A CONSTRUÇÃO DE SENTIDOS SOBRE A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA POR CRIANÇAS VÍTIMAS
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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.13854766
Daniela Emilena Santiago
RESUMO
A família moderna, além de se caracterizar como o principal espaço de socialização de seus membros, torna-se, na sociedade atual, a responsável igualmente pela sua conservação. Imersa em uma série de ideais de diferentes naturezas (religiosos, filosóficos, políticos, sociais etc.), a família é também compreendida como um lugar seguro e capaz de proporcionar o desenvolvimento sadio de seus membros. No entanto, a convivência diária de uma família possui diversas facetas distintas e nem sempre relacionadas ao ideal de família veiculado. A violência doméstica é uma dessas facetas e sua ocorrência vem justamente desmistificar o ideal que fora construído historicamente acerca do tema família. A educação através da punição é um hábito antigo que teria surgido, nos termos de Ariès (1978), à medida que a família burguesa se constituiu, por volta dos séculos XVII-XVIII, hábito que fora reforçado nos antigos colégios, onde o professor era autorizado a castigar os alunos. Esse hábito de educar por meio da punição ainda é muito comum nas famílias atuais e tem-se legitimado pela crença de que somente dessa maneira é possível que se eduque uma criança. Os prejuízos dessa prática educativa são imensos e atingem áreas importantes da vida de suas vítimas. A vivência da violência doméstica faz, no entanto, com que a criança acabe naturalizando esse fenômeno, à medida que se apropria da violência enquanto forma de educação. Compreender a perspectiva que a criança possui sobre a situação de violência constituiu o objetivo deste estudo. Para tal, foram realizadas entrevistas junto a crianças vítimas de violência doméstica, além da utilização do diário de campo. Percebeu-se que a criança compreende a violência como merecida, além de percebê-la como uma maneira de educação e mais, acaba tendo-a como algo natural, pertencente ao seu cotidiano. A pesquisa esteve apoiada na Perspectiva Sócio-Histórica e na teoria marxiana, visto que compreende a violência doméstica como um fenômeno que fora construído no imbricamento de condições econômico-sociais desenvolvidas ao longo da história da humanidade, assim como o desenvolvimento do psiquismo humano. Espera-se, dessa forma, colaborar no sentido da produção de conhecimento sobre o tema da violência doméstica, uma vez que o conhecimento produzido será realizado com base na perspectiva da criança sobre o fato, esfera em que trabalhos ainda são escassos.
Palavras-chave: Violência Doméstica, Crianças, Apropriação, Sentido
ABSTRACT
The modern family, and is characterized as the main area of socialization of its members, it is in current society, the responsible also for its maintenance. Immersed in a series of ideas of al kinds (religious, philosophical, political, social etc..), The family is also understood as a safe place and able to provide the healthy development of its members. However, the daily lives of a family has several different facets and not always related to the ideal of family run. Domestic violence is one of these facets and their occurrence is just dispel the idea that was historical y built on the family theme. Education through the punishment is an old habit that had arisen in terms of Ariès (1978), as the bourgeois family is formed, around the XVII-XVIII, which was reinforced habit in the old schools where the teacher was authorized to punish the students. This habit of educating through the punishment is stil very common in households today and is legitimized by the belief that only this way it is possible to educate a child. The loss of educational practice are immense and important areas affecting the lives of their victims. The experience of domestic violence does, however, that the child wil naturalizing this phenomenon, as it appropriates the violence as a form of education. Understanding the prospect that a child has on the situation of violence was the purpose of this study. For this, interviews were conducted with child victims of domestic violence, besides the daily use of the field. It was noticed that the child understands the violence as deserved, and perceiving it as a way of education and more, just taking it as something natural, belonging to their daily lives. The research was supported in the socio-historical perspective and the Marxist theory, as it includes domestic violence as a phenomenon which was built in imbricamento conditions of economic and social development throughout the history of mankind and the development of the human psyche. It is thus working towards the production of knowledge on the topic of domestic violence, because the knowledge produced wil be conducted from the perspective of the child on the fact that work in areas are stil scarce.
Keywords: Domestic Violence, Children, Ownership, Sense
Introdução
A violência é um fenômeno que afeta sobremaneira a sociedade atual. Como se expressa tanto em atitudes, em atos violentos ocorridos no espaço público ou no espaço doméstico, torna-se um fenômeno de difícil definição, dada sua amplitude. Neste estudo, entretanto, a atenção estará voltada para a violência em sua expressão no ambiente doméstico. Isso traz outros contornos ao fenômeno, uma vez que se expressa no espaço doméstico, familiar.
No tocante ao interesse em estudar a violência doméstica é preciso afirmar que surgiu já durante a realização de estágio curricular. Neste caso, deve-se pontuar que o primeiro contato com o fenômeno em questão se deu através da prática de estágio, desenvolvida junto à escola municipal “E.M.E.F. Elias Kawan”, localizada no bairro Novo Amparo, em Londrina, Estado do Paraná, durante o último ano do curso de graduação em Serviço Social da Universidade Estadual de Londrina - PR. Nessa escola, havia um grande número de crianças que eram acompanhadas pelo Serviço Social, em decorrência de apresentarem elevado número de faltas ou por estarem evadidas da escola. Entretanto, a partir do acompanhamento realizado, na ocasião, tornou-se possível a constatação de casos de crianças vítimas de violência doméstica.
Em decorrência dessa experiência, sentiu-se a necessidade de buscar maiores informações sobre o tema em questão, circunstância viabilizada pelo ingresso no curso de especialização em Violência Doméstica contra crianças e adolescentes, oferecida pelo Laboratório de Estudos dos Assuntos da Criança (LACRI) da Universidade de São Paulo (USP). Como conclusão de participação nessa especialização, foi produzida monografia onde se enfocou a questão da relação estabelecida entre a violência doméstica e a violência representada na escola, concluindo-se que a grande maioria das crianças que apresentavam comportamento violento, na escola, também eram vítimas de violência doméstica.
Na seqüência, as experiências profissionais, enquanto Assistente Social, sempre acabaram tendo relação com esse fenômeno. A princípio, o trabalho junto a um núcleo do Projeto Espaço Amigo, desenvolvido por uma entidade não- governamental no município de Quatá – SP, possibilitou o contato com crianças e adolescentes envolvidos em situações de risco social ou pessoal, havendo inúmeros casos de vítimas de violência doméstica. Posteriormente, a atuação profissional em escolas municipais, também em Quatá - SP, proporcionou, mais uma vez, o contato com o fenômeno.
Essa experiência profissional em escolas municipais de ensino infantil e fundamental, inicialmente pensada para atender aos casos de crianças com faltas escolares, com o tempo acabou centrando-se na questão da violência doméstica. Isto se deu por conta da grande quantidade de casos encaminhados pelos professores de crianças que tinham “dificuldades de aprendizagem”. Com o atendimento a crianças e familiares, verificou-se que a grande maioria daquelas que exibiam a suposta “dificuldade de aprendizagem” eram vítimas de violência perpetrada por seus pais/responsáveis. Não se deseja, no entanto, inferir que há uma relação causal entre a violência doméstica e a dificuldade de aprendizagem, mas sim pontuar que o objeto de estudo deste trabalho foi trazido a este pesquisador dessa maneira. É preciso ponderar, contudo, que muitos dos casos apresentavam outras “questões”, que tendiam a impedir o processo de aprendizagem, podendo-se destacar problemas fonoaudiológicos, neurológicos e visuais. Isto posto, é preciso que se atente ao fato de que a “relação” da violência doméstica com a dificuldade de aprendizagem não pode ser compreendida como relação causa e efeito.
Assim, tendo em vista a experiência relatada acima, surgiu o interesse em identificar qual é a percepção que a criança vítima de violência doméstica possui sobre a situação vivenciada. Qual é a apropriação que a criança faz do fato de ser agredida por seus familiares, com os quais possui um contato direto, com aqueles que deveriam ser responsáveis pela satisfação de suas necessidades básicas?
Tal interesse foi reforçado após ser realizada uma pesquisa sobre o tema de estudo no cenário nacional. Tomando como respaldo pesquisa junto à base de dados eletrônicos da Universidade São Paulo (USP), Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Universidade Estadual Paulista (UNESP) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), confirmou-se que há uma escassez de trabalhos com a temática da percepção que a criança vítima de violência doméstica possui sobre a situação que vivenciou, ou que em alguns casos ainda vivencia.
A consulta das bases de dados em questão pautou-se pelos termos “violência doméstica” e “violência familiar”. Foram levadas em conta apenas as teses produzidas pelos centros de formação e divulgação do conhecimento científico aqui já citado, e, ainda artigos tomando como referência o Scientific Electronic Library On Line desprezando-se livros e outras publicações. Foi considerado o material produzido somente durante os anos de 2002, 2003, 2004, 2005, 2006,20071 e 2008, para fins didáticos.
Foi possível observar que há um grande número de pesquisas que retratam a violência doméstica, descrita por alguns autores como violência familiar. Associando-se os dados obtidos com o emprego dos termos “violência doméstica” e “violência familiar”, levantou-se uma grande quantidade de trabalhos. Para a análise, selecionaram-se os trabalhos relativos à violência doméstica e esta, concernente ao segmento criança e adolescente, deixando-se de lado estudos sobre violência doméstica relacionada ao idoso ou à mulher, por exemplo. Note-se que foram lidos os resumos dos trabalhos aqui destacados e não os trabalhos, na íntegra.
No tocante à violência doméstica, em relação a pesquisa realizada à base de dados de teses e dissertações, percebeu-se que os trabalhos poderiam ser “agrupados” da seguinte maneira: aqueles que se orientam em desvelar a percepção que pais/responsáveis possuem sobre a violência doméstica (AMARAL, 2003; SANTOS, 2003; JUNQUEIRA, 2003; LIMA, 2003; SIQUEIRA, 2003; FERREIRA, 2003; STAMATO, 2004; ALVARES, 2005; NEVES, 2005; QUAREZEMIM,2005; ROCHA, 2006; GOULART, 2006; DONOSO, 2006; OLIVEIRA, 2006 ; MACEDO, 2006); aqueles que direcionam sua análise no sentido de compreender a percepção dos profissionais envolvidos com a violência doméstica, como médicos, professores e profissionais ligados à coordenação e direção de escolas, assistentes sociais, psicólogos, conselheiros tutelares, dentre outros (SANTOS, 2002; SILVEIRA, 2007;LEITE, 2003; RIBEIRO, 2003; RUIZ, 2003; LIMA, 2003; BIANCHI, 2004; RUWER, 2004; MORIMOTO, 2004; IOSSI, 2004; PAIVA, 2005; SILVA, 2006; OLIVEIRA, 2006; BOURROUL, 2006; PINTO, 2006); outros, ainda, que realizam análise e relatos de serviços e políticas públicas destinadas a atuar com a questão da violência doméstica, estando aqui englobados também aqueles trabalhos dedicados a observar aspectos da atuação de Conselhos Tutelares (BORGES, 2002; ROCHA, 2002; SOBRAL, 2002; BARROS, 2002; CAVALCANTI, 2002; MIRANDA, 2003; MATTAR, 2003; VOLLETE, 2003; SOUBHIA, 2003; NEVES, 2003; LEMOS, 2003; JULIÃO, 2004; COSTA, 2004; ANGELIN, 2004; VENDRÚSCULO, 2004; KORITAKI, 2004; ROSSI, 2004; SILVA, 2005; PIRES, 2005; SANDOLOWSKI, 2005; DOSSI, 2006; ALVES, 2006; DIAS, 2006; LIMA, 2006; SANTOS, 2006; OLIVEIRA, 2006; SANTOS, 2006); também foram identificados trabalhos voltados para análises de casos de vítimas de violência doméstica, ou os estudos de casos (PRADO, 2003; MADONADO, 2003; OLIVEIRA, 2004; CABRAL, 2004; RODRIGUES, 2005; SALVAGANI, 2005; MILANI, 2006; MARTINS, 2006; BAPTISTA, 2006); trabalhos que visaram, ainda, a verificar técnicas de intervenção junto a crianças vítimas de violência doméstica (VAGOSTELLO, 2007) e, por fim, textos em que se realiza a descrição histórica da constituição da violência doméstica (BARBOSA, 2005).
No que tange à percepção da criança vítima ou não vítima da violência doméstica, foram encontrados poucos estudos, conforme já observado. Destacam- se os trabalhos de Delfino (2006), no qual a autora, em uma pesquisa conduzida em uma escola, busca apreender a posição de pais, professores e crianças sobre a violência doméstica, concluindo que as crianças acabam por associar a educação a práticas punitivas; Santos (2003) e Pereira (2006), que salientam a perspectiva de crianças e adolescentes abrigados sob a violência doméstica e a situação de abrigo; Vollet (2003), Scherb (2005) e Rodrigues (2005), que, por sua vez, buscaram, mesmo se pautando em técnicas diferenciadas, enfatizar a compreensão da criança vítima sobre a situação da violência sexual, enquanto Martins (2005) enfocou a compreensão de pais e de crianças que haviam sido vitimizadas.
Mesmo nos trabalhos em que a proposta é de estudo de casos de vítimas de violência doméstica, verifica-se que a pesquisa se deu de maneira que a criança, muitas vezes, apesar de vítima, não chegou a ser questionada sobre o evento em pauta. Nesse sentido, há textos que focam a percepção do adulto sobre a situação de violência doméstica, como as obras de Prado (2003), Maldonado (2003), Baptista (2006) e Martins (2003). Há ainda trabalhos em que o exame de casos se fez a partir da leitura de documentos, como prontuários e relatórios, de que são exemplos os estudos de Oliveira (2004) e Cabral (2004). Salvagani (2005), por sua vez, buscou legitimar questionário construído para avaliar os impactos e a incidência de violência sexual, em uma escola onde já havia notícia de casos de violência sexual, enquanto Milani (2006) desenvolveu avaliação com crianças atendidas e não atendidas pelo Conselho Tutelar, igualmente por meio do emprego de questionários e testes.
O mesmo foi observado em relação a pesquisa de artigos, junto ao site do Scielo. Usando os termos “violência doméstica” e “violência familiar” foram identificados 85 trabalhos. Desses, entretanto, apenas 13 estavam relacionados a violência doméstica contra criança e adolescente. O restante, ou os 68 artigos apresentados, destinavam-se a discutir a violência contra a mulher, violência contra idosos, violência dentro da relação conjugal, importância do trabalho interdisciplinar junto a vítimas de violência doméstica, alternativas de prevenção da violência, aspectos gerais da violência e ainda vários trabalhos que buscavam demonstrar a importância de utilizar questionários para identificar a violência.
Os artigos que direcionavam sua atenção à violência doméstica contra criança e adolescente, também “reproduziram” o que fora apontado em relação as teses e dissertações. Os artigos expunham projetos de pesquisa em andamento ou concluídos, e, destinaram-se a discutir o que pais/responsáveis compreendiam como violência doméstica (AVANCI et. al,2005; CARMO et. al,2006;RIBEIRO et. al, 2007); outros ainda focaram a análise na perspectiva do profissional, como pediatras, psicólogos e assistentes sociais (DAY et. al,2003;FERRIANI et. al, 2008;MALDONADO et. al, 2005; PIRES et. al,2005;SANTOS et. al,2007); houve também análises sobre serviços de intervenção junto a criança vítima de violência doméstica (BRITO et. al,2005;MOURA et. al,2005) e, ainda, um artigo em que realizou-se um estudo teórico sobre violência sexual (GOMES et. al,2002), e outro em que foi aplicado um questionário a um grupo de criança visando identificar situações de abuso sexual (SALVAGANI, et. al 2006). Apenas um trabalho, destinou-se a identificar o sentido que a criança atribui a violência doméstica. Parreira ; Justo (2005) direcionaram assim, a análise a identificar a compreensão que crianças vítimas de abandono possuem sobre a filiação, a relação de parentesco.
Todos os trabalhos tendem, obviamente, a colaborar com a produção de discussões e aprofundamentos sobre o tema da violência doméstica. Todavia, a carência de produção de trabalhos sobre violência doméstica, a partir da percepção da criança, motivou a realização deste estudo, porque se considera que a voz da criança precisa ser ouvida, suas percepções sobre a situação vivenciada necessitam ser destacadas.
Este trabalho ganha, assim, uma importante “função social”, à medida que proporciona à criança a oportunidade de sua fala ser levada em conta. Essa fala expressa na verdade o conhecimento produzido pela sociedade e que fora apropriado pela criança, em seu processo de objetivação-apropriação mediado pelos adultos com os quais tem contato, e que é reproduzido durante a realização das entrevistas. E, em acréscimo, que se constitua em conhecimento científico, o qual deverá ser socializado de modo a provocar alterações na forma de compreender a criança vítima.
Visando alcançar a compreensão do sentido que a violência doméstica tem para as crianças vítimas, foram realizadas abordagens, através da realização de entrevistas, junto a crianças residentes no município de Quatá – SP e que freqüentam o ensino fundamental na rede pública desse município. Além das entrevistas, serão agregadas informações sobre a família das crianças, obtidas tomando-se como referência um diário de campo elaborado por conta do acompanhamento assistencial realizado pela autora. Para a pesquisa empírica, foram selecionados os casos de crianças vítimas de violência doméstica, especificamente casos de vítimas de violência doméstica de natureza física, psicológica, e negligência.
Adota-se nesse estudo uma orientação crítica acerca do desenvolvimento do conceito de família, da infância e do psiquismo humano. Assim, considera-se que as formas de organização da produção e do consumo de uma sociedade têm grande influência junto às relações sociais estabelecidas pelo homem.
Por vários momentos, destacou-se, no corpo deste texto, o fato de a violência doméstica ser um fenômeno construído historicamente. Agora, serão feitas observações a respeito dessa “construção”, que, segundo sabemos, nos remete às mudanças econômico-sociais ocorridas durante a transição do sistema feudal para o sistema capitalista, sobretudo no tocante a instituição da propriedade privada, que pos sua vez traz impactos substantivos à constituição da família nuclear e ao surgimento da idéia de infância. Dessa maneira, no primeiro capítulo, essa história será recuperada, enfatizando-se o cenário europeu e o cenário brasileiro.
No segundo capítulo será realizada uma breve exposição acerca da pesquisa realizada, enfocando-se a metodologia de pesquisa que será utilizada e a realidade dos sujeitos da pesquisa. Nesse sentido, serão prestadas informações sobre o município de residência das crianças, a família e a situação de violência doméstica a que foram submetidas. Os resultados obtidos com a realização das entrevistas e as informações obtidas com base no diário de campo de cada criança serão incorporadas nos capítulos seguintes.
Dando seguimento ao trabalho, será assinalada, no terceiro capítulo, a concepção sobre violência doméstica, inclusive procedendo-se a uma explicação sobre as principais tipologias de manifestação de tal fenômeno e ainda acerca das formas pelas quais ele se mantém no interior das famílias.
No quarto capítulo, tomando-se como base a perspectiva sócio-histórica, o olhar será voltado a compreender como a criança tem seu psiquismo formado, de modo que, inicialmente, serão apresentados os conceitos de atividade, objetivação e apropriação, para que, na seqüência, à análise seja direcionada a compreensão da formação do psiquismo da criança. Esse capítulo busca colaborar na compreensão sobre a influência dos fatos de violência doméstica, na formação psíquica da criança.
1. A FAMÍLIA NUCLEAR2, A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E OS PRIMEIROS COLÉGIOS – CONSIDERAÇÕES SOBRE O CENÁRIO EUROPEU
O desenvolvimento sociocultural do indivíduo é o desenvolvimento de um indivíduo histórico,portanto situado na historia social humana (Newton Duarte).
Parafraseando com a frase de Newton Duarte acima destaca, a compreensão sociocultural do indivíduo remete a compreendê-lo enquanto situado ma historia social do homem. Portanto por uma concepção crítica da formação da família, é possível compreender como o desenvolvimento desse conceito acompanha a evolução histórica, social e econômica da sociedade.Primeiramente, serão tratadas essas manifestações, considerando-se o cenário europeu e, em seguida, será destacado o brasileiro.
Em relação ao surgimento da família nuclear ou família moderna, servirão de referência as obras de Engels (1884), Ariès3 (1978), Badinter (1985) e Marcílio (1998). Engels (1884), em decorrência de o autor realizar uma análise dos “tipos” de família precedentes à família nuclear e associar as mudanças na forma de organizar a vida social à evolução dos meios de produção social; Ariès (1978), devido à importância da análise realizada pelo autor proporcionar uma compreensão detalhada de aspectos inerentes à constituição da família nuclear e também de sua precedente, a família feudal, aliás aspectos também considerados na análise de Badinter (1985), com o diferencial de que esta reverte sua análise ao papel específico da figura materna, nesse contexto, e ainda Marcílio (1998) e Costa (1983), que atribuem importância ao movimento higienista e jurídico no processo de constituição da família nuclear.
Engels4 (1884) afirma que o desenvolvimento da organização do homem e deste, em sociedade, acompanhou suas necessidades materiais. Tomando como base estudos do antropólogo Morgan, Engels (1884) decompõe a evolução da história humana em três “épocas” principais, a saber: estado selvagem, barbárie e civilização. Segundo esse autor, essas fases estariam assim profundamente relacionadas à forma com que o homem foi-se desenvolvendo, para se apropriar da natureza e assim ter a satisfação de suas necessidades.
Isso posto, o estado selvagem ou a “infância do gênero humano” corresponde à fase em que o homem se alimentava apenas dos frutos e peixes, culminando com a invenção do arco e fecha para viabilizar a caça. A barbárie, por sua vez, é descrita por Engels (1884) com tendo sido iniciada com a introdução da cerâmica, as primeiras criações domésticas de gado e findando-se com as primeiras fundições de minério. Assim, seria alcançada a civilização que, nos termos do referido autor, se consolidaria com a instituição do Estado.
Em relação à vida social do homem, ela acompanhou esses processos. Ou seja, a evolução dos meios encontrados pelo homem para satisfazer suas necessidades provoca alterações imediatas na forma de organizar suas relações sociais. O próprio desenvolvimento da família pode ser analisado sob essa premissa. Assim, o autor enfatiza que, durante os períodos pré-históricos da civilização do homem até a barbárie, o que predominava eram os grandes agrupamentos de pessoas, em sua maioria nômades. O homem vivia então através do agrupamento com um grande número de pessoas e estas migravam à busca de comida e das condições favoráveis à sobrevivência, de uma região para a outra.Essa forma de organização foi denominada por Engels (1884) de “gens”.
Engels (1884) estudou a organização gentílica e sua destituição a partir dos estudos de Morgan, enfatizando as formas dessa organização junto aos gregos, romanos e germanos. Segundo ele, na organização gentílica, grandes grupos de homens se uniam a grandes grupos de mulheres e o casamento constituía-se numa união grupal, onde os filhos eram pertencentes a todo o grupo. Engels (1884) destaca ainda que na organização gentílica, a divisão de trabalho consistia em uma divisão entre os sexos. Ao homem competia à caça e a mulher cuidava da casa, sendo esses limites muito bem definidos e constituindo-se essa divisão como uma divisão de trabalho, mas natural. A caça, por sua vez, era coletiva ou seja, assim como os filhos, o que era conseguido na caça pertencia ao grupo.
A partir da barbárie, com o desenvolvimento da cerâmica, o cultivo de animais e plantas, surgiu a necessidade de os grupos se fixarem. O homem teria percebido, nos termos de Engels (1884), que havia certas facilidades na fixação ao invés do nomadismo. Aliás, a criação de gado só se tornou possível quando o homem rompeu com o nomadismo. A criação de gado possibilitou ainda que se iniciasse o processo de troca de mercadorias entre as gens. Os chefes gentílicos começaram a trocar animais entre as tribos, fazendo com que esses se equiparassem a uma moeda.
