A ESCOLA, A FAMÍLIA E O NOVO OLHAR SOBRE A INFÂNCIA NO SÉC XXI: DO EGOCENTRISMO AO LAUDO

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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.16740661


Nilton Pereira da Cunha1


RESUMO
O respectivo artigo propõe uma reflexão sobre as transformações na forma como a infância vem sendo compreendida. No século XX, comportamentos como o egocentrismo infantil eram entendidos como parte natural do desenvolvimento. Já no século XXI esses mesmos comportamentos muitas vezes ganham uma leitura clínica, sendo interpretado como sintomas que demandam laudos e intervenção especializadas. Essa transformação revela uma nova forma de olhar para a criança, mais centrada em parâmetros técnicos e diagnósticos. O texto convida a sociedade como um todo não apenas a escola e a família – a pensar sobre a relevância em equilibrar os avanços da neurociência com a escuta atenta, a importância ao tempo da infância e à singularidade de cada fase do desenvolvimento da criança, evitando reduções e favorecendo a uma convivência mais humana com o amadurecimento dos pequenos e não a matematização do desenvolvimento infantil, mas, sobretudo, a valorização primária da escuta atenta da criança.
Palavras-chave: Egocentrismo Infantil. Diagnósticos. Escola. Família

ABSTRACT
The article proposes a reflection on the transformations in how childhood is understood. In the 20th century, behaviors such as childhood egocentrism were understood as a natural part of development. In the 21st century, these same behaviors often take on a clinical interpretation, being interpreted as symptoms requiring specialized reports and intervention. This transformation reveals a new way of looking at children, more focused on technical and diagnostic parameters. The text invites society as a whole—not just schools and families—to reflect on the relevance of balancing advances in neuroscience with attentive listening, the importance of childhood and the uniqueness of each stage of a child's development, avoiding reductions and favoring a more humane coexistence with the maturation of children, rather than the mathematization of child development, but, above all, the primary appreciation of attentive listening to children.
Keywords: Childhood Egocentrism. Diagnosis. School. Family

1 Introdução

A forma como olhamos para a infância nunca foi estática. A criança, em diferentes épocas, foi vista como pequeno adulto, como ser em formação, como sujeitos de direitos, como construção social – e, mais recentemente, como portadora de possíveis disfunções neurológicas.

Esse movimento contínuo, que atravessa séculos e saberes, é o que chamamos aqui de uma infância em trânsito: um deslocamento silencioso, mas profundo, do modo como entendemos, cuidamos e educamos os pequenos.

No século XX, com a ascensão da psicologia do desenvolvimento, os comportamentos infantis foram compreendidos dentro de uma lógica de estágios, contextos e processos internos naturais.

Conceitos como o egocentrismo, por exemplo, eram entendidos como etapas esperadas da construção da consciência da criança, e não como desvios a serem corrigidos. Pais e educadores eram chamados a escutar, observar e acompanhar o tempo da infância com empatia e compreensão.

No entanto, à medida que adentramos o século XXI, um novo paradigma se fortalece. A neurologia, com seus avanços e instrumentos de precisão, passa a ocupar um espaço central nas análises sobre o comportamento infantil. Palavras como “neurotípico”, transtorno”, síndrome” e “laudo” tornaram-se parte do vocábulo cotidiano de escolas e famílias. O que antes era considerado traço do desenvolvimento, hoje, muitas vezes, é interpretado como sinal de um diagnóstico.

Este artigo propões uma travessia por essa mudança de paradigma: do olhar psicológico ao olhar neurológico, do egocentrismo como fase ao laudo como explicação. Não obstante, mais do que mapear essa transição, ele convida pais e educadores a refletirem: estamos realmente ouvindo as crianças ou apenas interpretando sinais? A escuta, tão central no passado, ainda tem lugar em um mundo de diagnósticos prontos e respostas aceleradas?

Ao longo desde percurso, revisitaremos grandes pensadores do século XX – como: Freud, Piaget, Vygotsky, Wallon e Bettelheim –, passaremos pelos marcos do avanço neurocientífico e, por fim, olharemos para os desafios contemporâneos que a infância enfrenta na sociedade híbrida, digital e imediatista que caracteriza nosso tempo.

Mais do que comparar abordagens, este texto convida escolas e famílias a compreenderem a profunda mudança de paradigma que atravessa a infância – uma mudança que exige atenção, presença e responsabilidade.

Educar não é apenas criar; é escutar, formar, acompanhar. E para isso, precisamos olhara novamente para a criança como alguém que precisa ser ouvida – em suas palavras, seus silêncios e suas formas singulares de ser no mundo.

A subjetividade infantil deu uma guinada paradigmática, ela passou a ser atravessada por laudos, protocolos e diagnósticos. Ainda que muitos desses instrumentos tenham surgido com a intenção de acolher e apoiar, tornaram-se, em muitos casos, ferramentas de padronização e exclusão.

Antes silenciada pelo autoritarismo adulto, a subjetividade, agora é frequentemente enquadrada por tabelas, escalas e critérios técnicos. Trata-se de uma nova forma de controle – mais sofisticada, mais matematizada – ainda que não menos subjetiva em suas interpretações e aplicações.

Essa mudança impõe um desafio ético, educacional e afetivo: como a escola e a família podem (e devem) repensar sua atuação diante de uma infância que deixou de ser apenas “educada” e passou a ser “avaliada”?

Como não transformar o cuidado em vigilância? E, sobretudo, como resgatar o compromisso com o desenvolvimento humano integral, sem ceder ao reducionismo de uma infância medida, rotulada e, por vezes, silenciada.

2 O nascimento da infância e a escuta freudiana

A concepção da infância como uma fase distinta e significativa do desenvolvimento humano percorreu um longo trajeto histórico. Já no século XVII, o filósofo John Locke propôs a ideia de tabula rasa, sugerindo que a mente da criança seria uma folha em branco a ser moldada pela experiência2.

