A ERA DA NEUROCULTURA INFANTIL: COMO A CULTURA DIGITAL ESTÀ INTERFERINDO NA FORMAÇÃO DO CÉREBRO DA CRIANÇA

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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.17460664


Nilton Pereira da Cunha1


RESUMO
O artigo em tela analisa o impacto profundo da cultura digital sobre o desenvolvimento neurológico e emocional das novas gerações. Aborda-se a transição da infância simbólica, centrada nas interações humanas e na cultura da espera, para a neurocultura digital, marcada pela estimulação constante, imediata e dopaminérgica das telas. Essa nova ambiência modifica o modo como o cérebro infantil organiza suas conexões, afeta a atenção, a linguagem, a empatia e a capacidade de convivência social. O texto enfatiza que o ambiente digital atua diretamente sobre a poda neural, reconfigurando funções cognitivas essenciais durante os primeiros anos de vida. A escola, ainda baseada na cultura simbólica, enfrenta o desafio de educar crianças formadas em um universo de estímulos fragmentados e efêmeros. O artigo alerta que, sem uma intervenção preventiva e políticas públicas adequadas, a geração Beta poderá enfrentar consequências ainda mais severas do que a geração Alpha. Por fim, defende-se a neuroeducação, a conscientização dos pais e o papel do Estado como caminhos urgentes para estabelecer o equilíbrio entre tecnologia e desenvolvimento humano, preservando a formação integral da criança no século XXI.
Palavras-chave: Neurocultura Digital. Neuroeducação. Geração Alpha. Geração Beta.

ABSTRACT
This article analyzes the profound impact of digital culture on the neurological and emotional development of new generations. It addresses the transition from a symbolic childhood, centered on human interactions and a culture of waiting, to a digital neuroculture, marked by the constant, immediate, and dopaminergic stimulation of screens. This new environment changes the way children's brains organize their connections, affecting attention, language, empathy, and the ability to socialize. The text emphasizes that the digital environment directly affects neural pruning, reconfiguring essential cognitive functions during the first years of life. Schools, still based on symbolic culture, face the challenge of educating children raised in a universe of fragmented and ephemeral stimuli. The article warns that, without preventive intervention and appropriate public policies, Generation Beta could face even more severe consequences than Generation Alpha. Finally, it advocates neuroeducation, parental awareness, and the role of the State as urgent ways to establish a balance between technology and human development, preserving the integral development of children in the 21st century.
Keywords: Digital Neuroculture. Neuroeducation. Generation Alpha. Generation Beta.

1. INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, a humanidade atravessou uma transição silenciosa e sem precedentes: a passagem de um mundo analógico, pautado por ritmos naturais e interações presenciais, para um universo digital, marcado por estímulos contínuos, velocidade e hiperconectividade.

Essa transição, que poderia ser descrita apenas como uma evolução tecnológica, revela-se muito mais complexa quando observada sob o prisma da infância.

Ou seja, a partir dessa transição surge uma nova realidade: a neurocultura infantil, na qual a cultura digital deixa de ser apenas um fenômeno sociológico e filosófico e passa a se tornar também uma força neurológica capaz de moldar circuitos cerebrais, afetar a arquitetura da atenção e redefinir os alicerces do desenvolvimento humano.

Até o século XX, a cultura atuava sobre a criança, sobretudo, por meio da família e escola. Linguagem e da experiência social. Havia mediação, tempo, silêncio, condições fundamentais para a organização interna do pensamento e da interioridade.

Hoje, no entanto, as crianças chegam ao mundo imersas em um ecossistema digital2 que atua diretamente sobre o cérebro em formação, antes mesmo da capacidade de crítica, abstração ou autorregulação.

A infância contemporânea, ao chegar à escola, já não é mais apenas uma “folha em que continham alguns riscos do processo filogenético”, mas como uma tábula saturada: uma mente povoada por estímulos constantes, velozes, fragmentados e dopaminérgicos, que competem com processos essenciais como a atenção sustentada, a imaginação e a capacidade de suportar a espera.

Essa saturação não é neutra. A neurociência do desenvolvimento demonstra que, nos primeiros anos de vida, ocorre a mais intensa fase de poda neural, período no qual o cérebro elimina ou fortalece conexões conforme a qualidade dos estímulos recebidos.

