A RELAÇÃO ENTRE CADASTRO E PLANEJAMENTO URBANO NOS MUNICÍPIOS DO BRASIL: UMA ANÁLISE POSSÍVEL

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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.12659258


Nathan Belcavello de Oliveira1


RESUMO
O objetivo deste trabalho é analisar a relação entre o cadastro e o planejamento urbano nos Municípios brasileiros a partir do aporte de informações disponíveis. Assim, inicia estabelecendo as raízes históricas da propriedade fundiária no Brasil, seus conflitos e a evolução para da terra até sua situação enquanto mercadoria. Propõe uma análise da evolução do planejamento urbano brasileiro, bem como da situação de desenvolvimento dos sistemas de cadastro municipais no país. Então parte para uma análise geral da relação entre o cadastro a nível municipal e do planejamento urbano a partir de dados disponíveis na Pesquisa de Informações Básicas Municipais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2022). Por fim são feitas algumas considerações acerca dos resultados da análise.
Palavras-chave: Cadastro. Planejamento Urbano. Município. Propriedade Fundiária.

ABSTRACT
The objective of this work is to analyze the relationship between cadastral and urban planning in Brazilian Municipalities based on the available information. Thus, it begins by establishing the historical roots of land ownership in Brazil, its conflicts and the evolution of land to its status as a commodity. It proposes an analysis of the evolution of Brazilian urban planning, as well as the development situation of municipal cadastral systems in the country. Then we move on to a general analysis of the relationship between cadastral at the municipal level and urban planning based on data available in the “Basic Municipal Information Survey” of the “Brazilian Institute of Geography and Statistics” (IBGE, 2022). Finally, some considerations are made about the results of the analysis.
Keywords: Cadastral. Urban Plannig. Municipality. Land Ownership.

1 INTRODUÇÃO

Conhecer o território é tarefa primordial do Estado. Tal premissa ganha ainda mais importância ao considerar a cidade enquanto território de vivência das pessoas e onde buscam saciar suas necessidades e expectativas. Historicamente, esse é um desafio enorme no Brasil. Ganha contornos ainda mais expressivos junto aos Municípios. Em parte, pelas dimensões continentais do país e a grande diversidade ambiental que possui. Em parte, pelo modelo de ocupação do território, adotado desde o período colonial, conciliado pela exploração e desigualdade econômica e social caracterizadas pelos séculos de escravidão e pela posterior organização fundiária excludente no campo e na cidade.

Contudo, mesmo lentamente e com muito esforço, o país tem avançado no sentido de buscar solução a seus desafios. No sentido de tentar sinalizar esse caminho está a análise da relação entre o cadastro e o planejamento urbano nos Municípios brasileiros. Parte-se do estabelecimento das raízes históricas da propriedade fundiária no Brasil, seus conflitos e a evolução para da terra até sua situação enquanto mercadoria. Apresenta-se uma análise possível acerca da evolução do planejamento urbano brasileiro, bem como da situação de desenvolvimento dos sistemas de cadastro municipais no país. Então se analisa a relação entre o cadastro a nível municipal e o planejamento urbano, a partir de dados disponíveis na Pesquisa de Informações Básicas Municipais (MUNIC) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2022), sistematizados em gráficos. Por fim são feitas algumas considerações acerca dos resultados da análise.

2 A TERRA NO BRASIL: DO USO À MERCADORIA

Antes de começar a falar sobre cadastro e planejamento urbano no Brasil é necessário compreender como a terra ganha valor de troca para além de seu valor de uso e como isso influenciou o desenvolvimento, principalmente, do cadastro no país.

Da chegada dos portugueses às terras de Santa Cruz até o início efetivo da ocupação do território que mais tarde seria parte do Brasil, passaram-se mais de três décadas. Isso é explicado por dois motivos: a escassez de população em Portugal a ser utilizada para o empreendimento colonizador e a simples falta de interesse pela terra descoberta, uma vez que o comércio com o Oriente oferecia maior renda à Coroa lusitana à época.

Contudo, motivado pelo perigo eminente de concretização da posse pela França, que há muito já saqueava a costa brasileira, o rei Dom João III concede as denominadas Capitanias a nobres portugueses (Oliveira, 2013, p. 2). O desconhecimento acerca dos limites da terra, a urgência de realizar a ocupação e a concorrência com o comércio com o Oriente fizeram com que, desde o início, houvesse superposição das doações feitas, como podemos ver na comparação entre os mapas da Figura 1.