Ainda que essa concepção tenha sido um avanço ao deslocar o olhar do inatismo para a influência do ambiente, a criança seguia sendo vista como objeto de formação, e não como sujeito de direito ou escuta. Foi somente no início do século XX, com Sigmund Freud, que se efetivou cientificamente uma nova forma de compreender a infância: a criança passa a ser reconhecida como sujeito psíquico, atravessado por desejos, conflitos e traumas inconscientes.

A psicanálise freudiana não apenas inaugurou uma escuta clínica para a infância, como também estabeleceu, na singularidade da criança, uma subjetividade ativa que precisa ser compreendida e acolhida – e não apenas instruída ou corrigida.

A partir dessa virada freudiana, a infância deixa de ser percebida apenas pela ótica da pedagogia tradicional – que muitas vezes reduzia a criança a um ser em déficit, um adulto em miniatura – e passa a ser escutada em suas manifestações mais sutis: no brincar, no sintoma, na linguagem não-dita.

O inconsciente infantil, outrora ignorado, passou a ser território legítimo de investigação e cuidado. A escuta psicanalítica, ao contrário dos métodos pedagógicos tradicionais ou das abordagens normativas da época, não buscava corrigir comportamentos ou adaptar a criança a padrões dos adultos, mas decifrar, através dos sintomas, dos jogos simbólicos e da linguagem não verbal, os vestígios do desejo, do medo e das fantasias inconscientes que estruturam sua formação subjetiva.

O caso clínico do pequeno Hans é um marco nesse sentido, pois mostra como uma criança de cinco anos pode ser compreendida não apenas como alguém que sofre, mas como alguém que elabora seu sofrimento, que pensa, deseja e simboliza3.

Freud rompe, assim, com a ideia de que a infância é uma fase de ignorância ou irracionalidade. Ao contrário, ele revela que é nesse período que os traços mais profundos do psiquismo se constituem.

O reconhecimento do inconsciente infantil também impõe uma mudança na ética do cuidado. Já não basta educar ou proteger: é necessário escutar. Como aponta Kupfer4, a contribuição freudiana exige um reposicionamento do adulto – seja ele pai, mãe, educador ou terapeuta – que deve abdicar da postura controladora e assumir uma escuta verdadeiramente implicada.

Escutar a criança, à luz da psicanálise, significa acolher o que nela ainda não se organiza em discurso racional, mas que se manifesta no corpo, nas repetições, nos sonhos e nas angústias. É abrir espaço para o que há de singular em cada percurso infantil, mesmo quando isso se desvia das expectativas normativas ou culturais.

No entanto, essa escuta freudiana não é neutra nem confortável. Ela exige desconstrução. Exige que os adultos se interroguem sobre seus ideais projetados na criança, sobre a função que atribuem ao sofrimento infantil.

Ao propor a análise do inconsciente, Freud também obriga a sociedade a repensar suas formas de lidar com a infância – não mais como um objeto de preparação para o futuro, mas como uma etapa legítima da vida, que carrega em si toda a complexidade da existência humana.

Como bem destaca Roudinesco, é no escândalo da escuta da criança como sujeito que a psicanálise crava seu lugar na história da educação, saúde mental e ciências humanas5.

Portanto, a partir de Freud, escutar a infância não é um gesto técnico ou disciplinar – é um gesto ético, clínico e profundamente humano. É reconhecer que a criança fala, mesmo quando silencia. Que ela deseja, mesmo quando sofre. Que ela constrói sentido, mesmo quando parece caótica. E que, sobretudo, ela é sujeito de si – desde muito cedo, desde antes mesmo de saber colocar em palavras o que já pulsa em sua vida psíquica.

3 A pedagogia da escuta: Piaget, Vygotsky, Wallon e a psicologia do desenvolvimento.

A pedagogia da escuta parte do princípio de que a criança não é um ser em déficit, à espera de ser completado pelo adulto, mas um sujeito de direitos, linguagem desejos expressão e construção ativa do conhecimento.

Escutar a criança, nesse sentido, não se resume a ouvir o que ela diz com palavras, mas, sobretudo, a reconhecer suas formas próprias de ser, agir, sentir e pensar o mundo. Essa abordagem desafia práticas educativas centradas na domestificação da infância e propõe uma pedagogia em que o adulto se coloca em diálogo real com a criança, aceitando os tempos, silêncios e as formas próprias da infância.

Dentro dessa concepção, as contribuições da psicologia do desenvolvimento, especialmente as teorias de Jean Piaget, Lev Vygotsky e Henri Wallon, são fundamentais para compreender a complexidade dos processos infantis. Ao desnaturalizar ideias adultocêntricas sobre a infância, esses autores ajudaram a consolidar a ideias de que a criança não é um adulto em miniatura, mas um sujeito com estrutura própria de pensamento, emoção e ação. Cada um, à sua maneira, lançou luz sobre o modo como a criança se desenvolve e interage com o mundo, e suas teorias nos convocam a pensar a escuta como um processo que deve considerar os estágios de desenvolvimento, o meio social e a efetividade.

Piaget foi o pioneiro em demonstrar que a inteligência infantil não é uma versão imatura da inteligência adulta, mas um modo distinto e próprio de pensar.

Sua teoria dos estágios do desenvolvimento cognitivo descreve uma sequência de estruturas mentais que se organizam a partir da interação entre o sujeito e o meio. Ele identifica quatro estágios principais: sensório-motor (0-2 anos), pré-operatório (2-7 anos), operatório concreto (7-11 anos), operatório formal (a partir dos 12 anos)6.

Um exemplo clássico é o conceito de egocentrismo, característico do estágio pré-operatório. Ao contrário do senso comum, que entende o egocentrismo com um defeito moral ou falha de caráter, Piaget mostra que ele é uma etapa natural e necessária do desenvolvimento do pensamento.

Segundo ele, “a criança não distingue suficientemente entre seu ponto de vista e o dos outros7”, o que evidencia uma limitação cognitiva e não uma escolha consciente.