É justamente neste momento crítico que muitas crianças são expostas a telas luminosas, sons intermitentes, recompensas imediatas e algoritmos que induzem comportamentos compulsivos.

A cultura digital, portanto, deixa de ser apenas ambiente e passa a se tornar agente neural, com poder de reconfigurar as vias de recompensa, alterar a tolerância às frustrações e comprometer os circuitos do autocontrole, situados no córtex pré-frontal.

Não se trata, portanto, de um fenômeno comportamental ou educativo isolado. Estamos diante de uma profunda mutação cultural com efeitos neurológicos. O desinteresse escolar, a agitação em sala de aula, a dificuldade de escuta e a intolerância à espera não podem mais ser interpretados apenas como indisciplina, rebeldia ou transtorno clínicos permanentes.

Para compreender a criança do século XXI, é necessário reconhecer que estamos lidando com cérebros formados em outra ecologia, uma ecologia digital que opera por hiperestimulação e recompensas instantâneas.

Este artigo propõe-se a percorre essa trajetória histórica e científica, analisando como a cultura digital emergiu, instalou-se no cotidiano infantil e, sem resistência, assumiu papel central na construção das novas gerações.

Iniciaremos com uma linha do tempo que contrasta as infâncias analógicas e digitais; avançaremos para o conceito de neurocultura, explorando como o meio tornou-se molde neural; examinaremos os efeitos dopaminérgicos e as crises de atenção que caracterizam a infância hipermoderna; e, por fim, refletiremos sobre a geração Beta, a primeira a nascer integralmente em uma era de simbiose entre telas e inteligência artificial, e os desafios urgentes de prevenção e políticas públicas.

Compreender essa era é mais do que um exercício intelectual – é um imperativo ético e civilizacional. Se não reconhecermos que a cultura atual está reescrevendo a própria biologia do desenvolvimento, correremos o risco de formar uma geração incapaz de atenção profunda, resistência à frustração e autocontrole, pilares da convivência humana.

A questão que se coloca não é se a tecnologia é boa ou má, mas se seremos capazes de criar uma cultura que forme cérebros, e não que os fragmente.

2. DA ERA ANALÓGICA À GERAÇÃO CONECTADA: UMA LINHA DO TEMPO DA INFÂNCIA

A geração X (1965-1979) viveu sua infância em um ambiente dominado por experiências táteis, convivência comunitária e tempo marcado por ritmos naturais ou sociais, a hora da escola, refeição e de brincar.

Os meios de comunicação eram centralizados (rádio e televisão), com horários fixos e consumo coletivo. A criança recebia estímulos predominantemente presenciais e lineares, o que favorecia o desenvolvimento de capacidades como espera, escuta contínua e atenção sustentada.

Nesse contexto, o cérebro infantil era exposto a interações tridimensionais: olhar, gestos, entonação, toque, fundamentais para a integração entre percepção, linguagem e regulação emocional.

O ambiente promovia a lentidão necessária para a maturação neural, permitindo que os circuitos pré-frontais, ligados ao controle inibitórios, fossem exercitados naturalmente nas rotinas sociais

A geração Y (1980-1994), também chamada Millenial, atravessou a infância um período de transição: cresceu também sobre práticas analógicas (brincadeiras na rua, convívio familiar), porém, com a chegada das primeiras tecnologias digitais: computadores, videogames e os primórdios da internet.

No entanto, é fundamental destacar: essas tecnologias não pertenciam ao universo infantil, nem ao doméstico. Seu uso era restrito a adultos em ambientes corporativos, universidades ou áreas técnicas.

O digital, nesse período, existia apenas como horizonte distante, inacessível à experiencia cotidiana da infância. Esperar, entediar-se, criar jogos com o corpo e com objetos reais, tudo isso ainda estruturava o tempo e o cérebro infantil. Não havia telas nas mãos das crianças, nem estímulos interativos imediatos.

Assim, embora a geração Y seja contemporânea da transição tecnológica, suas bases neurológicas foram moldadas na mesma ecologia da geração X: presença, silêncio, espera, imaginação e ritmos naturais.

