A FALHA NO DEVER DE PROTEÇÃO DA ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE DO IGARAPÉ CHICO REIS PELO MUNICÍPIO DE RORAINÓPOLIS – RORAIMA

PDF: Clique aqui


REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.17794670


Amadeu Ribeiro Neto1


RESUMO
Este trabalho tem como objetivo demonstrar a responsabilidade do município de Rorainópolis pela omissão no dever de fiscalização em relação à Área de Preservação Permanente (APP) do Igarapé Chico Reis. A omissão do ente público é caracterizada pela ausência de fiscalização da destruição da mata ciliar, construções irregulares, lançamento de esgoto doméstico sem tratamento, e abertura de vias irregulares na APP. Essa negligência afeta o bem-estar social e a saúde pública, pois o esgoto lançado contamina os lençóis freáticos, que por sua vez, contaminam cisternas e poços artesianos que abastecem grande parte da cidade. O problema é crônico, com agressões constatadas desde 2005. Pesquisas de 2018 apontam a existência de 18% de construções em média em parcelas amostradas da APP, evidenciando a falha do município em coibir as ocupações irregulares. Conforme a Súmula 652 do STJ, a responsabilidade civil da Administração Pública por danos ambientais decorrentes de omissão no dever de fiscalização é solidária, mas de execução subsidiária. O município tem o dever de fiscalizar e coibir ocupações. São apresentadas duas soluções jurídicas para as ocupações antigas: a desapropriação por interesse social, que gera o dever de indenização e é impopular ; e a regularização fundiária urbana (Lei nº 13.465/2017 e Resolução CONAMA nº 369/2006), que é menos onerosa ao poder público, mas desvantajosa ao particular por ser condicionada ao estudo de impacto ambiental e aos princípios da prevenção e in dubio pro natura. Conclui-se que o município deve gerir o processo de urbanização por meio do Plano Diretor Municipal.
Palavras-chave: Rorainópolis, Área de Preservação Permanente (APP), Igarapé Chico Reis, Omissão, Responsabilidade Civil da Administração Pública, Saúde Pública.

ABSTRACT
This paper aims to demonstrate the responsibility of the municipality of Rorainópolis for the omission in the duty of inspection regarding the Permanent Preservation Area (APP) of the Chico Reis Stream. The public entity's omission is characterized by the lack of inspection of the destruction of the ciliary forest, irregular constructions, release of untreated domestic sewage, and the opening of irregular roads in the APP. This negligence affects social well-being and public health, as the sewage released contaminates the water table, which, in turn, contaminates cisterns and artesian wells that supply a large part of the city. The problem is chronic, with aggressions noted since 2005. Research from 2018 indicates the existence of an average of 18% of constructions in sampled plots of the APP, highlighting the municipality's failure to curb irregular occupations. According to STJ Precedent 652, the civil liability of the Public Administration for environmental damages resulting from the omission of the duty to inspect is joint and several, but of subsidiary execution. The municipality has the duty to inspect and curb occupations. Two legal solutions are presented for old occupations: expropriation for social interest, which generates the duty of compensation and is unpopular; and urban land regularization (Law No. 13.465/2017 and CONAMA Resolution No. 369/2006), which is less burdensome for the public authority but disadvantageous for the private individual as it is conditional on the environmental impact study and the principles of prevention and in dubio pro natura. It is concluded that the municipality must manage the urbanization process through the Municipal Master Plan.
Keywords: Rorainópolis, Permanent Preservation Area (APP), Chico Reis Stream, Omission, Public Administration Civil Liability, Public Health.

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como foco central a análise da responsabilidade civil do município de Rorainópolis em face da omissão no dever de fiscalização sobre a Área de Preservação Permanente (APP) do Igarapé Chico Reis. Ao se omitir, o ente público tem permitido a progressiva degradação de um bem ambiental essencial para a comunidade local, o que gera sérias consequências jurídicas e sociais.