Essa compreensão implica que o egocentrismo não é sinal de egoísmo, mas uma fase esperada da construção do pensamento lógico, que tende à descentração progressiva. Assim, escutar a criança piagetiana é aceitar que ela pensa de maneira diferente, que sua lógica não é a do adulto, e que sua forma de raciocinar está em processo de maturação.

Ao invés de corrigir ou antecipar etapas, a pedagogia da escuta reconhece e valoriza essa lógica infantil como legítima, como expressão de um sujeito que está elaborando o mundo à sua maneira.

Se Piaget enfatiza o sujeito que constrói ativamente o conhecimento a partir da interação com o meio físico. Vygotsky traz uma construção complementar ao enfatizar o papel do meio social e da linguagem como elemento centrais do desenvolvimento. Para ele, o aprendizado antecede o desenvolvimento em muitos aspectos, e é na interação com o outro – especialmente com adultos ou pares mais experientes – que a criança interioriza formas mais complexas de pensamento.

Essa concepção dá origem ao conceito de zona de desenvolvimento proximal (ZDP): a distância entre o que a criança pode fazer sozinha e o que ela pode fazer com a ajuda de outro. Como ele afirma: “aquilo que a criança é capaz de fazer hoje com auxílio, será capaz de fazer sozinha amanhã”8.

A linguagem, nessa abordagem, é mais do que um instrumento de comunicação: é uma ferramenta psicológica fundamental na formação do pensamento.

Vygotsky defende que “o pensamento se desenvolve a partir da fala – inicialmente a fala externa, depois a fala internalizada”9, o que mostra como a linguagem media as funções superiores da consciência.

Nesse sentido, escutar a criança, para Vygotsky, é mais do que observar seu desempenho atual: é compreender suas potencialidades em contexto de mediação. A pedagogia da escuta inspirada em Vygotsky é uma pedagogia dialógica: escuta-se a criança para reconhecer nela um ser em constituição, não apenas em termos de saber, mas em termos de ser.

Henri Wallon, por sua vez, oferece uma visão ainda mais ampla ao integrar motricidade, afetividade e cognição como dimensões indissociáveis do desenvolvimento infantil.

Para ele, não se pode entender a criança apenas como mente pensante, mas como um corpo-sujeito em movimento, que sente, reage, expressa e se constitui na relação com os outros.

Segundo Wallon, “a afetividade não é um adorno da inteligência, mas o seu solo vital”10. O desenvolvimento psíquico é marcado por uma alternância entre momentos de predominância afetiva e predominância cognitiva. Por exemplo, no estágio emocional (0 – 1 ano), o bebê se comunica por meio das expressões afetivas e do tônus corporal.

Mais tarde, no estágio sensório-motor e projetivo, a motricidade ganha protagonismo em relação com o mundo. Esses momentos não se superam uns aos outros, mas se articulam e se integram.

A pedagogia da escuta, sob essa ótica, exige que o educador compreenda que o gesto, o choro, o silêncio e o movimento da criança também são formas legítimas de comunicação.

Como diz Wallon, “o corpo é a primeira linguagem da criança”11. Portanto, escutar é também acolher o que se expressa pelo corpo e pela emoção.

A escuta da infância é um ato profundo político, ético e epistemológico. É político porque rompe com a tradição autoritária que silenciou a criança durante séculos; é ético porque reconhece a dignidade e a singularidade de cada sujeito infantil; é epistemológico porque propõe outra forma de conhecer, de se relacionar com o saber e com o outro.

As contribuições de Piaget, Vygotsky e Wallon nos oferecem um rico repertório teórico para sustentar essa escuta: um olhar que respeita o tempo do desenvolvimento (Piaget), que reconhece o papel do outro na mediação do conhecimento (Vygotsky) e que valoriza a afetividade como base da constituição do sujeito (Wallon). O egocentrismo infantil, longe de ser um erro, é parte esperada do caminho, um indicativo de que o pensamento ainda está centrado no próprio ponto de vista, mas que, com tempo, mediação e afeto, pode se descentralizar e se abrir ao outro.

A pedagogia da escuta, portanto, não é uma técnica, mas uma postura: requer humildade diante do saber da criança, sensibilidade para captar o que não é dito, disposição para o diálogo e compromisso com a construção de uma educação verdadeiramente humana.

Mas do que ensinar, trata-se de acompanhar, provocar, acolher e sustentar o processo de crescimento de um sujeito que ainda está se tornando, mas que já é, em sua inteireza, alguém que merece ser escutado.

4 Bruno Bettelheim e a dimensão simbólica da infância na educação e na clínica.

O psicólogo infantil austríaco Bruno Bettelheim, não é tão conhecido como os teóricos citados anteriormente, mas sua importância é da mesma grandeza, cuja contribuição se diferencia por adentrar o universo simbólico da criança com uma profundidade rara, especialmente ao considerar a relação entre fantasia, linguagem e elaboração psíquica do sofrimento. Bettelheim, ao lado da psicanálise, resgatou a importância do simbolismo na construção subjetiva da criança e de sua saúde mental.

Sua reflexão sobre os contos de falas, sobre a pedagogia terapêutica e sobre a psicologia da infância lançou luz sobre o quanto a linguagem simbólica é necessária para que a criança não apenas compreenda o mundo, mas elabore o que sente12.

No entanto, estamos diante de uma infância profundamente modificada pelas tecnologias digitais. O que antes era elaborado por meio de jogos simbólicos, narrativas orais, contos, desenhos e interações concretas com o mundo, hoje cede espaço para estímulos diretos, visuais e viciantes das telas.

E o que se perde nesse processo não é apenas uma maneira de brincar, mas sim a própria arquitetura simbólica da infância, que passa a ser artificializada, externalizada e colonizada por uma lógica acelerada, não dialógica, imaginativa e desprovida de metáforas. O que está em risco é o próprio eixo de subjetivação da criança13,14.