Para a geração Z (1995-2009), pode ser dividida em duas metades distintas. A primeira metade viveu o período da transição para o mundo digital, quando a internet ainda estava em expansão. Já a segunda metade cresceu na consolidação da era digital, marcada pela presença constante das redes sociais e o início da popularização dos smartphones. Essa geração inaugurou, na sua adolescência, a experiência de estar sempre acessível, vivendo sob o fluxo contínuo de informações. A ligação com o mundo já passou a não depender mais do ato de “conectar-se”, mas da quase impossibilidade de “desconectar-se”.

Essa nova paisagem cultural introduziu três transformações neurológicas fundamentais:

  • Fragmentação atencional: múltiplos estímulos simultâneos (notificações, vídeos curtos, chats) habituaram o cérebro à troca constante de foco.

  • Aceleração da recompensa: plataformas passaram a oferecer validação social imediata (likes, visualizações), alterando a formação de autoestima e motivação.

  • Deslocamento do real para o simbólico: internações digitais tornaram-se referências centrais da experiência social, afetando a formação da identidade.

Na geração Z, a infância foi o primeiro campo onde a cultura digital deixou de ser ferramenta e tornou-se habitat mental.

A geração Alpha (2010-2024) representa uma ruptura histórica: é a primeira geração a nascer inteiramente dentro de um ecossistema digital. Para muitas dessas crianças, os primeiros estímulos sensoriais já incluem telas. Vídeos, aplicativos e assistentes digitais participam do cotidiano antes mesmo da linguagem verbal ou do caminhar.

Aqui, não se trata mais do uso precoce de tecnologia, mas da constituição neuroambiental digital. A plasticidade cerebral, especialmente entre 0 e 3 anos, encontra-se imersa em estímulos de alta intensidade visual, som rápido e recompensas imediatas. A poda neural, que deveria ser guiada por interações humanas variadas e imprevisíveis, passa a ser recortada por padrões algoritmos.

Diferentemente das gerações anteriores, a Alpha não compara o digital com o analógico, pois, o analógico nunca foi plenamente vivido. A cultura digital não é acréscimo: é origem.

Diante desse contexto, Marshall McLuhan (1911-1980) já afirmava que: “O meio é a mensagem”3, ou seja, os meios não apenas transmitem conteúdos, mas reconfiguram estruturas perceptivas cognitivas.

Na Era da Neurocultura, os meios digitais estão se tornando o primeiro mediador das conexões sinápticas, influenciando os ritmos de atenção, tolerância e de lidar com frustração e da própria sociabilidade.

A neurociência contemporânea confirma: o cérebro infantil não é moldado apenas pelo que vê, mas pela natureza dos estímulos que repete durante seus períodos sensíveis de desenvolvimento4.

Assim, compreender a linha histórica entre gerações é compreender a genealogia de um novo tipo de infância, aquela que aprende a desejar antes mesmo antes mesmo de aprender a esperar.

3. A CULTURA QUE ENTRA PELO CÓRTEX: QUANDO O MEIO SE TORNA MOLDE NEUROLÓGICO

A infância contemporânea inaugura uma nova etapa evolutiva da relação entre cultura e cérebro: a emergência da Neurocultura Infantil. Hoje a criança é imersa em uma cultura de estímulos digitais que não atuam apenas no plano simbólico, mas penetram diretamente nos circuitos corticais, reorganizando a arquitetura neurológica em pleno desenvolvimento.

A cultura já não é apenas um sistema de significados compartilhados, ela se torna um ambiente neuroativo, capaz de moldar os processos sinápticos responsáveis por atenção, regulação emocional, linguagem e vínculo.

O conceito de Neurocultura Infantil emerge da compreensão de que a criança não “absorve” cultura como um observador passivo. Ela incorpora o meio como parte de sua própria estrutura neural.

O córtex, especialmente em seus estágios iniciais de maturação, funciona como uma superfície plástica, pronta para ser esculpida pelas experiências do entorno. Emoções, ritmos, interações e tecnologias não são apenas conteúdos externos, mas estímulos que definem a permanência ou eliminação de circuitos cognitivos fundamentais.

Assim, quando a cultura do ambiente é marcada por estímulos rápidos, recompensas instantâneas e interações digitais substitutivas, não estamos diante de uma mera mudança comportamental, mas de uma nova ecologia cerebral.