O objetivo principal desta pesquisa é demonstrar a caracterização da responsabilidade solidária, mas de execução subsidiária, do município de Rorainópolis por danos ambientais decorrentes de sua negligência e omissão continuada no controle e fiscalização da APP do Igarapé Chico Reis, para o que o estudo aponta o posicionamento consolidado das cortes superiores em casos análogos e avalia as soluções jurídicas mais viáveis para a mitigação do dano e a recuperação da área.

Diante do cenário de degradação crônica, materializada pela destruição da mata ciliar, construções irregulares, lançamento de esgoto doméstico sem tratamento e abertura de vias ilícitas na APP, o problema que norteia esta pesquisa é: De que maneira a omissão do município de Rorainópolis no dever de fiscalização da Área de Preservação Permanente do Igarapé Chico Reis se configura como um ato ilícito gerador de responsabilidade civil e quais são as soluções jurídicas mais eficazes para compatibilizar a proteção ambiental com as ocupações urbanas existentes?

A relevância deste estudo é inquestionável, pois, sob o aspecto ambiental e social, a omissão municipal acarreta a contaminação direta dos lençóis freáticos e, consequentemente, das cisternas e poços artesianos que abastecem grande parte da população, afetando gravemente a saúde pública e o bem-estar social. Este é um problema crônico, com agressões constatadas em trabalhos acadêmicos desde 2005, e que se agrava com pesquisas de 2018 indicando uma média de 18% de construções irregulares nas parcelas amostradas da APP.

Já em termos jurídicos, o trabalho se justifica por aplicar a tese firmada na Súmula 652 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que estabelece a responsabilidade civil da Administração Pública como solidária, mas de execução subsidiária, reafirmando o dever do município de fiscalizar e coibir ocupações.

Por fim, na esfera prática, o estudo apresenta e discute as duas principais soluções jurídicas para as ocupações antigas — a desapropriação por interesse social e a regularização fundiária urbana (conforme a Lei nº 13.465/2017 e a Resolução CONAMA nº 369/2006) —, visando oferecer um caminho prático para a gestão do processo de urbanização através do Plano Diretor Municipal, concluindo sobre a viabilidade e os desafios de cada via legal. Por derradeiro, o presente artigo abordará as soluções jurídicas mais viáveis a este caso concreto do ponto de vista legal e normativo, promovendo uma análise detalhada das políticas públicas que devem ser adotadas para sanear a omissão administrativa. A metodologia da pesquisa foi a bibliográfica.

2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Segundo o portal eletrônico do IBGE2, o município de Rorainópolis foi criado pela Lei Estadual n.º 100, em 17 de outubro de 1.995 situado no Sul de Roraima, possui área de 33.579,739 km² e contava com uma população de 32.647 (trinta e dois mil, seiscentos e quarenta e sete pessoas) conforme o censo de ano de 2.022, sendo o segundo maior município de Roraima tanto em população quanto em área territorial.   

Neste contexto, o igarapé Chico Reis é o principal curso de água da zona urbana da cidade de Rorainópolis posto que recebe a água de quase todos os demais cursos d'água naturais que passam na zona urbana de Rorainópolis conforme mostra esta fotografia aérea da cidade de Rorainópolis contida em publicação científica de autoria de Danielle Maria Dias dos Santos et al (2021).

DANIELE ET AL

Todavia, as agressões impostas a área de preservação permanente do igarapé chico reis na zona urbana do município de Rorainópolis - RR foram constatadas desde 2.005 pelos pesquisadores Altyvir Lopez Marques e Edson Roberto Oaigen (2005) analisando a ocupação irregular e a poluição do Igarapé Chico Reis em diferentes pontos do município de Rorainópolis e suas consequências para a saúde pública, concluíram que em algumas épocas do ano, como no inverno, o desmatamento das matas ciliares em alguns pontos do município bem como o despejo de resíduos sólidos no corpo hídrico acarretam problemas no fluxo e volume de água do igarapé, ocasionando em enchentes e doenças aos moradores de Rorainópolis.

O assoreamento e obstrução do igarapé chico reis em razão da destruição da mata ciliar é fato notório conforme o registro feito por Danielle Maria Dias dos Santos et al (2021) conforme fica claro pelas fotografias abaixo.

