A CRIAÇÃO HUMANA COMO RESPOSTA À FINITUDE

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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.13756958


Atila Barros1


RESUMO
A consciência da finitude é uma das características mais marcantes da existência humana. Desde os primórdios da civilização, homens e mulheres têm buscado maneiras de lidar com a inevitabilidade da morte, seja através da criação artística, do trabalho ou dos laços afetivos. Essa busca por sentido em meio à brevidade da vida revela não apenas o desejo de transcender a própria mortalidade, mas também a necessidade de encontrar propósito no aqui e agora. Neste artigo, exploraremos como as ações e criações humanas podem ser interpretadas como respostas à consciência da morte, oferecendo uma reflexão sobre o que nos motiva a viver intensamente e a deixar nossas marcas no mundo. Através dessa análise, veremos como a criação não apenas nos distrai da morte, mas nos ajuda a viver de maneira mais plena e significativa.
Palavras-chaves: finitude. mortalidade. criação. propósito.

ABSTRACT
The awareness of finitude is one of the most striking characteristics of human existence. Since the dawn of civilization, men and women have sought ways to cope with the inevitability of death, whether through artistic creation, work, or emotional bonds. This search for meaning amidst the brevity of life reveals not only the desire to transcend one's own mortality but also the need to find purpose in the here and now. In this article, we explore how human actions and creations can be interpreted as responses to the awareness of death, offering a reflection on what motivates us to live intensely and leave our marks on the world. Through this analysis, we will see how creation not only distracts us from death but also helps us live more fully and meaningfully.
Keywords: finitude. mortality. creation. purpose.

INTRODUÇÃO

A consciência da finitude emerge como uma das características mais expressivas da experiência humana, moldando tanto a nossa percepção da vida quanto a nossa relação com a morte. Desde os primórdios da civilização, a humanidade tem buscado formas de lidar com a inevitabilidade do fim, utilizando a criação artística, o trabalho e os vínculos afetivos como meios para achar significado na brevidade da existência.

A mortalidade é uma constante na experiência humana, amplamente reconhecida, mas frequentemente ignorada em nossa vida cotidiana. A rotina oferece uma multiplicidade de distrações—trabalho, família, estudos, hobbies e arte—que, embora essenciais para o nosso bem-estar e desenvolvimento pessoal, também desempenham um papel extraordinário na mitigação da consciência sobre a finitude. Essas atividades não apenas promovem a interação social, fornecem propósito e estabelecem um sentimento de continuidade e pertencimento, mas também funcionam como mecanismos de evasão da reflexão profunda sobre a transitoriedade da existência. Este artigo visa oferecer uma reflexão sobre como as ações e produções humanas podem ser interpretadas como respostas à consciência da mortalidade, revelando o desejo intrínseco de transcender a própria finitude e a necessidade de descobrir um propósito no presente.

Para sustentar essa análise, o artigo se fundamenta em um arcabouço teórico que inclui pensadores como Zygmunt Bauman e Jean-Paul Sartre. As obras de Bauman, particularmente Vida Líquida (2007), fornecem uma visão crítica sobre a transitoriedade na modernidade líquida e sua influência na busca de sentido. Sartre, em O Ser e o Nada (1943), explora a finitude dentro da perspectiva da liberdade radical, enfatizando a relevância da consciência da morte para a autenticidade existencial.

Ainda, o artigo examina como a criação, seja na arte, na ciência ou nas relações interpessoais, oferece uma rota para transformar a transitoriedade da vida em algo mais duradouro. Por meio da criação, os indivíduos encontram maneiras de perpetuar o que define a condição humana, permitindo que suas experiências e legados ressoem além de sua existência terrena. Dessa forma, a criação não apenas desvia nossa atenção da morte, mas também contribui para uma vida mais plena e significativa, servindo como um testemunho do desejo de deixar uma marca que transcenda os limites do tempo. O objetivo deste texto é elucidar como a consciência da finitude e a busca pela criação se interrelacionam, moldando a experiência humana e a construção de um sentido que vai além da própria mortalidade.

A PERCEPÇÃO DA MORTALIDADE

A busca por sentido e propósito é uma característica fundamental da experiência humana. Ao longo da história, as pessoas têm se dedicado a construir, criar e transformar o mundo ao seu redor, seja através de obras de arte, avanços científicos ou o fortalecimento de laços sociais. Essas ações, que à primeira vista parecem impulsionadas pelo desejo de progresso e evolução, revelam uma dimensão mais profunda e existencial: a necessidade de lidar com a consciência da finitude. A percepção da mortalidade, inevitável para todos, tem um impacto significativo nas motivações e nos comportamentos humanos.

A consciência da morte gera uma dualidade na forma como conduzimos nossas vidas. De um lado, existe a tentativa de afastar essa realidade, uma estratégia de sobrevivência mental que nos impulsiona a manter nossas mentes ocupadas com tarefas cotidianas, projetos e objetivos (Gomes, 2023). Trabalhamos, criamos e nos envolvemos em relações para preencher o tempo e, de certa maneira, adiar a reflexão sobre o fim inevitável. A estruturação da vida em torno de rotinas e marcos temporais – como datas, prazos e celebrações – parece ser uma tentativa de dar ordem e continuidade a uma realidade que, no fundo, está sujeita ao imprevisível. Por outro lado, a criação e o fazer humano podem ser interpretados como formas de enfrentamento da morte. Ao construir algo que transcenda nossa existência, buscamos uma forma de perpetuar nossa presença no mundo. Queremos deixar marcas que durem além da nossa própria vida – seja uma obra de arte, uma inovação tecnológica ou uma contribuição social. Este impulso de criar para deixar um legado não é apenas uma forma de se manter ocupado, mas uma maneira de desafiar a própria finitude. Ao dar forma a algo duradouro, o ser humano se projeta no futuro, tentando assegurar que, mesmo com a morte, sua essência continue presente no mundo (Bauman, 2010).

A cultura, a arte, a ciência e a religião, em diferentes momentos da história, têm sido respostas humanas a essa necessidade de transcender a morte. A arte, por exemplo, imortaliza sentimentos, ideias e experiências, transformando o efêmero em algo atemporal. A ciência busca não apenas entender o mundo, mas também superar as limitações impostas pela biologia e pelo tempo. A religião oferece narrativas que conectam a vida e a morte a um ciclo maior, dando à mortalidade um sentido mais profundo e reconfortante. Todos esses esforços revelam o desejo humano de encontrar formas de lidar com o desconhecido e o incontrolável (Ariès, 2003).