Diversas pesquisas em neurociência do desenvolvimento apontam que o cérebro infantil depende de interações humanas rítmicas, trocas afetivas e experiências táteis e sociais para consolidar as funções executivas superiores, como autocontrole, memória de trabalho e pensamento simbólico5.

A substituição dessas experiências por estímulos digitais contínuos reorganiza o tempo interno da criança e fragmenta a atenção voluntária, favorecendo a construção de circuitos voltados à busca de estímulos imediatos, em detrimento dos circuitos da espera, do esforço e da simbolização.

Desse modo, a cultura digital, quando precoce e excessiva, funciona não apenas como conteúdo, mas como determinante estrutural da forma cerebral.

A distinção crucial está no fato de que a cultura digital infantil não se constrói por meio de narrativa, lente histórica ou convivência intergeracional, mas por interfaces sensoriais que capturam o córtex através de padrões repetitivos de estímulos visuais e sonoros.

Assim, o que antes era um processo cultural mediado por linguagens e significações, torna-se uma cultura mediada pela mecânica do reforço neurológico. Como afirma Kandel: “A cultura, quando se inscreve sobre o cérebro em desenvolvimento, não apenas ensina, mas define os alicerces sobre o quais se edificam a cognição e a emoção6”.

A questão central, no atual cenário da neurocultura, “não está em que o que a criança está aprendendo, mas como o meio está ensinando o cérebro a aprender” (Nilton Cunha).

Diante do exposto, a Neurocultura Infantil deve ser compreendida como o ponto de convergência entre o ambiente cultural e a neurobiologia do desenvolvimento.

A cultura se torna um agente ativo, e não abstrato, capazes de alterar o metabolismo dopaminérgico da criança, reprogramar seus níveis de atenção e modular sua relação com o tempo, tédio e o vínculo humano.

Isso exige um novo olhar da educação, saúde e assistência social, como também de toda a sociedade, mas um olhar que: não se trata de discutir apenas conteúdos impróprios ou excesso de tempo de tela, mas de reconhecer que estamos reconfigurando os pilares neurológicos da infância.

O desafio ético e pedagógico contemporâneo reside em compreender que o cérebro infantil, exposto precocemente à cultura digital contínua, pode internalizar uma cultura da hiperestimulação, criando gerações incapazes de sustentar a atenção, tolerar frustrações ou construir pensamento abstrato.

O que está em jogo não é apenas o comportamento infantil, mas a formação de uma humanidade cuja cultura já não atravessa a consciência, mas se infiltra pelos circuitos corticais.

O córtex pré-frontal, a parte social do cérebro, que deveria ser apenas a sede da integração social, passou se tornar espelhos do meio. E se o meio é fragmentado, hiperativo e acelerado, assim será o cérebro que dele emerge.

4. INFÂNCIA HIPERDOPAMINÉRGICA: TELAS RECOMPENSA IMEDIATA E CRISE DA ATENÇÃO NA ESCOLA

A escola é o primeiro espaço em que essa reconfiguração cultural do cérebro se torna visível. Quando o professor se depara com uma criança inquieta, impulsiva, aparentemente desinteressada ou até agressiva, a interpretação tradicional tende a associar esse comportamento à indisciplina, à falta de limites ou à ausência de motivação.

No entanto, diante da Neurocultura Digital, essa leitura torna-se insuficiente e injusta. O que se vê não é um aluno que não quer aprender, mas um cérebro que não consegue sustentar os mecanismos da atenção, espera e pausa, pois foi condicionado por um ambiente de estímulos dopaminérgicos instantâneos.

Esse cérebro, capturado por uma cultura fragmentária, reage ao tempo lento de linguagem e do raciocínio como se estivesse sendo privado de oxigênio. A aula expositiva, a explicação sequencial, a leitura silenciosa, deixam de ser processos naturais de aprendizagem e passam a ser experiências neurologicamente insuportáveis.

Não se trata de falta de interesse; trata-se de um sistema atencional treinado para responder apenas ao imediatismo sensorial. A criança, nesse contexto, vive um conflito cognitivo: deseja aprender, mas sua estrutura neural não dispões das bases para sustentar o processo de aprendizagem.