FOTO ATUAL PG 14

Por todo o exposto, vale destacar que o problema da degradação da área de preservação permanente do igarapé Chico Reis é antigo visto que a destruição de mata ciliar, poluição por esgoto doméstico e as construções irregulares já eram noticiadas pelos pesquisadores Altyvir Lopez Marques e Edson Roberto Oaigen ainda no ano de 2.005 e o registro fotográfico que ilustra esta página foi feito agora no ano de 2.021 por Danielle Maria Dias dos Santos et al.

2.1. Dos Limites Legais da Área de Preservação Permanente do Igarapé Chico Reis na Zona Urbana Urbana do Município de Rorainópolis e das Construções Irregulares.

O Egrégio Superior Tribunal de Justiça ao analisar o tema repetitivo 1.0103 no ano de 2.021 chegou a seguinte proposição.

“Na vigência do novo Código Florestal (Lei n. 12.651/2012), a extensão não edificável nas Áreas de Preservação Permanente de qualquer curso d'água, perene ou intermitente, em trechos caracterizados como área urbana consolidada, deve respeitar o que disciplinado pelo seu art. 4º, caput, inciso I, alíneas a, b, c, d e e, a fim de assegurar a mais ampla garantia ambiental a esses espaços territoriais especialmente protegidos e, por conseguinte, à coletividade.” (Destaquei)

Na prática, com esta medida além de outros bens jurídicos relevantes, o STJ visa resguardar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas (art. 3º, II, Lei nº 12.651/2012).

Neste sentido, o Código Florestal considera como APP as faixas marginais, em zonas rurais ou urbanas, de qualquer curso d’água natural, em faixa que pode variar entre 30 (trinta) e 500 (quinhentos) metros, a depender da largura do respectivo curso d’água (art. 4º, I, Lei nº 12.651/2012).

Como não houve nenhuma ressalva pelo STJ em relação as áreas de preservação permanente dos cursos de água que foram canalizados no tema repetitivo nº 1.010 e tampouco na resolução nº 369 do CONAMA, podemos concluir claramente que embora parte do igarapé Chico Reis tenha sido canalizado, mesmo este trecho ainda permanece como área de preservação permanente.

No ano de 2.018, foi realizado um estudo de caso pela engenheira florestal Alana da Silva Sousa (2018) que chegou aos seguintes dados em relação as construções irregulares nas área de preservação permanente do igarapé Chico Reis.

Capturar

Na realização do estudo de caso em comento foram analisadas dez parcelas de solo destacadas e individualizadas na tabela acima que somaram ao todo 39.350,4 metros quadrados (3,94 ha) do total de 76 hectares estimandos como área de preservação permanente do igarapé Chico Reis no município de Rorainópolis.

Portanto, está havendo claramente a omissão do ente público municipal em fiscalizar e coibir as ocupações irregulares não só na área de preservação permanente mas como toda forma de ocupação irregular.

3. RESULTADOS E DISCUSSÃO

3.1. Da Responsabilidade do Município de Rorainópolis Pela Omissão no Dever de Fiscalização da Área de Preservação Permanente do Igarapé Chico Reis

O dever de proteção no qual o referido ente público está sendo omisso está previsto dentre outros dispositivos legais previstos no nosso ordenamento jurídico nos artigos 23, VII, 30, VIII, e 225, §§ 1º e 3º, da CRFB/1.988 e da Lei nº 9.605/1998.

Em relação a competência administrativa para execução efetiva das políticas ambientais que dentre outras competências definidas na Lei Complementar nº 140/2.011 obrigam especificamente o referido ente público a avaliar e coordenar, do ponto de vista legal, qualquer intervenção humana em área de preservação permanente, aqui apontadas pelo doutrinador Paulo de Bessa Antunes (2019) estão as seguintes:

“A promoção do licenciamento ambiental de atividades ou empreendimentos que causem ou possam causar impacto ambiental de âmbito local, conforme tipologia definida pelos respectivos Conselhos Estaduais de Meio Ambiente, considerados os critérios de porte, potencial poluidor e natureza da atividade; ou (ii) localizados em unidades de conservação instituídas pelo Município, exceto em Áreas de Proteção Ambiental (APAs), observadas as atribuições dos demais entes federativos prevista na Lei Complementar nº 140/2.011;”

“A aprovação ou não da supressão e o manejo de vegetação, de florestas e formações sucessoras em florestas públicas municipais e unidades de conservação instituídas pelo Município, exceto em Áreas de Proteção Ambiental (APAs); e a supressão e o manejo de• vegetação, de florestas e formações sucessoras em empreendimentos licenciados ou autorizados, ambientalmente, pelo Município, observadas as atribuições dos demais entes federativos prevista na Lei Complementar nº 140/2.011.”