Entretanto, esse sistema de agrupamentos foi se tornando cada vez mais impraticável em decorrência do crescimento populacional. Isso porque como tudo o que havia pertencia a todos do grupo, ficou impossível garantir a subsistência dos membros . Uma “alternativa” foi a instituição de moral sexual. Esse impedimento restringiu o número de pessoas e, conseqüentemente, o número de dependentes de cada agrupamento. Engels (1884) pontua assim que os grandes agrupamentos foram se destituindo e fomentaram a formação de novas maneiras de organização familiar, pautadas na moral sexual, sendo essas a família consangüínea, a família punaluana, a família pré-monogâmica, que, por sua vez, acabou resultando na família monogâmica. A família consangüínea se caracterizou pela proibição de relação sexual entre os pais e filhos, ao passo que a família punaluana proibiu o relacionamento sexual também entre irmãos. A família pré-monogâmica ou sindiásmica, por seu lado, acabou reconhecendo a necessidade de a mulher possuir apenas um parceiro e a família monogâmica, por fim, se pauta no início da monogamia entre os cônjuges, colaborando para a instituição da família privada.
Assim, cada vez mais, a família necessitou se tornar “particular”. Começou o processo de instituição do gado privado, da propriedade privada e também das trocas particulares. E o homem assume papel de grande destaque nessa organização econômica e familiar. Como o homem era o responsável pela caça em períodos anteriores, ele foi imbuído da responsabilidade de cultivar o gado e de realizar as trocas entre as famílias. A mulher foi relegada aos serviços domésticos e essa posição ocupou um lugar tido como inferior em relação as ocupações masculinas. Essa seria a segunda grande divisão de trabalho entre homens e mulheres e teria oferecido sustentação a família patriarcal (ENGELS,1884).
Além da divisão de trabalho, a instituição da propriedade privada, iniciou o processo de divisão de classes, entre ricos, proprietários de terra e bens e pobres não possuidores.
A potencialização das trocas teria nos termos de Engels (1884) possibilitado o surgimento do comércio. Surgiu assim uma classe social que não produzia e se ocupava apenas das trocas, dividindo novamente a sociedade entre os produtores e comerciantes e preparando as bases para uma sociedade capitalista.
Quando se retoma essa “história” da família, pode-se proporcionar uma idéia falsa de linearidade. Porém, isso não corresponde à perspectiva de análise aqui adotada. Antes, essa construção da família é um processo dialético de superação constante de determinados aspectos e mudanças, sempre em decorrência da necessidade do homem. [...] “Casuística inata nos homens a de mudar as coisas mudando-lhes os nomes! E achar saídas para romper com a tradição sem sair dela, sempre que um interesse direto dá o impulso suficiente para isso (Marx)” (ENGELS, 1884, p. 60).
Pode-se inferir que o surgimento da família monogâmica esteja, pois, ligado às necessidades sociais, materiais, especificamente a instituição da propriedade privada. Quando o homem não mais consegue atender às necessidades de grandes grupos,por conta mesmo da propriedade se tornar privada, através da moral sexual, tenta refrear o crescimento populacional e garantir meios de sobrevivência para seus dependentes diretos. Ou, conforme Engels (1884):
A família moderna contém em germe não apenas a escravidão (servitus) como também a servidão, pois, desde o começo, está relacionada aos serviços da agricultura. Ela contém em si, em miniatura, todos os antagonismos que se desenvolverão mais tarde na sociedade e em seu Estado. (1884, p. 62).
Engels (1884) direciona sua análise, nessa obra, estendendo ao surgimento da propriedade privada e do Estado o papel de regulamentadores dessa dinâmica.
Com respeito à constituição da família moderna, burguesa ou nuclear, Ariès (1978) trouxe igualmente importantes contribuições, sobretudo no que diz respeito a infância.
Ariès (1978) tomou como referência a iconografia da Idade Média, a pedagogia, as vestimentas e os jogos infantis e, por meio da aglutinação dessas informações, conseguiu apreender aspectos relacionados à vida familiar e à relação estabelecida com a criança. Note-se que a análise desse autor não se restringiu a destacar as tipificações da família da época medieval, mas em sinalizá-las quando do surgimento da família burguesa. Aliás, as observações que Áries (1978) faz, concernentes à pedagogia da época e às pinturas, sobretudo os quadros, servirão de referência para este estudo, porém seu exame das vestimentas e dos jogos não serão aqui pontuados, em decorrência da amplitude que isso iria conferir ao trabalho.
Por meio da realização de observação de obras de arte, no caso quadros e até de peças tumulares, Ariès (1978) identificou o surgimento da percepção da infância, em meados do século XVII – não a infância como é compreendida nos dias de hoje, nem ainda a infância da família burguesa. Com efeito, a infância percebida era “refletida” nas telas dos pintores da época. O autor identificou ainda que neste período e até um século antes, essas representações artísticas sobre a infância na verdade refletiam apenas “homens em miniatura”. “Até por volta do século XII, a arte medieval desconhecia a infância ou não tentava representá-la. É difícil crer que essa ausência se devesse à incompetência ou à falta de habilidade. É mais provável que não houvesse lugar para a infância nesse mundo” (ARIÈS, 1978, p. 17), de sorte que isso não pertencia ao “mundo” das pessoas daquela época, inclusive dos artistas.
A partir do século XIII, aparecem as primeiras pinturas, nos termos de Ariès (1978), em que há uma reprodução mais semelhante a uma criança. O autor identifica inicialmente uma tendência em reproduzir anjos com traços infantis, seguida pela reprodução da infância do “menino Jesus”, da infância de “Nossa Senhora” e de alguns outros santos e, por fim, as crianças retratadas nuas. Essa tendência de pinturas teria persistido até os séculos XIV e XV, e ousa-se dizer aqui que podem vir a colaborar com a imagem vinculada da criança perfeita, do modelo a ser seguido, principalmente na reprodução da infância dita como santa. Afiança o autor que isso representa o surgimento ainda tímido do sentimento de infância, que iria se manifestar mesmo somente em meados do século XVII. Ainda nesse período, os desenhos das crianças sozinhas eram raros, mas elas sempre apareciam acompanhadas dos adultos.
De fato, toda essa tendência exposta em quadros, nas peças tumulares e em outros materiais, como os diários, traz aspectos significativos que permitem a leitura da vida em família e da situação da infância, durante a Idade Média e depois, com o fim desse período (GUERRA,2005).
Ariès (1978) destaca, assim, que a família medieval apresentava características bem distintas da família moderna. Pode-se citar, dentre os inúmeros fatos realçados pelo autor, a questão da inexistência da privacidade entre os membros da família. Nesse período, servos e agregados participavam de todos os acontecimentos que envolviam a vida familiar, de maneira que as raras manifestações de “carinho” entre os membros se davam em festas e, por conseguinte, na presença dos servos e demais convidados. Não havia a privacidade da família, que foi, na verdade, uma invenção da família burguesa.
Sublinha ainda Ariès (1978) que, a partir dos sete anos de idade, a criança era inserida no mundo dos adultos, sendo destinada a partilhar do trabalho, da vida diária e até da vida sexual – evidentemente, tendo em vista as crianças que sobreviviam, já que a grande maioria delas falecia. No entanto, para as famílias daquele período, isso não era uma violência, já que fazia parte de seus costumes. Era comum que os escravos, os servos e mesmo os pais iniciassem os filhos na vida sexual.
A perda de uma criança foi apontada por Ariès (1978) como um dado que merece ênfase, já que os pais dessa família medieval não demonstravam sentir a ausência dos filhos que faleciam, pois era quase um “hábito”. O fato de as crianças morrerem somente era lastimado pelos pais, quando a criança possuía alguma “qualidade” de destaque, como a beleza, por exemplo (ARIÈS,1978). Quanto à morte das crianças, Badinter (1985) observa que poucas mães e pais compareciam ao velório de seus filhos. Por isso, é possível inferir que, a criança não era percebida nessa sociedade e, talvez por isso as representações artísticas “refletissem esse estado de coisas”.
Valendo-se da análise de Badinter (1985), é possível contemplar-se outros aspectos significativos sobre a família feudal, dentre os quais aqueles voltados ao relacionamento estabelecido entre as mães e seus filhos. Conforme Badinter (1985), na França dos séculos XVI, XVII e meados do XVIII, as mulheres, de diversas classes sociais, não cuidavam dos filhos e sempre transferiam essas “responsabilidades” a terceiros, com costumeira entrega às amas de leite, em especial, e o abandono nas Rodas dos Expostos e em locais públicos. As mulheres artesãs consideravam que deviam se ocupar do serviço ao lado do resto da família e não tinham tempo disponível para se ocupar do cuidado dos filhos. Já as mulheres nobres acreditavam que a amamentação e o cuidado dos filhos fosse um ultraje, algo que não era esperado da mulher, dependendo de sua condição social. Em relação à amamentação, defendiam precisar do leite para si próprias, para sua subsistência, além da circunstância de que a amamentação poderia ser vista como algo indigno, impuro e com grande conotação sexual.
As Rodas dos Expostos eram instituições onde as crianças indesejadas eram depositadas pelos pais. Alguns, em decorrência da pobreza, outros, devido à necessidade de ocultar filhos provenientes de relações ditas como adulterinas, ou por outros motivos afins, deixavam as crianças nessas instituições. Estas não eram, todavia, destinadas ao cuidado específico de crianças, recebendo sob o mesmo teto mendigos, pobres, loucos e todos aqueles que não eram aceitos socialmente ou que não tinham outra alternativa de sobrevivência. A separação desse tipo de clientela somente ocorreu em fins do século XIX, com a mudança do papel do hospital e a instauração da clínica (MARCÍLIO, 1998). No entanto, segundo Marcílio (1998), o atendimento prestado nesses locais permitia que muitas crianças morressem. Realidade presente também, de acordo com a autora, quando a criança era entregue às amas de leite, já que estas, por ignorância ou mesmo por negligência, acabavam aumentando a mortandade das crianças a elas confiadas.
A morte das crianças devido ao abandono e a entrega às amas de leite ou às Rodas dos Expostos não causava tanto espanto, conforme descrito por Áries (1978). Inicialmente, isso era aceito como natural, normal, mas, com a consolidação do sistema capitalista e declínio do sistema feudal, a percepção sobre a morte das crianças se alterou consideravelmente, passando a ser vista pelo Estado como algo negativo, pois, assim, haveria cada vez menos mão-de-obra para a indústria nascente, bem como soldados para a guerra (BADINTER, 1985; MARCÍLIO, 1998). A criança passou a ser olhada como algo de valor e que poderia ser útil ao Estado ou, nos termos de Badinter: “A verdade é que a criança, especialmente em fins do século XVIII, adquire um valor mercantil. Percebe-se que ela é, potencialmente, uma riqueza econômica” (1985, p.153). O investimento do Estado, realizado através das Câmaras Municipais ou mesmo das Províncias, seja no pagamento conferido às amas de leite, seja junto às Rodas dos Expostos, deveria de alguma maneira oferecer algum retorno. Sendo assim, começou a ser necessária uma mudança na família, estimulando-se uma relação de amor e cuidado mútuo e garantindo-se a sobrevivência de seus membros, convocando-se, sobretudo, a figura da mãe para alcançar tais objetivos.
A Igreja Católica, por sua vez, também se levanta para tentar impedir a grande mortalidade percebida, ressaltando-se que, naquele período era muito grande o poder dessa organização em moldar a concepção das pessoas sobre a vida cotidiana, sobre as relações familiares. Para Ariès (1978), a cultura medieval da Igreja não percebia a criança como um ser que possuísse alma. Quando a criança passou a ser concebida como um ser com alma, a Igreja em questão passou a se preocupar com o elevado número de mortos, e dessa forma passou a se manifestar contrária ao abandono. Acreditava-se, na época, que as crianças que morriam sem estarem batizadas iam para o limbo, um lugar sombrio situado entre o purgatório e o inferno, onde clamavam por justiça aos pais que os haviam deixado morrer. Essa imagem vinculada pela Igreja Católica passou a aterrorizar os adeptos da religião, que começaram a compreender a morte da criança de maneira distinta. Por conta disso, buscavam alternativas que impedissem ao menos que a criança morresse sem o batismo (BADINTER, 1985; MARCÍLIO, 1998).
A mãe assume, assim, um papel central junto à família, gestando as bases para a família moderna. É ela que deve cuidar da criança e garantir que sobreviva. Ela deve buscar a todo custo evitar o limbo e, para isso, deve garantir que a criança sobreviva. A “instituição” da figura materna coincide com a instalação de um novo sentimento: o amor, algo incomum nas relações familiares, durante a era medieval, ao menos algo que não era manifestado como é na família burguesa. O amor, desde aquela época, veio regular não somente as relações de mães e filhos, mas de toda a família. Para o bom desenvolvimento de uma família, o amor começou a ser entendido como algo essencial. Era esse sentimento que estimularia a mãe, para que esta desempenhasse suas funções junto à família. Badinter (1985) descreve que vários segmentos colaboraram para a disseminação do amor e do amor materno, que passou a ser compreendido como instintivo e imaculado, destacando a importância da Igreja e também da Medicina, nesse sentido.
O amor materno, considerando a época em questão,além de instintivo e biológico, assumiu igualmente a característica de um amor imaculado, sem pecado, sem erros, sagrado. A mulher se transformou, ou foi transformada, em um ser capaz de amar e de formar um bom cristão. De transmitir à criança os valores necessários e não somente garantir a sobrevivência da criança, ou seja:
A maternidade torna-se papel gratificante pois está agora impregnado de ideal. O modo como se fala dessa “nobre função”, como um vocabulário tomado à religião (evoca-se frequentemente a “vocação” ou o “sacrifício” materno) indica que um novo aspecto místico é associado ao papel materno. A mãe é agora usualmente comparada a uma santa e se criará o hábito de pensar que toda boa mãe é uma “santa mulher”. (BADINTER, 1985, p.223).
Como a mãe possuía essa função doutrinária, catequética, passou a ser vista como uma santa, estendendo-se tal característica, algo inato, a todas as mulheres. Assim, todas as mulheres vêm a ser concebidas como aptas a serem mães, simplesmente por conta de pertencerem ao sexo feminino. Em acréscimo, aquelas que se tornaram mães rapidamente também se tornavam santas, responsáveis por toda a formação de seus filhos e, em vista de sua santidade, de serem capazes de todos os esforços e sacrifícios por amor de seus filhos. Essa imagem foi divulgada amplamente por diversos setores, mas, especialmente pela Igreja.
Em virtude dessa necessidade de sacrifício e amor abnegado, várias exigências eram feitas àquelas que desejassem se tornar boas mães. A mãe do século XVIII deveria ser conhecida, nos termos de Badinter (1985), pelas provas de amor que dava aos seus filhos. A amamentação era a principal delas e, nesse sentido, a Medicina higienista influenciou consideravelmente, já que procurava sempre convencer as mães dos prejuízos da amamentação realizada pelas amas. A boa mãe deveria abandonar igualmente o uso das faixas e se utilizar de práticas de higiene, como a troca freqüente de roupas e o hábito de banhos, por exemplo. As recomendações médicas não se restringiam apenas ao cuidado com a criança após o nascimento, mas também orientavam o cuidado necessário durante a gravidez, inclusive fazendo sugestões quanto à alimentação diferenciada.
A Medicina higienista chamou a atenção para os riscos da amamentação e das formas de higiene que as amas realizavam, além de encontrar novas alternativas de amamentação da criança pequena. Obviamente que o surgimento da Puericultura, em 1863, e da Pediatria, em 1872, veio ao encontro da identificação de alternativas distintas de cuidado da criança. Assim, avanços científicos resultantes de pesquisa proporcionaram também a amamentação artificial, que ajudou a minimizar consideravelmente a quantidade de crianças amamentadas por amas de leite e estendendo a possibilidade de amamentar mesmo para a mulher impedida por motivos biológicos ou em decorrência de condições de trabalho (MARCÍLIO, 1998). Dessa forma, nesse processo, tanto as amas de leite perderam sua “função”, quanto as Rodas dos Expostos deixaram de ser imprescindíveis. Na medida em que as famílias são convocadas assumir a responsabilidade por seus filhos, não há mais a necessidade de tais dispositivos.
Com isso, é notável que as relações entre mães e filhos acabassem mesmo por se alterar. As mulheres, após certa relutância, aceitaram o papel novo que lhes era atribuído, até por causa de um reconhecimento diferenciado de sua condição, antes não conferido. Estas passaram a ter certo “valor”, antes não imaginado. Na verdade, o amor terminou por contagiar toda a família. Mas, é preciso que se realce que essa necessidade proveio da nova forma de organização social que estava se desenvolvendo na Europa. Conforme já se frisou, o sistema capitalista precisava de homens para o trabalho e o Estado precisava de braços para a guerra. Como a mortalidade era elevada, essa meta dificilmente seria alcançada.
Antes desse período, a mulher era uma figura sem muita importância dentro da família, na qual sempre houve o predomínio da figura paterna, constituindo a chamada família patriarcal. Esta estava assentada sob bases muito sólidas, corroborando para isso, segundo Badinter (1985), discursos provenientes de diversas fontes, entre os quais o discurso aristotélico, o discurso político e o discurso teológico. Enquanto Aristóteles buscava justificar a supremacia masculina sob o ponto de vista filosófico, o discurso político, por sua vez, incorporou os princípios do absolutismo à forma de regulamentação da vida social, reforçando assim a supremacia do poder masculino. O discurso teológico, no entanto, devido a uma vinculação com o judaísmo, enfatiza a necessidade da supremacia do poder patriarcal na vida familiar. Badinter (1985) entende que algumas passagens bíblicas fazem com que seja dada essa orientação, como, por exemplo, o episódio da criação, relatado no livro do Gênesis. Esse livro aponta sobretudo a desobediência da mulher, a inserção do homem por conta disso no pecado e as maldições lançadas não apenas sobre Eva (aquela que incorreu no erro), mas sobre todo o gênero feminino.
Neste trabalho, já se refletiu sobre a mulher, sobre a mãe e sobre a urgente necessidade de educação da criança. Contudo, enfim, que criança era esta? Como os adultos percebiam a criança, a infância? Badinter (1985) sinaliza que a criança era algo que despertava medo junto aos adultos, sentimento estimulado tanto pela literatura da época quando pela teologia. A autora cita inclusive a obra de Santo Agostinho, que teria exercido também influência considerável sobre autores relacionados à pedagogia. Basicamente, a obra desse padre da Igreja Católica percebia a criança como um ser mau e que precisava ser educado a qualquer preço, tendo sido esta a percepção da criança que perdurou, segundo a autora, até meados do século XVII, o que em parte pode justificar a indiferença em relação à infância, durante a Idade Média e, em acréscimo, o uso dos castigos físicos como forma de punição, resíduo também presente na família burguesa.
Além disso, a criança era percebida como um “estorvo”: esse modo de percebê-la predominava junto às classes mais pobres, já que as concepções de teólogos, pedagogos e filósofos não eram veiculadas em determinadas classes sociais. Os cuidados básicos necessários a cada criança fatigam os pais, que a vêem mais como um fardo a carregar (BADINTER, 1985).
Justifica-se assim o que Ariès (1978) explicita em relação ao sentimento sobre a infância. Para ele, o sentimento descrito como “exasperação” com referência à criança ganha força em meados do século XVII, consistindo basicamente em um total repúdio aos carinhos oferecidos às crianças e ao estímulo na educação pautada no emprego dos castigos. Busca-se sobretudo opor-se ao sentimento descrito como “paparicação”, que, como é possível inferir, era o sentimento inverso.
Assim, pode-se concluir que a família moderna foi uma necessidade do novo sistema que se instalava. A família era necessária para manter a sobrevivência da criança e os grandes auxiliares, nesse período, foram a Medicina e a Pedagogia, porquanto a família ainda não estava ou pelo menos não demonstrava se sentir preparada para desempenhar essas novas funções, sem o respaldo de um saber.
A Medicina, nessa época, funcionou como um subsídio ao discurso da necessidade do cuidado materno. Os médicos iniciaram um combate explícito às amas de leite, aos cuidados que estas tinham com as crianças. Além de aspectos relacionados à higiene e alimentação, os médicos ainda atribuíam às amas a responsabilidade por todos os desvios de caráter das crianças educadas dessa maneira. Voltaram-se ainda contra as práticas desenvolvidas em casas de internatos, por exemplo, e contra quase todos os tipos de serviçais. Hábitos disseminados, como a utilização de faixas nas crianças, má alimentação, a não troca de roupas por semanas passaram igualmente a ser combatidos pelos médicos da época (DONZELOT, 1986, p. 9-18).
A influência da Pedagogia, por sua vez, tornou-se perceptível com a instituição dos colégios. Conforme Ariès (1978), o surgimento dos colégios deu-se nos séculos XV e XVII; estes eram pautados ainda em modelos dos colégios dos jesuítas, oratórios e colégios doutrinários. Anteriormente a esse processo, a maioria das crianças estudava em casa ou em salas de aulas, na companhia de adultos. Durante o período medieval, a educação estava associada a aprender algum ofício. Por isso, era comum que algumas crianças fossem encaminhadas a casas de artesãos, para que pudessem aprender alguma forma de trabalho. As características básicas dos colégios, entre os séculos XV e XVII, de acordo com Ariès (1978), são a vigilância constante do mestre sobre os alunos e a delação com vistas ao governo da instituição e à aplicação ampla de castigos. Os castigos físicos ou corporais foram muito usados, além das humilhações públicas. Era comum o uso de chicotes, por parte dos professores, para agredir tanto crianças quanto adolescentes. O uso dos castigos se transformou numa constante e chegou até a ser uma das novas características do tratamento dirigido à infância.
Não só nos colégios, mas essa disciplina foi rapidamente transmitida para as famílias. Aliás, a conclusão do trabalho de Ariès é que o reconhecimento da existência da infância não significou melhoras no tratamento a crianças:
O sentimento da infância não significa o mesmo que afeição pelas crianças:corresponde à consciência da particularidade infantil,essa particularidade que distingue essencialmente a criança do adulto, mesmo jovem.Essa consciência não existia. (Ariès,1978, p.99).
Ao contrário, a violência começou a ser empregada, com grande veemência, com a suposta finalidade educativa, ou melhor, como expressão de educação. Apesar da veiculação de um novo ideal de família, o uso da violência doméstica ainda era aceito e indicado pela sociedade. A crença de que através dessa maneira seria possível educar uma criança persistiu por muito tempo, no imaginário das pessoas e, aliás, persiste até hoje.
Conclui-se, assim, que a cultura, as normas de comportamento são construídas historicamente, sobretudo a família tal como é concebida hoje. Dessa forma, a necessidade de garantir a sobrevivência da criança, por motivos econômicos sobretudo, produziu a nova mãe e a nova família, que, como sabemos passou a ser concebida até com um local “santo”, quase um mito. Assim como a família foi uma construção histórico-social, a violência doméstica também o foi. Desenvolvida amplamente nos colégios, rapidamente foi transplantada para o espaço doméstico. No entanto, prevalece camuflada com a característica de forma de educação.
A seguir, serão tecidas considerações acerca do processo de constituição da família moderna, tomando como referência o Brasil, além de se destacar também aspectos referentes à infância brasileira.
1.1 A Família Nuclear, A Violência Doméstica e Os Primeiros Colégios – Considerações Sobre o Cenário Brasileiro
Para que seja possível compreender o desenvolvimento da família burguesa e da utilização da violência doméstica travestida enquanto forma de educação, recorreu-se a trabalhos da reconhecida linha de análise chamada História Social. Esse tipo de estudo defende que a história da família e da criança não podem ser compreendidas sem que seja considerado o contexto sócio-econômico. Dessa maneira, é impossível, seguindo essa perspectiva de análise, compreender o desenvolvimento do conceito, seja de família, seja de infância, sem associá-los ao desenvolvimento dos meios de produção e consumo nos quais a sociedade está se pautando. Destarte, o desenvolvimento da família patriarcal até a família burguesa se deu em decorrência de necessidades de ordem prioritariamente econômica, conforme se pretende demonstrar a seguir. A violência doméstica, por sua vez, também se instaura nesse processo de constituição da família burguesa.
Para tal, recorreu-se a autores que compreendem o desenvolvimento da família nos termos expostos acima, dentre os quais: DEL PRIORE (1989; 2006) e COSTA (1983). Especificamente esses dois autores demonstram com o desenvolvimento do conceito da família burguesa esteve relacionado ao desenvolvimento econômico do país. Nesse sentido DEL PRIORE (1998) e MARCÌLIO (1998) recuperam também aspectos importantes do desenvolvimento do conceito de infância, também relacionando-o ao desenvolvimento econômico do Brasil. Análise que CUNHA (2000); MAGALDI 2002 e MARCÍLIO 2005 também realizaram no tocante ao desenvolvimento da escola. Aliás, CUNHA (2000), focalizou a correspondência da forma de educar uma criança na escola e na família como o sistema econômico vigente.