Figura 1. As primeiras Capitanias do Brasil, segundo as Cartas de Doação de Dom João III entre 1534 e 1536: comparativo entre os limites historicamente convencionados e os descritos nas cartas

Diagrama

Descrição gerada automaticamente com confiança média
Fonte: Oliveira (2013, p. 3).

Mas como a ocupação do território das Capitanias não foi realizada por todos que as receberam, assim como o interesse da Coroa portuguesa era, na verdade, conseguir chegar mais próximo das riquezas descobertas pela Espanha em suas possessões mais a oeste, nunca houve a vontade de se fazer um controle acerca da propriedade das terras. Mesmo porque para a Coroa, na verdade, as terras permaneciam sob a propriedade do rei, sendo a efetiva ocupação do território o que garantia a posse da terra por parte dos colonizadores. Inclusive isso foi usado por Portugal para ultrapassar os limites de suas possessões na América para além do meridiano de Tordesilhas[2] a partir do princípio do Uti Possidetis, que considera a posse aos povoadores europeus das terras tiradas dos povos nativos (Andrade, 1996).

Além do que já escrito, a abundância de terras a ser ocupada fazia com que seu valor fosse concentrado em seu uso, deixando o valor de troca par ao que era escasso no território: a mão de obra. A proteção, mesmo que tímida, da Igreja e a cultura dos nativos fizeram com que o tráfico de negros da África para a América virasse um negócio lucrativo. Por usa vez, a posse de escravos representava uma renda e um investimento necessários dentro do modo de produção estabelecido na colônia. Isso se estende até as primeiras seis décadas de independências do Brasil, que não muda a estrutura econômica e social herdada do período colonial.

Somente a partir de pressões, em grande medida da Inglaterra, pela propagação do trabalho assalariado no mundo e, consequentemente, o fim da escravidão, é que no Brasil começa a surgir mudanças que dão à propriedade fundiária valor de troca e sua conversão em mercadoria. Em 4 de setembro de 1850 é aprovada a Lei nº. 581 (Brasil, 1850a), conhecida pelo nome de seu autor, Eusébio de Queiroz, que proibiu o tráfico de escravos desde a África. Não por coincidência, no dia 18 dos mesmos mês e ano é aprovada a Lei nº. 601 (Brasil, 1850b), conhecida como Lei de Terras que, pela primeira vez, estabeleceu regras para a propriedade privada da terra no Brasil.

Mesmo que a efetiva abolição da escravidão tenha se concretizado 38 anos depois, o estabelecimento das regras para a propriedade privada do solo, juntamente com a falta de vontade de fazer o real controle dos registros feitos, dava respaldo para o que, na verdade, era interesse da elite econômica e política do país: garantir que os escravos libertos e a mão de obra “livre”, que começava a vir da Europa, não tivessem alternativa outra que o trabalho nas grandes fazendas. Esse interesse perseguiu a sociedade brasileira por anos (Oliveira, 2020).

3 O CADASTRO NO BRASIL (OU SUA QUASE INEXISTÊNCIA)

Por isso o Brasil não desenvolveu um sistema de cadastro desde, pelo menos, sua independência. Somente com o estabelecimento sistemático da cobrança de imposto sobre a propriedade do solo seja rural, que mudou de atribuição entre os governos estaduais e federal ao longo das constituições brasileiras, seja urbano, oferecido aos Municípios como receita orçamentária própria, o cadastro para fins fiscais é desenvolvido no país.

As incongruências acerca dos registros de propriedade e dos cadastros fiscal e territorial proporcionaram um cenário de irregularidade fundiária quase que geral em muitas cidades e, também, no campo. Cenário também proporcionado pelas dinâmicas espaciais do Brasil, principalmente os processos de urbanização acelerado e de industrialização tardia, conciliados com uma modernização conservadora do campo. Muitos foram os esforços do Estado para solucionar o tema da irregularidade fundiária e algumas políticas públicas recentes conseguiram algum êxito.

Sobre as áreas urbanas, de competência constitucional dos Municípios, ações de apoio do Governo Federal para a regularização fundiária e o desenvolvimento de cadastros territoriais multifinalitários alcançaram resultados positivos em muitas cidades. A proposta do Cadastro Territorial Multifinalitário (CTM) é o inventário territorial oficial e sistemático de um Município e se baseia no levantamento dos limites de cada parcela (imóvel), que recebe uma identificação numérica e inequívoca (Ministério das Cidades, 2007). Ou seja, é um cadastro que propõe, a partir da menor entidade federativa do país – o Município – fazer a integração dos dados espaciais (territorial, ambiental, social, jurídico, entre outros) de cada imóvel em que se divide o território municipal. O alcance atual do CTM ainda é débil considerando o desafio existente, mas é possível perceber que apontam para melhoras consideráveis.

