese qualitativa. Os resultados demonstraram que a adição de fentanil ou sufentanil não esteve associada a um aumento clinicamente relevante na instabilidade hemodinâmica materna, com a hipotensão predominantemente relacionada ao bloqueio simpático induzido pelo anestésico local. Não foi observada superioridade clínica consistente entre o fentanil e o sufentanil em relação aos desfechos hemodinâmicos ou à redução de efeitos adversos. As evidências disponíveis são caracterizadas por heterogeneidade metodológica, particularmente em relação à dosagem de anestésicos locais e às definições de desfecho. Conclui-se que a associação de opioides lipofílicos com morfina intratecal é segura nas doses comumente utilizadas e deve ser individualizada e integrada aos protocolos institucionais de manejo hemodinâmico.
Palavras-chave: Raquianestesia; Cesariana; Opióides lipofílicos; Fentanil; Sufentanil; Estabilidade hemodinâmica.

ABSTRACT
The combination of lipophilic opioids with intrathecal morphine in spinal anesthesia for cesarean section is widely used to optimize intraoperative analgesia; however, its impact on maternal hemodynamic stability remains controversial. This systematic review aimed to evaluate the effects of fentanyl and sufentanil, when combined with intrathecal morphine, on the incidence of hypotension, bradycardia, nausea, and vomiting in pregnant women undergoing cesarean section under spinal anesthesia. The methodology followed the PRISMA 2020 guidelines, with a systematic search conducted in PubMed/MEDLINE, LILACS, and SciELO databases. Of the 312 records initially identified, 18 studies met the eligibility criteria and were included in the qualitative synthesis. The results demonstrated that the addition of fentanyl or sufentanil was not associated with a clinically relevant increase in maternal hemodynamic instability, with hypotension predominantly related to sympathetic blockade induced by the local anesthetic. No consistent clinical superiority was observed between fentanyl and sufentanil regarding hemodynamic outcomes or reduction of adverse effects. The available evidence is characterized by methodological heterogeneity, particularly concerning local anesthetic dosing and outcome definitions. It is concluded that the association of lipophilic opioids with intrathecal morphine is safe at commonly used doses and should be individualized and integrated into institutional hemodynamic management protocols.
Keywords: Spinal anesthesia; Cesarean section; Lipophilic opioids; Fentanyl; Sufentanil; Hemodynamic stability.

INTRODUÇÃO

A raquianestesia consolidou-se como a técnica padrão-ouro para cesarianas, oferecendo bloqueio sensitivo e motor de instalação rápida e qualidade superior. No entanto, o manejo da dor visceral durante a manipulação uterina e a tração do peritônio permanece um desafio clínico significativo. Tradicionalmente, a morfina intratecal é utilizada para prover analgesia pós-operatória prolongada; contudo, sua natureza hidrofílica resulta em uma latência farmacológica de 30 a 60 minutos, deixando uma janela de vulnerabilidade analgésica no período intraoperatório imediato.

Nesse cenário, a incorporação de opióides lipofílicos — notadamente o fentanil e o sufentanil — como adjuvantes à bupivacaína hiperbárica tornou-se uma prática disseminada. Devido à sua alta afinidade lipídica, esses fármacos atravessam rapidamente a dura-máter e ligam-se aos receptores μ-opióides no corno dorsal da medula espinhal, proporcionando um efeito analgésico quase imediato que colmata a lacuna deixada pela morfina.

Apesar dos benefícios analgésicos evidentes, a segurança hemodinâmica dessa associação é objeto de intenso debate na literatura especializada. A hipotensão arterial materna, secundária ao bloqueio simpático pré-ganglionar, é a complicação mais frequente, ocorrendo em até 80% das gestantes. Existe uma preocupação teórica de que o sinergismo entre anestésicos locais e opióides intratecais possa exacerbar a instabilidade cardiovascular ou intensificar efeitos adversos como bradicardia e depressão respiratória, impactando potencialmente o fluxo sanguíneo uteroplacentário e os desfechos neonatais.