Neste tópico, será realizada uma retrospectiva sobre o desenvolvimento do conceito de família, associando-o à situação econômica vigente no país. Serão, portanto, recuperados aspectos sobre a família colonial e a constituição da família burguesa nuclear. No tocante à família colonial, serão apontadas informações sobre a constituição familiar, a relação estabelecida entre homens e mulheres e desses para com seus filhos, relação permeada pelos ditames da Igreja Católica, até então hegemônica. Já no tocante à família burguesa, serão destacados os principais fatores de sua constituição, como a mudança da política econômica, no Brasil, além das alterações processadas na relação entre homem e mulher e no tratamento ou pelo menos na forma de percepção da infância.
No Brasil, a constituição da família, seja a colonial, seja a nuclear ou a burguesa, apresentou-se com um viés diferenciado em relação à constituição da família burguesa européia, em decorrência mesmo de tratar-se de uma colônia. A situação “colônia” conferiu traços particulares à família brasileira, os quais serão destacados a seguir. Nesse sentido, é preciso que se pondere, antes de tudo, que a constituição da família colonial foi, também, o resultado da situação colonial do país, e mais, da relação estabelecida entre o Brasil e Portugal, de tal modo que “a política econômica de Portugal foi decisiva na organização da família colonial brasileira” (COSTA, 1983, p. 36). A situação econômica e também política de Portugal produziu, assim, efeitos sobre a constituição da família brasileira. Outro fator de suma importância e que também está relacionado ao contato colônia-metrópole faz referência à influência da Igreja, no caso a Católica, no sentido de influenciar o psiquismo dos colonos e de lhes oferecer parâmetros na constituição de suas famílias. Trata-se de tendência percebida igualmente a partir da constituição da família nuclear.
Assim, o Brasil Colônia, provavelmente durante os três primeiros séculos de sua colonização, foi totalmente despido do controle da metrópole. Não havia o interesse econômico em exercê-lo. Os colonos eram, na verdade, os responsáveis pela colonização do país e o faziam da forma que melhor lhes aprouvesse. Contudo, a partir do século XVIII, com a descoberta do ouro brasileiro, surgiu por parte da metrópole a necessidade do controle, sobretudo das cidades em franca expansão e ligadas à sua extração. Isso se deu não apenas pela questão econômica que envolvia a exploração dos minérios, mas também porque, ao passo que as pessoas se aglomeraram em grandes centros urbanos, a fim da extração do ouro e do seu comércio, a socialização possibilitou também a crítica ao sistema da metrópole. A necessidade de um controle mais acirrado emergiu a partir de então.
Segundo Costa (1983), o fato de a ocupação das terras brasileiras ter-se dado dessa maneira resultou em que os grandes proprietários de terra, os senhores das terras, governassem o país praticamente sozinhos. Isso teria conferido, nos termos desse autor, um papel de destaque para o homem, o que corroborou com a formação de uma sociedade baseada no patriarcalismo, sendo essas premissas também transportadas para o interior das famílias, afetando e condicionando sua relação com a mulher, com os filhos e com todos aqueles que circulavam no seu interior. Era o proprietário de terra que pertencia a uma elite economicamente favorável, que detinha o poder jurídico e político e o exercia, através da administração das Câmaras e Juntas Gerais instituídas nas cidades. Essa autoridade era, parte das vezes, justificada como natural, quer pelas características inatas do sexo masculino (força física, inteligência superior etc.), quer com base em argumentos de fundamentação religiosa, que associavam a figura do homem à de Deus. Costa (1983) observa ainda que foram destituídos do poder os homens pobres livres, negros e as mulheres. Portanto, o protótipo do governante era o homem branco e rico.
Figuram nesse cenário nacional ainda a família imigrante e a família escrava. Essas famílias vinham de outros países, para poderem auxiliar no povoamento e no trabalho na colônia. A família imigrante, via de regra contratada para prestar serviços no Brasil, já vinha construída e preparada para o trabalho. Apesar de muitas vezes as condições propostas diferirem em muito da realidade brasileira, grandes levas de famílias italianas, japonesas e até espanholas vieram auxiliar no projeto de ocupação das terras brasileiras. A família escrava, por sua vez, constituía-se por meio do contato estabelecido entre os escravos, nas fazendas. E, mesmo após a abolição, essas famílias seguiram assim constituindo-se (BEOZZO, 1993). Como vemos, a necessidade de exploração, que é uma necessidade motivada pela economia da metrópole, trouxe tanto os imigrante quanto os escravos e estes passam a constituir as famílias brasileiras. Note-se que a imigração foi intensificada após o fim do período de escravidão, embora a vinda de famílias para o país fosse uma constante.
Nessa perspectiva, como o homem comandava e organizava a vida social, nada mais correto do que ele comandar a vida em família, o que Costa (1983) definiu como tendência reinante na organização familiar até meados do século XIX, denominando como “absolutismo patriarcal”. Era o homem que definia toda a vida da família. Aliás, a família imigrante só era contratada, segundo Beozzo (1993), se houvesse homens para o trabalho, o que vem reforçar o importância da figura masculina, dentro da relação familiar.
Era ainda o pai que resolvia com quem os filhos deviam se unir em casamento, se deveriam estudar, bem como definia sobre a aquisição dos bens e serviços da casa, desde os escravos até os mantimentos e demais utensílios domésticos. Os outros membros da família, por sua vez, totalmente dependentes do pai, que deveria prover todas as suas necessidades, não apenas aceitavam esse estado de coisas, como também o legitimavam.
A sensibilidade familiar era, em conseqüência indiscriminada, formada para reagir uniforme e prontamente à solicitação paterna. Era o pai que, defendendo o grupo, determinava o grau de instrução, a profissão, as escolhas afetivas e sexuais de seus dependentes. A família reagia adaptadamente a essas circunstâncias. Convicta de que ele tinha o direito natural e “sobrenatural” de mandar e ser obedecido conformava-se a isso. (COSTA, 1983, p.95).
A mulher era, nesse período, a maior das propriedades do homem. Ela era a responsável pela administração da casa. Deveria, por isso, permanecer grande parte do tempo em casa, na companhia dos filhos e dos escravos, colaborando assim para assumir o “papel” designado por Costa (1983) como “mulher de alcova”. A mulher não saia de casa, mantinha pouco contato com o mundo para além de sua residência.O que nos traz outro dado de relevância sobre a família colonial. Havia uma grande quantidade de pessoas não pertencentes ao grupo familiar, como os escravos, e que tinham circulação constante nas residências, indicando assim a inexistência de privacidade. A mulher só era quem centralizava essas pessoas, o que, no entanto, não indica qualquer supremacia de sua figura. Ela não tinha autonomia sequer para dispor os móveis da casa, já que tudo era resolvido pelo homem. O homem possuía não apenas a capacidade de decidir sobre tudo dentro de casa, mas também tinha liberdade. Sua vida social era ativa e totalmente distinta da vivência feminina.
O “estar” da família colonial, portanto, regulava-se pela distinção social do papel do homem e da mulher pela natureza das atividades domésticas. O homem, a quem era permitido um maior contato com o mundo, com a sociabilidade, permanecia menos tempo em casa. Os cuidados da residência eram entregues à mulher que, entretanto, não podia imprimir aos aposentos a marca de suas necessidades. (COSTA, 1983, p. 82-83).
Trata-se de uma tendência, aliás, corroborada pela Igreja Católica. A mulher devia ser submissa ao interesse do homem, que era a “cabeça da casa”. A submissão era estendida inclusive no sentido de que a mulher devia aceitar o casamento monogâmico e aceitar a sua vida, o direito natural do homem sobre ela.
A tradição católica condenava a mulher, que era equiparada a Eva. Portadora de todos os males e suspeita de que poderia pôr a perder a união conjugal, os filhos, a mulher era constantemente supervisionada pelos párocos. Esse pensamento, por sua vez, reforçava a percepção da mulher como inferior ao homem e, dessa maneira, auxiliando-a na aceitação de seu papel submisso.
O casamento era, aliás, percebido pela Igreja como possuidor da única finalidade de procriação e perpetuação das espécies, conforme constava na Bíblia Sagrada e na tradição católica. Era através do casamento que o homem podia se reconciliar com Deus, já que colaboraria para com a procriação, apesar de as maiores recomendações fossem no sentido de estimular a castidade. A sexualidade era assim vista como pecado, como algo sujo e que deveria ser usado pelo homem apenas de maneira comedida. “Na visão da Igreja, não era por amor que os cônjuges deveriam unir-se, mas sim por dever: para pagar o débito conjugal, procriar e, finalmente, lutar contra a tentação do adultério” (DEL PRIORE, 1989, p.39).
A Igreja busca assim exercer um controle sobre os corpos. Considerando o corpo como promotor do pecado, passa a orientar até a sexualidade das pessoas. Os padres faziam orientações bem objetivas e muitos se valiam até do confessionários com tal finalidade.
[...] a Igreja, no século XVIII, vem organizando-se na colônia, como poder institucional. Tem, entre outras a pretensão da difusão da fé católica e a instalação de seu aparelho burocrático. Através de mecanismos de controle de visitas pastorais e o confessionários, vai irradiar um discurso de afirmação, normativo e moralizador. Arrolando minuciosamente o inventário de infrações cometidas com e contra o corpo, a Igreja estará demonstrando mais sua vontade de repressão, do que o caráter infrator das comunidades. (DEL PRIORE, 1989,p.32).
Traziam, assim, nos termos de Del Priore (1989), arrolados uma série de atos que eram considerados como pecado. Figuravam nesse rol a sodomia, o adultério, a masturbação e mesmo o uso “exagerado” do sexo. As pessoas eram questionadas se haviam ou não praticado tal pecado, sendo logo julgadas pelo sacerdote, a depender da resposta.
Até então, a sociedade patriarcal vinha ao encontro dos ideais buscados pela Igreja, pelo Estado e pelo mercado, e todos esses setores conferiam outros contornos à constituição das famílias.
Os casamentos na sociedade pré-burguesa se davam segundo acertos entre as famílias e assim se buscava manter o patrimônio construído. Apenas no século XIX foi que a possibilidade de escolha do parceiro passou a ser considerada nessas uniões. O amor entre os cônjuges ainda não vigorava como uma prática tradicional e ainda era uma questão íntima. Não era comum ocorreram manifestações de carinho. Mas, mesmo nessas uniões, mesmo quando a possibilidade da escolha passou a existir, e supostamente os casamentos não mais de davam pelo interesses das famílias envolvidas, as escolhas se faziam por outras tipificações (TRIGO, 1989). Todavia, foi através do tipo de relação estabelecida pelo casamento que se garantiu a manutenção da propriedade privada e do poder político “na mão” de determinadas famílias.
Considerado na ordem patriarcal como engrenagem essencial de uma política voltada para a manutenção e transmissão do patrimônio, o casamento não deixava espaço para interesses pessoais. Bem ao contrário a finalidade primeira da aliança matrimonial era de ordem social, ou seja, de fortalecimento de grupos de parentesco e de status, preservação da herança e do poder econômico. Nesse sentido, é grande a sua contribuição para a formação de um sistema de dominação política e econômica. (TRIGO, 1989, p.89).
Apesar de não ser possível considerar que toda a população da colônia aderisse às regras da igreja Católica, em relação ao casamento e, por conseguinte, no que se refere à constituição da família, inclusive quanto ao cuidado com os filhos, sabe-se que essa doutrina teve muito impacto na subjetividade das pessoas. Embora houvesse inúmeras uniões tidas como ilegítimas, o número de pessoas casadas ainda era grande.
[...] o discurso religioso manipula símbolos, inculca normas e propõe valores, seja no discurso público, no aconselhamento individual ou nas mais diversas oportunidades de prática pastoral ou de “cura de almas”, com vistas a articular, controlar e convalidar o comportamento de indivíduos ou grupos. (RIBEIRO, 1989, p. 129).
Um fator importante que colaborou na disseminação das uniões legalizadas deve-se ao fato salientado por Beozzo (1993) de que, durante muito tempo, na colônia, o único documento válido para identificação das pessoas era a certidão de casamento ou de batismo. O registro civil de nascimento e mesmo de óbito teriam, nos termos desse autor, surgido apenas no período republicano.
O tipo de relação estabelecida entre pais e filhos, na família patriarcal, pode ser percebido ao se observarem alguns fatores, como a maneira com que os pais cuidavam da educação dos filhos e o abandono das crianças ao cuidado de terceiros, em sua maioria não pertencentes ao grupo familiar da criança. A educação, principalmente das crianças que permaneciam na casa, figura como um demonstrativo interessante da compreensão possuída pela família colonial em relação à infância.
Nessa óptica, os filhos, sobretudo as crianças, eram praticamente ignorados, exceto o primogênito. O homem mais velho e com direito de herança era o centro das atenções da família. Inclusive, era o filho “paparicado” pela mãe, já que dele poderia depender o seu sustento na morte ou ausência do patriarca, por qualquer motivo que fosse (RIBEIRO, 1989). Costa (1983) descreve que essa tendência colaborou para com um processo descrito como “adultização da infância”. Nesse sentido, a criança, ainda pequena, era chamada muitas vezes a assumir responsabilidades para as quais ainda não estava preparada. Quer o primogênito, quando da ausência do patriarca, quer os outros filhos, todos eram postos a serviço dos interesses dessa figura paterna.
Entretanto, os filhos deveriam, como a mulher, colocar-se à disposição dos interesses do patriarca, ideal também reforçado pelos princípios disseminados pela Igreja Católica, especialmente por meio dos padres jesuítas, ou seja, de que os filhos deveriam ser submissos à vontade do patriarca, que era, nos termos de Ribeiro (1989), equiparado à figura de Deus. Desobedecer ao pai era desobedecer diretamente ao próprio criador.
No Brasil, a Companhia de Jesus, instalada por volta de 1554, através do trabalho dos padres jesuítas, encarregou-se de oferecer os moldes europeus para a família colonial, bem como de educação e criação das crianças, inclusive em relação aos povos indígenas, obviamente tendo como respaldo a tradição católica. A Companhia de Jesus foi fortemente influenciada pelos ideais europeus, que viam a criança como um ser engraçadinho e vulnerável e que deveria ser doutrinado, antes que os pecados dos adultos viessem a corrompê-lo, o que justificaria a necessidade de implantação das casas de ensino e as missões volantes. O padre era aquele que, na escola ou por meio das visitas casa a casa, ensinava como a família deveria se organizar. Dentre tantas orientações, destaca-se a conferida ao cuidado das crianças. Assim, ilustra Del Priore a tradição jesuítica:
O “muito mimo” devia ser repudiado. Fazia mal “ao filho”, fosse este carnal ou espiritual como no caso dos indígenas e órfãos. “A muita fartura e abastança de riquezas e boa vida que tem com ele é causa de se perder”,admoestava em sermão José de Anchieta. O amor do pai, ou do educador espelha-se naquele divino, no qual Deus ensinava que amar “é castigar e dar trabalhos nesta vida”. Os “vícios e pecados” deviam ser combatidos com “açoites e castigos”. (1998, p.13).
Dessa maneira, a Companhia de Jesus institui igualmente uma disciplina bem arraigada em conceitos moralistas e bíblicos, que se inclinava para a exasperação em relação à infância. Parte dessa “disciplina” era percebida junto às casas de ensino criadas por essa ordem. Nestas, os castigos físicos foram largamente utilizados pelos padres, ancorados no seu “programa escolar”, a Ratio Studiorum. Muitos dos castigos ocorriam durante a realização dos batizados e procissões, sendo que, nessa época, eram utilizados o tronco e as palmatoadas (palmatórias) e, em outras ocasiões, os próprios alunos se autoflagelavam (DEL PRIORE, 1998, p. 21-22). Essa prática era tão aceita e corriqueira, que, naquele tempo, não causava nenhuma admiração. Del Priore (1998) chegou a definir que a disciplina jesuíta tinha “gosto de sangue”. Aliás, é preciso reiterar que as primeiras escolas, aqui no Brasil, também empregavam os castigos físicos como alternativa à manutenção da ordem; e essa característica esteve presente nas escolas brasileiras por muito tempo, além, é claro, de influenciar a muitas famílias5. Dessa maneira, antes do século XX era muito raro existir o carinho de pais para com filhos: “A manifestação do amor às crianças também não era habitual. Uma severidade beirando a crueldade era considerada a maneira eficiente de educar os filhos” (LEITE; MASSAIANI, 1989, p.74). Pode-se afirmar que, ainda, é uma constante dentre as famílias, na atualidade.
Para a Igreja Católica, a criança possuía em si o germe do pecado, Era concebida no pecado e resultado da “concupiscência dos pais”. Por isso, deveria ser disciplinada constantemente, para que assim pudesse apagar o pecado de que era portadora. A única criança tratada com “paparicação” era a criança morta, ou a criança “anjo”, isto é, aquela que não era mais real, que não estava mais presente na família. Todavia, a criança que estava presente, viva, era alvo de toda a intervenção repressora (COSTA, 1983).
Cabia ao pai educar os filhos. Com tal finalidade, o homem podia dispor de todos os meios coercitivos que houvesse. Era, no entanto, comum a utilização, por parte do patriarca, de castigos físicos. Os filhos, por sua vez,
[...] acostumavam-se, por meio de castigos físicos extremamente brutais, a não duvidarem de sua prepotência. Os espancamentos com palmatórias, varas de marmelo (às vezes com alfinetes na ponta), cipós, galhos de goiabeira e objetos de sevícias do gênero, ensinavam-lhes que a obediência incontinenti era o único modo de escapar à punição. (COSTA, 1983,p.156-157).
Cooperavam, por um lado, com a aceitação da figura paterna e, de outro, admitiam a utilização dos castigos físicos como se essa prática pudesse ser compreendida como educação.
Destarte, o abandono de crianças em rodas de expostos ou para serem criadas por terceiros era igualmente uma prática constante da família colonial, comportamento ilustrativo da maneira como era ancorada a relação família-criança. Tendência, aliás, reinante no Brasil durante o século XVIII, o que teria inclusive motivado a disseminação, a partir desse período, das primeiras rodas de expostos, que são, como se sabe, instituições destinadas ao acolhimento de crianças abandonadas. Além das rodas, figura a entrega de crianças a amas de leite e a escravas, para que os filhos fossem cuidados. A mulher, nesse período, ainda não se ocupava do cuidado dos filhos, sobretudo a mulher rica, que considerava uma espécie de função de baixo nível. Mas, eram apontados como principais causas do abandono de crianças a morte dos pais, a grande quantidade de filhos das famílias e a pobreza, além de serem ainda identificados inúmeros casos de abandono de crianças resultantes de uniões ilegítimas (MARCILIO, 1998).
As instituições, administradas com recursos parcos e partindo sempre das iniciativas de igrejas e irmandades, ofereciam atendimento não somente a crianças abandonadas, mas a toda sorte de desvalidos, como aqueles considerados loucos, alcoolistas e até ladrões. Eram as Misericórdias que desenvolviam em grande parte o serviços de acolhimento de crianças abandonadas, apesar de, inicialmente, em sua constituição, essas instituições terem sido destinadas a uma função basicamente hospitalar. Desse modo, a qualidade do serviço prestado era muito ruim, sendo a alimentação de má qualidade, os cuidados higiênicos seguiam a mesma tônica, resultando na morte de grande parte das crianças. Em relação às amas de leite, o tratamento conferido também não era dos melhores. Elas se alimentavam mal e ofereciam leite de qualidade ruim aos pequenos. Além disso, não exerciam os cuidados básicos necessários de atenção às crianças, como a higiene mínima. Estima-se que a grande maioria das amas de leite procurava esse tipo de serviço apenas tendo em vista o recurso recebido, o que na verdade, não representava muito em relação aos salários da época, mas que fazia diferença, considerando-se a situação de pobreza em que vivia grande parte das mulheres. Muitas crianças, entretanto, chegavam a morrer no caminho das rodas até a casa das amas (MARCILIO, 1998).
Essa situação passou a preocupar o Estado, que financiava essas instituições, já que a maioria das crianças morria antes de poder devolver-lhe o investimento por sua educação.
A soma dessas alternativas de cuidado da criança colonial resultava apenas em uma grande quantidade de óbitos. Grande parte das crianças morria ao ser abandonada, já que nem todas eram entregues junto às rodas, mas eram abandonadas em estradas, caminhos, igrejas e mesmo à porta de determinadas residências. Dentro das rodas, a mortandade também era elevada e os cuidados oferecidos pelas amas colaboravam nesse sentido. Em conseqüência, havia uma grande quantidade de crianças que morria. E durante muito tempo essa realidade foi mantida. A Igreja Católica e Estado não se colocavam frente à questão. Aliás, a preocupação da Igreja Católica residia no fato de a criança ser batizada ou não. Assim, orientava-se que a criança fosse batizada, caso contrário, se morresse sem o batismo, “iria para o limbo”. Era uma preocupação também reinante na Europa, como já salientado anteriormente, no tópico precedente (MARCILIO, 1998).
Figura ainda como abandono a entrega de filhos a artesãos, por exemplo. Essa era uma prática também usual. Esperava-se que a criança aprendesse algum ofício, durante a sua permanência na casa de um estranho. E, quando retornasse desse aprendizado, que poderia durar anos, o filho poderia trabalhar e oferecer algum recurso para a família. Marcílio (1998) enfatiza que muitas crianças eram entregues por anos e, durante esse período, ficavam sem receber qualquer tipo de visitas ou contato de qualquer espécie por parte dos familiares biológicos.
Nesse sentido, a infância foi assim tratada: ora abandonada, ora submetida a agressões, compreendidas como uma forma de educação. Na verdade, essa forma de tratamento da infância se encaixa perfeitamente na constituição da família patriarcal, tendo o homem no centro e a mulher como uma figura submissa, o que, por sua vez, reflete a organização econômica vigente no país, ou seja, uma economia de base agrícola.
Esse estado de coisas só veio a ser alterado, ou, pelo menos, iniciar-se um processo de mudança após meados da década de 1920, 1930 aproximadamente, ou seja, fins do século XIX e início do século XX. A modernização econômica ocorrida em decorrência do declínio do sistema baseado em atividades rurais e a emergência do sistema capitalista foram a pedra de toque para motivar a mudança na relação familiar, desde o relacionamento homem e mulher e, sobretudo destes para com os filhos.
A crença de que a modernização econômica era necessária e que não era alcançada devido aos maus hábitos do brasileiro pairava no ar. Dessa maneira, era urgente mudar os hábitos das pessoas, enquadrá-las e prepará-las para a nova ordem nascente, a ordem burguesa (CUNHA, 2000). A grande quantidade de pessoas que perambulava pelas ruas das cidades, mendigando, roubando, na condição de doentes ou simplesmente na ociosidade despertou o interesse e a necessidade de controle. Essas pessoas eram, nos termos de Costa (1983), consideradas as responsáveis pelo atraso econômico do país, sendo alvos de atuação, de controle, por meio da educação e da higienização, porque os aparelhos coercitivos, como a Igreja e a polícia, já não davam conta de administrar essa demanda, sendo necessária uma outra alternativa de intervenção.
Esse problema foi responsável pelo estabelecimento de uma nova estratégia onde novos agentes de coerção foram aliciados, convertidos, manipulados ou reorientados nos seus mais diversos interesses e formas de agir. Este foi o movimento de inserção da medicina higiênica no governo político dos indivíduos (COSTA, 1989, p. 28).
Assim, acreditava-se que, por meio de uma educação higiênica, desde a mais tenra idade, seria possível modificar a forma como os indivíduos vinham se comportando. Isso motivou uma intervenção nas famílias, já que nelas encontravam- se as crianças, sobre as quais a ação deveria incidir prioritariamente,fazendo com que a Medicina assumisse uma posição de destaque, no cenário nacional. Era o médico que deveria ensinar as famílias a maneira correta de cuidar das crianças. Segundo Costa (1989), essa intervenção se deu de duas formas: pela abordagem da Medicina doméstica, que consistia em o médico oferecer à família a orientação sobre a conservação das crianças; e, em outra instância, pelas campanhas de moralização e higiene, destinadas a famílias pobres, as quais eram desenvolvidas pela filantropia.