No entanto, essas tentativas de transcendência não são necessariamente um escape da mortalidade, mas sim uma forma de enfrentá-la. Ao criar e se engajar no mundo, o ser humano não apenas distrai-se da ideia da morte, mas também constrói formas de dar sentido à sua existência. Em vez de apenas temer o fim, a criação permite que a vida ganhe significado, oferecendo a oportunidade de deixar um impacto que ressoe mesmo após a partida.

Afinal, viver envolve não apenas a consciência da morte, mas também a capacidade de encontrar, em meio à finitude, maneiras de perpetuar o que nos torna humanos. Seja por meio da arte, da ciência ou das relações que construímos, a criação nos oferece uma rota para transformar a transitoriedade da vida em algo mais duradouro, um testemunho do nosso desejo de permanecer, de alguma forma, além dos limites do tempo.

FINITUDE E A RELAÇÃO HISTÓRICA DO HOMEM

A finitude, enquanto conceito existencial e filosófico, tem desempenhado um papel decisivo na configuração da experiência humana ao longo da história. Desde os primórdios da civilização, a consciência da finitude moldou as formas como os seres humanos entendem o propósito da vida e sua relação com a morte, influenciando profundamente suas práticas culturais e filosóficas.

Na Grécia Antiga, filósofos como Sócrates e Platão abordaram a finitude de maneiras que ajudaram a moldar o pensamento ocidental. Sócrates, em seus diálogos, enfatizava a importância da reflexão sobre a morte como um meio para alcançar uma vida virtuosa (Sócrates, 2008). Ele acreditava que a consciência da própria mortalidade era fundamental para o desenvolvimento da sabedoria e da integridade moral. Platão, em sua obra A República (2011), ofereceu uma visão dualista, distinguindo entre o mundo sensível e o mundo das ideias, argumentando que a alma imortal busca o conhecimento eterno para transcender a finitude física.

Com o advento do Cristianismo, a finitude humana foi reinterpretada através da perspectiva da fé e da salvação. Agostinho de Hipona, em Confissões, explorou a relação entre o tempo e a eternidade, sugerindo que a vida terrena, sendo passageira, é uma preparação para a eternidade com Deus. Essa visão cristã trouxe uma nova dimensão ao conceito de finitude, integrando a noção de que a mortalidade oferece uma oportunidade para alcançar a redenção e a vida eterna, transformando a morte em um estágio para uma existência superior (Agostinho, 2017).

Durante o Renascimento e o período moderno, o foco passou a se concentrar na individualidade e na experiência pessoal da finitude. Michel de Montaigne, em seus Ensaios, abordou a morte com um tom introspectivo, defendendo a aceitação da finitude como uma parte inevitável da condição humana. Montaigne argumentava que, ao aceitar a mortalidade, os indivíduos poderiam viver de forma mais autêntica e plena, confrontando a vida com sinceridade e resignação (De Montaigne, 2017).

No século XX, o existencialismo ofereceu uma análise aprofundada da finitude, com pensadores como Martin Heidegger e Jean-Paul Sartre explorando suas implicações para a liberdade e a autenticidade. Heidegger, em Ser e Tempo (1953), introduziu o conceito de ser-para-a-morte, argumentando que a consciência da própria mortalidade é essencial para a realização da autenticidade e da integridade existencial. Para Heidegger, a aceitação da finitude permite ao indivíduo viver com um senso profundo de compromisso e sinceridade. Sartre, por sua vez, em O Ser e o Nada (1943), abordou a finitude dentro do contexto da liberdade radical do ser humano, enfatizando que, embora a liberdade seja uma condenação inevitável, a consciência da morte é central para a experiência existencial.

Embora o conceito de mortalidade varie ao longo do tempo e das culturas, ele permanece uma força central na definição do significado e do propósito da vida. A consciência da morte tem levado os indivíduos e as sociedades a buscar formas de dar sentido à existência, seja através da virtude, da fé, da realização pessoal ou da autenticidade.

FINITUDE

Finitude refere-se à condição de ser finito, ou seja, à limitação inerente à existência humana, marcada pela inevitabilidade da morte. A finitude representa o reconhecimento de que a vida tem um término, influenciando profundamente como os seres humanos organizam suas vidas e sociedades. No contexto filosófico e existencial, a finitude destaca a limitação do tempo de vida, provocando questões sobre o significado da existência e as maneiras pelas quais buscamos transcender ou lidar com essa condição.

Para Zygmunt Bauman, a finitude é um tema central em sua análise das relações entre mortalidade e modernidade. Em Mortality, Immortality and Other Life Strategies (2010), Bauman argumenta que a consciência da morte molda profundamente as sociedades humanas, sugerindo que a finitude não é apenas uma realidade biológica, mas também uma construção cultural. Ele propõe que a modernidade transformou o medo da morte em uma série de estratégias para lidar com a finitude, promovendo a ideia de controle e gestão da vida por meio da ciência, da medicina e da busca incessante por segurança e longevidade (Bauman, 2010).

Segundo Bauman, na modernidade, a morte foi deslocada para as margens da vida cotidiana, sendo evitada e disfarçada em práticas e discursos voltados para a preservação da saúde e a eliminação de riscos. A finitude, que antes era um horizonte reconhecido, passou a ser tratada como algo a ser constantemente adiado ou negado. As sociedades modernas desenvolveram, assim, uma obsessão pela saúde e pelo prolongamento da vida, transformando a finitude em um problema a ser resolvido por meio de avanços científicos e tecnológicos (Bauman, 2010).

Entretanto, Bauman discute que a pós-modernidade, ao contrário da modernidade, aceita mais abertamente a transitoriedade da existência. A finitude, nesse contexto, é vivida como parte inerente da condição humana, e a busca pela imortalidade, que outrora foi um objetivo central, perde seu significado tradicional. Em vez disso, o pós-modernismo coloca a notoriedade efêmera e a celebração da vida presente como alternativas ao desejo de imortalidade, reconhecendo a finitude como um fato incontornável e, por vezes, celebrando-a como parte da experiência humana (Bauman, 2010).

Bauman observa que, embora a pós-modernidade aceite a finitude, isso não elimina o medo da morte. A transitoriedade é encarada como inevitável, e as estratégias culturais para lidar com a finitude se tornam mais fluidas, deslocando o foco da imortalidade para a maximização da experiência no presente. Dessa forma, Bauman sugere que a maneira como cada sociedade lida com a finitude revela muito sobre suas estruturas de poder, suas instituições e suas narrativas de significado (Bauman, 2010).

Para Bauman, a finitude é um aspecto central da condição humana, mas as estratégias para enfrentá-la variam conforme o contexto histórico e cultural. Na modernidade, a finitude é evitada e combatida; na pós-modernidade, é reconhecida e, em certa medida, integrada à vida cotidiana (Bauman, 2010).