Bettelheim, em sua obra clássica: A Psicanálise do Contos de Fadas, mostra como essas narrativas milenares, muitas vezes duras e enigmáticas, funcionam como verdadeiros espelhos simbólicos para as angústias e os conflitos infantis.

Ao projetar seus medos, suas rivalidades e seus desejos nos personagens dos contos, a criança não apenas encontra alívio, mas organiza simbolicamente sua psique15. A linguagem dos contos permite um deslocamento saudável, uma representação indireta do mal, medo, perda raiva – elementos estruturantes da experiência humana,

O psicólogo austríaco, ao defender a permanência desses contos nas práticas pedagógicas e terapêuticas, mostravam que eles (os contos) oferecem às crianças uma linguagem inconsciente capaz de sustentar a travessia do amadurecimento.

O que ocorre na contemporaneidade é que essa linguagem simbólica vem sendo substituída por estímulos imediatos. As narrativas digitais, muitas vezes moldadas por algoritmos, não demandam elaboração interna; elas impõem imagens e ritmos que anestesiam a fantasia16.

A metáfora é substituída pelo literal; a imaginação pelo consumo; o tempo interno pela aceleração externa. O resultado é um sujeito infantil empobrecido em suas ferramentas simbólicas para lidar com a frustração e com o tédio.

Essa substituição da linguagem simbólica por estímulos imediatos deve ser analisada também sob a ótica de seus impactos neurobiológicos. Antes de se concluir por um laudo ou diagnóstico, é preciso considerar o ambiente em que a criança está inserida e como ele influencia o funcionamento cerebral – especialmente em fases críticas do desenvolvimento, em que o excesso de estímulos rápidos pode comprometer circuitos relacionados à atenção, imaginação e a autorregulação.

Ou seja, universo interior da criança torna-se colonizado por estímulos artificiais que roubam dela a possibilidade de ser autora de sua própria narrativa.

Nesse sentido, Bettelheim nos ajuda a entender que a infância é um tempo mítico, um tempo em que o real e o imaginário se entrelaçam para permitir que a criança simbolize a si mesma e ao mundo17. Quando ela não tem acesso a esse entrelaçamento – porque tudo é imagem pronta, interação passiva e distração compulsiva –, sua subjetividade perde espessura.

Segundo Rosemberg18, na clínica, isso se expressa de formas cada vez mais comuns: crianças diagnosticadas precocemente com transtornos diversos, muitas vezes, baseadas em critérios que não consideram o contexto simbólico no qual estão inseridas.

O laudo, como instrumento do século XXI, substitui aquilo que Bettelheim buscava restaurar: a escuta do sintoma como linguagem simbólica da alma infantil.

A escola e a família, diante desse cenário, enfrentam o desafio de recuperar o que a tecnologia tem dissolvido: o espaço da escuta, do silêncio, do olhar atento ao desenho, a fala cifrada, ao comportamento simbólico da criança.

Se antes o desafio era superar o adultocentrismo do século XX, que via o egocentrismo infantil como defeito, agora o desafio é resistir à tentação da medicalização precoce e à imposição de respostas rápidas para comportamentos que talvez apenas expressem a carência de um ambiente simbólico saudável19 20.

O desaparecimento do brincar simbólico, da construção de narrativas próprias, do “faz-de-conta” – tão importante à pedagogia e à clínica – não pode ser tratado como um fenômeno banal. Estamos lidando com uma mutação subjetiva que afeta diretamente o desenvolvimento do córtex pré-frontal, a regulação emocional e a capacidade de desenvolver adequada e de forma equilibrada a empática21.

Sem o tempo simbólico, tempo do amadurecimento afetivo, a empatia se perde. E isso impacta não apenas no presente da criança, mas em toda sua constituição como sujeito.

Recuperar Bettelheim hoje significa restaurar a centralidade da linguagem simbólica na infância. Significa defender, como ele, que toda criança tem direito ao enigma, à metáfora, à elaboração imaginária do mundo.

Significa compreender que, em vez de silenciar a criança com diagnósticos, telas e respostas prontas, devemos escutá-la em sua linguagem mais profunda, muitas vezes cifradas, muitas vezes expressa por meio de um sintoma, de um conto, de um desenho, de um silêncio.

Em sua experiência com crianças emocionalmente devastada – como as que viveu no Orthogenic School – Bettelheim demostrou que é possível restaurar a dignidade psíquica mesmo em situações limites, desde que haja um ambiente que favoreça o simbolismo, escuta e presença afetiva22.

Não deve ser esse o chamado urgente dos nossos tempos? Criar espaços educativos e clínicos em que a criança não seja apenas observada, rotulada ou entretida, mas escutada em sua linguagem mais essencial, aquela que só pode ser compreendida quando mergulhamos no seu universo simbólico?

Na era do toque digital, é preciso defender o toque simbólico. Na era do clique, é preciso restaurar o tempo do conto. E, sobretudo, na era do algoritmo, é preciso reconquistar a alma infantil como território sagrado, onde o simbólico ainda possa florescer.

5 A matematização do cérebro: Herbert Simon e os primeiros passos da cognição computacional.

Durante o século XX, as concepções sobre o funcionamento da mente humana passaram por transformações radicais. A transição de um modelo psicanalítico e simbólico para uma abordagem mais objetiva, inspirada nas ciências exatas, resultou em uma forma particular de entender o pensamento, o comportamento e até mesmo o aprendizado.

Nesse percurso, a figura de Herbert Simon emerge como um marco divisor, ao propor que o pensamento humano poderia ser analisado aos moldes de um sistema computacional. O que começou como uma teoria para simular o raciocínio lógico acabou se transformando em uma das bases mais influentes do que hoje conhecemos como cognição computacional.

Simon, ao lado de Allen Newell, desenvolveu nos anos de 1950, o Logic Theorist, considerado o primeiro programa de inteligência artificial. Seu objetivo não era apenas reproduzir comportamentos humanos, mas demonstrar que a mente podia ser compreendida como um sistema de processamento de informações, nos mesmos moldes de um computador.