Pois bem, estando já entendido qual o papel institucional do município que se aplica as políticas públicas de defesa das áreas de preservação permanente, passaremos ora a apontar os elementos jurídicos de responsabilização deste ente público pela omissão no dever de fiscalização.

No dia 06 de dezembro de 2.021, o Superior Tribunal de Justiça lançou a Súmula 652 que firmou o entendimento que a responsabilidade civil da Administração Pública por danos ao meio ambiente, decorrente de sua omissão no dever de fiscalização, é de caráter solidário, mas de execução subsidiária.

O ministro Herman Benjamin ao proferir o seu voto no Recurso Especial nº 1.071.741(2008/0146043-5) que reflete o posicionamento atual do STJ, estabeleceu as seguintes premissas que são a base do entendimento vigente.

“(...) Para o fim de apuração do nexo de causalidade no dano urbanístico-ambiental e de eventual solidariedade passiva, equiparam-se quem faz, quem não faz quando deveria fazer, quem não se importa que façam, quem cala quando lhe cabe denunciar, quem financia para que façam e quem se beneficia quando outros fazem.(...)”

“(...) A Administração é solidária, objetiva e ilimitadamente responsável, nos termos da Lei 6.938/1981, por danos urbanístico-ambientais decorrentes da omissão do seu dever de controlar e fiscalizar, na medida em que contribua, direta ou indiretamente, tanto para a degradação ambiental em si mesma, como para o seu agravamento, consolidação ou perpetuação, tudo sem prejuízo da adoção, contra o agente público relapso ou desidioso, de medidas disciplinares, penais, civis e no campo da improbidade administrativa. (...)” (Destaquei)

“(...) No caso de omissão de dever de controle e fiscalização, a responsabilidade ambiental solidária da Administração é de execução subsidiária (ou com ordem de preferência).A responsabilidade solidária e de execução subsidiária significa que o Estado integra o título executivo sob a condição de, como devedor-reserva, só ser convocado a quitar a dívida se o degradador original, direto ou material (= devedor principal) não o fizer, seja por total ou parcial exaurimento patrimonial ou insolvência, seja por impossibilidade ou incapacidade, inclusive técnica, de cumprimento da prestação judicialmente imposta, assegurado, sempre, o direito de regresso (art. 934 do Código Civil), com a desconsideração da personalidade jurídica (art. 50 do Código Civil) (...)” (Destaquei)

No ano de 2.018, a Engenheira Florestal Alana da Silva Sousa (2019) dirigiu questionamento á Secretaria Municipal de Meio Ambiente, a respeito das políticas públicas de contenção as invasões irregulares na área de preservação do igarapé Chico Reis, no qual obteve a seguinte resposta.