A MORTE

A morte e a finitude, embora interligadas, representam conceitos distintos com implicações específicas. A morte é definida como o cessamento definitivo das funções biológicas que sustentam a vida. Este conceito refere-se ao ponto em que os processos vitais do organismo cessam completamente, resultando em um fim concreto e físico da existência individual. O estudo da morte envolve a análise de seus aspectos clínicos, sociais e culturais, incluindo causas, processos de luto e práticas funerárias que variam entre diferentes culturas e períodos históricos.

Por outro lado, a finitude abrange a limitação inseparável da condição humana, englobando a inevitabilidade da temporalidade e da finitude da existência. Enquanto a morte é um evento específico, a finitude é uma característica contínua que se refere ao reconhecimento de que todas as experiências e a própria vida são temporárias e limitadas (Ariès, 1977). A finitude se relaciona com questões filosóficas e existenciais sobre o sentido da vida, a natureza da experiência humana e a busca por significado diante da inevitabilidade da transitoriedade. Assim, enquanto a morte representa um evento final e específico, a finitude é uma condição contínua que reflete a limitação e a transitoriedade inerentes à existência humana, oferecendo uma perspectiva mais abrangente e filosófica sobre a experiência da vida (Bauman, 2010).

A morte é uma experiência impossível de ser visualizada ou representada. Conforme nos mostra Husserl (2006), toda percepção é intencional, isto é, envolve o sujeito perceptivo em uma busca por algo externo a si, um objeto que faz parte de um mundo compartilhável. Contudo, não existe "algo" que seja a morte. Ela representa o nada absoluto, e "nada absoluto" é um conceito sem sentido prático. Qualquer ideia de "nada" só faz sentido em relação a uma ausência que pode ser percebida. Assim, não há como o sujeito perceptivo ancorar sua intenção na morte, uma vez que ela marca o fim da própria percepção. A morte, nesse sentido, escapa à nossa capacidade de compreendê-la ou representá-la de forma direta. Para lidar com essa incapacidade, recorremos a metáforas que, na verdade, ocultam a morte em vez de revelá-la, disfarçando o estado de não-percepção que ela traz consigo.

Bauman (2010), em sua obra Mortalidade, Imortalidade e Outras Estratégias de Vida, explora essa relação paradoxal com a morte, argumentando que o sujeito, ao confrontar a impossibilidade de apreendê-la, muitas vezes se ilude ao tentar substitui-la pelo conhecimento da morte dos outros. No entanto, a morte alheia, ainda que seja um evento que posso testemunhar no mundo exterior, não me prepara para enfrentar a minha própria morte, que, ao contrário da morte dos outros, é inarticulável e pessoal, escapando a qualquer possibilidade de narração.

O filósofo Epicuro afirmou que não há razão para temer a morte, já que, quando ela chegar, não estaremos presentes para experimentá-la. No entanto, mesmo diante de tal raciocínio lógico, geração após geração continua a temer a morte. O que falha nesse argumento, segundo Bauman (2010), é sua desconexão com a vivência emocional e psicológica dos seres humanos em relação à sua própria mortalidade. A angústia diante da morte persiste, não porque a razão é insuficiente, mas porque o conhecimento de nossa finitude não pode ser simplesmente apagado.

Bauman (2010) argumenta que, ao contrário de outros seres vivos, os humanos não apenas sabem da inevitabilidade da morte, mas também sabem que sabem. Esse conhecimento é irremediável; não pode ser "desaprendido". Assim, a cultura surge, em grande parte, como uma tentativa de suprimir esse saber. Embora a morte não seja a única motivação para a produção cultural, o impulso humano pela transcendência e permanência reflete a necessidade de dar sentido à vida diante da inevitabilidade da morte. Para Bauman (2010), a cultura funciona como uma grande fábrica de permanência, uma forma de resistir à transitoriedade da vida.

A consciência da mortalidade, portanto, é a condição última para a criatividade cultural. Como argumenta Bauman (2010), sem esse conhecimento, a vida perderia parte de seu sentido, e a cultura, tal como a conhecemos, talvez nem sequer existisse. A busca pela imortalidade simbólica, seja por meio de obras de arte, instituições ou narrativas, reflete a tentativa humana de transcender os limites impostos pela morte, um esforço contínuo para conferir permanência a uma existência que, em si, é essencialmente efêmera.

ANGÚSTIA

A filosofia de Epicuro2 oferece uma perspectiva única sobre a questão da morte e a busca por sentido na vida. Para Epicuro, o medo da morte é uma das principais fontes de angústia para o ser humano, mas, paradoxalmente, ele argumenta que esse medo é irracional. Em sua famosa frase, "a morte não é nada para nós", Epicuro sustenta que, uma vez que a morte representa o fim da experiência consciente, não há razão para temê-la. Quando estamos vivos, a morte não está presente; e quando ela chega, já não estamos mais lá para experimentá-la. Portanto, o temor da morte se baseia em uma falsa premissa: o medo do que não podemos experimentar (Ullmann, 1996; Spinelli, 2014).

A partir dessa visão epicurista, o foco da vida deve estar na busca pela ataraxia, ou tranquilidade da alma, alcançada por meio da eliminação de medos infundados e pela busca dos prazeres simples e naturais. Epicuro defendia que o verdadeiro prazer não reside na busca incessante por riquezas, status ou poder, mas sim em uma vida vivida com moderação, em harmonia com os próprios desejos naturais. Esse prazer está ligado à ausência de dor e sofrimento, tanto físico quanto mental, que inclui o temor da morte (Ullmann, 1996).

Essa visão filosófica pode ser integrada à ideia de que a criação e o fazer humano são maneiras de lidar com a consciência da finitude. Para Epicuro, uma vida bem vivida é aquela em que conseguimos desfrutar dos prazeres que estão ao nosso alcance e evitar os tormentos desnecessários. O processo de criação, seja na arte, no trabalho ou nas relações pessoais, pode ser entendido, sob essa ótica, como uma forma de se conectar com esses prazeres simples e duradouros. O ato de criar não deve ser visto como uma fuga da morte, mas como uma expressão da vida em si, uma maneira de usufruir do momento presente (Bauman, 2008).

No entanto, a filosofia epicurista vai além do simples hedonismo. Epicuro acreditava que a contemplação filosófica e o entendimento da natureza das coisas são fontes profundas de prazer. A busca por conhecimento e sabedoria, segundo ele, ajuda a libertar o ser humano dos medos que o paralisam, como o medo da morte e dos deuses. Nesse sentido, ao criar e compreender o mundo, estamos, de certa forma, cumprindo esse objetivo epicurista de viver uma vida plena, focada no presente e liberta de angústias infundadas (Spinelli, 2014).