Com isso, instaurou-se uma nova metáfora fundacional: o cérebro como máquina, a cognição como um processo lógico-algorítmico e a mente como um software em execução sobre um hardware biológico. Era o início de uma longa jornada que culminaria naquilo que hoje chamamos de paradigma computacional da mente.

Essa revolução conceitual só foi possível porque encontrou eco em outra revolução em curso: o avanço da neurociência. A partir da segunda metade do século XX, o cérebro passou a ser visto, cada vez mais, como um objeto quantificável, mensurável, analisável. Imagens de ressonância magnética funcional, mapeamentos neurais, estudos sobre sinapses e neurotransmissores criaram as bases para uma compreensão mais objetiva, e, muitas vezes, reducionistas da subjetividade humana.

A mente começou a ser decomposta em etapas, processos, algoritmos – e, com isso, os próprios critérios de normalidade e patologia passaram a ser embasados em estatísticas, gráficos e laudos técnicos.

Herbert Simon foi, talvez, o principal elo entre esses dois mundos: o da matemática aplicada à decisão racional e o da psicologia cognitiva que buscava padrões previsíveis no comportamento humano.

Simon afirmava que compreender a mente humana consistia em entender “como um sistema pode funcionar para escolher entre alternativas com base em informação limitada23”. Ao descrever a ideia de racionalidade limitada, Simon desloca o foco do comportamento humano para a lógica da escolha, em contextos nos quais o sujeito age como um processador de dados.

Essa visão encontrou um campo fértil nas ciências cognitivas, que, já nos anos de 1970, se articulavam com a lógica computacional e a psicologia experimental para modelar a cognição.

É aqui que se inicia a grande virada que afeta não apenas os campos da psicologia e da inteligência artificial, mas da educação, saúde mental e, sobretudo, da forma como a infância vem sendo percebida e como os especialistas da neuropsicologia, do marketing do comportamento elaboram mecanismos de capturar a nossa atenção e, especialmente, prender a atenção das crianças através da corres vibrantes, sons e imagens dos jogos infantis, aplicativos e vídeos mediados pelos algoritmos.

Quando se adota o modelo computacional da mente, a criança deixa de ser um ser em processo simbólico, expressivo, afetivo e aberto ao inesperado, para se tornar um sistema em desenvolvimento, sujeito a mensuração, correção e a captura de sua atenção.

No tocante, a impulsividade, agitação, timidez, muitas vezes, passa a ser entendida como um desvio; cada silêncio, como ausência de dados; cada comportamento, como um item de uma lista a ser codificada e armazenada em uma base de diagnósticos.

A escola, então, é afetada por esse novo modelo, pois seu papel tradicional de formação de sujeitos dá lugar à ideia de otimização de performance. Em vez de dialogar com a complexidade da infância, com suas expressões simbólicas, afetivas, motoras e relacionais, no atual cenário, a escola é pressionada a oferecer resultados quantificáveis.

O rendimento escolar é medido por métricas padronizadas, a aprendizagem por gráficos de desempenho, e o comportamento por escala de observação. A própria pedagogia se vê empurrada para o terreno da ciência de dados, da gestão por resultados, da meritocracia cognitiva.

Como observa Kenski: “O paradigma tecnocientífico avança sobre o espaço da educação impondo uma lógica funcionalista que esvazia a dimensão ética e sensível do conhecimento humano24”. Em outras palavras, a escola corre o risco de tornar-se uma extensão do laboratório: um lugar onde se controlam variáveis e se produzem resultados, mas também, onde se perde o sentido da formação integral.

A família, por sua vez, entra nesse circuito de forma ainda mais vulnerável. Ao perceber dificuldades na fala, olhar, afeto ou interação social de uma criança, os pais são convidados a buscar respostas rápidas e objetivas. Laudos, pareceres, relatórios técnicos substituem o tempo da escuta, da dúvida, da observação e do acolhimento.

A ansiedade por respostas leva à patologização precoce da infância. A subjetividade é substituída por códigos, siglas e protocolos. O cuidado é substituído pelo controle. Em vez de perguntar “o que essa criança está nos dizendo com esse comportamento?”, a pergunta se torna: “qual é o diagnóstico dessa criança?”.

Richard Sennet chama atenção para os perigos de uma sociedade que transforma tudo em performance: a vida emocional, os vínculos e até a infância tornam-se funcionais, gerenciais e otimizáveis25. Na tentativa de evitar o erro e o desvio, arrisca-se em eliminar também o espaço do mistério, da dúvida, da alteridade – essencial à formação humana.

Ora, essa substituição não é neutra. Ela está embasada justamente na ideia, oriunda de Simon e da cognição computacional, de que há um modelo ideal de funcionamento mental. Tudo o que escapa a esse modelo torna-se ruído, erro, falha.

É importante termos em conta que, a infância não é previsível, padronizável, algoritmizável. Ela é feita de silêncios que falam, expressões que desafiam a linguagem formal, gestos que não se encaixam em modelos estatísticos.

Quando a escola e a família deixam de escutar essa complexidade e passam a medir tudo com a régua da cognição computacional, o que se perde é a própria humanidade da criança. Ou seja, “a criança está deixando de ser criança”.

É preciso, portanto, refletir sobre o modelo tecnocientífico que, mesmo com suas contribuições importantes, tem sido usado de forma descontextualizada para diagnosticar, controlar e moldar a infância.

A lógica da inteligência artificial (IA) – nascida do desejo de simular o pensamento – não pode se transformar no critério único para definir o que é ou não uma criança “normal”. Necessitamos reabrir espaço para o simbólico, sensível e o imprevisível. Não se trata de negar a ciência, mas de reconhecer seus limites.

Ao final desse percurso, resta-nos uma pergunta essencial, que deve ecoar nas salas de aula, nas reuniões pedagógicas, nos consultórios, nas mesas de jantar e nas políticas públicas:

Será que a escola, a família e, sobretudo, as crianças, não estão se tornando vítimas dessa matematização da mente computacional?