“A Secretaria Municipal de Meio Ambiente, Ciência e Tecnologia (SEMACT), em resposta ao questionário, relata que a respeito das condições atuais da APP em relação a ocupação irregular, essas vem comprometendo o curso d’água de tal maneira que põe em risco a saúde pública, por exemplo, deslizamentos de terras, enchentes e doenças. Isso está em conformidade com a análise supervisionada do estudo em que comprovou-se edificações dentro das áreas de APP. Os responsavéis pelo controle e fiscalização dessas áreas ressaltam que trabalham apenas por denuncias feitas pelos cidadãos, e que não fazem esse controle de modo sistemático ou regurlamente. Pois a secretaria não possui quantidade de funcionário suficiente e recursos como por exemplo, quantidades de automóveis e combustível para atender os locais de ocorrência dessas práticas ilegais.De acordo com o levantamento de informações de campo, em outro momento houve a tentativa por parte da SEMACT em coibir as invasões em APP no sentido leste da cidade, para evitar a apropriação ilegal e o desmatamento ao entorno do corpo hidríco. Mas, como observado pelos técnicos e pelo mapeamento, não foi possível evitar as invasões. Em se tratando de reflorestamento em áreas de APP com sinais de degradação, a SEMACT, por meio de projetos tentou fazer reflorestamento de APP. No entanto, não obtiveram o apoio necessário para por em prática o projeto devido politica de acesso as mudas e não conseguiram recursos para a instalação de um viveiro com espécies nativas e frutiferas, pois necessitam de viveiros florestais e mão de obra qualificada para manutenção. Por outro lado, segundo o departamento fundiário, sugeriu que, para a revitalização de APP o ideal seria se a SEMACT, tivesse um departamento só pra fazer projetos voltados para recuperar as áreas degradadas de APP. De acordo com o representante do departamento fundiário, relata que o município ainda não tem leis municipais a respeito da APP. Além disso, fica dificíl coibir as invasões nessas áreas devido à resistência dos proprietários para permanecerem no local, e falta de recursos para auxíliar o trabalho de fiscalização de maneira eficiente. (...)” (Destaquei)

Vale destacar que a gestão municipal ainda hoje é a mesma da época do questionário posto que o prefeito Leandro Pereira se reelegeu em 2.020 para um segundo mandato4 e apesar do município já ter um Plano Diretor Municipal apresentado em 2.0225 a situação na Zona Urbana continua igual em relação as agressões na área de preservação permanente do igarapé chico reis.

Na imagem abaixo6 vemos uma via recém aberta agora no dia 20 de julho de 2.023 por particulares para a ocupação ilegal de um novo trecho da área de preservação do igarapé chico reis no Bairro Park Amazônia.

Capturar

O ministro Herman Benjamin também ao proferir o seu voto no Recurso Especial nº 1.071.741(2008/0146043-5) que reflete o posicionamento atual do STJ, estabeleceu o dever do agente público em relação as providências que devem ser adotadas para contenção de ocupação irregular.

“(...) Diante de ocupação ou utilização ilegal de espaços ou bens públicos, não se desincumbe do dever-poder de fiscalização ambiental (e também urbanística) o Administrador que se limita a embargar obra ou atividade irregular e a denunciá-la ao Ministério Público ou à Polícia, ignorando ou desprezando outras medidas, inclusive possessórias, que a lei põe à sua disposição para eficazmente fazer valer a ordem administrativa e, assim, impedir, no local, a turbação ou o esbulho do patrimônio estatal e dos bens de uso comum do povo, resultante de desmatamento, construção, exploração ou presença humana ilícitos. (...)” (Destaquei)

O ministro do STJ Herman Benjamin no julgamento do Recurso Especial nº 1.826.761 - RJ (2019/0164642-7) destacou que pertence ao ente municipal a responsabilidade pelo parcelamento, uso e ocupação do solo urbano, sendo a fiscalização in casu atividade vinculada e não discricionária.

De forma sucinta e objetiva existem duas soluções impostas pelo nosso ordenamento jurídico, a primeira é a revitalização da área de proteção permanente com a desapropriação por interesse social dos imóveis contidos em ocupações irregulares e a segunda é a regularização fundiária urbana possibilitada pela Resolução nº 369 do CONAMA.

A desapropriação por interesse social em razão da proteção do solo e a preservação de cursos e mananciais de água e de reservas florestais é prevista no artigo 2º, inciso VII da Lei nº 4.312/1.962 e é desvantajosa ao ente público pois é extremamente impopular e gera o dever de indenização justa e prévia por parte do ente público sob pena de ameaça ao direito constitucional á moradia e a ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana.

Em relação a segunda solução que é a regularização fundiária urbana pautada na lei federal nº 13.465/2017 e sobretudo na Resolução nº 369 do CONAMA de 28/03/2.006, temos que fazer as seguintes ressalvas.

Embora esta opção seja menos onerosa ao poder público esta opção também é impopular por impor mais gastos sem qualquer compensação a quem for regularizar o seu imóvel.