A agressividade, muitas vezes observada, não é necessariamente fruto de rebeldia ou oposição, mas de colapso da capacidade de autorregulação, típica de cérebros moldados pela cultura da recompensa instantânea. A espera gera ansiedade, o silêncio gera desconforto, o vazio gera desorganização.

Por isso, antes de oferecer conteúdos, a escola precisa recuperar a base sobre a qual qualquer conhecimento se apoia: a construção da atenção, tolerância à frustração e escuta.

Esse cenário exige uma revolução pedagógica. O professor do século XXI não enfrenta apenas lacunas de conteúdo, mas fendas neurológicas socioculturais. A tarefa inaugura não é ensinar matemática, leitura ou ciências, mas reconstruir circuitos cerebrais fragilizados por uma ecologia digital que atravessa o córtex e redefine o que significa aprender.

Como destaca Kandel: (2015) “É a repetição organizada da experiência significativa que o cérebro consolida os alicerces da memória e do pensamento”.

A escola, portanto, torna-se o último espaço capaz de oferecer à criança aquilo que nenhuma tecnologia digital oferece: tempo, relação e continuidade.

Se a Neurocultura Infantil é o novo molde, a educação precisa ser o novo escupir. Sem compreender isso, qualquer intervenção pedagógica está fadada ao fracasso, ou seja, insistindo em métodos cognitivos para alunos que primeiro necessitam de cura atencional.

Só depois de restaurado o eixo atenção, espera, pausa, os conteúdos poderão ser acolhidos como conhecimento, e não recusados como agressão.

5. O FUTURO DA GERAÇÃO BETA: PREVENÇÃO, NEUROEDUCAÇÃO E POLÍTICAS PÚBLICAS URGENTES:

A geração Beta nasce em um limiar histórico sem precedentes. Ela surge mergulhada em um ecossistema no qual a inteligência artificial está profundamente integrada à tecnologia cotidiana.

Não se trata apenas de crianças expostas a telas: trata-se de crianças que entrarão em contato com dispositivos capazes de responder, interagir e moldar comportamentos em tempo real, simulando relações humanas.

Essa será a primeira geração a nascer não apenas com tecnologia, mas dentro da tecnologia, uma realidade que inaugura um novo paradigma neurocultural.

Entretanto, a escola permanece estruturada sobre a cultura simbólica do mundo real, fundada na leitura linear, linguagem escrita, diálogo presencial, espera, tempo de pausa, escuta e abstração.

Enquanto isso, as crianças chegam à escola a partir de uma matriz neurocultural digital, moldada pela aceleração dos estímulos, pela gratificação instantânea, pela lógica fragmentada das telas e pela incapacidade crescente de sustentar atenção, memória e de lidar com frustração.

A escola está preparada para ensinar conteúdos, mas as crianças já não chegam preparadas para aprender. Eis o choque: uma instituição simbólica enfrentando mentes moldadas por algoritmos.

Se nada for feito, as evidências apontam que a geração Beta enfrentará um desequilíbrio ainda mais severo entre o desenvolvimento cognitivo e o desenvolvimento emocional.

A inteligência artificial, ao simular interações humanas, não apenas entretém: cria vínculos emocionais artificiais, substitui relações de afeto, automatiza escolhas e condiciona comportamentos. É a migração definitiva da formação humana para uma formação algorítmica.

Se já vemos a geração Alpha um cérebro digitalizado e fragmentado, a geração Beta poderemos presenciar um cérebro programável e dependente – incapaz de construir autonomia simbólica, criatividade genuína ou pensamento reflexivo.

É preciso inaugurar protocolos familiares e escolares de proteção neurobiológica, com a mesma seriedade que tratamos a saúde física. A infância deve ser resguardada como fase sagrada do desenvolvimento humano, protegida de interferências ambientais que lesionem o amadurecimento cerebral.

Expor uma criança de zero a três anos a estímulos digitais intensos, hoje, representa um dos maiores riscos reurobiológicos já registrados, pois altera os circuitos de atenção, autocontrole, memória afetiva e capacidade de relação humana.

Com a inteligência artificial, a exposição não será mais passiva, será interativa, emocionalmente viciante e pedagogicamente destrutiva.