6 Da escuta à rotulação: a infância, a neurologia e os impasses da escola no século XXI

A infância, no século XXI, passou a ser interpretada menos como uma fase do desenvolvimento humano e mais como um campo de riscos neurológicos. O que antes era visto como um traço natural de um processo – agitação, distração, timidez, silêncio ou impulsividade – passou a ser sistematicamente classificado como indício de um transtorno.

A escuta, que durante décadas foi o alicerce das práticas pedagógicas e clínicas, foi gradualmente substituída por uma linguagem técnico-diagnóstica. O laudo tornou-se o novo modelo de compreender a criança.

A ascensão da neurologia como linguagem central para explicar a infância consolidou-se nas últimas décadas e transformou profundamente a forma como pais e professores compreendem o desenvolvimento infantil.

Com a popularização da neurociência, tornou-se comum interpretar comportamentos das crianças – como agitação, distração ou silêncio – à luz do funcionamento cerebral, como se cada reação pudesse ser traduzida em mapas neurais, sinapses ou déficits localizados.

Essa abordagem, muitas vezes comparada ao funcionamento de uma mente computacional, erroneamente, cria a expectativa de que é possível monitorar, diagnosticar e até corrigir o comportamento infantil com base em padrões cerebrais.

Embora traga contribuições importantes, esse olhar técnico corre o risco de reduzir a complexidade da infância, afastando pais e educadores da escuta sensível, da singularidade de cada criança e da importância do ambiente, da cultura e das relações humanas no desenvolvimento.

De acordo com o sociólogo francês Alain Ehrenberg, vivemos uma “neurobiologização das condutas26”, em que as explicações para o sofrimento psíquico e as dificuldades de aprendizagem são cada vez mais atribuídas a alterações cerebrais, com menor atenção ao contexto social, afetivo e familiar.

Esse novo olhar reconfigurou o papel da escola. A instituição que antes acolhia as diferenças dentro de um horizonte de desenvolvimento progressivo passou a funcionar como espaço de vigilância.

Os professores, em vez de exercerem prioritariamente a escuta pedagógica, sentem-se pressionados a identificar sinais de transtornos, preencher protocolos e encaminhar crianças para avaliação clínica. Como observa Maria Aparecida Moysés: “A medicalização transforma a escola em um espaço de triagem, onde o olhar do educador é substituído pelo olhar do especialista27”. A relação educativa, baseada no vínculo e na construção, cede espaço a uma prática de encaminhamento e classificação.

A criança, por sua vez, deixa de ser considerada em sua totalidade. Sua história, experiências e contextos afetivos tornam-se secundários diante da força do diagnóstico.

O filósofo canadense, Ian Hacking28 alerta para o “efeito de realimentação” produzido pelos rótulos diagnósticos: quanto mais uma categoria diagnóstica se difunde, mais ela modifica o comportamento dos sujeitos que nela se encaixam, consolidando o tipo como se ele sempre tivesse existido. O diagnóstico, nesse caso, não apenas descreve: ele forma subjetividade.

A família também é afetada por essa lógica. Diante de um contexto social que valoriza a antecipação dos riscos e a produtividade precoce, os pais se sentem pressionados a buscar explicações clínicas para comportamentos que antes seriam vistos como fases.

Muitas vezes, o laudo surge como uma tentativa de aliviar a angústia da dúvida. Mas o que vem como alívio pode se tornar prisão: a criança passa a ser definida por seu CID (Classificação Internacional de Doenças)29, por seu “funcionamento”, por sua “condição”, e não por suas possibilidades e individualidades.

Como já mencionado, é necessário retomar a escuta como fundamento ético da educação. Isso mão significa negar os avanços da neurociência, mas recolocá-los em seu devido lugar. A neurologia não pode substituir a pedagogia, assim como o laudo não pode substituir o olhar, a escuta sensível.

Como defende Boaventura de Souza Santos30, é urgente construir uma “ecologia dos saberes”, onde os conhecimentos científicos coexistam com os saberes pedagógicos, clínicos, culturais e familiares, num esforço conjunto para compreender o sujeito em sua complexidade.

A escola e a família estão diante de um dilema contemporâneo: ceder à tentação da resposta rápida, técnica e padronizada, ou reafirmar a importância de escutar a criança em sua singularidade. A era do laudo não pode silenciar a voz da infância.

7 Infância na sociedade híbrida: os laudos e a urgência da escuta humana

Teóricos afirmam que estamos na sociedade híbrida: um tempo em que o mundo analógico e o virtual não apenas coexistem, mas se entrelaçam de forma contínua e irreversível –, onde a infância se tornou um território ambíguo.

Por um lado, nunca se falou tanto sobre o bem-estar infantil, diagnóstico precoce e proteção. Por outro, nunca foi tão conivente a exposição precoce a telas, à aceleração de estímulos e à dependência emocional gerada por recompensas dopaminérgicas instantâneas.

Nessa sociedade, as crianças estão crescendo sob o domínio das interações muito mais mediadas por telas do que por vínculos humanos, como também, por terapias rápidas e respostas clínicas.

O que se observa é que o conhecimento construído por teóricos da psicologia do desenvolvimento – como Piaget, Vygotsky, Wallon e Bettelheim – tem sido, em grande medida, desconsiderado.

Em seu lugar, cresce uma lógica que matematiza o funcionamento da mente humana, aproximando-a de modelos computacionais e da inteligência artificial, como se o pensamento, a emoção e o afeto pudessem ser reduzidos a algoritmos.

Na verdade, essa visão reducionista ignora as complexidades do desenvolvimento infantil e desumaniza a escuta da infância, substituindo-a por diagnósticos e protocolos cada vez mais padronizados e distantes da realidade simbólica e relacional da criança.

O fato de as crianças dessas novas gerações terem se desenvolvido sob o domínio de interações muito mais mediadas por telas do que por vínculos humano, coincide com o expressivo aumento dos diagnósticos de transtornos do desenvolvimento.