O desenvolvimento do cadastro ajudou na gestão municipal, especificamente no planejamento urbano no que diz respeito à gestão do solo a partir dos princípios do Estatuto da Cidade (Brasil, 2001), em especial o da função social da propriedade.

4 UMA ANÁLISE GERAL DO CADASTRO E DO PLANEJAMENTO URBANO NO BRASIL

Gráfico 1. Porcentagem de Municípios por situação do cadastro imobiliário e existência de plano diretor, por faixas de população municipal total, em 2005, 2009 e 2015*

Uma imagem contendo Gráfico

Descrição gerada automaticamente
* A Prefeitura Municipal de Ipiranga (Paraná) se recusou a responder a MUNIC de 2015.
Fonte: elaboração própria a partir de dados do IBGE (2022).

A Pesquisa de Informações Básicas Municipais, conhecida como MUNIC, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2022), oferece dados acerca do cadastro imobiliário para cobrança do Imposto sobre a Propriedade Territorial e Urbana (IPTU) pelos Municípios brasileiros. Também levanta dados sobre a existência de Leis municipais de plano diretor para os anos de 2005, 2009 e 2015. Tais dados foram sintetizados no Gráfico 1.

A análise desses dados permite deduzir que o cadastro imobiliário está disseminado entre os Municípios brasileiros. Em todas as cinco faixas de população municipal em que se distribuíram os Municípios do país apresentam porcentagens superiores a 90% entre os que declararam tê-lo para os anos de 2005, 2009 e 2012. Além disso, as porcentagens de cadastro imobiliário informatizado é expressivamente alta, sendo a menor a de 73,9% em 2005, para Municípios com menos de 10 mil habitantes. Isso favorece a implantação do CTM, uma vez que a entrada de informações dos imóveis é facilitada pelos bancos de dados informatizados.

De maneira geral, todas as faixas de população apresentam uma evolução crescente da porcentagem dos Municípios com cadastro imobiliário informatizado. Entretanto, claramente esse crescimento se dá pela informatização de cadastros já existentes. Isso fica ainda mais patente na faixa de 10 mil a 20 mil habitantes (faixa 2) ao se comparar os dados de 2005 e 2015, tendo o último ano metade da porcentagem de Municípios com cadastro não informatizado, respectivamente, 8,0% e 16,0% (IBGE, 2022). Por sua vez, a porcentagem dos Municípios sem cadastro permanece muito similar entre os anos observados, com variações mínimas. Tal constatação reforça a análise da informatização de cadastros já existentes.

Já a informação relacionada com a existência de Lei municipal de plano diretor mostra a realidade ligada à legislação do país, uma vez que a obrigatoriedade de plano diretor para Municípios com menos de 20 mil habitantes só se aplica àqueles integrantes de regiões metropolitanas ou de aglomerações urbanas, como disposto na Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001, conhecida como Estatuto da Cidade (inciso II do artigo 41). Desse modo, a porcentagem de Municípios agrupados nas duas primeiras faixas de população municipal é muito inferior que as demais. Contudo, a evolução da existência do plano diretor é positiva entre todos os grupos, inclusive entre os Municípios sem obrigatoriedade de ter esse instrumento básico de desenvolvimento urbano.

Inicialmente os dados sobre cadastro imobiliário e plano diretor podem não apresentar uma relação, já que a porcentagem de Municípios com cadastro é alta em todos os anos e entre todas as faixas. Ou seja, mesmo que um Município não tenha plano diretor, é provável que tenha cadastro imobiliários e que este seja informatizado.

Gráfico 2. Porcentagem de Municípios por situação do cadastro imobiliário com plano diretor, por faixas de população municipal total, em 2005, 2009 e 2015*

Uma imagem contendo Aplicativo

Descrição gerada automaticamente
* A Prefeitura Municipal de Ipiranga (Paraná) se recusou a responder a MUNIC de 2015.
Fonte: elaboração própria a partir de dados do IBGE (2022).

Gráfico 3. Porcentagem de Municípios por situação do cadastro imobiliário sem plano diretor, por faixas de população municipal total, em 2005, 2009 e 2015*

Uma imagem contendo Padrão do plano de fundo

Descrição gerada automaticamente
* A Prefeitura Municipal de Ipiranga (Paraná) se recusou a responder a MUNIC de 2015.
Fonte: elaboração própria a partir de dados do IBGE (2022).