Portanto, os princípios jurídicos da precaução e prevenção, consolidados no Direito Ambiental e Sanitário, precisam urgentemente ser transpostos para a infância digital.

O princípio da precaução determina que, diante de riscos potenciais graves, a ausência de certeza científica não pode ser usada como justificativa para a omissão. Já o princípio da prevenção exige ação imediata do poder público antes que o dano se consolide. Esperar mais danos, diagnósticos e tragédias familiares para agir seria uma irresponsabilidade histórica.

O Estado deve, portanto, assumir uma responsabilidade pública na construção de políticas neuroeducacionais que garantam.

  • Limites claros de uso de tecnologias na primeira infância, especialmente no período intenso de poda neural, quando o cérebro define suas conexões essenciais.

  • Formação obrigatória de educadores e profissionais da saúde sobre os impactos neurobiológicos da cultura digital nas crianças.

  • Campanhas nacionais de conscientização familiar, alertando que o desenvolvimento infantil não é apenas direito, mas dever de proteção.

  • Inserção da neuroeducação como eixo curricular, permitindo que a escola não apenas transmita conteúdo, mas regenere a capacidade de atenção, escuta, vínculo e linguagem, funções hoje ameaçadas.

Não se trata de negar a tecnologia. Trata-se de proteger o humano. A geração Beta não pode ser entregue a um ambiente que a seduz, como também captura e condiciona sem qualquer limite.

Precisamos recuperar o domínio sobre o tempo da infância, o silêncio, a imaginação, o encontro presencial. E essa construção que definirá se a inteligência artificial será instrumento de humanidade ou de desumanização.

A Era da Neurocultura Infantil impõe a maior responsabilidade internacional de nossa história: garantir que o cérebro humano permaneça capaz de sentir, pensar e se relacionar, para além dos circuitos digitais.

A geração Beta poderá ser a mais inteligente, ou a mais desorientada. E isso dependerá das escolhas que fizermos agora. O tempo da prevenção é hoje. Amanhã será tarde demais.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Estamos diante de um dos maiores dilemas civilizatórios do século XXI: a formação de uma geração cujo cérebro está sendo moldado não pela cultura simbólica e humana, mas pela cultura digital, instantânea e dopaminérgica.

A era na Neurocultura Infantil inaugura uma transformação profunda, silenciosa e pouco compreendida – não apenas no comportamento das crianças, mas na estrutura neuronal que sustentará sua forma de pensar, sentir, aprender e se relacionar com o mundo.

O drama que se impõe não é o de uma simples mudança tecnológica, mas de uma mutação cultural com consequências neurobiológicas. As crianças já não constroem sua mente a partir do tempo, da escuta, da linguagem, do outro, da espera, do símbolo.

Elas estão sendo iniciadas em uma cultura que rejeita o silêncio, que não tolera a pausa, que alimenta o cérebro com picos emocionais e fragmenta a experiência humana em estímulos incessantes.

É um novo modelo de infância, em que a formação do cérebro não acontece mais no colo, ela acontece agora através das telas; não na relação, mas no fluxo; não na brincadeira simbólica, mas no consumo digital.

E aqui está o ponto mais grave: aquilo que era cultural está se tornando neurológico. O que era um problema de hábito está se convertendo em problema de estrutura. A criança que não espera, que não olha, que não permanece, ela não é apenas “desatenta” ou “agitada”, mas um cérebro moldado.

Portadora de um cérebro cuja arquitetura dopaminérgica impede a construção da atenção profunda, pensamento abstrato, empatia, que é o fundamento da vida.

Estamos, portanto, diante de uma urgência histórica. Se a humanidade sempre transmitiu sua cultura às novas gerações, hoje estamos diante da possibilidade real de que essa transmissão seja interrompida.

A geração Beta, a primeira a nascer com a inteligência artificial plenamente integrada, pode ser também a primeira a crescer sem raízes humanas simbólicas, sem tempo interior, sem narrativa de si. Uma geração que sabe deslizar o dedo, mas não sustenta um olhar; que consome estímulos, mas não constrói sentido.