Isso nos obriga a refletir: não seria justamente essa forma empobrecida de relação – marcada pela ausência de presença afetiva, contato direto, escuta genuína e trocas simbólicas – a principal causa desse fenômeno?

Não podemos olvidar que, é justamente esses vínculos humanos, essas trocas simbólicas e essa presença afetiva que os teóricos citados apontam como fundamentais para o crescimento saudável da criança.

No entanto, o que se vê nas novas gerações é o contrário: crianças privadas dessas experiências fundantes, substituídas por estímulos imediatos e relações artificiais. Por isso, há uma urgência em escutar essa infância silenciada, antes que seja apenas classificadas e enquadradas por métricas e protocolos que desconsideram o essencial: a complexidade humana.

Diante disso, a escola e a família necessitam entender tal problemática, por terem um papel essencial nesse processo, o de resgatar o conhecimento construído sobre a escuta da criança, reconhecendo-a como sujeito em formação, com tempos e modos próprios de se desenvolver.

Não podemos permanecer presos à matematização da infância, que, ao priorizar apenas dados, laudos e métricas de desempenho, comprometem o futuro da humanidade.

Os efeitos dessa lógica já são visíveis na geração Z e, com ainda mais gravidade, na geração Alpha – e tudo indica que poderão se aprofundar na geração Beta, caso não haja um reposicionamento ético, pedagógico e humano na forma como compreendemos e cuidamos das crianças.

A outra grande preocupação que temos que ter em conta, que não está apenas nos diagnósticos em si, mas no modo como os pais, educadores e cuidadores, diante da pressão social por identificar precocemente qualquer traço atípico, passam a superproteger e justificar todos os comportamentos das crianças, muitas vezes, evitando o máximo que elas vivenciem o tédio, a espera, a frustração e o esforço.

Como alerta Nilton Cunha31, que nessa sociedade híbrida, os adultos estão desativando, sem perceber, o território da experiência e da elaboração. Substituem a escuta pelo gerenciamento comportamental. Protegem tanto que não preparam.

O que provavelmente resultará em crianças vulneráveis no futuro. É importante destacar que não serão apenas aquelas que hoje carregam um laudo, mas também aquelas que foram ensinadas a não sustentar o desconforto, a evitar o esforço emocional, a não esperar o tempo do outro, a serem poupadas de todo tédio ou frustração, muitas vezes, sob o pretexto de evitar uma possível disfunção.

A associação entre comportamento infantil e diagnóstico tornou-se tão imediata que muitos pais, temendo serem negligentes, antecipam intervenções e justificam excessos. A infância, antes atravessada por experiências diretas e desafios, tornou-se zona de hiperproteção.

Essa geração protegida do desconforto, frustração e do tédio criativo terá que enfrentar, num futuro próximo, um mercado de trabalho que exige justamente o oposto: resiliência, adaptação ao tédio, tolerância à pressão e disposição para a espera. Como pontua Byung-Chun Han: “A sociedade do desempenho gera sujeitos exaustos, incapazes de lidar com a lentidão, com a pausa, com o outro32”. Essas crianças não foram preparadas para o trabalho com o tempo, mas para a performance imediata ditada pelas lógicas das redes sociais e dos jogos digitais.

A escola, nesse cenário, encontra-se numa posição desconfortável, ou seja, se insistir na exigência e na frustração é acusada de crueldade. Porém, ao se curvar às demandas hiperprotetoras, colabora com a formação de sujeitos frágeis. Ao mesmo tempo em que, os professores são pressionados a diagnosticar, encaminhar, intervir – mas não a escutar. Além disso, são cobrados e culpados por todo esse processo devastador à formação cognitiva das futuras gerações.

Diante desse contexto, nos lembra Merleau-Ponty33, que é mais do que observar: é abrir-se à expressão viva do outro, reconhecer sua complexidade e seu tempo.

Maria Aparecida Moysés nos remete a reflexão que: “Quando o laudo substitui a escuta, o processo educativo é interrompido. A criança deixa de ser compreendida e passa a ser enquadrada34”.

A escola não pode ser apenas uma sala de controle de sintomas, mas um espaço que convida ao amadurecimento, muitas vezes, significa viver à frustração, à espera, ao tédio criativo e aos limites.

A família, por sua vez, necessita resgatar a coragem de dizer “não”, de sustentar a angústia sem explicá-la clinicamente, de permitir que a criança enfrente desafios sem antecipar soluções. Essa coragem educativa é cada vez mais rara, mas essencial.

Como adverte François Dubet: “Uma criança que só vive protegida como projeto de sucesso, porém, que não atravessa conflito, torna-se pobre de si mesma35”.

Portanto, na sociedade híbrida, entre telas que anestesiam e laudos que explicam tudo, o maior risco não está apenas no excesso de diagnósticos, mas na falta de formação emocional. O que está em jogo não é apenas o presente da infância, mas o futuro do humano. E para reverter essa direção, será necessário escutar mais, proteger menos –, ou seja, preparar melhor.

8 Conclusões finais

A infância, outrora compreendida como um tempo de desenvolvimento marcado pela responsabilidade, imprevisibilidade e pela pluralidade dos modos de ser, vem sendo cada vez mais interpretada à luz de um paradigma técnico e reducionista. O que antes podia ser reconhecido como traços de temperamento – como a timidez, a agitação, o silêncio ou a impulsividade – passou a ser rotulado como sintoma patologizado, nomeado por laudos que precedem e atravessam a escuta sensível da criança.

Nesse novo cenário, a neurociência exata e biologizante ocupa o lugar da escuta subjetiva e simbólica, ameaçando o equilíbrio entre o que é natural e o que é medicado, entre o que é vivido e o que é medido.

É preciso alertar que essa mudança de paradigma, embora repleta de avanços técnicos e diagnósticos, pode apagar dimensões fundamentais da infância.