Embora diversos ensaios clínicos tenham explorado essas interações, a heterogeneidade metodológica quanto às doses e aos critérios de estabilidade hemodinâmica impede um consenso definitivo. Assim, torna-se imperativo sintetizar a evidência disponível para determinar se a otimização da analgesia intraoperatória com opióides lipofílicos compromete a segurança materna. Esta revisão sistemática propõe-se a analisar criticamente o impacto do fentanil e do sufentanil na estabilidade hemodinâmica e no perfil de efeitos colaterais em gestantes submetidas à cesariana, visando fundamentar protocolos clínicos baseados em evidências robustas.

METODOLOGIA

Desenho do Estudo e Protocolo

Esta revisão sistemática foi delineada e executada em estrita observância às diretrizes do protocolo Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses (PRISMA 2020). A metodologia foi estruturada para garantir a robustez analítica, a reprodutibilidade dos achados e a mitigação de vieses de seleção e aferição. O protocolo detalhado foi estabelecido a priori à fase de busca bibliográfica.

Estratégia de Pesquisa e Pergunta Norteadora

A questão clínica foi formulada por meio do acrônimo PICO (População, Intervenção, Comparação e Outcomes), definida como:

  • P: Parturientes submetidas à cesariana eletiva ou de urgência;

  • I: Raquianestesia com bupivacaína associada a opióides lipofílicos (fentanil ou sufentanil) e morfina;

  • C: Uso de morfina intratecal isolada ou comparação direta entre diferentes doses e agentes lipofílicos;

  • O: Desfechos primários de estabilidade hemodinâmica (incidência de hipotensão arterial e bradicardia) e desfechos secundários (consumo de vasopressores e incidência de náuseas e vômitos intraoperatórios - NVIO).

A pergunta norteadora estabelecida foi: "Em gestantes sob raquianestesia para cesariana, a associação de opióides lipofílicos à morfina intratecal altera o perfil de estabilidade hemodinâmica e a incidência de efeitos adversos intraoperatórios?"

Fontes de Dados e Estratégia de Busca

Foi realizada uma busca sistemática exaustiva nas bases de dados PubMed/MEDLINE, LILACS e SciELO. A estratégia de busca empregou uma combinação de descritores controlados (MeSH - Medical Subject Headings e DeCS - Descritores em Ciências da Saúde) e termos livres para maximizar a sensibilidade do levantamento.

Os operadores booleanos AND e OR foram aplicados para integrar os termos: (fentanyl OR sufentanil) AND (intrathecal morphine) AND (spinal anesthesia OR spinal blockade) AND (cesarean section OR delivery, obstetric). A busca não foi limitada por filtros automáticos de tipo de estudo inicialmente, visando capturar toda a evidência pertinente.

Critérios de Elegibilidade e Seleção

  • Inclusão: Ensaios Clínicos Randomizados (ECR), estudos coorte e estudos observacionais analíticos; publicados em português ou inglês; que reportassem dados quantitativos sobre estabilidade hemodinâmica materna após o bloqueio subaracnoideo.

  • Exclusão: Relatos de casos, revisões narrativas, editoriais e estudos que utilizassem técnicas anestésicas combinadas (epidural-lombar) ou populações com comorbidades cardíacas graves pré-existentes.

A seleção ocorreu em duas fases independentes: (1) triagem de títulos e resumos e (2) análise integral dos manuscritos. Eventuais discrepâncias entre os revisores foram dirimidas por um terceiro avaliador sênior.

Avaliação do Risco de Viés e Qualidade da Evidência

A validade interna dos estudos incluídos foi rigorosamente auditada por ferramentas validadas pela colaboração Cochrane:

  1. Ensaios Clínicos Randomizados: Utilizou-se a ferramenta RoB 2.0 (Revised Cochrane risk-of-bias tool for randomized trials), avaliando domínios como processo de randomização, desvios das intervenções pretendidas, dados de resultados ausentes e seleção dos resultados relatados.

  2. Estudos Não-Randomizados: Aplicou-se o instrumento ROBINS-I (Risk Of Bias In Non-randomized Studies of Interventions) para avaliar vieses de confusão, seleção e classificação das intervenções.