O entusiasmo higienista defendia que os pais erravam na educação dos filhos, mas por falta de uma orientação adequada. Era, por isso, que muitos pais abandonavam seus filhos ou os entregavam aos cuidados das amas de leite, ou mesmo escravas, colaborando assim para com a morte das crianças. Aliás, a Medicina higienista do período se contrapôs ferozmente à entrega de crianças sob qualquer forma de abandono, seja nas rodas de expostos, seja por meio das amas ou das escravas. O grande número de óbitos dessas crianças postas aos cuidados de terceiros era o modo de justificar a indisposição declarada para com essas alternativas de criação das crianças.
Nesse sentido, as recomendações dos médicos higienistas, em relação aos cuidados com as crianças, a princípio, partiam da restrição total de entrega aos cuidados de terceiros, inclusive a instituições. A mulher deveria, portanto, cuidar de seus filhos. esse cuidado deveria começar pela amamentação da criança. Veiculava-se que o caráter da criança, bem como sua saúde, dependia de sua amamentação. Acreditava-se que as amas e as escravas, por suas “deficiências de caráter” e mesmo por questões físicas, poderiam corromper a criança pequena, por meio do leite, o que, por sua vez, justificou o ataque higienista a essas formas de aleitamento (COSTA, 1983; MARCÍLIO, 1998). Em Costa (1983), é percebido que os escravos foram expulsos até do interior das residências, onde, em outros tempos, circulavam com certa facilidade. Eram vistos como propagadores de doenças e estimuladores dos “desvios de caráter”.
Tal disposição fez com que esse sistema viesse a ruir. Aos poucos, e muito vagarosamente, as “rodas de expostos” foram sendo fechadas e o sistema de entrega às amas e a escravas seguiu o mesmo caminho. Como as famílias foram convocadas a cuidar dos filhos, a relação familiar acabou mesmo por alterar-se. A família patriarcal deu lugar a uma nova forma de constituição familiar, a família burguesa.
A mulher assume, assim, papel de destaque nesse molde diferenciado de organização da família. Era a mãe que deveria manter os filhos limpos, bem alimentados e, especialmente, deveria evitar a morte e as doenças desses. De fato, a responsabilidade pela criação e educação dos filhos passa a ser exclusivamente da mãe (MAGALDI, 2002). Era a mulher que devia formar o homem higiênico, o bom trabalhador, e estruturar o cidadão normatizado e disciplinado. A mulher devia ainda cuidar do marido, da casa e juntos, ambos, deveriam oferecer uma prole sadia ao país. Mulheres como as prostitutas e as solteiras passaram a ser perseguidas e tidas como subversivas. A mulher devia ser mãe.
Cada vez mais é reforçada a idéia de que ser mulher é ser quase integralmente mãe dedicada e atenciosa, um ideal que só pode ser plenamente atingido dentro da esfera da família “burguesa e higienizada”. Os cuidados e a supervisão da mãe passam a ser muito valorizados nessa época, ganha força a idéia de que é muito importante que as próprias mães cuidem da primeira educação dos filhos e não os deixem simplesmente soltos sob influência de amas, negras ou “estranhos”, “moleques” da rua. (D’INCAO, 2006, p.229).
A mulher que não amamentava, por seu turno, era duramente criticada e responsabilizada por qualquer mal a que a criança fosse submetida. A amamentação era tida como algo natural, inerente à espécie feminina e, por conseguinte, aquela que contra esse ato se indispunha, na verdade estaria contrariando sua vocação natural. A Medicina higienista usou também desse recurso, a culpa. A mulher era culpada, de sorte que essa culpa não estava restrita à relação da mulher com a criança, porém estendia-se à sua relação com a pátria. Assim, se a criança morresse ou tivesse doenças, a mulher não estaria comprometendo apenas um indivíduo, mas o futuro da nação, que, acreditava-se, dependia de homens higiênicos (COSTA, 1983).
Entretanto, a mulher não devia apenas amamentar, mas ocupar-se do cuidado dos filhos, da casa e do marido. Deveria sair da alcova, freqüentar bailes e eventos sociais, tudo, obviamente, muito dosado, de modo a não interferir de maneira negativa em seu papel de mãe. Para Costa (1983), a mulher precisava saber receber as pessoas, vestir-se adequadamente, conversar corretamente ou, como salienta, a mulher precisou “europeizar” seus costumes. Deveria estar pronta para a nova sociedade de base capitalista emergente: de que adiantaria, por exemplo, a um pequeno burguês, uma mulher que não tivesse tais predicados? E tais atividades eram tidas como específicas, ou seja, eram apenas as mulheres as consideradas capazes de amamentar e exercer os demais cuidados que eram necessários para com a família higiênica.
De acordo com Bassanezi (2006), essa idéia de maternidade foi veiculada com grande veemência, tanto que, mesmo durante a década de 1950, apesar de algumas mulheres trabalharem e estudarem, os ideais de casamento e maternidade ainda persistiram no imaginário. Magaldi (2002) chega a destacar a existência de manuais de orientação para as mulheres que desejavam se casar.
Por conseguinte, essa mudança foi processada mediante, conforme já se ressaltou, não apenas a culpabilização da mulher, mas também por meio da inauguração de um sentimento novo e que deveria regular a vida em família, que era o amor. Era pelo amor que a mulher era convocada a cuidar dos filhos, do marido e da casa. E seu cuidado para com os afazeres domésticos e com a vida familiar eram tidos como a manifestação de seu amor, o qual era contraposto à sexualidade, ao amor-paixão.
[...] o papel da mulher é o mais atingido e, em nome do amor, uma série de deveres lhe são impostos, cabendo-lhe desempenhar o papel e cumprir o dever que a sociedade e a condição de amar e ser amada exigem: praticar a renúncia, a dedicação e a submissão. (TRIGO, 1989, p.90).
Todavia, é preciso que se pondere que todas as alterações propostas tinham uma finalidade econômica a ser alcançada, apesar de provocarem uma mudança na subjetividade das pessoas, das famílias. Assim, esperava-se formar o homem higiênico, que pudesse colaborar com a produção econômica da nova ordem que se instalava. Semelhante explicação é possível em relação à amamentação. Essa prática só começou a figurar como interessante, enquanto pudesse trazer algum benefício, mesmo que a longo prazo, mesmo que de forma sutil, para a nova ordem capitalista que se instaurava. “De fato, foi só a partir do momento em que a vida da criança de elite passou a ter a importância econômico- política, que lhe foi dada no séc. XX que o aleitamento materno veio a ter essa conotação, ganhando foros de problema nacional (COSTA, 1983, p.256).
Costa (1983) destaca ainda a importância do fim da escravidão no Brasil.Com o fim do trabalho escravo, as mulheres tiveram que assumir o papel de cuidadoras das crianças e ainda zelar da casa e dos afazeres domésticos. Era, assim, quase uma questão de necessidade. Isso colaborou ainda para estimular a privacidade no ambiente doméstico, já que eliminou os escravos da circulação dentro das residências.
A imagem do homem também foi modificada significativamente. Nesse novo modelo, o homem devia ser, antes de qualquer coisa, pai. Para isso, o homem devia também se casar. O homem que fosse solteiro, homossexual ou celibatário era discriminado. Como pai, era ele o único e primordial responsável na manutenção da família. O homem devia desempenhar tais papéis em decorrência do “amor”. Devia, assim, amar a sua família, sua mulher e seus filhos, e a manifestação desse amor se dava por meio da atenção de todas as demandas familiares.
Toda a vida do homem, segundo o higienismo, passou a ser regulada pela vida em família. O homem higiênico
[...] vai casar para ter filhos; trabalhar para manter os filhos; ser honesto para dar bom exemplo aos filhos; investir em saúde e educação dos filhos; poupar pelo futuro dos filhos; submeter-se a todo tipo de opressão pelo amor dos filhos; enfim, ser acusado e aceitar a acusação, ser culpabilizado e aceitar a culpa, por todo tipo de mal físico, moral ou emocional que ocorresse aos filhos. (COSTA, 1983, p.251).
O homem devia, assim, dar bom exemplo aos filhos – e esse exemplo dizia respeito igualmente a colocar em prática os princípios do higienismo. O pai devia ser, nos termos de Costa (1983), o “manequim higiênico” no qual os filhos deveriam espelhar-se, de maneira que se procedeu também a uma aculturação do homem. Ele tornou-se mais letrado, refinou-se.
O homem e a mulher deveriam ser pais e mães, e sua família higiênica posta a serviço da nação, do desenvolvimento econômico do país.
Desde então famílias e mais famílias começaram a imaginar-se responsáveis pela ordem e desenvolvimento do Estado. A idéia de criar filhos para a nação já não mais era repelida. Os cônjuges deixavam a mesquinhez de suas pequenas tarefas, de suas pequenas necessidades, para se inserirem no grande trabalho de construção do povo e do Estado brasileiros. Amor á família e amor ao Estado começaram a identificar-se. (COSTA, 1983, p. 148).
Foi por isso que a criança passou a ser percebida dentro da família, porque representou uma finalidade econômica, tanto ao capital quanto ao Estado. A criança deveria, pois, ser educada, desde pequena, para permitir que fosse produzido o adulto higiênico. Dever-se-ia “adestrar seu corpo” por meio dos exercícios físicos; “regular sua sexualidade” por meio da supervisão direta dos corpos, buscando evitar sobretudo a masturbação e ainda exercer sobre a criança uma intensa educação, através de uma “disciplina moral e intelectual”. Esta, por fim, deveria incutir na criança novos hábitos, além do simples estudo, os quais a mesma se encarregaria de transplantar para o interior das famílias. Eram hábitos que estavam sempre relacionados à higienização (CARVALHO, 1997; ROCHA, 2003).
A criança era considerada como algo que estava ainda em construção e, por isso, a intervenção deveria se dar sempre sobre ela. Tida como “cera a modelar”, “tabula rasa” ou portadora de certa “plasticidade infantil”, passou a assumir local de destaque na intervenção médica (MAGALDI, 2002; ROCHA, 2003). Como o espaço privilegiado para desenvolver essa “educação” era a escola, surgem os jardins de infância, que expressavam muitos desses ideais, conforme se pode observar nas análises realizadas por Kuhlmann Júnior (1998). Nessa perspectiva, ocorre no Brasil o que Carvalho (1997) denominou de “entusiasmo pela educação”. Pensava-se que, através da escola, seria possível higienizar a população e, desse modo, colaborar para o desenvolvimento do país.
Os professores eram assim orientados a exercer vigilância constante sobre os alunos, chegando inclusive a fazer revistas diárias, a fim de verificar o corte das unhas, dos cabelos etc. Apesar de haver uma espécie de orientação geral quanto à necessidade de aconselhamento das crianças, Nunes (2002) relata que os castigos físicos ainda figuram dentre as práticas utilizadas pela escola que se pretendia moderna. Recuperando hábitos já enraizados do fazer pedagógico de escolas de inspiração jesuíticas, os castigos apareciam como prática corriqueira, no interior das escolas brasileiras.
A escola passou a ser extensiva a toda população e não somente às elites. O objetivo era ambicioso, já que se imaginava alcançar toda a população. Diga-se de passagem, no entanto, que deveria ser extensiva somente àqueles que possuíssem condições de acompanhar o ensino. Dentro dessa ótica, as crianças eram avaliadas, uma a uma. Eram separados os tidos como “normais” e diferenciados daqueles considerados como “anormais”. Aos “normais”, capazes de serem letrados, era destinada toda a atenção, ao passo que os “anormais” eram excluídos do processo escolar (CARVALHO, 1997).
Em suma, essa foi a criança produzida, gestada pela necessidade capitalista. A criança que precisava ser enquadrada nos moldes do higienismo e que deveria resultar no homem saudável, higiênico e capaz de enquadrar-se na nova ordem vigente, o que, contudo, não representou uma mudança positiva no sentido do tratamento dessa criança. Antes, para produzir o adulto almejado, podiam-se usar os castigos físicos e principalmente intensas formas de coerção.
A partir dos anos 70 desse século novas alterações foram processadas na forma de organização familiar. A possibilidade do trabalho fora de casa, princípio levantado pelo movimento feminista, colaborou para que esse sistema familiar burguês começasse a apresentar as primeiras fissuras.Grande parte das mulheres, tanto no Brasil quanto na Europa, começaram a repensar o “papel social” que lhes fora conferido, alterando significativamente também o papel social atribuído a figura masculina no interior das famílias(BRUSCHINI, 1993).
Compreendendo a família como uma “criação humana mutável”, é possível compreender que diversas e diferenciadas instituições de agrupamento e associação humana foram se desenvolvendo para além do modelo burguês, sobretudo a partir da década supra citada. Atualmente, não é possível afirmar-se que o modelo burguês continua sendo hegemônico, antes, que novas formas de organização familiar foram se desenvolvendo a partir do próprio desenvolvimento da humanidade. Nesse sentido,
“O grupo tanto pode extrapolar o modelo, pela inclusão de parentes ou agregados, quando nem mesmo realizá-lo, como no caso de casais sem filhos, irmãos sem pais ou famílias nas quais um só dos cônjuges está presente. Portanto, exceções ao modelo não apenas rreforçam sua elasticidade, como também a riqueza da realidade empírica, que de longe o extrapola” (BRUSCHINI,p.63,1993).
No caso das crianças que irão participar da pesquisa em questão tal realidade é facilmente observável. Assim, tanto Abelardo quanto Rogério, vítimas de violência doméstica não pertencem à famílias organizadas com base no modelo nuclear popularmente conhecido. Entretanto, a forma de organização entre tais pares é considerada uma família.
Assim, é possível inferir, tomando como base tanto a realidade européia quanto a brasileira, que a família burguesa foi sendo gestada à medida que o sistema capitalista ocasionou a demanda pelo controle e conservação dos corpos. A família vem a atender essa necessidade. Por sua vez, a utilização da violência doméstica vem associada a esse movimento de controle e conservação das crianças. Arraigada em princípios religiosos difundidos desde a colonização do país, que viam na punição corporal uma alternativa de educação e, depois, em princípios higienistas que pressupunham mudanças nos hábitos e na moral, a família busca, de todas as maneiras, a submissão e a obediência, sobretudo das crianças e adolescentes, passando a empregar a força física para alcançar tais objetivos. A escola, por seu turno, procura auxiliar essa família na formação do homem letrado, igualmente “contaminada” pelos mesmos ideais.
Como mudou a noção da família, alterou-se também a concepção do que era violência em relação à criança e ao adolescente. Na Idade Média, era comum que os pais abandonassem seus filhos, conforme já comentado neste texto, o que hoje é considerado uma violência, podendo até resultar em processos criminais, segundo a legislação vigente no país.
Mesmo com a mudança na maneira de organização das famílias e ainda com a legislação atual de proteção a infância, há ainda hoje a presença dos resíduos da forma de educação de crianças pautada na violência doméstica, quer seja física, psicológica, negligência ou mesmo sexual. As crianças sujeitos dessa pesquisa são um retrato dessa realidade. Para que seja possível identificar a compreensão que essas crianças possuem sobre a violência doméstica, nesse trabalho, optou-se pela adoção de um método específico de conhecimento, o qual será descrito à seguir. Por meio desse método de análise e coleta de dados tornou- se possível a compreensão do sentido da violência doméstica, além de possibilitar também adquirir informações sobre a incidência da violência e outras sobre a família das crianças agredidas.
2. A PESQUISA
“...é necessário que num determinado momento se veja de uma forma completamente nova aquilo que já se conhece bem” Leontiev
O fenômeno da violência doméstica já fora observado por essa autora enquanto desenvolvia seu fazer profissional como Assistente Social. Entretanto, apenas a partir da realização da pesquisa científica, foi possível uma nova percepção acerca do mesmo.
Para tal se fez necessário a definição de um método de pesquisa e de instrumentais que permitissem penetrar no sentido que a violência doméstica tem para as crianças vítimas. Isso posto, à seguir serão tecidas considerações sobre o método utilizado para a coleta e análise das informações sobre o fenômeno da violência doméstica.
E, dando seguimento, serão destacados os casos e demais informações das crianças vitimizadas pela violência doméstica e que constituíram objeto de análise nesse texto.
Os nomes aqui empregados são fictícios, pois foram usados em substituição aos verdadeiros dos sujeitos da pesquisa, para que estes tenham preservada sua identidade.
2.1 O Método de Pesquisa
Vigotski6 não propôs apenas uma forma de compreensão do psiquismo humano diferenciada, mas também uma metodologia para a produção do conhecimento científico e para que dessa maneira a psicologia se constituísse de fato enquanto psicologia crítica e científica. Para o autor, para que se consolidasse uma psicologia crítica era também necessária uma psicologia científica. E tal psicologia necessitaria de um método de investigação e conhecimento também crítico, o qual Vigotski elaborou recorrendo ao marxismo (DUARTE, 2003).
Dessa maneira, Vigotski propõe que o conhecimento científico a ser produzido voltasse seu olhar para as questões concretas da vida humana, em cada tipo de sociedade e “formação social específica” e que, partindo de tal “análise” fossem então realizados os estudos sobre o psiquismo humano. Por isso, se fez necessária a adoção do método marxista. “Vigotski entendia ser necessária uma teoria que realizasse a mediação entre o materialismo dialético, como filosofia de máximo grau de abrangência e universalidade, e os estudos sobre os fenômenos psíquicos concretos” (DUARTE,2003,p.41).
Seria possível assim romper com o conhecimento do homem pautado apenas no inatismo ou no predomínio das funções sexuais (VIGOSTKI,2000a). Em relação a investigação desenvolvida dentro da psicologia infantil, Vigotski (2000b) enfatiza ainda mais a necessidade de rompimento com as formas que vinham sendo desenvolvidas, sobretudo aquelas que obtinham o conhecimento recorrendo apenas a realização de experimentos em que se focavam apenas a ação-reação das crianças aos estímulos oferecidos por conta da realização das pesquisas.
Ainda segundo Vigotski (2000b), o objeto de investigação deve possuir uma estreita relação com o método de estudo e análise. Segundo ele, a elaboração de um problema a ser investigado, estudado já traz em si, implícita a necessidade de um método de estudo.
Isso posto, segundo Duarte (2003), Vigotski propôs um método de conhecimento que se pautasse no conhecimento do concreto. Concreto que para Vigotski (2000a) é também extensivo ao fenômeno psicológico. Por isso “O estudo de quaisquer formações psicológicas pressupõe necessariamente uma análise” (VIGOTSKI,2000a,p.05). Vigotski (2000b) faz essa recomendação,quase uma imposição, também no que concerne à pesquisa desenvolvida junto a infância. Ele pontua que é necessário o enfoque tomando como base a vivência cotidiana da criança, a realidade concreta na qual está inserida. E, o concreto só poderia ser apreendido através de dois processos simultâneos e dialéticos de análise, descritos pelo autor como “abstração” e “método inverso”.
A “abstração” do concreto se faz por meio de aproximações sucessivas ao mesmo, tentando desvelar sua essência. Isso porque a apreensão do concreto não é imediata, mas demanda uma série de aproximações, conduzindo o processo do conhecimento através de um movimento dialético, mediado pela análise (DUARTE,2003). Esse conhecimento abstraído é, entretanto a captação de aspectos da realidade social e não apenas ilusões causadas pela mente.
Toda a dificuldade da análise científica radica em que a essência dos objetos, isto é, sua autêntica e verdadeira correlação não coincide diretamente com a forma de suas manifestações externas e por isso é preciso analisar os processos; é preciso descobrir por esse meio a verdadeira relação contida nesses processos por detrás da forma exterior de suas manifestações.Desvelar essas relações é a missão que há de cumprir a análise.[...]Em nosso ponto de vista, somente é possível a análise de caráter objetivo já que não se trata de revelar o que nos parece o fenômeno observado, mas sim o que ele é na realidade”.(VIGOTSKI, 1995 apud DUARTE, 2003, p.50).
A abstração permite a captação da essência do fenômeno concreto, que não se apresenta a mente de forma casta e que não pode ser apreendido apenas por meio da observação simples, mas sim pela análise dos processos que compõe o objeto. Por isso, tratando-se da pesquisa em questão, as aproximações ao fenômeno se deram não apenas através da realização das entrevistas, mas também devido a recorrência às informações obtidas com a realização do diário de campo, como descreveremos ainda. Acredita-se que através dessas aproximações se tornou possível desvelar o sentido da violência doméstica para as crianças-vítimas e que, o conhecimento produzido aqui não resulta, portanto de uma observação pautada apenas no conhecimento do senso comum.
O concreto ou o real para Vigotski(2000b) reproduz a história da humanidade. Para ele, o concreto sobre o qual é voltado o olhar, é um concreto histórico, que foi produzido dialeticamente e que por conta disso precisa ser também apreendido dialeticamente. Nesse sentido, a pesquisa realizada junto ao ser humano também precisa considerar que o indivíduo é resultado de um processo de desenvolvimento histórico-social porque passou o gênero humano, e que, em sua conduta, ele expressa todo esse conduto histórico apropriado durante as gerações precedentes.
Por isso, nesse estudo, antes de serem iniciadas as discussões sobre a violência doméstica, foi iniciada uma reflexão acerca do desenvolvimento do conceito de família, através da observação da sua “evolução” até a família nuclear. Paralela a essa reflexão foi possível perceber o surgimento da crença de que a violência doméstica é uma forma de educação, dentre outras questões. Considera- se que as crianças sujeitos da pesquisa trazem em si, os resíduos da forma de educação instituída nas primeiras famílias, apesar de não estarem inseridos em família nucleares como as que foram estudadas nesse texto.
O “método inverso” consiste em uma forma de conhecimento no qual o estudo da “essência” de um fenômeno se dá por meio da análise do mesmo em sua forma mais desenvolvida alcançada.Vigotski chama a esse método de inverso porque ele caminha na direção oposta à gênese do objeto”(DUARTE,2003,p.46). A análise das formas mais desenvolvidas do concreto permite a compreensão de sua manifestações em formas “menos desenvolvidas”, aliás, segundo Vigotski (1997a) o estudo de formas mais desenvolvidas de qualquer fenômeno humano é a chave para compreender as formas menos desenvolvidas. O autor coloca que retirou essa metodologia de Marx, e que segundo Vigotski (1997a), Marx teria demonstrado que é mais fácil estudar “o organismo desenvolvido que a célula”(OP.CIT,p.376, tradução nossa7).
Quando Vigotski(2000b), empreendeu estudos sobre a memória, o desenvolvimento das funções psíquicas superiores e sobre a conduta infantil frente a atos determinados, ele reforça a necessidade de se compreender esses e outros fenômenos por meio do método inverso. É por meio da observação de formas mais desenvolvidas, inclusive do comportamento humano, que se torna possível a compreensão global de um determinado fenômeno e possibilita assim a compreensão de tal fenômeno em formas inferiores de sua manifestação. Isso posto, “Talvez seja suficiente descobrir nas formas superiores do comportamento a existência de outras inferiores, subordinadas, auxiliares”(VIGOTSKI,2000b,p.75, tradução nossa8).
Nesse sentido, a análise empreendida acerca do conceito de violência adotou tal orientação. A análise partiu da realização de um estudo da violência em aspectos gerais, totais, para em seguida direcionar a um aspecto inferior. O mesmo se aplicou com relação ao psiquismo, já que a princípio serão oferecidas informações gerais sobre o desenvolvimento psíquico para que em seguida se oriente a compreensão da influência da violência doméstica sobre ele. Partindo assim, do geral para chegar à compreensão do específico e evitando a percepção do fenômeno isolado.
Dessa maneira, com esses dois processos combinados será possível a compreensão do concreto, inclusive das formações psicológicas. Para tal, Vigotski ainda evidencia a possibilidade do concreto poder ser percebido por meio das unidades.A unidade representa a totalidade, aliás ela reproduz a totalidade da sociedade. Para ele, os estudos em psicologia tendiam a decompor os fenômenos em totalidades independentes e não relacionavam com aspectos globais e isso conduziria a uma compreensão fragmentada do objeto de estudo (VIGOTSKI,2000a).