A escola e a família, imersas nesse novo regime de verdade, correm o risco de perder de vista que a criança se desenvolve por fases, com avanços e recuos, e que o desenvolvimento saudável não se dá em linha reta, mas por caminhos afetivos, relacionados e culturais. Não se trata de negar os instrumentos da ciência, mas de reposicionar o olhar: antes de nomear, escutar; antes de laudar, acolher.

Além disso, destaca-se a urgência de um cuidado consciente em relação ao uso precoce e excessivo das telas. A interação humana direta, o brincar livre, a experiência do tédio criativo e a vivência da frustração são elementos fundamentais para o amadurecimento psíquico e social das crianças.

Esses aspectos, frequentemente desconsiderados em uma lógica performática e acelerada, são justamente aqueles que possibilitam à criança desenvolver resiliência, controle de impulso e habilidades socioemocionais – capacidades essenciais para enfrentar os desafios do mundo do trabalho, especialmente em um futuro cada vez mais marcado pela presença da inteligência artificial e pela imprevisibilidade das relações laborais.

Portanto, é imperativo que pais, educadores e gestores públicos, sejam capazes de compreender a infância não como um problema a ser corrigido, mas como um processo a ser acompanhado com presença, escuta e responsabilidade compartilhada.

No atual cenário, o desafio dos especialistas, pais, professores e de toda a sociedade é equilibrar os avanços científicos com a preservação da subjetividade e da singularidade infantil, garantindo que a criança continue sendo, antes de tudo, um ser em desenvolvimento – e não um laudo em formação.

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1 Nilton Pereira da Cunha é Professor, Pesquisador, Escritor e Coordenador Educacional do Instituto Nacional de Evolução Humana. Graduado e Pós-graduação Lato e Stricto Sensu na área da Educação, também graduado e pós-graduado em Direito, com artigos e livros publicados em português e castelhano em vários países: Brasil, Argentina e Colômbia, tais como: O autismo e a interação social: Como desenvolver uma criança saudável na Era Digital; El autismo y la interacción social: como desarrollar una crianza saludable en la Era Digital; Educação, Família e Geração Digital: os desafios e perspectivas da pós-modernidade.

2 ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 1981.

3 FREUD, Sigmund. Análise de uma fobia em um menino de cinco anos (O pequeno Hans) (1909). In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. v. X. Rio de Janeiro: Imago, 1974.

4 KUPFER, Maria Cristina Machado. Freud e a educação: o mestre do impossível. São Paulo: Escuta, 1994.

5 ROUDINESCO, Élisabeth. Sigmund Freud em seu tempo e em nosso tempo. Rio de Janeiro: Zahar, 2016.

6 PIAGET, Jean. A formação do símbolo na criança: imitação, jogo e sonho, imagem e representação. Rio de Janeiro: Zahar, 1971.

7 PIAGET, Jean. O julgamento moral da criança. São Paulo: Nacional, 1967.

8 VYGOTSKY, Lev S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

9 VYGOTSKY, Lev S. Idem. 2007.

10 WALLON, Henri. A evolução psicológica da criança. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

11 WALLON, Henri. Idem. 2007.

12 BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. São Paulo: Paz e Terra, 2002.

13 KLIN, Ami et al. O autismo e os transtornos globais do desenvolvimento: estratégias diagnósticas e terapeutas atuais. Porto Alegre: Artmed, 2003.

14 STRASBURGER, Victor C.; WILSON, Barbara J.; JORDAN, Amy B. Crianças, adolescentes e a mídia. Porto Alegre: Artmed, 2014.

15 BETTELHEIM, Bruno. Idem. 2002.

16 TARDIF, Cyrille. As crianças e os écrans: uma crise do imaginário. São Paulo: Loyola, 2021.

17 BETTELHEIM, Bruno. Idem. 2002.

18 ROSEMBERG, Fúlvia. Diagnóstico, infância e desigualdade social: uma reflexão crítica sobre o discurso do fracasso. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 125, p. 7-34, 2015.

19 ARIÈS, Philippe. Idem. 1981.

20 TARDIF, Cyrille. Idem. 2021.

21 SINGER, Dorothy G.; SINGER, Jerome L. A criança e a televisão: o que os pais devem saber. São Paulo: Summus, 2015.

22 BETTELHEIM, Bruno. Amor não basta: o tratamento psicanalítico de crianças emocionalmente perturbadas. São Paulo: Cultrix, 1987.

23 SIMON, Herbert A. The Science of the Articial. Cambridge, MA: MIT Press, 1996.

24 KENSKI, Vani Moreira. Tecnologia e ensino presencial e a distância. Campinas: Papirus, 2007.

25 SENNET, Richard. A corrosão do caráter: as consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 2006.

26 EHRENBERG, Alain. La mécanique des passions: cerveau, comportamente, société. Paris: Odile Jacob, 2004.

27 MOYSÉS, Maria Aparecida. Inclusão escolar: apontamento sobre a medicalização do processo ensino-aprendizagem. In: COLLARES, Cecília M. L.: MOYSÉS, Maria Aparecida (Org.) Medicalização da educação: uma estratégia de exclusão. Campinas: Autores Associados, 2013.

28 HACKING, Ian The looping effects of human kinds. In: HACKING, Ian. Historical ontology. Cambridge, MA: Havard University Press, 2006.

29 CID é um sistema padronizado, criado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que codifica e classifica doenças, sinais, sintomas, causas externas de lesões e circunstâncias sociais relacionadas à saúde.

30 SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2006.

31 CUNHA, Nilton Pereira da. As emoções e o desenvolvimento infantil na sociedade híbrida. Disponível em: https://revistatopicos.com.br/artigos/as-emocoes-e-o-desenvolvimento-infantil-na-sociedade-hibrida. Consultado em\: 02/08/2025.

32 HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2025.

33 MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

34 MOYSÉS, Maria Aparecida. Idem. 2013.

35 DUBET, François. El declive de la institución. Barcelona: Gedisa, 2008.