Os resultados da avaliação de viés foram sintetizados para graduar a confiança nas conclusões da revisão, considerando a heterogeneidade clínica e metodológica dos protocolos anestésicos analisados.

RESULTADOS

Fluxo de Seleção e Composição do Corpus

O processo de identificação, triagem e inclusão dos estudos seguiu rigorosamente as diretrizes PRISMA 2020. A busca sistemática e exaustiva nas bases de dados eletrônicas (PubMed/MEDLINE, LILACS e SciELO) resultou na recuperação inicial de 312 registros. Após a exclusão de duplicatas (n=58), 254 registros foram submetidos à triagem por título e resumo.

Desta fase inicial, 56 artigos foram selecionados para análise integral do texto. Foram excluídos 38 manuscritos por não atenderem aos critérios de elegibilidade predefinidos, com ênfase na ausência de morfina intratecal nos protocolos (n=14), emprego de técnicas anestésicas distintas da raquianestesia (n=14), populações não obstétricas (n=8) e amostras insuficientes ou relatos de caso (n=5). Ao final, 18 estudos preencheram integralmente os critérios de inclusão e foram incorporados à síntese qualitativa.

Qualidade Metodológica e Análise de Risco de Viés

A avaliação da validade interna revelou uma heterogeneidade metodológica relevante entre as evidências incluídas.

  • Ensaios Clínicos Randomizados (ECR): A aplicação da ferramenta RoB 2.0 demonstrou um predomínio de risco de viés baixo a moderado. As limitações mais frequentes concentraram-se no domínio do cegamento de participantes e avaliadores, embora a natureza das intervenções anestésicas muitas vezes dificulte o duplo-cegamento estrito.

  • Estudos Observacionais: Por meio do instrumento ROBINS-I, identificou-se um risco de viés majoritariamente moderado. Esta classificação decorre, primordialmente, de potenciais fatores de confusão relacionados à variabilidade posológica dos anestésicos locais e à ausência de padronização nas estratégias de manejo hemodinâmico institucional.

É importante notar que nenhum estudo apresentou risco crítico de viés que comprometesse a integridade da síntese ou justificasse a exclusão da análise qualitativa

Figura 1 – Fluxograma do processo de identificação, triagem, elegibilidade e inclusão dos estudos, elaborado de acordo com as diretrizes PRISMA 2020.

Caracterização das Evidências e Síntese Qualitativa

O corpus desta revisão compreende 18 manuscritos publicados em um intervalo temporal de 34 anos (1989–2023), com nítida predominância de Ensaios Clínicos Randomizados (ECR) conduzidos em centros de referência terciária. A arquitetura dos estudos concentrou-se majoritariamente na análise do fentanil intratecal, embora o sufentanil tenha sido objeto de investigação em menor escala, seja em protocolos isolados ou em confrontos diretos (head-to-head) com o fentanil.

A análise farmacológica revelou uma expressiva heterogeneidade posológica, fator crítico para a interpretação dos desfechos clínicos. As doses de fentanil oscilaram entre 10 e 25 μg, enquanto o sufentanil foi administrado em janelas de 1,5 a 7,5 μg. Tais adjuvantes foram invariavelmente associados à bupivacaína hiperbárica e, conforme os critérios de inclusão, à morfina intratecal. Esta disparidade nas doses e nas combinações de anestésicos locais constitui a principal fonte de heterogeneidade clínica da literatura atual, impondo limitações rigorosas à realização de metanálises e à comparação direta entre os protocolos vigentes.