Considerando os dados dispostos nos Gráficos 2 e 3 é possível ver melhor a relação entre o cadastro e a existência do plano diretor. O Gráfico 2 apresenta a situação do cadastro imobiliário para cobrança do IPTU entre os Municípios que declararam ter o plano diretor nos anos de 2005, 2009 e 2015, distribuídos nas faixas de população municipal total. Em oposição, o Gráfico 3 traz a situação do cadastro entre aqueles que declararam não ter o plano diretor.

Uma primeira diferença fica óbvia por meio da observação dos gráficos supracitados. A porcentagem de Municípios com cadastro imobiliário informatizado é expressamente superior entre aqueles com plano diretor que entre os sem tal instrumento de planejamento em todas as faixas populacionais. No sentido oposto, entre os Municípios sem plano diretor, as porcentagens daqueles sem cadastro é visivelmente maior. Há, até mesmo, um aumento nas faixas 2 (de 10 mil a menos de 20 mil habitantes), sendo 5,0% em 2005 e 9,0% em 2009 e 2015; e 4 (50 mil ou mais habitantes), sem registros em 2005 e 2009 e com 11,0% em 2015 (IBGE, 2022). Isso aponta para dificuldades em relação ao planejamento e à gestão desses Municípios.

Gráfico 4. Porcentagem de Municípios por situação do cadastro imobiliário em 2019* pela situação do plano diretor em 2015**

Gráfico

Descrição gerada automaticamente
* As Prefeituras Municipais de Altamira (Pará) e São Miguel do Guaporé (Rondônia) se recusaram a responder a MUNIC de 2019.
** A Prefeitura Municipal de Ipiranga (Paraná) se recusou a responder a MUNIC de 2015.
Fonte: elaboração própria a partir de dados do IBGE (2022).

Por sua vez, a MUNIC de 2019 (IBGE, 2022) é a primeira pesquisa da série e acrescenta a questão acerca de cadastro imobiliário georreferenciado. Contudo, a referida pesquisa não pergunta acerca da existência de Lei municipal de plano diretor. Assim, o Gráfico 4 procurou conciliar os dados de existência do plano diretor em 2015 com aqueles referentes à situação do cadastro em 2019, agregando informação que aproxima a análise ao CTM.

Aqui, novamente, a existência do plano diretor revela um avanço com relação à tecnologia empregada para o cadastro imobiliário. Em todas as faixas de população municipal a porcentagem de Municípios com cadastro georreferenciado é maior, igualando em 45,5% com a porcentagem daqueles com cadastro informatizado entre os Municípios com 50 mil habitantes ou mais (faixa 4). Já entre os Municípios sem plano diretor é expressiva a porcentagem daqueles sem cadastro imobiliário para cobrança do IPTU, ficando todas as faixas em 10,0% ou um pouco mais.

5 CONCLUSÃO/CONSIDERAÇÕES FINAIS

É possível depreender da análise a relação positiva entre o cadastro territorial e o planejamento urbano. Para além da análise, a simples existência de dados e informações sobre o território é fundamental para um planejamento adequado, uma vez que este trata de previsões a partir das informações das dinâmicas espaciais existentes. O cadastro, desse modo, cumpre a tarefa de organizar e racionalizar tais dinâmicas por meio de sua sistematização.

Fica patente que há uma ampla disseminação do cadastro entre os Municípios brasileiros. Contudo, muito ainda precisa ser feito no emprego de tecnologias que aumentem a eficácia desse cadastro não somente para uma cobrança mais justa e eficiente do IPTU, mas, principalmente, para sua utilização aprimorada junto ao planejamento urbano. Nesse sentido, o planejamento urbano, sinalizado pela existência do instrumento básico do desenvolvimento urbano, a lei municipal do plano diretor, acaba exercendo forte influência sobre a modernização do cadastro.

Longe de esgotar o tema debatido, esse trabalho buscou mostrar que um conjunto considerável dos Municípios brasileiros está no caminho para um horizonte que tende a avançar na solução dos desafios territoriais. Tal caminho passa, necessariamente, pela proliferação do planejamento urbano, cuja orientação do plano diretor ganha força, independente da obrigatoriedade de elaboração. Também o Governo Federal e dos Estados precisam assumir o compromisso em apoiar técnica e financeiramente aos Municípios, reforçando os laços de cooperação interfederativa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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1 Geógrafo no cargo de Analista de Infraestrutura, especialidade em Desenvolvimento Urbano, atuando no Ministério das Cidades. Pós-graduado em MBA em Gestão de Cidades e Agronegócio da Faculdade Única de Ipatinga, Minas Gerais. Correio eletrônico: [email protected]

2 Que, na realidade, nunca foi realmente estabelecido, devido a imprecisões no tratado e pela simples falta de tecnologia na época para marcar as posições (Brandão, 1995).