O artigo segundo desta resolução em comento prevê que a regularização fundiária sustentável por interesse social só pode ser autorizada mediante procedimento administrativo autônomo e prévio, e atendidos os requisitos previstos nesta resolução e noutras normas federais, estaduais e municipais aplicáveis, bem como no Plano Diretor dentre outras especificidades.

O ponto que deve ficar claro quando se trata da regularização fundiária sustentável de área urbana em área de preservação permanente nos moldes previstos no inciso II do artigo 2º da Resolução nº 369 é que o agente público responsável pelo julgamento do processo administrativo de regularização de imóvel situado em área de preservação permanente deve observar, havendo dúvidas razoáveis sobre o impacto ambiental da obra, além dos demais ditames legais, os princípios da prevenção e in dubio pro natura.

Para entendermos como o princípio da prevenção se aplica ao presente caso concreto, recorremos ao doutrinador Romeu Thomé (2015) que fala que o princípio da prevenção se apoia na certeza científica do impacto ambiental de determinada atividade. Ao se conhecer os impactos de uma obra já construída sobre o meio ambiente, impõe-se a adoção de todas as medidas preventivas hábeis a minimizar ou eliminar os efeitos negativos de uma atividade sobre o ecossistema.

No caso, em relação as moradias já construídas na área de preservação do igarapé Chico Reis haverá por certo muitos casos em que os moradores não terão condições financeiras para implementar as medidas exigidas por lei a reduzir o impacto ambiental, o que certamente obstará a regularização do imóvel.

Já para entendermos como o princípio in dubio pro natura se aplica ao presente caso concreto recorremos a fala do Ministro do STJ Paulo Sanseverino que ao julgar o Recurso Especial nº 1.356.207 - SP (2012/0251709-6) declarou que o princípio hermenêutico in dubio pro natura, deve reger a interpretação da lei ambiental para priorizar o sentido da lei que melhor atenda à proteção do meio ambiente.

Em outras palavras, a regularização fundiária sustentável de imóvel em área de preservação permanente é uma solução desvantajosa para o particular pois é onerosa e morosa e está condicionada a aprovação pelo estudo impacto ambiental que deve ser sem qualquer sombra de dúvidas favorável a construção, o que na prática torna esta uma solução excepcional.

Por fim, concluímos que não há uma solução que seja fácil, popular e vantajosa tanto ao particular quanto ao poder público in casu porém é dever do município gerir o processo de urbanização por intermédio do Plano Diretor Municipal. Plano este que deve obrigatoriamente estudar caso a caso e trazer uma solução individual e personalizada a cada um dos focos de ocupação irregular na área de preservação permanente do igarapé Chico Reis.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A prova cabal da omissão do referido ente público não só em relação à Área de Preservação Permanente (APP) do Igarapé Chico Reis, mas em relação a todos os aspectos da política ambiental definida por lei como responsabilidade do município, é a aprovação tardia do Plano Diretor Municipal apenas no ano de 2022.

Insta ressaltar que o município foi criado pela Lei Estadual em 17 de outubro de 1995, tendo, portanto, hoje menos de trinta anos de criação. Assim sendo, todas as mazelas ambientais aqui narradas poderiam ter sido evitadas caso houvesse, desde a fundação do município, um processo de urbanização organizado pelo Plano Diretor Municipal, conforme exigido pela Constituição Federal e pelo Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001). A ausência desse instrumento fundamental de gestão territorial por quase três décadas configura uma falha administrativa estrutural, responsável direta pelo caos urbanístico-ambiental instalado na APP, que deveria ter sido a espinha dorsal de qualquer política pública de uso e ocupação do solo.

No questionamento que foi dirigido à Secretaria Municipal de Meio Ambiente, podemos notar claramente que há ciência inequívoca por parte do poder público das ocupações irregulares, porém não há ações efetivas para a sua repreensão ou mesmo para a sua regularização. A própria declaração da secretaria, no sentido de que trabalha apenas por denúncias e que não possui recursos ou pessoal para a fiscalização sistemática, reforça a tese de omissão culposa, um estado de inação que contraria o dever constitucional de zelar pelo meio ambiente equilibrado (art. 225 da CRFB/88) e a competência administrativa vinculada estabelecida pela Lei Complementar nº 140/2011.