A ideia de transcendência, tão comum na busca humana por legado, também encontra um contraponto em Epicuro. Enquanto muitas pessoas criam na esperança de deixar algo para além de sua própria existência, a filosofia epicurista sugere que o foco deve estar no prazer e na paz mental obtidos no presente, não no que virá após a morte. A criação pode, portanto, ser vista como uma forma de expressar e aproveitar a vida aqui e agora, e não necessariamente como uma tentativa de desafiar a finitude.

Desse modo, as ideias de Epicuro nos convidam a refletir sobre a maneira como encaramos a morte e como vivemos. Ele propõe que, ao invés de temer o fim, devemos nos concentrar em viver uma vida de prazer moderado e compreensão filosófica. O processo criativo e a realização de ações que nos trazem prazer podem, assim, ser formas de honrar essa visão de vida, onde a morte não é evitada, mas aceita como parte natural da existência, libertando-nos para viver com mais tranquilidade e plenitude.

TRANSCENDÊNCIA

A cultura humana sempre esteve intrinsecamente ligada à transcendência. Desde tempos imemoriais, o ser humano buscou expandir os limites do espaço e do tempo que definem sua existência, com o propósito de superá-los completamente. Como aponta Bauman (2010), essa busca pelo transcender se manifesta em atividades que, embora parcialmente independentes, estão intimamente conectadas: a tentativa de prolongar a vida e, ao mesmo tempo, dar um sentido imortal àquilo que fazemos em vida. A cultura, nesse sentido, desempenha um papel fundamental, fornecendo os meios para prolongar a sobrevivência e, ao mesmo tempo, imbuir a vida de significado, mesmo diante da certeza da morte.

A primeira atividade cultural é a luta pela sobrevivência, o esforço para adiar o momento da morte, aumentando a expectativa e a qualidade de vida. Isso inclui não apenas as inovações científicas e médicas que prolongam a vida, mas também o ato de elevar a morte a um evento significativo, algo que transcende o natural e o mundano. Segundo Maurice Blanchot, a cultura busca "dar à morte uma certa pureza", tornando-a autêntica e pessoal (Blanchot, 1997). Nesse contexto, a morte, quando despida de sua nobreza cultural, pode ser vista como uma justificativa para a violência e a destruição, mostrando que a cultura busca constantemente elevar a condição humana, afastando-a da brutalidade natural da morte.

A segunda atividade, igualmente vital, está relacionada à imortalidade. Como sugere Bauman (2010), a cultura tenta negar à morte a palavra final, oferecendo a possibilidade de que nossos atos e realizações vivam além de nós. Esse conceito pode ser visto em expressões como "Ele morreu, mas seu trabalho permanece vivo" ou "Ela viverá para sempre em nossa memória". A imortalidade, nesse sentido, é uma criação cultural que dá à vida uma extensão simbólica, permitindo que algo de nós permaneça após a nossa partida física.

Essa dualidade entre sobrevivência e imortalidade é central para a existência humana. Como observou Elias Canetti, "quantas pessoas achariam que vale a pena viver se não tivessem que morrer?" (Canetti, 2019). Essa pergunta retórica reflete o paradoxo da condição humana: enquanto a certeza da morte pode minar nossos maiores projetos, também é essa consciência da mortalidade que motiva o ser humano a criar, a buscar significado e a transcender os limites de sua própria finitude.

A mortalidade, portanto, não apenas condena a existência humana ao fracasso inevitável, como também é a força motriz por trás da nossa capacidade de criar sentido. A cultura, como apontado por Bauman (2010), é uma grande "fábrica de permanência", um esforço coletivo para dar significado à vida em um mundo que, em si, é desprovido de sentido. Nossos projetos e ações se tornam significativos porque, ao sabermos que a morte é inevitável, somos impelidos a buscar algo que transcenda nossa existência limitada. A cultura, nesse processo, serve para suprimir o peso da mortalidade, permitindo que vivamos vidas plenas, cheias de propósito, mesmo que esse propósito seja, em última análise, construído a partir de uma realidade frágil e provisória.

O papel da cultura na construção desse sentido é, portanto, duplo: de um lado, ela oferece um sentido para a vida, proporcionando propósito e transcendência; de outro, ela suprime a consciência constante da finitude humana, permitindo que continuemos a viver sem sermos esmagados pela futilidade última da existência. Como conclui Bauman (2010), a cultura não pode admitir abertamente sua função de mitigar o medo da morte, pois isso subtrairia a efetividade de sua conquista. Para que a vida nobre seja vivida com suavidade, é necessário que a memória do "nascimento ilegítimo" desse sentido seja apagada, permitindo que continuemos nossa existência com a ilusão de que o sentido da vida é inato, quando, na verdade, é construído e sustentado pela cultura.

O TEMPO QUE PASSAMOS AQUI

Se considerarmos a ideia de que, ao morrer, esqueceremos tudo o que vivemos, surge uma questão essencial: o que fazer durante a vida, sabendo que nossas memórias e experiências desaparecerão no fim? A resposta a essa questão nos força a refletir sobre o propósito da existência e a maneira como atribuímos valor ao tempo que passamos aqui.

Primeiramente, a noção de que o esquecimento na morte é inevitável pode nos levar a reavaliar a importância que damos ao futuro ou ao passado. Se o fim da vida implica o esquecimento de tudo, então o verdadeiro valor das nossas experiências está no presente. Viver intensamente, com foco no agora, torna-se uma resposta natural a essa perspectiva. Em vez de buscar significado em um legado ou em algo que ultrapasse a nossa existência, podemos escolher viver a vida com plenitude, concentrando-nos nas experiências e sentimentos que nos enriquecem enquanto estamos vivos (Bauman, 2010).

Essa visão aproxima-se de correntes filosóficas que privilegiam o presente como único tempo realmente acessível. Por exemplo, o estoicismo nos ensina a focar no que está ao nosso alcance, a viver com virtude e a aceitar a impermanência das coisas. Nesse sentido, se o esquecimento é inevitável, a vida ganha significado não por sua duração ou memória futura, mas pela maneira como a conduzimos no presente. Devemos buscar ações que nos façam sentir plenamente vivos, seja através de momentos de felicidade, de criação ou de contribuição ao bem-estar dos outros (Bauman, 2008).

Além disso, o fato de que tudo será esquecido pode nos libertar da necessidade de acumular posses ou conquistas externas. A preocupação excessiva com riqueza, status ou sucesso pode perder seu apelo diante da certeza do esquecimento. Se, ao morrer, nada disso será lembrado, por que viver em função de metas que apenas reforçam uma busca por validação externa? O valor da vida pode estar, então, em cultivar relações autênticas, em explorar nossa criatividade, em encontrar prazer nas coisas simples e em vivenciar momentos de conexão humana, seja com amigos, família ou até desconhecidos.