Assim a análise por meio das unidades:
[...] pode ser qualificada como análise que decompõe em unidades a totalidade complexa. Subentendemos por unidade um produto da análise que, diferente dos elementos, possui todas as propriedades que são inerentes ao todo e, concomitantemente, são partes vivas e indecomponíveis dessa unidade (VIGOTSKI,2000,p.8)
Por meio desse tipo de análise é possível apreender aspectos da totalidade, através da análise das propriedades de cada unidade. Vigotski (2000) coloca assim que a análise por meio das unidades:
Deve encontrar essas propriedades que não se decompõem e se conservam,não inerentes a uma dada totalidade enquanto unidade, e descobrir aquelas unidades em que essas propriedades estão representadas num aspecto contrário para, através dessa análise, tentar resolver as questões que se lhe apresentam (OP.CIT.,p.8).
No caso específico, as crianças entrevistadas são unidades que representam a totalidade. Estão, portanto, relacionados à totalidade, ao contexto sócio-econômico total, são expressões dessa.
Vigotski realizou diversos experimentos com crianças e com adultos. Entretanto, a pesquisa empírica nos termos desse autor, era necessária apenas a fim de demonstrar quanto a teoria é real, aplicável e que não está distante dos fenômenos concretos da vida humana. Os experimentos seriam nos termos desse autor, são unidades, em representação à totalidade.Isso posto, esses experimentos que foram aqui realizados com a participação das crianças só vem no sentido de confirmar o referencial teórico adotado.
Em suma, Vigotski(2000a,2000b), propõe um método de análise que se paute em “abstrações” e no “método inverso” para conhecimento do objeto de estudo. Objeto que é identificado pelo autor como presente na realidade, que é uma unidade da totalidade, dentre outras tipificações. Como presente na realidade está sujeito ao movimento dialético de construção da mesma e, por conseguinte, necessita de um método também pautado na dialética.
2.2 Coleta de Dados
Partindo dos princípios acima arrolados, foram escolhidos dois casos de crianças atendidas pelo Ensino Fundamental do município de Quatá – SP e que foram vítimas de violência doméstica. Essa escolha se deu tomando como base o fato de tais crianças serem vítimas de violência doméstica de natureza física, psicológica e negligência. A triagem desses casos se tornou possível devido à inclusão do autor deste trabalho junto à rede municipal de Ensino Fundamental, onde realizou acompanhamento de 39 (trinta e nove) casos de crianças vítimas de violência doméstica dessa rede.
Para a apreensão do objetivo de estudo em questão, considera-se de vital importância pontuar que foram utilizados os instrumentais entrevista e diário de campo. Tomando como base essas colocações, definiu-se pela utilização da entrevista a fim de identificar o objetivo proposto.
As informações do diário de campo permitiram compreender caso a caso com maior profundidade, identificando informações importantes sobre cada família das crianças entrevistadas e, sobretudo, em relação à incidência de violência doméstica ocorrida com cada qual, se dando assim as aproximações sucessivas ou abstrações ao fenômeno. Assim, as explicações fornecidas sobre a situação de cada família e sobre as várias ocorrências da violência doméstica que cada uma vivenciou provêm das anotações desse diário. Como “situação de cada família” é feita referência a informações sobre o modo de vida de cada família, como a renda, composição de seus membros, ocupação etc. É preciso que se destaque ainda que, no diário de campo, constam todas as informações sobre as intervenções que foram realizadas junto às famílias por conta da situação de violência doméstica porque passou a criança.
Essas informações vêm ampliar a compreensão sobre a família da criança e seria muito difícil conseguir tais dados apenas com a entrevista realizada com a criança. Constam, em anexo, os diários de campo, elaborados inicialmente em manuscritos e posteriormente digitados e agregados ao trabalho. Dessa forma, foi possível estabelecer vínculos estreitos com os sujeitos da pesquisa e, por isso, se tornou possível acompanhar sistematicamente a realidade sobre a qual a pesquisa iria ocorrer (ABRANTES; MARTINS, 2007).
A entrevista, por sua vez, foi adotada por se constituir uma técnica em que será privilegiada a voz das crianças, e mais, o sentido que a vivência da violência doméstica tem para elas. Nesse processo, em que há o privilégio dos sujeitos da pesquisa por meio de sua fala, pode-se compreender com maior profundidade o universo no qual as crianças estão imersas, sem, no entanto, descolar essa análise da realidade social e econômica a que estão vinculadas ou, conforme diz Minayo, com relação à entrevista que enfoque o ator social, sujeito da pesquisa,
[...] não se reduz a uma troca de perguntas e respostas previamente preparadas, mas é concebida como uma produção de linguagem, portanto dialógica. [...] é o sujeito que se expressa, mas sua voz carrega o tom de outras vozes, refletindo a realidade de seu grupo, gênero, etnia, classe, momento histórico e social. (2002, p.29).
Entende-se, portanto, que a fala não expressa o vazio, mas a realidade vivenciada pelos sujeitos pesquisados, trazendo implícitas as concepções formadas historicamente por estes, uma vez que o sujeito é concebido como um ser histórico, constituído com base na sua realidade histórica. Não que a compreensão de que o conhecimento produzido pelos sujeitos da pesquisa seja soberano, mas, antes, que está totalmente imbricado à realidade social de uma sociedade capitalista.
A entrevista com as crianças partiu, no entanto, de fatos concretos, com os quais elas já haviam vivenciado, seguindo a metodologia proposta por Vigotski(2000b), de que a pesquisa se realize sempre pautando em situações cotidianas da vida das crianças. Esses fatos eram conhecidos do autor deste trabalho, como já se explicitou neste texto, em virtude do acompanhamento realizado enquanto assistente social e que fora registrado em diário de campo. O fato era retomado junto à criança, sendo-lhe perguntado como ela o percebia. Isso se dava, geralmente, pela sentença: “O que você acha disso que aconteceu?” ou, ainda, “Isso está correto”? A entrevista desenvolvida foi a do tipo semi-estruturada, e, a partir dela, a criança começava a discorrer sobre o assunto. Todavia, a inserção da pergunta foi realizada dependendo do contexto vivenciado pela criança.
O local de realização de cada abordagem foi o espaço escolar. As entrevistas foram realizadas individualmente e ocorreram em sala particular, localizada no interior da unidade escolar, a qual a criança freqüentava. Apesar de haver necessidade da presença dos pais ou responsáveis, para encaminharem a criança até a escola, os mesmos não participaram das entrevistas, o que já fora previamente acordado. Foi, entretanto, realizada em contraturno ao horário de aula freqüentado pela criança. Com cada sujeito da pesquisa foram realizadas três entrevistas, visando a discutir fatos de violência doméstica separadamente.
Todas as entrevistas foram gravadas, transcritas e estão disponíveis em anexo neste trabalho. Os procedimentos necessários, como a solicitação de autorização dos pais, foram tomados segundo recomendação do Comitê de Ética em pesquisa, ao qual a mesma está subordinada.
Após a realização das entrevistas e da transcrição das mesmas, foram percebidos pontos em comuns nas falas das crianças entrevistadas. Esses pontos tornaram possível a compreensão do sentido que a violência doméstica tem para a criança entrevistada, conforme será possível observar a seguir.
Após essas colocações sobre o método de análise e os instrumentais utilizados para a realização da pesquisa, serão expostas as informações que foram identificadas.
2.3 O Município em Questão
O município de Quatá está localizado na Região Oeste do Estado de São Paulo, próximo às cidades de Presidente Prudente e Assis. A população local foi estimada, no ano de 2007, pelo IBGE, em 11.875 habitantes, sendo que, destes, 5.801 são do gênero masculino e 6.074 do gênero feminino. Essa população reside predominantemente na zona urbana, onde se encontram residindo 10.535 habitantes, ao passo que outros 1.340 se encontram na zona rural.9
A grande parcela da população do município de Quatá pertence à faixa etária que engloba o segmento criança e adolescente, ou seja, 4.466 habitantes no ano de 2007 pertenciam à faixa etária de 0 a 19 anos, o que equivale a 37,63% da população.
Em relação à renda da população economicamente ativa, o recenseamento do IBGE aponta que 1.428 habitantes sobrevivem com renda inferior a um salário mínimo, 1.422 relataram possuir renda entre um e dois salários mínimos, 915 declararam possuir renda de dois a três salários mínimos, 913 possuem renda entre três e cinco salários mínimos, 613 entre 5 e 10 salários mínimos, 265 entre 10 e 20 salários mínimos e apenas 96 mais de 20 salários.
No entanto, o dado que chama atenção, levantado pelo recenseamento, aponta o fato de que 3.972 pessoas se declararam sem rendimento mensal fixo, o que representa 33, 44 % da população geral do município. Isso leva à conclusão de que grande parcela da população sobrevive sem acesso a todos os bens e serviços sociais necessários, em decorrência da inexistência de recursos, aliás, situação corroborada pelo índice de desenvolvimento humano (IDH), que está em 0,792. Isso significa dizer que as condições econômicas e sociais do município não permitem um elevado padrão de vida de seus moradores.
A economia local baseia-se essencialmente em atividades ligadas à agricultura e à pecuária,o que pode “justificar” a baixa renda dos moradores. A agricultura tem o papel de destaque, concretizando-se como a principal atividade econômica do município, enquanto a pecuária apresenta um papel menos significativo na economia local. Isso não significa dizer que há no município muitos produtores rurais, mas sim que há muitos trabalhadores que vendem sua força de trabalho a grandes proprietários de terra; vale lembrar que se encontram aqui englobados como trabalhadores braçais, lavradores, horticultores, retireiros etc. O comércio, por sua vez, cumpre um papel menos significativo em relação às demais possibilidades de ocupação da população economicamente ativa. Na verdade, o comércio quataense se caracteriza apenas como uma atividade acessória às principais atividades econômicas do município. A principal cultura do município é, sem dúvida, a de cana-de-açúcar.
Essa realidade é reforçada devido à existência de uma Usina de Açúcar e Álcool no município, que emprega a grande maioria da mão de obra economicamente ativa. Dados colhidos no ano de 2007, pelo Departamento Municipal de Saúde, indicavam que 80% da população economicamente ativa do município estavam lotados junto a essa usina. Em torno dela, vive grande parte dos habitantes do município e principalmente para eles é que está organizado o comércio local, não sendo exagero supor que, se a referida usina não existisse, a maioria dessa população não estaria sequer vivendo no município. É necessário ainda ressaltar que, atualmente, há outras usinas próximas, em cidades como Paraguaçu Paulista e Borá, que também têm absorvido a mão-de-obra economicamente ativa do município.
Na verdade, sempre que se pensar em renda ou até no número de habitantes, a existência da usina de cana-de-açúcar assume papel de destaque. Em períodos de safra, ou seja, quando a usina começa o plantio da cana e a produção de açúcar e álcool, a população do município tende a crescer, em decorrência do número de trabalhadores que passa a viver na localidade, atraído por ofertas de emprego. Tal circunstância, por sua vez, acaba definindo também o modo de agir e de pensar dos indivíduos envolvidos nessa realidade. O processo inverso também se aplica, à medida que a safra é encerrada e esse grande número de trabalhadores migra para outros municípios em busca de trabalho, ainda que alguns permaneçam ali, sobrevivendo do subemprego ou de auxílios esporádicos.
Os serviços sociais oferecidos através das políticas sociais tendem a ser, muitas vezes, a única alternativa para a grande parcela da população que sobrevive sem renda, que, conforme os dados do IBGE já aqui descritos, representam 33,44 % da população ou até para aqueles que sobrevivem com baixa renda mensal.Entretanto, deve-se fazer uma ressalva de que, no caso da escola pública, essa situação se altera significativamente. Isso porque, no município, há apenas duas escolas particulares, fazendo com que mesmo aqueles que podem pagar uma escola para seus filhos ou dependentes acabem por recorrer também à escola pública, devido à escassez de vagas na rede particular.
Assim, quando o olhar for voltado para as entrevistas realizadas, deve-se considerar, sobretudo que é nessa realidade que as famílias e as crianças entrevistadas estão incluídas.
2.4 Apresentação das Famílias e a Ocorrência da Violência Doméstica
Tendo essas colocações arroladas, a seguir, serão expostas as informações obtidas com a realização das entrevistas, assim como do diário de campo, donde se constata a ocorrência da violência doméstica sofrida pelas crianças participantes da pesquisa.
A História de Abelardo
Para que seja possível compreender a história de Abelardo, é preciso, antes de mais nada, conhecer a sua família.
A família de Abelardo é composta por seu pai biológico, Ulisses, de 30 anos de idade, pela sua avó Ivana, 55 anos, e por seu tio Adolfo, com 28 anos de idade. Abelardo foi acompanhado pelo Assistente Social, também o autor deste trabalho, durante os anos de 2005, 2006, um período de 2007 e alguns meses de 2008, conforme pode ser observado em diário de campo, em anexo. Na ocasião da realização da entrevista, Abelardo estava com 10 anos de idade, mas foi acompanhado desde os sete anos, devido à inclusão da criança em escola municipal de Ensino Fundamental.
Inicialmente, o acompanhamento assistencial ocorreu porque a criança externava um comportamento extremamente agressivo, na escola. Abelardo batia nos colegas, agredia-os verbalmente e, por conta disso, passou a ser temido e rejeitado na escola. Abelardo ainda tinha hábitos atípicos que colaboravam no sentido de sua exclusão em relação aos outros alunos. Era, portanto, comum que, durante o período de aula, ele subisse na carteira e começasse a cantar músicas de funk e dançar, sempre fazendo gestos obscenos. Aliás, esse comportamento somente foi suprimido quando Abelardo passou a apresentar freqüência nos atendimentos psicológicos. A criança não conseguia se concentrar nas atividades propostas na sala de aula, de modo que, até meados do 4º ano do Ensino Fundamental, ainda não sabia ler e escrevia com grande dificuldade, na verdade copiando apenas algumas palavras. Abelardo, quando criança, foi abandonado por sua mãe biológica. Foi criado por sua avó, a Sra. Ivana, e seu pai biológico, Ulisses. Reside na casa um tio, Adolfo, mas ele não interfere na dinâmica familiar.
A Sra Ivana é pensionista, condição deixada por seu esposo já falecido, que era funcionário municipal. A pensão equivale a dois salários mínimos. Além da renda da pensão recebida por Ivana, colaboram a renda de Adolfo, que é cortador de cana, e de Ulisses, que é pedreiro, na atenção das necessidades da família. Assim, a renda familiar equivale a R$1.500,00, em média. Cabe a ressalva de que é um valor elevado, considerando a baixa renda de grande parte da população no município. A família reside em casa própria, sendo esta dotada de quatro cômodos amplos. Possui mobília suficiente e nova, além de eletrodomésticos, como aparelho de som, televisão, DVD e videogame, de modo que a família não é beneficiada por nenhum programa ou projeto social de transferência de renda, em decorrência da renda familiar.
Abelardo, conforme já se frisou, fora abandonado por sua mãe biológica e educado pela avó e pelo pai biológico. Por isso, a história de violência doméstica na vida da criança já começa pelo abandono de sua mãe e por sua negligência em não procurá-la mais. A mãe de Abelardo lhe escreveu uma única carta, na vida, quando a criança estava com oito anos, nunca mais tendo manifestado interesse em relação ao filho. Além dessa violência, Abelardo sofreu outras mais, de natureza física, de negligência e sobretudo a psicológica.
Partindo do acompanhamento realizado nos anos em questão, foi possível constatar que Abelardo sempre apanhava de sua avó ou de seu pai, quando cometia algum ato reprovado socialmente, seja na escola, seja no ambiente doméstico. Assim, quando roubou sua avó, apanhou do seu pai e ainda ficou trancado em um quarto escuro, sem falar com ninguém e sem comer. Depois, quando apanhou na escola, apanhou também em casa, novamente de seu pai. E, por fim, quando não foi à aula de reforço para andar de bicicleta, apanhou de novo, dessa vez de sua avó. A criança me contou ainda, em entrevista, que chegou a apanhar do seu pai, certo dia, porque dissera a ele que estava com dor na perna. Como o pai supôs que foi mentira da criança, agrediu Abelardo fisicamente.
As agressões eram carregadas de muita violência. A criança sempre apanhava com a cinta ou com varas de amora. O pai de Abelardo sempre usava a cinta e sua avó preferia as varas, que arrancava nos quintais de vizinhos. Ulisses sempre que agredia Abelardo usava o termo “filho do cão”; já Ivana obrigava a criança a não chorar, durante as agressões, exercendo assim a violência psicológica por meio das palavras.
Além da violência física e psicológica, a criança era negligenciada em suas necessidades fisiológicas, sendo que ficava sem comer, alimentando-se de danones e produtos desse gênero, quando retornava da escola. A sua avó raramente deixava alimentos preparados para a criança almoçar. A negligência realizava-se igualmente no sentido de não se interessar pelo paradeiro da criança, sendo que, em determinadas ocasiões, Abelardo ficava perambulando pelas ruas do bairro onde mora, durante as tardes e mesmo durante as noites, exposto a toda uma sorte de perigos.
Dos responsáveis, foi possível perceber que defendiam essa prática de educação e que nunca negaram qualquer relato da criança, em relação à violência vivenciada. Antes, contavam a história da mesma maneira que a criança e com detalhes. A Sra Ivana, entretanto, sempre buscava respaldo para as suas ações na Bíblia Sagrada, visto que se diz praticante da Igreja Congregação Cristã do Brasil. Eram comuns suas afirmações nesse sentido, dizendo que isso estava na Bíblia e reportando-se a passagens como a do Livro dos Provérbios, no Antigo Testamento, especificamente no capítulo 29, versículo 15, onde se lê: “Vara e correção dão a sabedoria, menino abandonado à sua vontade se torna a vergonha de sua mãe”. Essa era uma frase característica e que representa a crença em uma maneira de educação totalmente pautada na utilização da violência doméstica.
A História de Rogério
Rogério é uma criança que, na ocasião da entrevista, estava com 12 anos de idade, mas o seu acompanhamento assistencial havia iniciado quando ele tinha 10 anos de idade e cursava a 3ª. série do Ensino Fundamental, durante o segundo semestre do ano de 2006, perdurando aproximadamente até o mês de fevereiro de 2007. Foi retomado, entretanto, em meados de 2008, no mês de março.
O caso de Rogério foi encaminhado ao Serviço Social porque ela começou a aparecer na escola com doces, gêneros alimentícios em grande quantidade, oferecendo aos colegas. Prática incomum que despertou o interesse da coordenação, até porque Rogério sempre demonstrou pertencer a uma família simples, com poucas posses, o que inviabilizaria a aquisição desses gêneros. Além disso, Rogério ainda cursava a 3ª. série do Ensino Fundamental, mas ainda não conseguia ler e nem escrever. Até para copiar tarefas apresentava muita dificuldade. Foi, assim, incluído nas atividades de reforço escolar,oferecidas em horário de contra turno, visando minimizar a dificuldade de aprendizagem apresentada. Entretanto, apesar dessa intervenção pedagógica, os avanços não foram além da escrita do nome completo. Sua dificuldade de aprendizagem, porém, nunca constituiu motivo relevante para o encaminhamento do seu caso ao Serviço Social ou mesmo à Psicologia.
Diante das intervenções realizadas, foi possível descobrir que a criança vinha roubando os mercados do município e o que roubava distribuía para os colegas da escola. Além disso, percebeu-se nele uma criança extremamente fragilizada, pela situação de violência doméstica vivenciada.
Rogério reside, desde recém-nascido, na companhia de sua avó paterna, a Sra. Olívia. Sua mãe biológica o abandonou aos cuidados da avó e desapareceu, quando ele tinha poucos dias de vida. O seu pai, o Sr. Luís, conviveu pouco com ele e logo foi para a cidade de São Paulo, onde trabalha atualmente como metalúrgico. Residem na casa, além de sua avó, com 52 anos, seu tio Francisco, com 22 anos, e o marido de sua avó, Sr. Manoel, com 54 anos.
A Sra. Olívia é aposentada. Apesar da idade, conseguiu aposentadoria tempos antes, porque trabalhou desde criança e conseguiu comprovação desse tempo de serviço. Seu esposo, o Sr. Manoel, também recebe uma pensão, isso porque foi considerado pessoa doente, tendo sido enquadrado no benefício de prestação continuada. Ele é alcoólatra, mas não faz qualquer tratamento para desintoxicação. O tio de Rogério, o Sr. Francisco, também é contemplado pelo benefício de prestação continuada, este, por sua vez, por possuir problemas mentais graves. Aliás, de tempos em tempos, tanto o Sr. Manoel quanto o Sr. Francisco permanecem internados, ou em hospitais psiquiátricos ou em instituições congêneres.
A renda mensal da família equivalia a três salários mínimos, totalizando uma média de R$1.140,00 (hum mil, cento e quarenta reais) por mês. O pai de Rogério, Sr. Luís, colabora mensalmente na renda familiar, enviando cerca de R$ 200,00 (duzentos reais). A família reside em casa própria que, aliás, fora construída pela Prefeitura Municipal, mas residiu muitos anos em casa alugada. O pai de Rogério adquiriu um terreno na cidade e a Prefeitura Municipal forneceu todos os materiais para a construção da residência em questão, restando à família apenas a disponibilização da mão de obra. Além desse auxílio, a família sempre recorria ao Departamento de Promoção Social, solicitando a cessão de cestas básicas, além de outras demandas, como vale-transporte etc. O Departamento Municipal de Saúde, por seu turno, sempre forneceu os medicamento do Sr. Francisco, bem como tomou as medidas necessárias para a sua internação e do Sr. Manoel.
A Sra. Olívia, durante o acompanhamento assistencial desenvolvido pela rede municipal de ensino, até o mês de fevereiro de 2007,sempre declarou possuir condições financeiras para atender todas as necessidades apresentadas pelo neto e pelos demais membros da família. Ela, inclusive, conseguiu fazer para o neto uma conta poupança que, no ano de 2006, segundo demonstrou com extrato bancário, possuía um valor estimado em R$22.000,00 (vinte e dois mil reais), em média. Entretanto, no ano de 2008, no mês de março, o acompanhamento do caso foi retomado, dessa vez por parte do Departamento de Promoção Social, devido ao fato de Rogério ter sido desligado da rede municipal de ensino e ter sido encaminhado à rede estadual, onde iria cursar a 5ª. série do Ensino Fundamental . Na ocasião, Rogério, se negava comparecer às aulas na escola estadual, reforçando mais sua dificuldade de aprendizagem, e, por isso, o Conselho Tutelar, acionado na época, requisitou o acompanhamento assistencial. Entretanto, nessa intervenção, o perfil da família se alterou significativamente. No Departamento de Promoção Social, a Sra. Olívia figurava como uma de suas principais beneficiárias, até uma casa recebeu da administração municipal. Ela omitiu grande parte de sua renda, visto que não declarou aos técnicos do Departamento que era aposentada e que recebia um auxílio de seu filho. Outro fato ignorado pelos profissionais era a existência da conta poupança.
Enfim, em relação à situação de violência doméstica, essa era uma constante na vida de Rogério. Como o caso de Abelardo, narrado acima, Rogério também fora abandonado pela mãe biológica desde a infância. O pai, Sr. Luis, com o qual conviveu apenas pouco tempo, apresentava uma relação distante com o filho. O fato de residir em São Paulo, fundamentado numa relação de pouco contato, fazia com que essa distância fosse ainda mais acentuada. Raramente o pai ligava para Rogério e só vinha visitá-lo em datas como o Natal ou o Ano Novo. De forma que a criação e a educação dessa criança sempre estiveram a cargo da avó paterna.
Nesse ponto, começou a segunda vitimização da criança, além do abandono dos pais biológicos, exercida pela avó. Rogério sempre se mostrou avesso à escola e sempre preferiu permanecer nas ruas da cidade. Quando cometia esses atos, faltando à aula ou então perambulando pelas ruas mesmo depois da volta da escola, chegava a retornar para a sua casa somente na madrugada. Quando retornava, via de regra, era agredido pela avó. As agressões físicas foram tão severas que ele chegou a ser recolhido, durante três meses, em um abrigo, uma instituição local. O que resultou no abrigamento de Rogério deveu-se a uma situação em que, após uma dessas saídas pela cidade, quando retornou, a avó o agrediu com uma vara de árvore. Depois de ter batido na criança, passou-lhe uma água de sal e a vestiu com uma blusa de moleton. Naquela ocasião, dias de muito calor, Rogério foi com a mesma blusa para a escola. Ao ser questionado sobre o fato de estar usando a blusa de moleton, mostrou as marcas e, por causa disso, o Conselho Tutelar foi acionado, resultando no seu abrigamento. Em outras oportunidades em que Rogério cometia tais atos, sua avó o obrigava a fazer faxina na casa toda. O menino permanecia, assim, a noite toda trabalhando, limpando a casa, sozinho, apesar de ter apenas entre 10 e 12 anos.