A Tabela 1 apresenta a consolidação sistemática das características metodológicas e dos desfechos maternos de maior relevância clínica reportados nas evidências selecionadas

Autor (Ano)Tipo de EstudoOpioide Lipofílico (Dose IT)Anestésico Local AssociadoComparadorPrincipais Desfechos Maternos
Ali et al. (2018)ECRFentanil 10–25 µgBupivacaínaDiferentes dosesNáuseas, vômitos e prurido
Bang et al. (2012)ECRSufentanil 2,5–7,5 µgBupivacaína hiperbáricaAnálise dose-dependenteBradicardia e hipotensão
Botea et al. (2023)ECRFentanil 20 µgBupivacaína + morfinaMorfina isoladaAnalgesia e satisfação materna
Braga et al. (2014)ECRFentanil 25 µg / Sufentanil 5 µgBupivacaína hiperbárica + morfinaComparação entre opióidesHipotensão e uso de vasopressor
Cowan et al. (2002)ECRFentanil 25 µgBupivacaína + morfinaOutros opióides (Diamorfina)Analgesia e efeitos adversos
Demiraran et al. (2006)ECRSufentanil 1,5 µgBupivacaína hiperbárica + morfinaMorfina isoladaHipotensão, prurido e bloqueio
Dourado et al. (2016)ECRSufentanil 2,5–5 µgBaixa dose de bupivacaínaDose convencionalHipotensão e qualidade do bloqueio
Gauchan et al. (2014)ECRFentanil 25 µgBupivacaína hiperbáricaBupivacaína isoladaHipotensão, náuseas e vômitos
Hunt et al. (1989)ECRFentanil 10–25 µgBupivacaínaBupivacaína isoladaAnalgesia, náuseas e vômitos (NVIO)
Karaman et al. (2006)ECRSufentanil 5 µgBupivacaína hiperbárica + morfinaMorfina isoladaHipotensão, bradicardia e náuseas
Karaman et al. (2011)ECRFentanil 20 µgBupivacaína + morfinaMorfina isoladaHipotensão e eficácia analgésica
Lee et al. (2011)ECRFentanil 20 µg vs Sufentanil 2,5 µgBupivacaína hiperbárica + morfinaComparação diretaEstabilidade hemodinâmica e efeitos adversos
Rasooli et al. (2008)ObservacionalFentanil 10–15 µgMini-dose de bupivacaínaDose convencionalHipotensão e estabilidade
Sultan & Carvalho (2021)Diretriz/ECRFentanil 10–25 µgBupivacaína + morfinaEvidência acumuladaSegurança materna e recomendações
Uppal et al. (2020)Revisão/ECRFentanil 10–25 µgBupivacaína + morfinaProtocolos variadosPerfil de segurança materna
Venkata et al. (2015)ECRFentanil 20 µgBaixa dose de bupivacaínaDose convencionalHipotensão e consumo de vasopressor
Vyas et al. (2010)ECRSufentanil 5 µgBupivacaínaBupivacaína isoladaBradicardia e incidência de hipotensão
Weigl et al. (2017)ECRFentanil 20 µgBupivacaínaPlaceboAnalgesia, náuseas e vômitos

Síntese dos Achados Clínicos

Instabilidade Hemodinâmica: Hipotensão Arterial e Bradicardia

A hipotensão arterial materna consolidou-se como a intercorrência mais prevalente, com incidência variando entre 60% e 80% nas populações estudadas. A análise qualitativa integrada indica que a magnitude desse desfecho está intrinsecamente vinculada ao bloqueio simpático pré-ganglionar induzido pelo anestésico local, sendo a dose de bupivacaína o principal determinante da instabilidade.

De maneira consistente, a adição de fentanil ou sufentanil à morfina intratecal não resultou em agravamento clinicamente significativo da incidência ou severidade da hipotensão arterial quando comparada ao uso isolado de morfina ou grupos controle sem adjuvantes lipofílicos. Similarmente, a demanda por vasopressores (fenilefrina, efedrina ou metaraminol) apresentou expressiva variabilidade inter-estudos, refletindo mais as heterogeneidades nos protocolos institucionais de profilaxia hemodinâmica do que o impacto farmacodinâmico dos opioides.

A bradicardia materna, embora menos frequentemente reportada, apresentou baixa incidência e ausência de correlação causal demonstrável com a adição dos agentes lipofílicos intratecais. A interpretação definitiva deste desfecho permanece limitada pela escassez de critérios diagnósticos uniformes na literatura revisada.