Por outro lado, esse raciocínio não significa que as ações na vida sejam irrelevantes. Mesmo que a memória pessoal se perca na morte, as ações que realizamos podem impactar os outros, deixando marcas que transcendem nossa própria experiência. Ao ajudar, inspirar ou amar, afetamos a vida das pessoas ao nosso redor, e essas ações criam um efeito que pode ressoar muito além do nosso tempo. A construção de um mundo melhor, por meio de gestos, ideias ou atitudes, pode ser uma forma de atribuir significado à vida, independentemente de sermos capazes de lembrar dessas ações no futuro.

A noção de que esqueceremos tudo ao morrer também pode aliviar o fardo dos arrependimentos. Se todas as nossas memórias se dissiparem, não há motivo para se apegar ao passado ou se atormentar com decisões que poderiam ter sido diferentes. Isso nos dá uma oportunidade de viver com mais liberdade, sem carregar o peso das expectativas ou dos fracassos, aceitando o fluxo natural da vida e buscando o crescimento pessoal sem pressões desnecessárias (Camus, 2017).

Portanto, o que fazer em vida, se na morte esqueceremos o que vivemos? Viver de forma significativa no presente, sem a obsessão de deixar um legado eterno ou de acumular memórias que, no fim, desaparecerão. Aproveitar a vida como uma jornada de experiências, conexões e aprendizados, valorizando o momento presente e as relações que criamos com os outros. Se o esquecimento é inevitável, a melhor resposta é a presença plena: viver com intensidade, gratidão e a consciência de que cada instante tem seu próprio valor, independentemente de sua duração ou permanência.

AS COISAS QUE CRIAMOS E FAZEMOS AO LONGO DA VIDA SERVEM PARA NOS DISTRAIR DA INEVITABILIDADE DA MORTE

A ideia de que todas as coisas que criamos e fazemos ao longo da vida servem para nos distrair da inevitabilidade da morte é, ao mesmo tempo, profundamente filosófica e dolorosamente humana. Ao longo da nossa existência, dedicamos tempo e energia a projetos, relacionamentos e aspirações, mas, no fundo, há uma consciência inescapável de que a morte é o destino de todos. No entanto, essa verdade, por mais universal que seja, raramente ocupa o centro das nossas atenções. E é justamente aí que surge a reflexão sobre como vivemos e por que nos envolvemos em tantas atividades. Todas as coisas que criamos e fazemos ao longo da vida servem, em última instância, para nos distrair da inevitabilidade da morte (Bauman, 2008).

A mortalidade é um fato que todos conhecemos, mas poucos de nós a encaram de frente no cotidiano. A vida nos oferece inúmeras formas de focar em outras coisas: trabalho, família, estudos, hobbies, arte. Essas atividades são, em muitos sentidos, fundamentais para nosso bem-estar e desenvolvimento. Elas nos conectam com outras pessoas, nos dão propósito e criam um senso de continuidade e pertencimento. Mas se olharmos mais profundamente, é possível perceber que também nos ajudam a evitar a reflexão constante sobre nossa finitude.

A criação, seja no campo artístico, intelectual ou prático, é um dos maiores exemplos disso. Quando criamos algo — uma pintura, um livro, um edifício, ou até uma família — projetamos uma parte de nós mesmos para o futuro. É como se, por meio dessas obras, tentássemos superar a morte, garantindo que algo de nós permanecerá. A criação nos permite sentir que, de alguma forma, estamos transcendentemente presentes, mesmo após a nossa partida.

Mas essa distração da morte não deve ser vista como algo negativo. Pelo contrário, pode ser o que nos motiva a viver com intensidade. A consciência da finitude nos impulsiona a preencher o tempo com ações que nos trazem alegria, conexão e significado. Viver plenamente envolve reconhecer a morte como parte do ciclo, mas escolher focar naquilo que dá valor ao presente. Cada escolha de se envolver em uma nova experiência ou projeto pode ser entendida como uma resposta à inevitabilidade da morte, mas também como uma celebração da vida.

Essa busca por sentido, por algo que vá além da mortalidade, pode ser também um reflexo do nosso desejo de conexão. Criamos e nos dedicamos ao trabalho, à arte e aos relacionamentos porque, no fundo, o que realmente importa para nós é o contato com o outro, o impacto que causamos e a troca de experiências. O medo da morte, então, pode ser suavizado quando nos sentimos parte de algo maior, seja uma comunidade, uma ideia, ou uma obra que nos sobrevive.

No entanto, ao invés de nos iludirmos, talvez o mais humano seja reconhecer que essa distração da morte não é uma negação, mas uma aceitação. Sabemos que a vida é finita, e é justamente essa consciência que nos dá a urgência para criar, amar, trabalhar e experimentar. O fato de que a morte é inevitável não diminui o valor daquilo que fazemos, mas, de certa forma, o intensifica. Afinal, é a brevidade da vida que nos ensina a aproveitar o presente, a valorizar os pequenos momentos e a buscar sentido nas nossas ações.

Assim, ao longo da vida, as coisas que criamos e fazemos podem, sim, nos distrair da morte, mas também nos ajudam a viver de forma mais rica e significativa. A morte é um fato inescapável, mas não precisa ser o centro de nossas preocupações. O que fazemos, as marcas que deixamos e os relacionamentos que construímos são as maneiras que encontramos para lidar com essa realidade e, ao mesmo tempo, dar forma à nossa própria existência.

O CONSUMISMO COMO RESPOSTA À FINITUDE

O consumismo é um acontecimento prevalente na sociedade moderna, impulsionado pela incessante aquisição de bens e serviços que prometem satisfação pessoal e social. Essa prática pode ser entendida como uma resposta à ansiedade existencial gerada pela consciência da finitude. A morte é uma realidade inevitável, e a percepção de que a vida é limitada pode ser angustiante. Para muitas pessoas, o consumismo surge como uma forma de desviar o foco desse medo e encontrar alívio temporário (Silva, 2014). Consumismo é um padrão contínuo de desejos e anseios humanos que leva à aquisição de bens além das necessidades básicas de sobrevivência. Muitas vezes, as pessoas compram itens desnecessários, frequentemente sem recursos financeiros adequados, com o intuito de impressionar os outros e obter um status ilusório de poder (De Moura, 2018).

O consumismo é um fenômeno sociocultural que reflete um padrão constante de desejos e anseios humanos voltado para a aquisição de bens que vão além das necessidades básicas de sobrevivência. Esse comportamento não se limita apenas à satisfação de necessidades reais, mas se estende à compra de produtos desnecessários, muitas vezes sem a devida capacidade financeira. A motivação por trás desse consumismo excessivo é frequentemente o desejo de impressionar os outros e obter um status social que, na prática, é ilusório (De Moura, 2018).