A primeira entrevista realizada com Rogério referiu-se a esse fato ocorrido. Mas, além dessa situação, Rogério era constantemente agredido verbalmente por sua avó, efetivando-se a chamada violência psicológica, a que foi sempre submetido. Inicialmente, para a Sra Olívia, Rogério devia possuir “algum problema na cabeça” e, por isso, muitas vezes, o chamava, até na frente dos técnicos, por nomes como “burro”, e muitas vezes de “retardado”. Em uma das últimas entrevistas, a Sra. Olívia chegou a declarar que ia “devolver” Rogério ao pai, no fim de ano, pois, como sempre verbalizava, não tinha condições de cuidar do neto, como se ele fosse um objeto qualquer.
Rogério ainda vivenciou uma situação atípica resultante da negligência da Sra. Olívia. Constava que a avó não gostava de buscá-lo na escola; ela mesma declarou isso, em entrevista, conforme consta em diário de campo. Por conta disso, um senhor da cidade, com cerca de 70 anos, passou a fazê-lo. Esse senhor levava o menino para sua casa, servia-lhe almoço e o auxiliava com as tarefas escolares. Depois, o levava até a casa de sua avó. Entretanto, o referido senhor, teria tentado manter relações sexuais com Rogério, mas o menino teria conseguido fugir a tempo. Aliás, até o presente momento, o caso em questão está em julgamento.
Após a exposição de parte dos dados obtidos com a realização da pesquisa, posteriormente, será realizada uma discussão acerca da violência e da violência doméstica. Na discussão que segue, serão incorporados parte dos resultados das entrevistas, a saber, o sentido da violência doméstica para as crianças vítimas.
3. VIOLÊNCIA E A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA: CONCEITUAÇÃO POSSÍVEL
Recorrendo a tradição marxiana, serão destacadas aqui as contribuições de Engels (1888), para que sejam iniciadas as discussões sobre o assunto tratado, passando em seguida aos elementos apontados por outros autores que, derivando desta concepção de mundo, também contribuíram no sentido da produção sobre o tema em pauta, dentre os quais o psicólogo salvadorenho Martin-Baró10.
Para Engels (1888), a violência não está restrita apenas a atos agressivos, se bem que o autor ressalte, nessa obra, a ocorrência de guerras entre paises, sobretudo com a finalidade de absorção de terras e dominação dos povos, onde sabe-se que há predominância de atos desta natureza. Esta análise realizada focalizou o papel da violência junto ao desenvolvimento histórico, norteando seu estudo tomando como referência as ocorrências na Alemanha, sobretudo as guerras civis.
Segundo a perspectiva de Engels (1888), a violência poderia ser apenas um “meio” utilizado quando necessário pela burguesia para alcançar seus objetivos, que seriam, nos termos do referido autor, o alcance de “finalidades econômicas”. Destaca, nesse sentido as guerras ocorridas durante a transição do sistema feudal para o sistema capitalista, nos quais a burguesia, usando a força do proletariado, insurge contra a nobreza, valendo-se, em alguns casos, da utilização da violência, compreendida também por Engels (1888) como a coerção, não restrita apenas a utilização de atos violentos. De tal modo, a violência é percebida por este autor, como um instrumento que pode ser utilizado sempre que se faça necessário, principalmente para que a “finalidade econômica” de um grupo específico seja alcançada.
No entanto, a violência teria, nos termos de Engels (1888), uma série de peculiaridades, as quais sublinham o fato de ser uma relação estabelecida e que, só se estabelece devido a existência de meios que a garantam, que a sustentem.
Engels (1888) apresenta assim uma das tipificações basais da violência, que seria o fato de se dar em uma relação que pressupõe dois pólos. Por conseguinte, há necessidade de um, que exerça a violência, e de outro, que a “receba”, ou melhor dizendo,
[...] a violência não é um simples acto de vontade, mas exige, para ser posta em acção, condições preliminares muito reais, nomeadamente instrumentos, em que o mais perfeito domina o menos perfeito; por outro lado, estes instrumentos devem ser produzidos, o que significa também, que o produtor de instrumentos mais perfeitos, falando de um modo geral de armas, vence o produtor dos menos perfeitos e que, numa palavra, a vitória da violência repousa sobre a produção de armas, e esta, por sua vez sobre a produção em geral, portanto... sobre o <<poder econômico>>, sobre o <<estado econômico>>, sobre os meios materiais que são postos à disposição da violência (ENGELS, 1888, p. 19).
Essa relação, em que a violência, é estabelecida entre dois pólos, pressupõe também que um deles tenha instrumentos, ou seja, tenha meios que lhe permitam exercê-la, aliás, “meios reais”, pré-estabelecidos e sob os quais a relação é mantida. Não é, no entanto, uma relação mantida através do consenso, mas sim através da coerção que se apresenta, muitas vezes, de maneira subliminar.O que o autor, em virtude da apreciação realizada, destaca é a produção de armas, enfatizando que, que nesse sentido, o produtor de armas se estabeleceria no mercado em decorrência da qualidade do serviço prestado. E, mais,é uma relação em que o “mais perfeito” domina o “menos perfeito”, sendo que esta compreensão não está relacionada a nenhum juízo de valor, entretanto à condição de que o “mais perfeito” detenha os meios necessários para exercer a violência.
Dessa forma, em Engels (1888), a violência está ligada a atos violentos ou coercitivos que podem ser praticados sempre que seja necessária a satisfação de uma necessidade econômica. Além disso, esse tipo de ocorrência se dá em uma relação de dominação, que, por sua vez, é sustentada devido ao fato de o pólo dominador deter meios ou instrumentos que a garantam. É, na verdade, uma compreensão de suma importância, já que a violência não pode ser concebida distante da realidade social. Porém, há ainda outros aspectos sobre o fenômeno que Engels (1988) não chegou a contemplar, em seu estudo, e que serão destacados a seguir.
Martin-Baró (2003), derivando da perspectiva marxiana, entende que a violência é um fenômeno de múltiplas formas de expressões, mas que possui algumas peculiaridades, as quais devem servir de orientação a qualquer estudo que se proponha desnudá-la.
A primeira delas seria que a violência, independentemente de se tratar de atos agressivos ou da coerção, sempre está relacionada à estrutura social, assim como Engels (1888).
Para o autor, a própria estrutura social seria o primeiro e grande exemplo específico e real da violência, mesmo que, em grande parte de sua manifestação, não faça uso da força física. A estrutura social, na sociedade capitalista, já é organizada de forma a sustentar a maior de todas as violências que seria a divisão de classes. Assim, para Martin-Baró (2003), a violência é, antes de mais nada, estrutural. Trata-se de uma estrutura que, para ele, deriva da maneira de a sociedade – no caso, a sociedade capitalista – organizar os meios de produção e de consumo. “Assim é possível falar de violência estrutural ou institucional, já que as estruturas sociais podem aplicar uma força que retire as pessoas de seu estado ou situação, o que lhes obrigue a atuar contra o seu sentir e parecer” (op. cit., 2003, tradução nossa11). Aliás, o psicólogo salvadorenho se contrapõe a qualquer forma de explicar a violência, partindo de análises que se respaldem em aspectos biológicos ou sistêmicos. A característica dessas análises, segundo o autor, seria a possibilidade de recolocar a violência como sendo um problema individual, decorrente de condições de desenvolvimento biológico do indivíduo ou mesmo como se resultasse do não funcionamento de um sistema social específico.
A violência estrutural se reproduz segundo Martin-Baró (2003) em outros momentos do fazer humano. Assim, a violência que ocorre no ambiente doméstico reproduz uma violência estrutural, já instalada. Quando a Sra. Ivana agride Abelardo por qualquer motivo que seja ou então quando a Sra. Olívia agride Rogério, elas reproduzem a violência estrutural, mesmo que isso aconteça inconscientemente.
Como tal, a violência estrutural se reveste de um caráter benéfico, ou seja, ela induz aos que são dominados para que não a percebam como “violência”, mas sim como um estado natural, esperado por aquela sociedade, tido como “normal”, “[...] já que é difícil provar que uma estrutura social pretende causar dano a alguém, em geral, a pretensão primária e objetiva das estruturas sociais é beneficiar alguém” (MARTIN-BARÓ, 2003, p.75, tradução nossa12). É o que Martin- Baró (2003) descreve como “valorização social” ou “justificação”, isto é, o valor que é dado a um ato e que o faz ser aceito, em uma determinada sociedade, sem que seja interpretado como violência, ou então algo que venha a “justificá-lo”. Esse seria o segundo “conceito fundamental”, no sentido de compreender a violência.
Abelardo e Rogério demonstram o quão as colocações de Martin-Baró são válidas e demonstram que a teoria de tal autor tem grande legitimidade em casos reais, da vida cotidiana e concreta dos seres humanos. Recuperando os aspectos elencados por Martin-Baró (2003) e fazendo uma relação com as falas das crianças foi possível perceber como a violência fora aceita como algo “natural” e carregado de um “caráter benéfico”. Assim, tanto Abelardo, quanto Rogério demonstram em suas falas não perceber como estão sendo submetidos a uma educação violenta. Antes, ambos demonstram “acreditar” que a violência vivenciada é algo natural, comum em todas as famílias e que a única finalidade de tal prática é a educação. A violência se reveste assim do “caráter benéfico”, que faz com que não seja compreendida como tal. É assim também que a violência consegue se sustentar, ela acaba legitimando-se como rotina da família.
Os relatos de Abelardo durante as entrevistas acerca de duas situações13 fizeram perceber como elas eram normais, corriqueiras, em seu cotidiano. A criança narrava os fatos como se contasse qualquer outro acontecimento que houvesse vivenciado, como o fato de andar de bicicleta, por exemplo. Esse fenômeno que aqui se convencionou chamar pela terminologia “naturalização” da violência corresponde a um resultado, por se dizer, da vivência desse tipo de prática pela criança e faz referência a uma percepção da mesma como algo natural do modo de organização familiar.
Isso posto, quando perguntado sobre o que aconteceu após a briga na escola, quando chegou a sua casa, Abelardo apenas respondeu: “Aí meu pai me bateu e foi só” – e isso ainda é reforçado na seqüência da entrevista em que Abelardo externou essa fala. Ao ser questionado sobre a possibilidade de seu pai ter apanhado na infância, a criança declara que sim, e que seu pai apanhou até das professoras. Quando questionado se isso de apanhar das professoras também já havia acontecido com ele, Abelardo responde: “Não, acha tia, eu só apanho em casa”, fazendo alusão, mais uma vez, a uma prática comum no ambiento doméstico e apenas nesse espaço.
Na segunda entrevista realizada com Abelardo, essa questão da “naturalização” da violência aparece com mais ênfase ainda. Inicialmente, ao ser indagado sobre sua volta para a casa, após ter faltado à aula para andar de bicicleta, Abelardo responde: “Aí, quando eu cheguei em casa, eu apanhei”, prática igualmente comum, quando a criança chega em casa após o horário acertado pelo pai. Quanto a isso, Abelardo diz que, sempre que chega após o horário estabelecido, apanha de seu pai. Afirma: “Aí ele me bate”. Ao ser questionando como foi que apanhou, a criança diz: “Bateu batendo, ué”, complementando, em um trecho seguinte: “Bate de mão mesmo”. Assim, como se estivesse dizendo “bateu como sempre bate, como faz normalmente”. Além disso, como se o fato de “bater com a mão” não representasse uma prática tão agressiva – e talvez para Abelardo não seja mesmo, diante de ter que ficar sem comer, de ser agredido com varas de árvore etc.
O mesmo se aplica ao ser questionado sobre situações anteriores em que ficava sem comer, por parte de sua avó, como uma forma de castigo; questionado se não se sentia mal, inclusive organicamente, Abelardo responde: “Eu não, já acostumei”, reforçando a idéia de que a criança já se “habituou” com esse tipo de prática e que até organicamente já não sente mais os seus impactos, como o caso de ficar sem alimentar-se. A violência manifesta assim uma face mais perversa, visto que chegou até a condicionar o físico da criança. Rogério também expressa em suas falas o quão as ocorrências da violência doméstica tornaram-se “naturais”. Durante a realização da entrevista14 foi possível perceber tal tendência.
Também como Abelardo, Rogério narra os fatos vividos com certa naturalidade. Ele conta que, quando retornou da rua, precisou fazer faxina na casa toda, enquanto todos os outros membros dormiam, inclusive sua avó. Porém, aspecto curioso, todas as vezes que desaparecia, na sua volta, antes de qualquer coisa, sua avó o mandava tomar banho. Depois disso, definia pela surra ou pela faxina. A faxina passou a ser utilizada pela avó após ter tido a guarda, destituída por certo período, em decorrência de ter agredido fisicamente o neto. É o próprio Rogério quem diz que, numa ocasião em que a faxina foi escolhida como punição, a avó primeiro o mandou tomar banho e só depois disso é que ele acabou de fazer a faxina. A faxina consistia em limpar todos os cômodos da casa, e, inclusive lavar a roupa suja, durante a noite. Na seqüência da entrevista, solicitadas mais informações sobre o fato ocorrido,o menino relata que permaneceu na faxina a noite toda ou, como ele disse, “até amanhecer”. A narração desse fato por parte da criança é que chama a atenção. Rogério contava essa histórica como se estivesse falando de algum desenho a que assistiu ou algum fato corriqueiro de sua vida cotidiana, o que parece ser, realmente.
Assim, Rogério, como constatado também com Abelardo, apresenta como conseqüência da violência doméstica vivenciada uma possível “aceitação”ou “tolerância”.
Isso também se aplica quando essa criança é questionada sobre as agressões físicas vivenciadas após o retorno para a casa. Simplesmente, Rogério diz: “Ah, tia! Você sabe, né? Bater, ela já bateu sim, né?”, indicando também uma aparente indiferença com a situação que vivenciou. Como se dissesse: claro que ela bateu, ela sempre bate. Reforçando essa colocação, quando, ao ser questionado sobre a forma da agressão, se a avó usava cinta par agredi-lo, Rogério diz: “Não, né? Só de vara mesmo”, como se isso não fosse considerado agressão, e demonstrando que o “apanhar de vara” figura como uma prática usual e corriqueira, para a qual a criança não demonstrou quase que nenhum estranhamento.
Além disso, Abelardo e Rogério demonstram perceber que as situações de violência doméstica a que são submetidos, são na verdade uma maneira de educação, para que futuramente se tornem “pessoas boas”, manifestando-se o “caráter benéfico” que faz com que violência não seja percebida em seu sentido “negativo” (MARTIN-BARÓ,2003).
Abelardo demonstra, pois, compreender que a violência a que foi submetido é apenas uma forma correta de educação, de sorte que, ao ser questionado sobre o entendimento possuído sobre a agressão vivenciada, ao ser indagado se tal prática era correta, diz que “é... porque eu apanho, quando eu apanho é certo, né”. E ainda completa: “Porque eu bagunço, eles têm que me bater...” Em outra entrevista, quando a pergunta foi refeita, Abelardo novamente declarou que o fato de sua avó tê-lo agredido estaria correto, salientando que isso se dava “porque eu bagunço... eu apronto... ué e ela tem que me corrigir”, o que reforça, em outro trecho, desta vez em relação à agressão perpetrada por parte de seu pai, quando a criança enfatiza: “Tá, né... é pra educar, porque é errado, né, chegar tarde e tal”.
Tendência também presente nas colocações de Rogério. Rogério compreende que os atos são utilizados pela avó, de obrigá-lo a fazer faxina e de agredi-lo fisicamente, como uma forma de educação. Ao ser questionado sobre como percebia os mesmos, ou perguntado “sobre o que achava disso”, inicialmente, Rogério titubeou. Apesar de declarar em trechos da entrevista que não gosta de apanhar, que é ruim, o entrevistado referiu-se do seguinte modo: “É eu acho certo, tia, porque ela só está me educando”, e ainda complementa: “é para eu não fazer de novo, sabe?”.
Martin-Baró (2003) aponta ainda que a compreensão da violência deve se orientar por alguns “pressupostos” e por certos “elementos constitutivos”. Enquanto “pressupostos” sobre a violência, ele salienta o fato de ser um fenômeno que possui múltiplas formas de expressão, que é dinâmico e que decorre do desenvolvimento histórico da humanidade. Já os “elementos constitutivos” são compreendidos como a estrutura dos atos, o caráter pessoal que lhes é conferido, o contexto onde se realizam e o fundo ideológico.
A violência é um fenômeno de múltiplas expressões, porque apesar de decorrer da violência estrutural, se manifesta em diversos espaços, momentos, instâncias. A violência nesses espaços “recupera” a violência estrutural e a reproduz em outros momentos da vida cotidiana do ser humano. Desse modo, é um fenômeno “dinâmico”, que acontece durante a atividade humana.
A violência é, ainda, o resultado das condições históricas e sociais por que passou o gênero humano e, por conseguinte, está atrelada à forma de organização da vida social. É isto que vem no sentido de definir o que é compreendido pelo homem enquanto violência e o que é interpretado como natural. E é isso também que faz com que os atos de violência sejam mantidos ou reprimidos, já que todos os homens querem ser aceitos, querem se enquadrar nas normas da sociedade e, por conta disso, refutam atos que sejam reprováveis pelo grupo ao qual pertencem, o que depende essencialmente do nível de desenvolvimento da sociedade. Esses seriam, em resumo, os principais pressupostos apontados pelo autor, em relação à violência.
As frases de Abelardo e Rogério trazem implícito o caráter histórico de desenvolvimento do conceito de família, corroborando com a colocação de Martin- Baró (2003) referente ao caráter histórico dos fenômenos sociais, sobretudo a violência. Nesse sentido, a violência doméstica com intuito de obter a submissão e a obediência das crianças só passou a figurar no interior das famílias a partir do desenvolvimento da família nuclear, que, por sua vez foi uma necessidade do sistema capitalista e da decorrente necessidade de instituição da propriedade privada. É sabido e, conforme foi descrito detalhadamente no primeiro capítulo, devido à influência de uma série de condicionalidades, sobretudo a primazia da Igreja Católica ditando as normas de educação e conduta em família durante a colonização brasileira, que a utilização de castigos e da agressão física foi largamente utilizada como correção por atos tidos como incorretos, que crianças e adolescentes desempenhavam, por parte de seus responsáveis. Dessa maneira, defendia-se que a criança deveria ser corrigida, para que não mais retornasse a cometer tais atitudes. Assim, a violência era compreendia não como agressão, mas como correção, atuando como uma forma de educação.
Portanto, essa constituição da família nuclear também colaborou não apenas no sentido de instituição da violência doméstica, mas na definição dos papéis sociais a serem ocupados por cada membro, dentro da organização familiar, sendo que aos pais ou responsáveis diretos competem, quase que sempre, o cuidado e a educação em relação àqueles que, por qualquer situação, dependam de sua atenção, sobretudo as crianças.
Paralelamente a isso, emerge a crença de que tudo quanto os pais ou responsáveis façam, principalmente em relação às crianças, esteja correto. É assim que determinados comportamentos são esperados de um pai, de uma mãe ou, como no caso de Abelardo e Rogério, de uma avó. É desse jeito que, por ser pai, mãe ou avó, certos atos são compreendidos como naturais, inerentes a essa figura. Por isso, tanto para Abelardo quanto para Rogério, é “normal” que sua avó o agrida, afinal ela é responsável por sua criação desde que fora abandonado por sua mãe, algo como um direito adquirido. Para Abelardo, o estranho seria, segundo a criança, se ele apanhasse fora de casa, como na suposição em relação à possibilidade de apanhar da professora, na escola. “Assim, a justificação desde o poder de um ato violento o legitima e o faz racional no interior do sistema estabelecido” (MARTIN-BARÓ, 2003, p. 88, tradução nossa15). O ato violento passa a ser justificado, tido como natural naquele sistema social chamado família.
É essa maneira ideal de se pensar a família que não só faz com que a violência doméstica seja concebida como intrínseca à forma de se educar uma criança, no ambiente doméstico, mas também busca justificar sua ocorrência. Algo como se o pai e a avó de Abelardo, e também a avó de Rogério possuíssem o direito de usar da força física, da negligência e mesmo da violência psicológica, exclusivamente em decorrência do papel social a eles atribuído, como se isso fosse esperado das pessoas que assumem essa função, algo como um “direito adquirido”.
Abelardo e Rogério trazem em sua vivência e também em suas falas os resíduos dessa forma de “educação” das crianças e que fora pensada muitos séculos antes. E mesmo quando a criança contempla o futuro, ela está presente. Em certo momento, Abelardo, durante a realização da primeira entrevista, aponta para o futuro e afirma: “...quando eu tiver um filho, se ele bagunçar, eu vou bater só com a mão”, revelando que também se valerá da força física para educar, mas de uma maneira menos agressiva, isto expresso pelo detalhe “só com a mão”. Mas, de qualquer maneira, faz uma alusão a uma possibilidade para a sua vida futura em que a violência também poderá estar presente.
É importante observar que a única forma de educação concebida por Abelardo, além da agressão física, é o que ele denomina “castigo”, prática, aliás, à qual sempre fora submetido, e que acarreta violência psicológica, apesar de a criança não demonstrar percebê-la dessa maneira, e isso não foi identificado em Rogério. Abelardo, ao ser indagado sobre como se deve educar uma criança, destaca que se deve fazê-lo “conversando; e, assim, tudo que os filhos querer, você tira; se eles querer assistir televisão, querer brincar, tira”. A conversa a que se refere seria a de “tirar” da criança tudo aquilo de que gosta, quando esta vier a cometer um ato considerado incorreto, indicando que a própria concepção de conversa de Abelardo, em relação a uma crise familiar, já incorpora a noção de punição, no caso, pelo castigo. Na segunda entrevista realizada, Abelardo enfatizou mais uma vez a relevância do castigo na educação. Dessa vez, o garoto age diferentemente sobre a educação de seu filho: “ah, eu vou só deixar de castigo, só” – como se o castigo não fosse considerado uma violência por ele.
Sabe-se que o castigo, enquanto violência, também tem seu caráter histórico-social. Trata-se de uma prática utilizada em larga escala pela família burguesa brasileira e pelos primeiros colégios brasileiros, de forte inspiração na doutrina jesuíta, como já fora apontado no primeiro capítulo e também neste, acima.
Retomando, acima foi destacado que Martin-Baró aponta também que a violência possui determinados “elementos constitutivos”. Quanto aos “elementos constitutivos”, vejamos algumas reflexões do estudioso. Para Martin-Baró (2003), a estrutura do ato, aquilo que o compõe, também é dotada de amplitude, de sorte que muitos atos podem ser tidos como violentos – e, nesse ponto, o autor não restringe violência apenas ao emprego da força física. Abelardo e Rogério bem ilustram essa colocação. Abelardo fora chamado por sua avó em determinada situação de “filho do cão”, e isso o influenciou muito, já que a criança demonstrou muito ofendido. Já Rogério fora descrito por sua avó como possuidor de algum “problema de cabeça” e aliás a avó sempre dizia que não queria o neto. Apesar de não usar da força física, essas palavras estão carregadas de agressividade.
Martin-Baró (2003) ainda assevera que o que caracteriza tal ato enquanto “elemento constitutivo” da violência é o fato de ele possuir alguma finalidade a ser alcançada, a qual sempre estará relacionada ao prejuízo de um lado, o lado agredido. No caso das crianças, a finalidade aparente é a submissão, a obediência e sobretudo, não contrariar as regras estabelecidas como a do horário de retorno para a casa ou então evitar as faltas à escola.Mas, assevera ainda que nem sempre esses atos são conscientes: são aliás tão naturais, corriqueiros, que muitas vezes acontecem quase com um caráter instintivo. Para as avós realmente parece que isso é verdadeiro. É quase que uma reação automática a uma ação da criança. Nesse sentido, sublinha ainda o autor, a importância do contexto, no sentido de propiciar ou mesmo de estimular a ocorrência dos atos, no caso das crianças, o contexto doméstico.
Martin-Baró (2003) faz questão de pontuar também que os atos de violência, apesar de determinados e relacionados à estrutura social, possuem imbricados o fazer pessoal de cada indivíduo, tanto de quem comete a violência quanto de quem a recebe.