As soluções jurídicas para o presente caso concreto em relação a construções antigas são intrinsecamente desvantajosas tanto para o particular quanto para o referido ente público. Isso ocorre porque ambos os lados terão que despender tempo e recursos para a adequação das ocupações ou, então, para a indenização das famílias que seriam eventualmente realocadas com a desapropriação por interesse social.

Contudo, a principal implicação jurídica reside no entendimento do Superior Tribunal de Justiça (STJ), conforme a Súmula 652, de que a responsabilidade civil da Administração Pública é solidária, mas de execução subsidiária. Esta premissa é um divisor de águas: ela assegura que, em última instância, a União, os Estados ou o Município não podem se eximir da obrigação de recuperar a área degradada. Na prática, significa que, mesmo que o poluidor direto (o ocupante) seja insolvente, incapaz ou se oculte, a responsabilidade integral recai sobre o município.

Para Rorainópolis, isso impõe um custo futuro inevitável e potencialmente mais alto. A inação de hoje é um passivo ambiental e financeiro que será cobrado amanhã. O município é, portanto, o garantidor final da recuperação do Igarapé Chico Reis, sendo obrigado a arcar com os custos de remediação, reassentamento e infraestrutura (como saneamento básico para coibir o despejo de esgoto), caso não consiga reverter a situação contra os particulares. Este panorama legal exige que o gestor municipal substitua a postura passiva por uma ação proativa e estratégica, utilizando o Plano Diretor como ferramenta de controle e reversão do dano.

A omissão no dever de fiscalização transcende a mera infração administrativa; ela é uma agressão direta à saúde pública e ao bem-estar social, elevando o debate para o campo dos direitos fundamentais. A contaminação dos lençóis freáticos pelo lançamento de esgoto doméstico sem qualquer tratamento é o cerne do problema de saúde. Em uma cidade onde cisternas e poços artesianos ainda abastecem grande parte da população, a contaminação da água é a porta de entrada para uma série de doenças de veiculação hídrica, como gastroenterites, hepatites e parasitoses.

O custo da omissão, neste sentido, é muito superior ao custo da fiscalização. O poder público passa a gastar duplamente: primeiro, com a reparação do dano ambiental (que é o objeto da presente discussão); e segundo, com o custo da saúde pública (tratamento de doenças, aumento da pressão sobre o sistema de saúde municipal, campanhas de saneamento e educação sanitária).

A ocupação irregular da APP também intensifica os eventos climáticos extremos. A remoção da mata ciliar retira a proteção natural das margens, intensificando o assoreamento do igarapé e reduzindo sua capacidade de escoamento. O resultado direto são as enchentes e o alagamento das casas, o que não só gera danos materiais, mas também coloca em risco a vida e a integridade física dos moradores, caracterizando um dano moral coletivo. O custo de prevenção (fiscalização e ordenamento territorial) é, portanto, infinitamente menor e mais eficaz do que o custo da remediação (médica, social e ambiental).

Por outro lado, o poder judiciário, com o posicionamento mais combativo adotado pelas cortes superiores, tem procurado não só responsabilizar entes públicos por omissão, quanto defender os bens jurídicos como a saúde pública e o bem-estar social que guardam relação direta com um meio ambiente equilibrado.

O Judiciário, ao proferir decisões que impõem multas e obrigações de fazer ao poder público, atua como agente catalisador da mudança, forçando o município a sair de sua inércia. As cortes superiores têm privilegiado a aplicação dos princípios ambientais, especialmente o princípio da prevenção e o in dubio pro natura, tornando o processo de regularização fundiária sustentável (REURB) uma alternativa juridicamente complexa em áreas de risco ou gravemente degradadas. A REURB, apesar de ser menos onerosa do que a desapropriação, exige Estudo de Impacto Ambiental e validação técnica rigorosa, o que, sob a ótica da proteção ambiental, impõe barreiras significativas à validação de construções em locais críticos da APP.