Náuseas e Vômitos Intraoperatórios (NVIO)

Os achados referentes às NVIO revelaram elevada heterogeneidade clínica. Enquanto uma parcela das evidências sugere que o sinergismo analgésico dos opioides lipofílicos atenua as náuseas ao mitigar a dor visceral mediada por estímulos nociceptivos e tração peritoneal, outros estudos não ratificaram tal benefício. A multiplicidade de fatores de confusão — incluindo episódios de hipotensão não corrigida, administração de uterotônicos (ocitocina) e variabilidade na manipulação cirúrgica — impede a atribuição de uma relação dose-efeito direta para este desfecho.

Síntese Integrada da Evidência

Em última análise, os dados sugerem que a analgesia multimodal intratecal otimiza a qualidade do bloqueio sensitivo sem comprometer a estabilidade cardiovascular materna nas doses usuais. A robustez das conclusões é, contudo, mitigada pela variabilidade metodológica, especialmente no que tange à padronização das doses de bupivacaína e à uniformização das definições de desfechos clínicos secundários

DISCUSSÃO

A presente revisão sistemática sintetizou criticamente o impacto da analgesia multimodal intratecal na estabilidade cardiovascular materna durante a cesariana. Os achados refutam a hipótese de que a associação de opióides lipofílicos (fentanil e sufentanil) à morfina exacerba a instabilidade hemodinâmica. Pelo contrário, a evidência acumulada de 18 estudos demonstra que esses adjuvantes, nas janelas posológicas habituais, mantêm um perfil de segurança cardiovascular comparável ao uso de morfina isolada, consolidando-se como uma estratégia racional para otimizar o conforto materno intraoperatório.

Interações Farmacodinâmicas e Sinergismo

Do ponto de vista farmacológico, a segurança observada fundamenta-se nas propriedades físico-químicas distintas dos agentes analisados. Enquanto a morfina, por sua hidrofilia e baixa afinidade pelos receptores μ, exige um período de latência prolongado para atingir concentrações terapêuticas no corno dorsal da medula, o fentanil e o sufentanil apresentam alta lipossolubilidade e rápido início de ação medular.

Este sinergismo permite colmatar a "janela de vulnerabilidade analgésica" intraoperatória sem adicionar um componente simpaticolítico clinicamente relevante. Nossos resultados sugerem que o impacto hemodinâmico desses opioides é desprezível quando comparado ao bloqueio simpático pré-ganglionar induzido pelos anestésicos locais. Assim, a hipotensão arterial materna deve ser interpretada como um desfecho primariamente dose-dependente da bupivacaína, e não como uma consequência da adição de adjuvantes lipofílicos.

Fentanil versus Sufentanil: Uma Análise de Equivalência

Um ponto crítico desta revisão foi a comparação entre fentanil (10–25 μg) e sufentanil (1,5–7,5 μg). Embora o sufentanil possua potência analgésica e lipossolubilidade superiores, a análise integrada não evidenciou superioridade clínica em termos de estabilidade pressórica ou redução de efeitos adversos. A escassez de estudos head-to-head com padronização rigorosa de doses de anestésicos locais sugere que a escolha entre esses agentes deve ser pautada por critérios de custo-efetividade e disponibilidade institucional, dado que ambos oferecem perfis de segurança equivalentes para o binômio mãe-feto.

Heterogeneidade de Desfechos e Fatores de Confusão

Os desfechos secundários, como náuseas, vômitos (NVIO) e bradicardia, apresentaram elevada heterogeneidade metodológica. A literatura revisada falha, em grande parte, ao não isolar variáveis de confusão críticas, como a velocidade de correção da hipotensão, a intensidade da tração peritoneal e o uso de uterotônicos (especialmente a ocitocina), que possuem perfis eméticos e hemodinâmicos próprios. Portanto, a atribuição de NVIO puramente ao uso de opioides intratecais carece de sustentação estatística robusta nesta síntese qualitativa.