Veja-se o caso das crianças em questão. Abelardo durante a realização da entrevista,narra um ato que, em que o caráter pessoal da agressão é revelado. O menino conta, com certa naturalidade e calma, como o seu pai se prepara para agredi-lo fisicamente: “Começa assim...ele põe os anel dele tudinho no dedo e ai me bate”; ao ser questionado do porquê do pai cometer tal prática, responde: “ué, pra doer mais”. Para a criança parece ter ficado nítido quais os passos adotados pelo pai, assim específicos das agressões paternas, para que a violência se concretize e ainda, qual a finalidade de tais atos, portanto o “caráter pessoal” dos mesmos. Rogério, também apresenta tais colocações. Afinal, traz em sua memória a lembrança das agressões às quais a avó o submeteu. Assim, o fato de ser obrigado a fazer faxina, ou as agressões após o retorno da rua com varas de árvore, são as singularidades da agressão perpetrada pela avó. Destarte, Rogério, como foi possível perceber após a realização da entrevista, devido a ser agredido pela sua avó, demonstra se lembrar de detalhes da agressão vivenciada, apesar de na ocasião da entrevista já ter passado algum tempo da ocorrência, sendo possível perceber a presença do caráter pessoal.
Isso faz com a criança “compreenda” que todas as vezes que cometer determinados atos, será punida de uma maneira específica. E também, a vítima de violência irá conferir um sentido ao ato vivenciado, sentido que é atribuído também pelo agressor, fazendo com que o pólo agredido a aceite como educação, como algo natural, inerente à sociedade.
Assim, para Martin-Baró (2003), é a ideologia que confere ao ato violento essa camuflagem como algo corrente e colabore para com sua aceitação. Por meio dos atos violentos, que muitas vezes não chegam sequer a serem percebidos pelas vítimas enquanto tais, como é o caso de Abelardo e Rogério, são transmitidos valores, nos quais, dentre outros aspectos, se torna bem claro quem é dominado e deve obedecer e quem tem a condição de dominar. Abelardo e Rogério já compreenderam que, como pólo mais fraco de uma relação, apenas devem se submeter ao acontecimento natural dos fatos. Trata-se, pois, de uma relação permeada pela situação de poder.
Dessa maneira, tomando como alicerce as idéias de Engels (1888) e de Martin-Baró (2003), é possível inferir que a violência não está limitada apenas a atos agressivos, pautados na utilização da força física, mas também mostra seu vigor através de atos coativos, como a violência psicológica e a negligência a que foram submetidos Abelardo e Rogério. Além disso, o fenômeno está totalmente associado à realidade social e sempre é desempenhado tendo em vista o alcance de um objetivo, uma finalidade específica, inclusive a finalidade econômica, ou “apenas” a submissão como no caso das crianças. Nesse sentido, muitas vezes se sublima como algo natural, com caráter benéfico, escondendo a relação de dominação de um pólo sobre o outro, mantida através de instrumentos ou meios de dominação, que são em grande parte subliminares. Esse fenômeno é, assim, algo que foi sendo construído durante a história social do homem e que, por conseguinte, está relacionado com a forma de apropriação e objetivação da cultura pelo gênero humano.
Neste estudo, entretanto, a atenção estará voltada para a violência em sua expressão no ambiente doméstico. Isso traz outros contornos a esse fenômeno, uma vez que se expressa no espaço doméstico, familiar.
De sorte a aprofundar o conhecimento sobre o tema da violência doméstica, realizou-se uma pesquisa teórica, tendo por objeto diversos autores que tratavam desse assunto. Optou-se por adotar as definições de Viviane Nogueira Guerra e Maria Amélia Azevedo, ambas atuantes junto ao Laboratório de Assuntos da Criança (LACRI)16, em decorrência de a posição dessas autoras estar mais próxima das concepções que fundamentam este estudo.
O principal motivador em adotar essa concepção se deu devido ao fato de que as autoras propõem um rompimento com concepções da violência doméstica pautadas apenas em explicações focadas no fenômeno. Antes, ampliam consideravelmente essa concepção, atrelando a violência doméstica à realidade sócio-econômica. Além disso, percorrem um caminho importante, no sentido de conceituar a violência doméstica e suas diferentes formas de ocorrência, ainda pontuando informações de grande relevância sobre a natureza, a direção e as conseqüências possíveis desse tipo de prática, as quais serão igualmente destacadas neste estudo. Isso posto, as colocações de Guerra (2005) também estão sendo utilizadas porque se aplicam a pesquisa em questão. Por isso, juntamente com as explicações sobre a violência doméstica, serão também nesse trecho do trabalho incorporadas as informações obtidas com a realização da pesquisa.
Destarte, para Guerra (2005), a violência doméstica possui algumas características peculiares, especificamente devido ao espaço onde acontece, mas está totalmente relacionada e imbricada com a realidade social. É um produto dessa realidade e de como a sociedade se organizou economicamente, sobretudo no resultado dessa forma de organização sobre a vida em família.
Entretanto, devido ao fato de acontecer no ambiente doméstico, o fenômeno ganha outros contornos, os quais acabam por lhe conferir peculiaridades específicas, segundo será observado na seqüência. O sigilo em relação as agressões e a crença de que como acontece no ambiente doméstico pertence a esfera privada das famílias são resultados da violência doméstica e que foram apontados pela autora. Abelardo e Rogério demonstraram como já apontado acima essa percepção de que a violência a que foram submetidos era correta simplesmente por acontecer no ambiente doméstico e por ter sido cometido por pessoas com as quais possuíam uma relação de dependência direta. Já o fato de o fenômeno merecer um tratamento apenas dentro das famílias fora expresso pelas avós das crianças agredidas.
Além disso, Guerra (2005) colabora no sentido de “definir” o que pode ser compreendido como violência doméstica. Assim, inicialmente, basta apontar o que é compreendido como violência doméstica contra crianças e adolescentes. Trata-se, assim, de
[...] todo ato ou omissão praticado por pais, parentes ou responsáveis contra crianças e/ou adolescentes que – sendo capaz de causar dano físico, sexual e/ou psicológico à vítima – implica, de um lado, uma transgressão do poder/dever de proteção do adulto e, de outro, uma coisificação da infância, isto é, uma negação do direito que crianças e adolescentes têm de ser tratados como sujeitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento. (GUERRA, 2005, p.32).
Essa “definição” permite obter uma série de informações sobre a violência doméstica. A primeira possível é que se dá em uma relação estabelecida entre dois pólos, sendo o adulto e a criança ou adolescente. Aliás, adulto que pode ter com a criança uma relação consangüínea ou somente uma relação afetiva. O importante é que se trata de uma pessoa que tem dever ou responsabilidades para com a criança ou adolescente, em decorrência da relação estabelecida, e que se utiliza dessa “relação” para desempenhar atos que vêm trazer prejuízos para o desenvolvimento da criança ou adolescente, ou então que se furtam a isso, resultando igualmente em prejuízo. Note-se, nesse sentido, o caso das avós em questão. A Sra. Ivana deixava Abelardo sem comer, além do que, era negligente em relação aos atendimentos da criança com psicólogo e mesmo com o atendimento assistencial, além das agressões físicas a que submetera a criança. Negligência no caso de Abelardo que é extensiva aos outros membros da família, inclusive ao tio da criança que sempre teve ciência das agressões e nunca se colocou no sentido de tentar impedí-las. A Sra. Olívia também cometia atos semelhantes com o neto Rogério, já que além das agressões físicas, deixava a criança aos cuidados de terceiros que mal conhecia. A omissão das avós poderia trazer, além dos prejuízos “psicológicos”, também prejuízos orgânicos que vem a comprometer o desenvolvimento das crianças.
Essa relação, que devia ser de cuidado mútuo e proteção, acaba sendo desfigurada, constituindo-se em uma relação de dominação, de poder, de um segmento sobre outro. No caso do adulto sobre a criança/adolescente, essa realidade se expressa consideravelmente, até porque as condições, inclusive físicas, permitem ao adulto essa subordinação por parte do outro. Segundo Guerra (2005), essa é a natureza basilar do fenômeno, aquilo que realmente vem definir a violência doméstica. Isso posto, Rogério e Abelardo não têm ainda condições de se colocar contrários a essas pessoas, inclusive não possuem compleição física que os permita qualquer indisposição.
Decorre daí o que a autora chama de relação “sujeito-objeto”, já que a criança/adolescente tem que satisfazer a todas as necessidades do adulto, como se fosse um objeto e não possuísse suas vontades próprias. Inclusive a vítima deve se sentir responsável, quando não consegue tal façanha, justificando assim o porquê das agressões que vivencia. Como “culpada”, a vítima deve manter tudo em sigilo, mesmo que as agressões ocorram repetidas vezes.
A “culpapibilização” da criança também se mostrou reinante na pesquisa em questão. As avós percebiam todos os atos das crianças como incorretos, errados e as próprias crianças passaram a compreendê-los da mesma maneira. Portanto, a agressão passou a contemplada como uma punição merecida ao ato cometido.
Abelardo, em diversos trechos, de uma entrevista, verbaliza que a violência vivenciada foi merecida. Algo como se ele devesse mesmo ser agredido, em virtude de ter apresentado determinado comportamento. Durante a realização da primeira entrevista, quando questionado se apanhava de sua avó, responde: “Bate de vez em quando. quando eu faço bagunça”. Perguntado sobre o porquê da agressão, a criança retruca: “Sei lá... acho que é porque eu cheguei tarde em casa”, acreditando ainda que “está errado” pelo fato de “ter saído”. Na verdade, essa questão do merecimento ainda se apresenta, quando a criança é questionada sobre o fato de apanhar sempre que “apronta alguma coisa”. Nesse caso, afirma: “Sim... está certo”, “porque eu vou bagunçar e eles não querem isso... que eu bagunço”. Mesmo com respeito ao fato de ficar sem comida, Abelardo demonstra acreditar que seu pais e sua avó estão corretos e que a punição foi merecida: “Ué, porque eu fiquei fora de casa... sem avisar”; sobre ficar sem comer, também crê que é um procedimento correto. Acerca disso, Abelardo simplesmente diz: “é”.
Assim, Rogério, também,em vários trechos da entrevista, manifesta-se como que merecedor na violência vivenciada. Ao ser indagado sobre o fato de ser agredido quando retornava para casa, ele diz: “Hum! É por causa disso sim, mas ela sempre me bate de vara”, e em um outro trecho completa: “É para eu não fazer de novo, sabe?”, indicando mais uma vez que o erro está em sua conduta, no fato de chegar tarde em casa, de infringir a regra elaborada pela avó. Algo que demanda uma correção, para que não torne a repetir o mesmo ato.
A violência opera, dessa maneira, na construção de significados ou sentidos, como ressalta Martin-Baró (2003). Um dos sentidos construídos por Abelardo e também por Rogério sobre a situação que vivienciaram é que eles mereciam apanhar. Guerra (2005) destaca que um dos resultados da vivência da violência doméstica, por crianças e adolescentes, pode ser justamente essa deturpação da vítima, isto é, de que está errada, de que assumiu um comportamento errado e, por isso, mereceu a agressão vivida.
Guerra (2005) assevera ainda que por meio dessa relação, entre o adulto e a criança, é estabelecida a possibilidade de agredir, resultando assim no “direcionamento” da violência. O fenômeno não possui uma “direção específica”, antes, as agressões são destinadas a todos os sexos e em geral as vítimas possuem idades variadas. Assim, não há um padrão rígido em que se possa afirmar que as agressões são destinadas prioritariamente a pertencentes do gênero masculino ou feminino. É fato, entretanto, que as crianças pequenas são mais vitimizadas do que os adolescentes, posto que, em decorrência do estágio de desenvolvimento, esses podem possuir condições mais favoráveis a sua defesa. Em suma, o que define o “direcionamento” da ação é a relação estabelecida entre o adulto agressor e a vítima.
Em relação às conseqüências para as vítimas, Guerra (2005) assevera que há as “orgânicas” e as “psicológicas”, dependendo da idade da vítima e das intervenções realizadas visando ao fim da agressão.
Quanto às conseqüências orgânicas, a autora aponta as seguintes:
[...] seqüelas provenientes de lesões abdominais, oculares, de fraturas de membros inferiores e superiores, do crânio, de queimaduras, que poderão causar invalidez permanente ou temporária;
A morte: para a vítima, conhecida como violência fatal e muitas vezes bastante subestimada em função das dificuldades de se detectar as reais causas de morte. (GUERRA, 2005, p. 46).
As agressões, sobretudo as físicas, podem conduzir a vítima a essa série de conseqüências que a autora aponta, inclusive à morte.
Já no que concerne às “conseqüências psicológicas”, Guerra (2005) assinala algumas percebidas com base em sua intervenção junto a segmentos vitimados, dentre as quais destaca: “sentimentos de raiva e medo”; “dificuldades escolares”;”dificuldade em confiar no outro”; “autoritarismo”; “delinqüência”, “reprodução da violência com outros membros” e mesmo o “parricídio/matricídio”. A autora assevera que elas possuem grande diversidade e que nem sempre se manifestam da mesma maneira. Influenciam, nesse sentido, a intervenção realizada junto a vítima depois da ocorrência dos fatos, a incidência dos atos, dentre outros fatores afins.
Abelardo e Rogério também apresentam em seu comportamento parte das “conseqüências” que são identificas por Guerra (2005) junto a crianças vítimas de violência. Abelardo apresenta um comportamento agressivo em relação aos outros colegas de sala de aula e Rogério esteve envolvido em pequenos furtos. E, ambos, apresentam “dificuldade de aprendizagem”. Abelardo chegou até a 3ª. série sem dominar suficientemente a leitura e a escrita e Rogério conseguia escrever o nome próprio com muita dificuldade.
Em síntese, é a relação estabelecida entre o adulto e a criança que contribuem para definir a direção da violência doméstica, a incidência, bem como as conseqüências possíveis para as vítimas. É nessa relação que emergem também os “quatro tipos” de violência doméstica: física, sexual, por negligência e psicológica.
A violência física pode ser entendida como a utilização da força física do adulto para agredir a criança ou o adolescente que esteja sob seus cuidados. Figuram, sob esse aspecto, desde as agressões mais severas, com a utilização ou não de objetos, até o típico “tapinha no bumbum”. É o tipo de violência mais comum, até porque, devido às lesões, torna-se mais fácil de identificação. E, no caso de Rogério e Abelardo foi a prática mais corrente.
A violência sexual, por seu turno consiste em
[...] todo ato ou jogo sexual, relação hetero ou homossexual entre um ou mais adultos e uma criança ou adolescente, tendo por finalidade estimular sexualmente esta criança ou adolescente ou utilizá-los para obter uma estimulação sexual sobre sua pessoa ou de outra pessoa. (GUERRA, 2005, p. 33).
Compreende-se, assim, enquanto violência sexual não apenas a relação onde há a conjunção carnal, mas também a estimulação sexual por palavras, gestos e até a exposição da criança/adolescente a material erótico. Esse tipo de violência não fora cometida, diretamente pelas avós das crianças pesquisadas. Mas, devido a negligência da Sra. Olívia, Rogério foi submetido a uma exposição nesse sentido, como já descrito acima.
A negligência, por sua vez, consiste em uma omissão por parte dos pais em exercer os cuidados de que necessita a criança. A omissão pode ser compreendida quando o responsável possui todas as condições necessárias de desempenhar tais cuidados e não o faz, para agredir a criança. Abelardo, por exemplo, ficou sem comer várias vezes e trancado em quarto escuro, além de não ser viabilizado os atendimentos médicos e psicológicos de que demanda.
Já a violência psicológica faz referência à constante depreciação da criança/adolescente, por parte de seus responsáveis, incluindo ameaças de abandono, de não mais amar e cuidar (GUERRA, 2005). E, também essa tipologia de agressão foi cometida pelas avós através da utilização de palavras que visavam depreciar as crianças.
Todas as formas ou “tipos” de violência doméstica trazem, entretanto, prejuízos tanto orgânicos, quanto psicológicos ao desenvolvimento de suas vítimas.
É de vital importância, contudo, que se compreenda também como se dá o desenvolvimento do psiquismo humano – e mais, como essas vivências de violência doméstica são entendidas por aquelas pessoas vitimizadas por essa forma de “educar”. Nessa perspectiva, no capítulo seguinte serão oferecidas informações sobre o desenvolvimento do psiquismo do ser humano, enfatizando, sobretudo o desenvolvimento psíquico da criança. Esse capítulo deverá deixar ainda mais clara a importância do adulto, da sua mediação em relação à criança, no sentido de influir substancialmente em sua formação psíquica, além de sublinhar a relevância da linguagem e da memória, nesse processo.
4. O DESENVOLVIMENTO DO PSIQUISMO HUMANO
No capítulo precedente foi possível oferecer algumas informações sobre a violência, seus principais “pressupostos” e “elementos constitutivos”. Mais que isso, foi possível perceber que a teoria em questão explica uma realidade concreta, exemplificando com os casos das crianças vítimas de violência doméstica. Nesse capítulo, a análise será direcionada a compreensão de como essas práticas de violência doméstica podem vir a condicionar o desenvolvimento do psiquismo humano e, nesse sentido o psiquismo das crianças que figuraram como sujeito da pesquisa.
Assim sendo, o conhecimento passa de geração a geração, o que é uma realidade facilmente observável, em especial se considerarmos o cotidiano do homem. É assim que os costumes, os hábitos e toda a cultura vão sendo “construídos” e “reconstruídos”. É desse modo que o ser humano se constitui enquanto tal, apreendendo esses conhecimentos e garantindo sua sobrevivência e seu desenvolvimento, inclusive o conhecimento em relação a organização das relações cotidianas como a relação familiar. Leontiev, Vigotski e Luria discutiram amplamente a questão da transmissão da cultura, recorrendo à tradição marxiana. Salientaram que o conhecimento do homem é algo socialmente produzido, acumulado durante as gerações e transmitido aos seres humanos.
Mais do que isso, a teoria da psicologia russa defendida por esses autores e por outros colaboradores pretendia uma compreensão crítica acerca da formação do psiquismo humano, buscando o rompimento com tendências biologizantes e visando a compreendê-lo como produto da realidade social. Na verdade, a explicação do psiquismo humano recorrendo apenas à influência das funções biológicas do homem foi sistematicamente refutada por essa corrente de pensadores, de sorte que, para essa corrente teórica, o psiquismo humano se constitui enquanto tal através dos processos de objetivação e apropriação, simultâneos, por meio dos quais o homem vai tomando posse da cultura ou do conhecimento socialmente produzido pela humanidade e formando assim o seu psiquismo, sua subjetividade. Esses são compreendidos enquanto processos ativos, mediados e genéricos, pautados na linguagem, na escrita e na memória.
A seguir, serão tecidas considerações acerca das contribuições dessa corrente na compreensão do psiquismo humano e de como essa “teoria” pode ser basal, na compreensão da violência doméstica. Nesse sentido, apenas para fins didáticos, o texto foi “dividido” em dois momentos: a princípio, serão destacados apenas os conceitos iniciais dessa teoria em relação à formação psíquica e, em seguida, serão destacadas as principais contribuições em relação à formação psíquica da criança.
4.1 Atividade Humana, Objetivação e Apropriação Enquanto Fundantes do Psiquismo Humano
Tendo em vista essa ressalva, é possível que esta análise direcione a atenção especificamente para o desenvolvimento do psiquismo humano. Assim, é preciso antes de mais nada que se compreenda como se dá a absorção da cultura, do conhecimento pelo ser humano e de como esse processo “colabora”, no sentido de fundar o psiquismo humano.
Duarte (1993) salienta que a absorção da cultura, do conhecimento se dá por meio dos processos de objetivação e apropriação. Partindo desse posicionamento, que recorre à teoria marxiana e à teoria crítico-pedagógica ou histórico-social, compreende-se que a objetivação é um processo ativo ocorrido cada vez que o homem, através da consciência, desempenha uma atividade vital, assim como a apropriação. A atividade vital é na verdade toda e qualquer ação que reproduza a vida, sendo que, no caso dos animais, também há essa reprodução, a qual não acontece por intermédio da consciência. Para Duarte (1993), a atividade humana assegura não apenas a sobrevivência do ser humano, mas também a reprodução do gênero humano.
Dessa maneira, para compreender o psiquismo humano, dentro da perspectiva de estudo adotada, é primordial observar o conceito de atividade, já que esse conceito é fundamental para o entendimento dos processos de objetivação e apropriação. Grosso modo, pode-se dizer que a atividade humana é um processo que provém da realidade vivenciada pelo ser humano, por conseguinte um processo vivo e real. Apesar de existir a influência dos fatores biológicos, no desempenho dessas atividades, elas não são regidas essencialmente por tais motivos. Trata-se de um processo em que ocorrem igualmente a objetivação e a apropriação, por meio da consciência (mesmo que muitas vezes aconteça com o homem alienado, sem percepção), que funda o psiquismo, a “personalidade”.
Em síntese, a atividade deve ser compreendida como resultante da realidade social do homem que, ao desempenhá-la estabelece contato com outros homens e com objetos afins. A atividade colabora no sentido da objetivação e apropriação humana. Colabora, ainda, no desenvolvimento da linguagem, da memória e das sensações. Abaixo, tais conceitos serão mais bem descritos.
Quando se afirma que a atividade humana é um processo que provém da realidade vivenciada pelo ser humano, deseja-se, antes de mais nada, afirmar que esse fazer humano se dá em decorrência das necessidades, ou seja, que a atividade humana é motivada pelas necessidades dos homens, necessidades essas que eles têm de satisfazer. Marx esclarece que
[...] o primeiro pressuposto de toda a existência humana e de toda história, é que os homens devem estar em condições de viver para poder “fazer história”. Mas, para viver, é preciso antes de tudo comer, beber, ter habitação, vestir-se e algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, portanto, a produção dos meios que permitam a satisfação dessas necessidades. (MARX, 1979, p. 39 apud DUARTE, 2003).
Como se vê, é a necessidade humana que faz com que o homem desempenhe determinadas atividades. Ao desempenhar essas atividades, ele busca contemplar suas necessidades. Desse modo, ele é levado a desempenhar determinadas ações ou atividades na consecução de seus objetivos, seus intentos.
A necessidade pela comida, por exemplo motiva o homem a desempenhar uma determinada ação. Foi assim que o ser humano aprendeu a dominar a natureza e dela extrair os meios para a sua manutenção. Mas isso não quer dizer que a atividade humana seja resultado apenas da influência de fatores biológicos, de necessidades biológicas, como a fome. A atividade humana torna-se, antes de tudo, uma atividade consciente, mesmo que seja influenciada por motivos biológicos, como a demanda por comida. É o que explica Luria:
[...] a atividade consciente do homem não está obrigatoriamente ligada a motivos biológicos. Além do mais,a grande maioria dos nossos atos não se baseia em quaisquer inclinações ou necessidades biológicas. Via de regra, a atividade do homem é regida por complexas necessidades, freqüentemente chamadas de “superiores” ou “intelectuais”. Situam-se entre elas as necessidades cognitivas, que incentivam o homem à aquisição de novos conhecimentos, a necessidade de comunicação, a necessidade de ser útil à sociedade, de ocupar, nesta, determinada posição, etc. (LURIA, 1991a, p.71).
Ao desempenhar determinadas atividades, estas geram novas necessidades a satisfazer. Nesse processo dialético de constante superação é que a consciência ou a atividade consciente vai se desenvolvendo e se especializando cada vez mais. Foi assim que o gênero humano foi passando por um lento e gradual desenvolvimento de suas habilidades. Assim, por exemplo, que o homem, quando sentiu fome, foi evoluindo nas maneiras de conseguir comida e também nas formas de produzir seus alimentos. É desse modo, ainda, que os olhos, os ouvidos e o cérebro do homem, conhecido atualmente, foram se constituindo enquanto tais e apresentam, hoje, uma série de diferenças em relação aos órgãos do antropóide.