Impulsionado por uma combinação de fatores psicológicos e sociais, o consumismo é a busca por reconhecimento e a validação externa. As pessoas podem sentir-se compelidas a adquirir produtos não essenciais como uma forma de projetar uma imagem de sucesso ou poder. Esse fenômeno é exacerbado pela publicidade e pelas pressões sociais, que constantemente promovem a ideia de que a felicidade e o status estão associados à posse de bens materiais (Bauman, 2008).

Esse comportamento pode ter diversas consequências negativas, tanto a nível individual quanto societal. A pressão para consumir de forma excessiva pode levar a problemas financeiros, estresse e insatisfação pessoal, além de contribuir para impactos ambientais e a exploração de recursos naturais. Em um nível mais amplo, o consumismo perpetua um ciclo de insustentabilidade e desigualdade, à medida que a busca por status material muitas vezes ignora as necessidades reais e o bem-estar coletivo.

Para Bauman, (2008), a ansiedade existencial é uma sensação de desconforto que resulta da compreensão da nossa própria mortalidade. Confrontar a finitude da vida pode ser um desafio emocional significativo, levando muitos a buscar formas de escapar desse sentimento inquietante. O consumismo, com sua promessa de prazer imediato, muitas vezes se torna um mecanismo de defesa. A publicidade e o marketing desempenham papéis categóricos nesse processo, criando a ilusão de que a aquisição de produtos pode preencher lacunas emocionais e proporcionar um sentido de bem-estar duradouro.

Os encontros dos potenciais consumidores com os potenciais objetos de consumo tendem a se tornar as principais unidades na rede peculiar de interações humanas conhecida, de maneira abreviada, como “sociedade de consumidores”. Ou melhor, o ambiente existencial que se tornou conhecido como “sociedade de consumidores” se distingue por uma reconstrução das relações humanas a partir do padrão, e à semelhança, das relações entre os consumidores e os objetos de consumo. Esse feito notável foi alcançado mediante a anexação e colonização, pelos mercados de consumo, do espaço que se estende entre os indivíduos – esse espaço em que se estabelecem as ligações que conectam os seres humanos e se erguem as cercas que os separam (Bauman, 2009, p.19).

Campanhas publicitárias não apenas promovem produtos, mas vendem ideais e estilos de vida que prometem realização e felicidade. Essas estratégias são eficazes porque exploram o desejo humano de encontrar significado e propósito. A promessa de que um produto pode transformar a vida e proporcionar plenitude é uma tentativa de desviar a atenção da realidade da mortalidade. A publicidade frequentemente explora inseguranças relacionadas à autoimagem e aceitação social, oferecendo produtos como soluções para essas questões. Isso cria um ciclo de consumo, onde a satisfação é temporária e constantemente renovada pelo desejo de novos bens (Bauman, 2009).

Além disso, o consumismo pode ser visto como uma busca por transcendência. Os bens de consumo são frequentemente associados a símbolos de status e sucesso, como carros de luxo e roupas de marca. Esses símbolos proporcionam uma sensação de identidade e valor que parece transcender a vida cotidiana, oferecendo uma forma de imortalidade simbólica. No entanto, essa busca por transcendência através do consumo é efêmera. A satisfação proporcionada pelos bens materiais é passageira e muitas vezes seguida por um novo desejo, reforçando a ideia de que essas soluções não resolvem a questão da mortalidade, mas apenas oferecem um escape temporário.

O impacto do consumismo vai além do nível individual. Em uma sociedade onde o valor é frequentemente medido pela posse de bens materiais, a pressão para consumir e manter uma imagem de sucesso pode ser intensa. Isso pode levar ao endividamento, estresse e insatisfação pessoal, exacerbando a ansiedade existencial em vez de aliviá-la. O foco no consumo pode também desviar a atenção de formas mais duradouras e significativas de encontrar propósito e conexão, como investir em relacionamentos autênticos, desenvolvimento pessoal e contribuições para a comunidade.

Reconhecer o consumismo como uma resposta à finitude pode abrir caminho para alternativas mais saudáveis e significativas. Buscar propósito e realização através de experiências que promovam crescimento pessoal, estabelecer conexões genuínas com os outros e contribuir para causas maiores pode proporcionar um sentido mais profundo e duradouro. Filosofias como o estoicismo e o epicurismo oferecem perspectivas sobre como aceitar a finitude e encontrar satisfação na vida presente, sem depender do consumo como solução. Essas abordagens podem ajudar a lidar com a ansiedade existencial de maneira mais construtiva e oferecer uma vida mais satisfatória e significativa, onde o propósito não depende da constante busca por gratificação material.

A BUSCA INCESSANTE PELA FELICIDADE

A relação entre a finitude da existência e a busca incessante pela felicidade constitui um tema central nas reflexões filosóficas e psicológicas ao longo dos séculos. A consciência da morte, inevitável e irreversível, desafia o ser humano a encontrar sentido em uma vida marcada pela impermanência. Ao mesmo tempo, o ideal contemporâneo de felicidade, amplamente difundido em sociedades de consumo, propõe uma busca contínua por bem-estar, realização pessoal e prazer, muitas vezes ignorando os limites impostos pela própria finitude. A tensão entre esses dois polos – o reconhecimento da mortalidade e o desejo por uma felicidade permanente – levanta questões profundas sobre a natureza da existência humana e o verdadeiro significado de uma vida plena.

Martin Seligman, considerado um dos fundadores da psicologia positiva, apresenta uma perspectiva importante sobre esse tema. Em sua obra Authentic Happiness (2004), ele afirma que a felicidade não é um estado fixo ou final, mas sim um processo contínuo, que se constrói através de ações e escolhas que promovem o bem-estar. Segundo Seligman, a verdadeira felicidade está atrelada à realização de atividades que ressoam com os valores e virtudes individuais, o que ele chama de "vida com significado". No entanto, a busca pela felicidade, no contexto da psicologia positiva, frequentemente ignora ou minimiza a questão da finitude. Esse ideal de felicidade, quando perseguido sem consideração pela transitoriedade da vida, pode resultar em uma constante insatisfação, já que o ser humano está, por definição, em uma condição de limite.