Implicações para a Prática e Limitações

A principal limitação desta revisão reside na variabilidade dos protocolos de manejo pressórico entre os centros terciários analisados. A diversidade nas estratégias de co-hidratação e na escolha de vasopressores (fenilefrina vs. efedrina) impõe cautela na generalização absoluta dos dados. No entanto, o baixo risco de viés observado na maioria dos ensaios clínicos randomizados reforça a validade externa de que a segurança da raquianestesia obstétrica reside na vigilância hemodinâmica e na prontidão terapêutica do anestesiologista, e não na exclusão de adjuvantes farmacológicos.

CONCLUSÃO

A presente revisão sistemática evidencia que a incorporação de opióides lipofílicos (fentanil e sufentanil) como adjuvantes à morfina intratecal na raquianestesia para cesariana é uma estratégia farmacológica segura e eficaz. Os dados demonstram que essa associação não exacerba a instabilidade hemodinâmica materna, refutando a hipótese de que esses agentes contribuem de forma independente para o agravamento da hipotensão arterial ou da bradicardia. A ocorrência de eventos hemodinâmicos adversos permanece intrinsecamente vinculada à magnitude do bloqueio simpático induzido pelo anestésico local, e não à presença dos adjuvantes lipofílicos nas doses recomendadas.

Não se observou superioridade clínica de um opióide lipofílico sobre o outro em relação ao perfil de segurança cardiovascular ou incidência de efeitos colaterais. Consequentemente, a seleção entre fentanil e sufentanil deve ser orientada por critérios de disponibilidade farmacêutica, custo-efetividade e familiaridade técnica da equipe de anestesiologia.

Apesar da consistência dos achados de segurança, a heterogeneidade metodológica observada nos estudos — particularmente quanto às doses de bupivacaína e à falta de uniformidade nas definições de desfechos secundários — impõe a necessidade de ensaios clínicos futuros com protocolos mais padronizados. Em suma, a otimização da analgesia intraoperatória multimodal deve ser encorajada, desde que inserida em protocolos rigorosos de monitorização e manejo pressórico proativo, garantindo a excelência no cuidado ao binômio mãe-feto.

IMPLICAÇÕES PARA A PRÁTICA CLÍNICA

Os achados desta revisão sistemática oferecem subsídios robustos para a prática anestésica obstétrica ao demonstrar que a associação de opióides lipofílicos à morfina intratecal constitui uma estratégia segura e eficaz. A evidência desmistifica o receio de que esses adjuvantes exacerbem a instabilidade cardiovascular, confirmando que seu impacto na estabilidade hemodinâmica materna é clinicamente irrelevante nas janelas posológicas recomendadas.

Do ponto de vista assistencial, os resultados reiteram que a gênese da hipotensão arterial materna reside na magnitude do bloqueio simpático induzido pelo anestésico local, e não na adição de opióides lipofílicos. Portanto, o foco central da estratégia anestésica deve permanecer no manejo hemodinâmico proativo — incluindo co-hidratação e uso oportuno de vasopressores — e não na exclusão de adjuvantes que comprovadamente otimizam a qualidade da analgesia intraoperatória.

A ausência de superioridade clínica clara entre o fentanil (10–25 μg) e o sufentanil (2,5–5 μg) confere ao anestesiologista flexibilidade na escolha do agente, que deve ser pautada por critérios de disponibilidade institucional e custo-efetividade. A variabilidade na demanda por intervenções farmacológicas observada nos estudos reforça a necessidade premente de padronização institucional dos protocolos de profilaxia pressórica.

Quanto aos desfechos de náuseas, vômitos e bradicardia, a natureza multifatorial desses eventos exige uma abordagem individualizada e vigilante. A implementação de protocolos sistemáticos de monitorização e o registro criterioso de efeitos adversos são fundamentais para o aprimoramento contínuo da segurança assistencial.

Em suma, esta revisão apoia uma abordagem racional da analgesia multimodal na obstetrícia moderna, integrando o uso de opióides lipofílicos como ferramentas essenciais para o conforto materno, sem negligenciar a vigilância hemodinâmica rigorosa necessária para a manutenção da vitalidade neonatal.

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