As escolas, famílias e políticas públicas ainda não compreenderam a profundidade desse desafio. Na verdade, o mais comum é continuarmos a interpretar os efeitos da Neurocultura Digital com categorias convencionais: “falta de disciplina”, “preguiça”, “rebeldia”. Mas já não se trata disso.

Trata-se de um novo tipo de mente, construída em um ambiente que não pertence ao humano, mas passou a ser dominado pelos algoritmos. Tratar com punição ou com permissividade apenas agrava o abismo; é necessário compreender e transformar.

Precisamos assumir uma tarefa civilizatória: reumanizar o desenvolvimento infantil. Resgatar os fundamentos que constroem o cérebro: o olhar, o toque, a palavra, o jogo simbólico, a narrativa, a realidade concreta.

Não para negar a tecnologia, mas para recolocá-la em seu devido lugar: instrumento, não matriz; ferramenta, não formadora; meio, nunca origem.

As políticas públicas não podem mais se limitar ao controle de uso do celular nas escolas. É preciso blindar a primeira infância da captura do vínculo e os professores para o entendimento neurobiológico da aprendizagem.

Se nada fizermos, assistiremos ao colapso da experiência humana na infância. Mas se compreendermos, agora, que o cérebro infantil é uma obra cultural e que essa obra está sendo sequestrada, ainda podemos agir.

A Era da Neurocultura Infantil exige de nós coragem pedagógica, consciência pública e responsabilidade moral. O futuro da humanidade está sendo esculpido, neste exato momento, nas sinapses de crianças que não sabem pedir socorro.

E talvez essa seja a nossa última chance de escutar, antes que o silêncio interior das gerações seja definitivamente substituído pelo ruído infinito das plataformas.

A pergunta que não quer calar é: Se o cérebro da infância é o lugar onde o futuro se escreve, que humanidade estamos escrevendo?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CUNHA, Nilton Pereira da. Da sociedade analógica à sociedade híbrida: seus ecossistemas e o impacto no desenvolvimento infantil. Disponível em: https://revistatopicos.com.br/artigos/da-sociedade-analogica-a-sociedade-hibrida-seus-ecossistemas-e-o-impacto-no-desenvolvimento-infantil. Consultado em: 19/10/2025.

DAMÁSIO, António. O erro de Descartes: razão, emoção e o cérebro humano. São Paulo: Companhia da Letras, 2004.

DOIDGE, Normam. The Brain That Changes Itself: Stories of Personal Triumph from the Frontiers of Brain Science. New York: Viking, 2007.

KANDEL, Eric R. In Search of Memory: The Emergence of a New Science of Mind. New York: W. W. Norton, 2015.

MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação: como extensão do homem. São Paulo: Cultrix, 1974.


1 Nilton Pereira da Cunha é Professor, Pesquisador, Escritor e Coordenador Educacional do Instituto Nacional de Evolução Humana. Graduado e Pós-graduação Lato e Stricto Sensu na área da Educação, também graduado e pós-graduado em Direito, com artigos e livros publicados em português e castelhano em vários países: Brasil, Argentina e Colômbia, tais como: O autismo e a interação social: Como desenvolver uma criança saudável na Era Digital; El autismo y la interacción social: como desarrollar una crianza saludable en la Era Digital; Educação, Família e Geração Digital: os desafios e perspectivas da pós-modernidade. @nilton.cunha.900. WhatsApp: +54 11 4989-3292.

2 CUNHA, Nilton Pereira da. Da sociedade analógica à sociedade híbrida: seus ecossistemas e o impacto no desenvolvimento infantil. Disponível em: https://revistatopicos.com.br/artigos/da-sociedade-analogica-a-sociedade-hibrida-seus-ecossistemas-e-o-impacto-no-desenvolvimento-infantil. Consultado em: 19/10/2025.

3 MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação: como extensão do homem. São Paulo: Cultrix, 1974.

4 DOIDGE, Normam. The Brain That Changes Itself: Stories of Personal Triumph from the Frontiers of Brain Science. New York: Viking, 2007.

5 DAMÁSIO, António. O erro de Descartes: razão, emoção e o cérebro humano. São Paulo: Companhia da Letras, 2004.

6 KANDEL, Eric R. In Search of Memory: The Emergence of a New Science of Mind. New York: W. W. Norton, 2015.