A filosofia existencial, por sua vez, oferece uma crítica incisiva à idealização da felicidade como um fim em si mesmo. Martin Heidegger, em sua obra seminal Ser e Tempo (1953), introduz o conceito de ser-para-a-morte (Sein-zum-Tode), argumentando que a finitude é uma das condições essenciais para a compreensão autêntica da existência. Para Heidegger, a morte não é um evento futuro, mas uma possibilidade sempre presente que molda nossa maneira de ser no mundo. A aceitação da finitude, portanto, não deve ser vista como algo a ser temido ou negado, mas como uma força que nos impulsiona a viver de forma autêntica, a fazer escolhas que reflitam nossos verdadeiros valores e a nos afastar da superficialidade que caracteriza grande parte das experiências cotidianas. Nesse sentido, a busca pela felicidade deve ser resignificada. Não se trata de acumular momentos de prazer ou alcançar uma satisfação permanente, mas de viver plenamente no tempo limitado que nos é dado.

Em contraste com a profundidade existencial de Heidegger, Bauman oferece uma crítica contundente à maneira como a sociedade contemporânea lida com a questão da felicidade. Em Vida Líquida (2007), Bauman explora como o mundo moderno, marcado pela fluidez das relações sociais e pela efemeridade das experiências, promove uma visão de felicidade que é instantânea e de fácil alcance. No entanto, essa busca por satisfação imediata esconde a inevitável realidade da finitude e cria uma ilusão de permanência e controle. A vida líquida, segundo Bauman, é marcada pela transitoriedade e pela fragilidade, e a felicidade, nesse contexto, torna-se um produto de consumo, algo que pode ser adquirido e descartado com a mesma facilidade. Essa dinâmica cria um ciclo de insatisfação, em que o indivíduo está sempre buscando algo mais, sem nunca se sentir plenamente realizado. Ao ignorar a finitude, a sociedade contemporânea promove uma ideia de felicidade que é superficial e, em última análise, insustentável.

Ao confrontar essas perspectivas, entendemos que a finitude não é um obstáculo para a felicidade, mas um componente fundamental para sua compreensão plena. A consciência da morte e da limitação do tempo deve servir como um catalisador para escolhas mais significativas e autênticas, afastando-nos da busca incessante por prazer momentâneo e aproximando-nos de uma vida vivida com propósito. A felicidade, nesse sentido, deixa de ser um estado a ser alcançado e torna-se um modo de ser profundamente ligado à maneira como encaramos nossa própria finitude.

A busca pela felicidade, longe de ser um ideal absoluto, deve ser reinterpretada à luz da mortalidade, já que é justamente a consciência da finitude que pode nos permitir viver de maneira mais plena e significativa. Somente ao aceitar nossa própria mortalidade podemos verdadeiramente valorizar a experiência da vida, ressignificando a busca pela felicidade e compreendendo-a como algo intrinsecamente vinculado à nossa condição temporal.

FINITUDE E LEGADO

O desejo de deixar um legado é um impulso profundo e persistente na experiência humana, refletindo a tentativa de transcender a finitude e garantir que nossas ações e realizações tenham um impacto duradouro. Ao longo da história, esse desejo moldou o comportamento humano e influenciou as práticas culturais, sociais e individuais de diversas maneiras (Bauman, 2010).

Na Antiguidade, as civilizações buscaram formas de perpetuar seus nomes e feitos através de monumentos e registros. Os egípcios, por exemplo, ergueram pirâmides grandiosas e escreveram inscrições detalhadas em tumbas, como forma de garantir a imortalidade de faraós e figuras importantes. Essas estruturas não eram apenas túmulos, mas também símbolos de poder e realizações, projetadas para assegurar a lembrança eterna dos indivíduos. De maneira similar, na Grécia antiga, filósofos e historiadores como Heródoto e Sócrates se dedicaram a documentar e discutir a importância dos eventos e das virtudes, na esperança de que suas ideias e escritos sobrevivessem ao tempo.

Durante a Idade Média, o desejo de legado tomou a forma de contribuições para a religião e a cultura. Figuras como São Agostinho e São Tomás de Aquino produziram obras teológicas que buscavam não apenas explicar a fé, mas também garantir uma influência duradoura sobre as futuras gerações. Os monumentos religiosos e os manuscritos iluminados também eram meios pelos quais indivíduos e instituições procuravam deixar uma marca na história, promovendo valores e ensinamentos que perdurariam.

No Renascimento, houve uma reavaliação do legado pessoal e cultural, impulsionada pela valorização do indivíduo e das suas contribuições únicas. Artistas como Leonardo da Vinci e Michelangelo buscaram criar obras de arte que fossem não apenas expressão de genialidade pessoal, mas também legados imortais que transcenderiam suas vidas. O Renascimento trouxe um foco renovado na individualidade e na busca por reconhecimento duradouro, refletindo uma maior ênfase na realização pessoal e no impacto cultural.

Com o Iluminismo e a Era Moderna, o desejo de legado continuou a evoluir, refletindo mudanças nas concepções de progresso e sucesso. Pensadores como Voltaire e Jean-Jacques Rousseau procuraram deixar um impacto duradouro através de suas ideias e escritos filosóficos, moldando o pensamento crítico e a teoria política. A Revolução Industrial também trouxe uma nova dimensão ao legado, com a construção de grandes empreendimentos e inovações tecnológicas que buscavam garantir uma marca duradoura na sociedade.

No século XX e além, o desejo de legado é manifestado através de realizações na ciência, na política e na cultura, com indivíduos como Albert Einstein e Nelson Mandela buscando impactar o mundo de maneira significativa e duradoura. A contemporaneidade também vê uma crescente ênfase em legados digitais e virtuais, onde as pessoas buscam deixar uma marca através de mídias sociais e plataformas digitais, refletindo a transitoriedade e a permanência de nossa era.

Em todas essas épocas, o desejo de deixar um legado é uma tentativa de transcender a finitude, garantindo que as realizações e contribuições pessoais tenham um impacto duradouro. Embora as formas e os meios de deixar um legado tenham mudado ao longo da história, o impulso fundamental de buscar uma forma de perpetuar a própria existência e influência permanece constante, moldando as ações e os comportamentos humanos em diferentes contextos históricos e culturais.

A relação entre finitude e legado é um tema fortemente enraizado na filosofia e na experiência humana, refletindo a complexa interação entre a consciência da mortalidade e a busca por significado duradouro. A consciência da finitude não apenas influencia a percepção da vida, mas também molda a forma como os indivíduos buscam deixar um legado e alcançar reconhecimento.

Heidegger (1953), apresenta uma análise fundamental da finitude e sua influência na busca por um legado. Heidegger introduz o conceito de “ser-para-a-morte”, enfatizando que a consciência da própria mortalidade é essencial para uma compreensão autêntica da existência. Para Heidegger, a percepção da finitude pode servir como um impulso para viver de maneira mais significativa. No entanto, essa mesma consciência pode levar a uma busca por um legado que, ao tentar transcender a morte, pode acabar desviando o indivíduo da vivência autêntica no presente.