Por fim, concluí-se que o posicionamento atual do poder judiciário busca evitar justamente as consequências que a ocupação irregular da área de preservação permanente do igarapé Chico Reis traz para o município de Rorainópolis, que é a proliferação de doenças, enchentes e alagamento das casas, contaminação dos lençóis freáticos e outras mazelas. A solução definitiva, no entanto, não reside apenas na punição judicial, mas na governança eficaz. O município de Rorainópolis, com seu Plano Diretor tardiamente aprovado, possui agora a ferramenta legal necessária para reverter o quadro. A efetividade de sua gestão será medida pela capacidade de traduzir a lei municipal em ações concretas de fiscalização, recuperação ambiental e, principalmente, em planejamento urbano que impeça novas ocupações, garantindo o futuro sustentável do Igarapé Chico Reis e a saúde de sua população.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental – 20. ed. – São Paulo: Atlas, 2019. ISBN 978-85-97-01680-2.

AUDIÊNCIA PÚBLICA Rorainópolis apresenta Plano Diretor elaborado em parceria com a Assembleia Legislativa. Disponível em: https://al.rr.leg.br/2022/03/31/audiencia-publica-rorainopolis-apresenta-plano-diretor-elaborado-em-parceria-com-a-assembleia-legislativa/. Consultado no dia 23 de julho de 2.023 ás 06 horas e 16 minutos.

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Disponível em: https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/rr/rorainopolis.html. Consultado em 20 de julho de 2.023 ás 10 horas e 13 minutos.

Leandro Pereira, do Solidariedade, é reeleito prefeito de Rorainópolis. O Globo. Disponível em: https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2020/11/16/leandro-pereira-do-solidariedade-e-reeleito-prefeito-de-rorainopolis.ghtml. consultado no dia 23 de julho de 2.023 ás 06 horas e 12 minutos.

MARQUES, A.L; OAIGEN, E.R. A poluição do igarapé do Chico Reis e suas consequências para a saúde pública. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS ATAS DO V ENPEC - Nº 5. 2005 - ISSN 1809-5100.

SANTOS, D. M. D. dos .; SILVA, M. F. da; LIMA, P. A. F. Caracterização do Igarapé Chico Reis, Rorainópolis - RR e restauração de matas ciliares na Amazônia: um referencial teórico. Research, Society and Development, v. 10, n. 15, e341101522816, 2021(CC BY 4.0) | ISSN 2525-3409. ano 2021.

SOUSA, S. A.Análise Espacial da Área de Preservação Permanente: Estudo de Caso no Igarapé Chico Reis, Rorainópolis - Roraima. Monografia. Universidade Estadual de Roraima. Rorainópolis – RR, 2018.

STJ - Precedentes Qualificados. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&cod_tema_inicial=1010&cod_tema_final=1010. Consultado em 22 de julho de 2.023 ás 10 horas e 13 minutos.

THOMÉ, Romeu. Manual de Direito Ambiental. Editora Juspodivm, ano 2.015, página 69.


1 Advogado OAB/RR nº 1.966, Bacharel em Direito formado pelo Centro Universitário Estácio Atual da Amazônia, Pós-graduando em Direito Ambiental pela Universidade Católica Dom Bosco. E-mail: [email protected]

2 Fonte: https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/rr/rorainopolis.html. Consultado em 20 de julho de 2.023 ás 10 horas e 13 minutos.

3 Fonte: https://processo.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&cod_tema_inicial=1010&cod_tema_final=1010. Consultado em 22 de julho de 2.023 ás 10 horas e 13 minutos.

4 Fonte: https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2020/11/16/leandro-pereira-do-solidariedade-e-reeleito-prefeito-de-rorainopolis.ghtml. Consultado no dia 23 de julho de 2.023 ás 06 horas e 12 minutos.

5 Fonte: https://al.rr.leg.br/2022/03/31/audiencia-publica-rorainopolis-apresenta-plano-diretor-elaborado-em-parceria-com-a-assembleia-legislativa/. Consultado no dia 23 de julho de 2.023 ás 06 horas e 16 minutos.

6 O autor (20 de julho de 2023).