Por sua vez, Sartre (1943), aborda a finitude dentro do contexto da liberdade radical. Sartre argumenta que a consciência da morte está intrinsecamente ligada à liberdade do indivíduo para criar significado. A busca por reconhecimento e a construção de um legado podem ser vistas como tentativas de afirmar a identidade e exercer controle diante da inevitabilidade do fim. Apesar disso, Sartre sugere que o verdadeiro valor e sentido devem ser encontrados na própria liberdade e na capacidade de gerar valor no presente, em vez de depender da validação futura ou da criação de um legado duradouro.

Para Bauman (2007), existe uma perspectiva crítica sobre a busca contemporânea por reconhecimento e sucesso. Bauman analisa como, na modernidade líquida, o desejo de deixar um legado muitas vezes surge como uma resposta à insegurança e transitoriedade da vida moderna. A efemeridade das conquistas e valores na sociedade líquida intensifica a necessidade de criar um legado duradouro, revelando a fragilidade dessa busca quando confrontada com a inevitabilidade da finitude.

Essa tensão entre a busca por um futuro reconhecido e a inevitabilidade da mortalidade evidencia um dilema essencial na experiência humana. Enquanto a consciência da finitude pode impulsionar o desejo de construir um legado e buscar reconhecimento, ela também ressalta a limitação e a efemeridade dessas realizações. A reflexão filosófica sobre a finitude e o legado sugere que, embora o desejo de deixar uma marca duradoura seja uma resposta natural à mortalidade, a verdadeira realização pode residir na capacidade de viver de forma plena e autêntica no presente. Reconhecer a importância do legado sem perder de vista a necessidade de uma vida significativa no agora permite uma abordagem equilibrada em relação à mortalidade e ao significado duradouro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A mortalidade humana, e a necessidade de conviver com a constante consciência desse fato, exerce uma profunda influência na organização social e cultural de todas as sociedades conhecidas. A maioria das culturas, talvez todas, podem ser mais bem compreendidas — ou, ao menos, reinterpretadas de maneira inovadora — quando vistas como diferentes maneiras de confrontar e processar esse traço primário da existência humana: o conhecimento da morte. Este processo transforma a mortalidade, inicialmente uma condição que parece negar a possibilidade de uma vida significativa, na maior fonte de sentido para a própria vida. Assim, a morte, que em sua essência é um fato biológico e natural, é ressignificada como um artefato cultural, oferecendo os fundamentos para a construção de instituições sociais e padrões de comportamento essenciais à manutenção e reprodução das sociedades em suas formas particulares.

Em outras palavras, a mortalidade e a busca pela imortalidade (assim como a oposição entre elas, que é também culturalmente construída por meio de ideias e práticas padronizadas) são elaboradas como estratégias de vida nas diversas culturas humanas. Todas as sociedades lidam com essas questões de alguma maneira, ainda que enfatizem ou minimizem sua relevância. Philippe Ariès, por exemplo, discorre amplamente sobre a "domesticação" da morte nas sociedades pré-modernas. Na modernidade, a evitação da morte é transformada em uma preocupação constante com a saúde, e a obsessão com agentes de morte se torna um dos aspectos centrais da vida cotidiana. As sociedades modernas desenvolvem formas de atenuar o horror da morte por meio da promessa — ou, em alguns casos, da garantia institucional — de imortalidade. Essa imortalidade pode ser vislumbrada como um destino coletivo, fomentando tribalismos e inimizades entre grupos, ou como uma conquista individual, reforçando a estratificação social, onde o status e o privilégio estão atrelados a essa busca.

Há, portanto, dois tipos principais de estratégias, ambos presentes nas sociedades contemporâneas, que parecem coexistir sem contradição. A primeira, de natureza moderna, busca "desconstruir" a mortalidade, transformando a luta contra a morte em uma série interminável de batalhas contra doenças e ameaças à vida. Neste cenário, a morte, antes vista como um evento distante, ocupa o centro da vida cotidiana, enquanto esforços são empregados para prevenir riscos à saúde, mesmo aqueles aparentemente menores. A segunda estratégia, pós-moderna, tenta "desconstruir" a imortalidade, substituindo a memória histórica pela notoriedade efêmera e o desaparecimento final por uma morte irreversível. Assim, a vida se transforma em um exercício contínuo de enfrentamento da transitoriedade universal das coisas e do apagamento da distinção entre o que é passageiro e o que é durável.

Philippe Ariès, um dos autores mais relevantes sobre o tema, oferece uma análise profunda da transformação da percepção da morte ao longo dos séculos, destacando como as sociedades pré-modernas lidavam com a morte de forma mais próxima e íntima, enquanto a modernidade afastou a morte para as margens da experiência coletiva (Ariès, 1977). Zygmunt Bauman, por outro lado, discute a questão da imortalidade na sociedade contemporânea, argumentando que a luta contra a morte se tornou um dos elementos centrais da vida moderna, ao mesmo tempo em que o pós-modernismo oferece uma crítica a essa busca, propondo uma aceitação mais fluida da transitoriedade da existência (Bauman, 1992).

A maneira como as sociedades lidam com a mortalidade revela-se um reflexo profundo das suas estruturas culturais e sociais. A morte, enquanto fenômeno biológico, é reinterpretada culturalmente, transformando-se em um elemento central na construção e manutenção das instituições sociais. Enquanto as sociedades modernas buscam aliviar a presença da morte através de uma incessante luta contra doenças e riscos, as sociedades pós-modernas adotam uma abordagem que enfatiza a transitoriedade e a efemeridade. Esta dualidade revela-se não como uma contradição, mas como uma coexistência de estratégias que refletem a complexidade da experiência humana diante da finitude.

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1 Docente dos Cursos em Análise e Desenvolvimento de Sistemas e Ciências da Computação (UNESA-RJ). Mestrado em Educação (UNESA-RJ). MBA em Data Warehouse e Business Intelligence (FI - PR). Pós-Graduado em Engenharia de Software, Antropologia, Filosofia e Ciência da Religião (FAVENI-MG). Historiador pela Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU-SP). e-mail: [email protected]

2 Epicuro de Samos (341 a.C. – 270 a.C.) foi um filósofo grego que fundou o epicurismo. Ele ensinava que a felicidade é alcançada pela busca do prazer, entendido como a ausência de dor e a tranquilidade da alma, através da moderação. Epicuro defendia que o medo da morte e dos deuses era a principal causa do sofrimento humano e que, ao superá-lo, é possível viver de forma plena. Ele também adotava uma visão materialista do universo, baseado no atomismo (Gomes, 2003).