Tendo isso posto, Luria (1991a) delineia que há uma série de atividades desempenhadas sem o atrelamento cego à condição biológica. Além disso, a atividade humana não é regida apenas pelas impressões imediatas, mas pode se pautar na interpretação dos fenômenos, apesar de existir a influência da aparência imediata em sua apropriação do mundo. A capacidade de refletir, de pensar sobre a vida, faz com que a atividade humana não se paute apenas no imediato, no definido pelo biológico. Conforme observa Luria, o indivíduo
pode abstrair a impressão imediata, penetrar nas conexões e dependências profundas das coisas, conhecer a dependência causal dos acontecimentos e, após interpretá-los, tomar como orientação não impressões exteriores porém leis mais profundas. (LURIA, 1991a, p. 72).
O homem desenvolveu essa capacidade de refletir sobre os fenômenos que cercam sua vida ao longo de sua existência, capacidade que o gênero animal, regido essencialmente pelo aspecto biológico, não possui. É através desse processo, também, que o homem consegue se apropriar do conhecimento produzido pela humanidade; aliás, ele se apropria mesmo, no sentido lato do termo, e não se adapta, como os animais, com apenas parte das capacidades desenvolvidas. À medida que o homem consegue pensar sobre a realidade que o cerca se dá a apropriação, e isso acontece durante o desempenhar de suas atividades (LURIA, 1991a).
Disso se pode concluir que a atividade é um processo que sempre provém da condição concreta, da vida real dos homens sobre o mundo. Leontiev (1978a) aponta, em acréscimo, que, mesmo em sua forma mais básica, mais rudimentar, a atividade se caracteriza por essa relação estabelecida entre o homem e o meio social no qual está inserido. Conforme o estudioso,
[...] a atividade, em sua forma inicial e básica, é a atividade sensorial, durante a qual os homens se colocam em contato prático com os objetos do mundo circunvizinho, experimentam em si mesmos a resistência desses objetos e atuam sobre eles, subordinando-se a suas propriedades objetivas. (op. cit., 1978a, p.20, tradução nossa)17.
Por extensão, a atividade se dá quando o homem, ao desempenhar uma atividade, estabelece uma relação com um objeto ou com outros homens. Isso torna possível que se compreenda o processo de objetivação humana, bem como a apropriação, conforme será discutido a seguir.
A objetivação humana se dá cada vez que o ser humano desempenha uma atividade vital e que, por conta disso, estabelece contato com outros homens e com objetos. A objetivação proporciona que o homem se aproprie do conhecimento produzido e que tenha seu psiquismo formado. Como é algo que cada indivíduo vivencia, possui um caráter pessoal.
Dessa forma, na relação estabelecida com o objeto, em decorrência da atividade desempenhada, tanto este é modificado quanto o homem se modifica. O mesmo se aplica à relação construída entre os homens, em suas relações sociais. Por conseguinte, a objetivação não se dá apenas por meio do contato do homem com os objetos, mas com a relação estabelecida com outros seres humanos. Essas relações são, no entanto, determinadas pelo nível de desenvolvimento da sociedade, que, conforme é possível inferir, depende das suas formas de organização econômica.
Ao agir sobre o mundo exterior o modificam; com ele se modificam também a si mesmos. Por isso o que os homens são está determinado por sua atividade, a qual está condicionada pelo nível já alcançado no desenvolvimento de seus meios e formas de organização. (LEONTIEV, 1978a, p. 21, tradução nossa).18
Assim, a forma de organização familiar é uma típica ilustração dessa questão. O desenvolvimento da sociedade burguesa condicionou a forma de organização das famílias e fez com que deixassem sua antiga estrutura herdada da Idade Média para se transfigurarem na família burguesa. Em decorrência, as relações sociais foram estabelecidas de acordo com o desenvolvimento econômico da sociedade e essas relações foram objetivadas pelo homem.
Destarte, nessas relações entre o homem e os objetos e com outros homens,segundo Leontiev (1978a,1978b), se dá a “objetivação”.
O homem, ao produzir os meios para a satisfação de suas necessidades básicas de existência, ao produzir uma realidade humanizada pela sua atividade, humaniza a si próprio, na medida em que a transformação objetiva requer dele uma transformação subjetiva. (DUARTE, 1993,p. 31).
A atividade humana não transforma apenas o objeto sob o qual incide a ação, mas sobretudo transforma o homem que a executa; o homem “objetiva-se” e modifica-se, durante o desempenho das atividades. O objeto é manipulado e torna- se um instrumento, com alguma finalidade ou utilidade. Nesse momento, as características do objeto são compreendidas pelo homem, quer dizer, o significado do instrumento, de sua finalidade é apreendido pela consciência humana, dando-se, pois, a objetivação. Foi assim que o fabrico de instrumentos tornou-se um fator de suma importância no desenvolvimento do psiquismo humano. Ele trouxe também em si a necessidade do contato entre as pessoas, entre os seres humanos. A necessidade de se estabelecer uma nova forma de relacionamento entre os homens, por sua vez, trouxe mudanças significativas ao psiquismo humano.
A objetivação ocorre igualmente no plano das relações sociais, conforme já explicitado neste texto. Da mesma maneira que o homem interage com o objeto e assimila suas características, a sua interação com outros homens acontece. Nessa relação social, o homem se apropria das informações que lhe são oferecidas acerca do outro, da forma das pessoas se relacionarem, ou seja, “[...] tratam-se de determinados tipos de atitudes entre os homens que vão se fixando, se objetivando, e sendo apropriadas por cada pessoa durante sua vida” (DUARTE, 1993, p. 38).
Leontiev (1978a) ainda destaca que o psiquismo, a consciência adquire, apesar do aspecto genérico da apropriação, um caráter pessoal, ao que ele denomina personalidade. Partindo do princípio de que a consciência é formada através dos conceitos extraídos da realidade social, da realidade da vida concreta dos seres humanos, o autor salienta que esses signifcados adquirem um sentido pessoal, colaborando para a definição do que ele mesmo denomina como “personalidade”. Para ele, isso se dá com base na vivência específica de cada um. Dos fenômenos, das relações estabelecidas do sujeito com o mundo e com outras pessoas provém, por conseguinte, o que Leontiev define como personalidade ou, como ele próprio escreve, que se deve “[...] conceber a personalidade como uma nova formação psicológica que vai se formando em meio às relações vitais do indivíduo, como fruto da transformação de sua atividade” (LEONTIEV, 1978a, p.135, tradução nossa)19. Seria assim que a atividade iria formando o psiquismo humano, ou melhor, colaborando para a formação subjetiva do ser humano.
A objetivação em um processo dialético “proporciona” a apropriação por parte do ser humano. A apropriação é entendida enquanto
[...] um processo que tem por resultado a reprodução pelo indivíduo de caracteres, faculdades e modos de comportamento humanos formados historicamente. Por outros termos, e o processo graças ao qual se produz na criança o que, no animal, é devido à hereditariedade: a transmissão ao indivíduo das aquisições do desenvolvimento da espécie. (LEONTIEV, 1978b, p. 320).
A partir desse posicionamento de Leontiev (1978b), pode-se compreender a apropriação enquanto um processo ativo, à medida que provém do desempenhar das atividades visando à satisfação das necessidades humanas. Esse processo ativo proporciona, assim, a “reprodução pelo indivíduo de caracteres, faculdades e modos de comportamentos humanos formados historicamente”. Não é um processo passivo, que não provoca mudanças junto ao ser humano, mas antes reproduz no ser humano o saber acumulado durante as gerações.
Esse processo é tão ativo que pode ser concebido como um constante devir do ser humano. Enquanto o homem se apropria de determinado conhecimento, isso desenvolve sua capacidade de superá-lo. A necessidade humana e sua satisfação, nos termos de Leontiev (1978b), ocasionam outras necessidades, caracterizando assim a apropriação como um processo ativo e que se origina basicamente da realidade social. Essa necessidade resulta em uma especialização dos “caracteres, faculdades e modos de comportamentos humanos formados historicamente”.
Possui obviamente a influência dos aspectos biológicos, já que é por meio dos órgãos dos sentidos que o homem toma contato com a cultura humana. Todavia, nesse processo, o aspecto biológico é afetado consideravelmente, especializando-se.
Pode-se, ainda, partindo do texto acima destacado, inferir que a apropriação é também um processo em que se dá a acumulação do conhecimento produzido ao longo do processo de evolução do gênero humano. Apesar de o homem não utilizar, a todo momento, o conhecimento geral da humanidade, ele se apropria desse conhecimento. Leontiev, em diversas ocasiões, coloca em relevo esse aspecto do processo de apropriação, pelo qual o homem se apropria da cultura humana, que, inclusive, fora constituida ao longo do desenvolvimento histórico-social da humanidade. Assim, é o resultado da experiência histórico-social da humanidade, do desenvolvimento de muitas gerações (LEONTIEV, 1978b).
No entanto, Duarte assevera que esse conceito de apropriação da “totalidade da cultura” irá também depender da vivência de cada um, de cada ser humano, ou seja:
Cada indivíduo tem que se apropriar de um mínimo desses resultados da atividade social, exigido pela sua vida no contexto social do qual faz parte. Quais componentes da genericidade farão parte desse mínimo indispensável à própria sobrevivência do indivíduo, dependerá das circunstâncias concretas de sua vida, especialmente aquelas de seu meio social imediato. (1993, p. 41).
Disso decorre que a apropriação é uma experiência em que o ser humano recebe o conhecimento produzido historicamente, produzido pelo gênero humano, mas é também um processo individual, ao qual todo ser humano está submetido e precisa vivenciar, para garantir sua sobrevivência no mundo. Cada indivíduo tem o seu psiquismo formado dessa maneira.
Duarte (1993) sublinha, igualmente, que com a relação estabelecida entre a objetivação e a apropriação ocorre o chamado processo de “mediação”. Para esse autor, “[...] o processo de formação do indivíduo é o reconhecimento da indispensável mediação, realizada por outros indivíduos, entre a pessoa que realiza o processo de apropriação, e a significação social20 da objetivação a ser apropriada” (1993, p. 46). O mesmo Duarte (1993) extrai sua concepção de mediação da obra de Leontiev (1978b), onde este último a descreve como um processo de transmissão da cultura realizada pela relação estabelecida entre o adulto e a criança, para quem transmite o conhecimento acumulado. Pode-se dizer, portanto, que o adulto faz a intermediação da construção da criança. Contudo, o conceito de mediação, por ser muito amplo, será discutido no tópico subseqüente.
Com efeito, é através desse processo que combina a objetivação, a apropriação e a mediação que o psiquismo vai sendo construído. Segundo Leontiev (1978b), por meio desse processo ativo, o conhecimento genérico, que fora construído social e historicamente, é apreendido pelos seres humanos. Trata-se de um conhecimento que se origina na práxis, que advém dela e que forma assim a consciência ou, em outras palavras, “[...] a consciência do homem depende do seu modo de vida humano, da sua existência” (LEONTIEV, 1978b, p.92).
Ao se dizer que a acumulação do saber da humanidade é transferida através do processo de apropriação-objetivação, não está sendo feita referência apenas ao conhecimento científico, mas também ao conhecimento que gere e organiza a vida cotidiana, inclusive a vida em família. Em relação à violência doméstica, pode-se inferir que os conceitos de apropriação e mediação do psicólogo russo se aplicam perfeitamente. Disso se pode deduzir que a violência doméstica, um comportamento gerado ao longo de nossa história, vem sendo apropriada por muitos pais e responsáveis como uma forma de educação. Adultos acreditam que, por meio da agressão, podem moldar a criança a seu “gosto”. E a criança, por sua vez, igualmente se apropria desse fenômeno, crendo que a punição recebida é merecida e, além disso, que tem uma finalidade educativa.
A apropriação desses princípios, por muitos pais ou responsáveis, na educação das crianças faz com que estes direcionem a vida em família, conduzam sua ação, seu comportamento em relação à forma de educar os filhos. Por sua vez, a criança também se apropria da violência doméstica enquanto uma forma de educação, uma vez que é ensinada, pelo adulto que mediatiza sua educação, que, através do emprego da violência doméstica, estará sendo educada, disciplinada.
A linguagem permeia todo esse processo, de objetivação e apropriação, principalmente no que diz respeito à relação estabelecida entre os homens. A linguagem é, ainda, um processo de objetivação em que a necessidade de comunicação resulta na apropriação das estruturas de comunicação e na objetivação do pensamento. A necessidade que motivou os homens a desempenharem determinadas atividades, que culminaram na manipulação de objetos e nas relações sociais.
Leontiev (s/d) destaca a importância da linguagem, nesse processo de apropriação e objetivação, sempre que o homem exerce uma atividade vital, chegando a defini-la como um “instrumento do conhecimento”. É através da linguagem que o homem transmite a experiência social acumulada a outras gerações, já que lhes repassa os “sentidos” e os “significados” dos conceitos dos objetos e fenômenos. Vigotski (1991) ressalta que é por meio de uma relação estabelecida entre o pensamento e a linguagem que se forma a consciência, o psiquismo, e que a linguagem, pela comunicação, que seria sua função basilar, transmite os “conhecimentos” necessários ao ser humano, os quais, segundo esse estudioso, são extraídos da realidade social21.
A linguagem adentra em toda a consciência do homem, colabora no sentido de reorganizar e orientar sua percepção sobre que o cerca, reestruturando assim a sua percepção sobre o mundo. Ela influencia essencialmente também a vivência emocional do ser humano, permitindo que, através de sua relação com o pensamento, “[...] formem-se no homem vivências e demorados estados-de-espírito que vão muito além dos limites das reações afetivas imediatas e são inseparáveis do seu pensamento, que se processa com a participação imediata da linguagem” (LURIA, 1991a,p.83).
Na verdade, tanto Leontiev (s/d) quanto Vigotski (1991) e Luria (1991a) enfatizam que a linguagem se forma partindo de um processo histórico, que é colhido na realidade social. Vigotski emprega a terminologia “pensamento verbal”, referindo-se à linguagem:
O pensamento verbal não é uma forma de comportamento natural e inata, mas é determinado por um processo histórico-cultural e tem propriedades e leis específicas que não podem ser encontradas nas formas naturais de pensamento e fala. Uma vez admitido o caráter histórico do pensamento verbal, devemos considerá-lo sujeito a todas as premissas do materialismo histórico, que são válidas para qualquer fenômeno histórico na sociedade humana. (VIGOTSKI, 1991, p. 44).
A linguagem assume assim um papel importante, no processo de apropriação da cultura, de conhecimento. Ela é determinada pelo processo sócio- histórico, assim como todos os outros processos de desenvolvimento do gênero humano. Reflete e é resultado desse processo. Por isso, faz referência ao conhecimento produzido pelo gênero humano. Há, claro, o contato com os objetos, mas o que os define, os conceitua, o que atribui a eles “significado” não é somente o contato, mas a linguagem ou, como Luria (1974b) salienta, a linguagem através da palavra. A palavra, ou o signo tem uma função nominativa, é ela que representa os objetos, que os qualifica. E é a palavra que transmite ao cérebro o significado dos objetos e de tudo mais.
[...] Não há como duvidar que as palavras designam o tempo dos objetos e ocupam um papel na formulação dos pensamentos... As relações e associações complexas das palavras são a essência da linguagem como um segundo sistema de sinais. Sem dúvida, representam mais que o vocabulário básico de uma língua. (op. cit., 1974b, p.254).
A palavra representa assim “mais que um vocabulário básico”, apenas com a finalidade de designar o nome dos objetos e tudo o que mais circunde a realidade do sujeito. A palavra por constituir-se em um signo, dotado de significado, é uma ferramenta de definição da subjetividade. A palavra tem, portanto condições para influenciar a subjetividade humana, o psiquismo e dessa maneira também permite ao homem orientar sua ação, sua relação a ser estabelecida com outros homens e com os objetos.
Considere-se aqui um parêntese, pensando na violência psicológica exercida muitas vezes através da linguagem, da palavra de pais/responsáveis contra os filhos. Da mesma maneira que a criança apreende o significado de “bola” ou “colher”, também apreende o significado de termos como “burro” ou “idiota”, com os quais muitos pais se referem a seus filhos.22 Essas palavras são potencializadoras, no sentido de formar a consciência da criança e definir o seu pensamento.
Para Luria (1991a), a linguagem somente teria surgido à medida que o homem, em decorrência do trabalho, passou a se agrupar, a se relacionar com outros homens. Era necessário ao homem se expressar, ele precisava “designar os objetos”, “destacar” as suas “propriedades genéricas” e transmitir todas essas novas informações ao cérebro. Para esse estudioso, esta foi uma evolução lenta por que passou o gênero humano, trazendo mudanças significativas ao psiquismo. Segundo essa análise, dos primeiros sons emitidos até a formação das palavras levou-se muito tempo e ocorreram mudanças no organismo “biológico do homem”. Foi assim que os ouvidos do antropóide foram se desenvolvendo, assim como a língua e outros órgãos, resultando, de acordo com o autor, em uma mudança de todo o organismo humano e não apenas do cérebro.
É a partir da linguagem que o homem desenvolve uma outra habilidade de suma importância para a transmissão da cultura, do conhecimento – que seria a escrita. A escrita é assim uma forma de atividade, típica de um estágio de desenvolvimento da sociedade. Luria (1974a) afiança que a escrita pressupõe, no entanto, um processo consciente, demandando maior esforço por parte do cérebro, e que esta recupera basicamente todos os aspectos trazidos pela linguagem, exigindo, porém, certa elaboração mais sistemática por parte de quem escreve. Desse modo,
[...] a linguagem oral se desenvolve como resultado direto da imitação e a comunicação com os demais, a escrita se desenvolve como resultado de um estudo consciente e segue conservando vestígios de sua origem em seus estágios mais avançados de seu desenvolvimento (LURIA, 1974a, p. 374-375, tradução nossa).23
Enquanto a linguagem permite “designar os objetos”, “destacar suas propriedades genéricas” e essas informações são transmitidas ao cérebro, torna-se possível que a atenção humana se volte a aspectos específicos, se concentre em determinadas particularidades. Isso é um avanço na condição humana, ou seja, sobre essa capacidade de direcionar a atenção e que, por sua vez, resulta na capacidade humana de memorizar as informações sobre o objeto em questão.
[...] a linguagem permite discriminar esses objetos, dirigir a atenção para eles e conservá-los na memória. Resulta daí que o homem está em condições de lidar com os objetos do mundo exterior inclusive quando eles estão ausentes [...] a linguagem duplica o mundo perceptível, permite observar a informação recebida do mundo externo e cria um mundo de imagens interiores. Percebe-se facilmente que a importância tem o surgimento desse mundo “interior” de imagens, que surge com base na linguagem e pode ser usado pelo homem em sua atividade. (LURIA, 1991a, p. 80).
A memória é assim compreendida como a capacidade humana que o cérebro adquiriu durante o desenvolvimento do gênero humano e permite ao homem registrar aspectos significativos da vida humana. A memória apenas se desenvolve a partir da linguagem, das formas de comunicação que permitam ao homem atribuir sentidos e significados aos objetos e ao mundo circundante. É assim que a informação recebida do mundo externo pode ser conservada no mundo interno, no psiquismo humano em decorrência da memória O autor prossegue:
[...] entendemos por memória o registro, a conservação e a reprodução dos vestígios da experiência anterior, registro esse que dá ao homem a possibilidade de acumular informação e operar com os vestígios da experiência anterior após o desaparecimento dos fenômenos que provocam tais vestígios. (LURIA,1991c, p.39).
A linguagem “duplica”, nesse sentido, o “mundo perceptível” do homem. Aumenta suas possibilidades de constituir um mundo interno de conceitos, de sorte que o objeto ou algum fenômeno vivenciado pelo homem pode ser lembrado por ele, mesmo na sua ausência.
Caso o homem não possuísse essa capacidade, não teria condições de se lembrar dos acontecimentos de sua vida, desde os mais complexos aos mais simples. A memória é, pois, resultado do processo de desenvolvimento do gênero humano e da interação do homem com o meio social. E, apesar de haver a presença dos processos fisiológicos que proporcionam ao cérebro a memorização, esse é um processo essencialmente social, tendo em vista que provém do surgimento da linguagem e das formas de comunicação entre os homens, e de sua conseqüente ampliação, durante o desenvolvimento humano.
Para Vigotski (2001), a memória trata-se de uma função psíquica superior, e que pode ser compreendida como [...} estruturas que nascem durante o processo de desenvolvimento cultural, qualificaremos como superiores, em quanto representam uma forma de conduta geneticamente mais complexa e superior (OP. CIT, p121, tradução nossa24). O nascimento dessas estruturas, entretanto, segundo Vigotski (1997b) não ocorre linearmente, mas vem condicionado pelo desenvolvimento das funções primitivas, como a linguagem, a escrita, o cálculo e o desenho. Assim, somente após o desenvolvimento das funções primitivas torna-se possível o desenvolvimento das funções psíquicas superiores como a memória, já que essas funções estão estreitamente relacionadas.
Isso posto, a memória só se amplia plenamente em um determinado estágio do desenvolvimento do ser humano, já que a criança, durante o predomínio das funções primitivas, possui memória, mas restrita. Apenas quando o homem consegue controlar a consciência refletiva, através da realização de mediações, a memória se desenvolve substancialmente (VIGOTSKI, 1997b, p.378).
A memória, por sua vez, não é composta apenas por imagens que o cérebro abstrai da realidade social, mas por sensações trazidas ao organismo humano pela percepção.
As sensações constituem a fonte básica dos nossos conhecimentos atinentes ao mundo exterior e ao nosso próprio mundo. Elas representam os principais canais por onde a informação relativa aos fenômenos do mundo exterior e ao estado do organismo chega ao cérebro, permitindo ao homem compreender o meio ambiente e o seu próprio corpo. Se esses canais estivessem fechados e os órgãos dos sentidos não fornecessem a informação necessária, nenhuma atividade consciente seria possível. (LURIA, 1991b, p. 1).
As sensações são trazidas à consciência humana por intermédio dos órgãos dos sentidos e de sua interação com o mundo circundante, por excelência um processo ativo. Os órgãos dos sentidos transmitem ao cérebro, por meio da percepção, a realidade circundante (LEONTIEV, 1978a).
É desse modo que o psiquismo do ser humano vai sendo formado, vai-se desenvolvendo, ou seja, por meio dos processos de apropriação e objetivação e que ocorrem cada vez que o ser humano desempenha uma atividade vital. Tais processos são mediados pela linguagem, pelas sensações, e colaboram no sentido de fundar a memória humana.
Para que seja possível uma compreensão mais profunda sobre a importância dessa forma de conceber o psiquismo humano, a seguir será destacada parte das postulações dessa corrente, em relação ao desenvolvimento infantil. Em conseqüência, ficará mais claro como as situações que a criança vivencia têm influencia em seu desenvolvimento, sobretudo as situações de violência doméstica.
4.2 A formação Psíquica da Criança
Partindo do que já se explicitou, neste trabalho, a criança tem seu psiquismo fundado por meio dos processos de apropriação e objetivação da cultura. A criança vai-se apropriando do conhecimento produzido pelo gênero humano e vai adentrando na sociedade na qual está inserida. Assim, cada vez que ela desempenha uma atividade, visando a ter uma necessidade atendida, ela vai tomando contato com o mundo circundante. Vai-se, nesse sentido, objetivando através de suas relações estabelecidas e ainda vai-se apropriando do conhecimento produzido pelo gênero humano, de sorte que a criança pequena tem seu psiquismo formado através de sua atividade, por meio de sua relação estabelecida, durante o desempenho dessa atividade, com o meio circundante e pela mediação do adulto.
Serão esboçadas, na seqüência, as principais informações sobre esses conceitos.
4.2.1 A Atividade e a Atividade Principal
A descrição do processo em relação à atividade, feita acima, buscou fornecer aspectos relevantes sobre sua importância na formação psíquica. Neste, serão apresentadas informações sobre o processo da atividade e sua importância para a constituição psíquica da criança, ainda recorrendo aos conceitos elaborados pela corrente da psicologia russa. Espera-se assim contribuir no sentido de ampliar a compreensão acerca do desenvolvimento psíquico da criança, estabelecendo uma relação com a criança vítima de violência doméstica.
Destarte, com respeito à atividade humana, cabe aqui retomar apenas algumas de suas principais tipificações, a saber: provém da necessidade humana e, por conseguinte, caracteriza-se como algo ativo, um processo real que se origina nas condições concretas de vida de cada ser humano; é um processo em que se dá a objetivação e a apropriação e, portanto, em que o ser humano apreende os conhecimentos produzidos pelo gênero humano; e, por fim, é um processo constantemente mediado, por meio da relação estabelecida do homem com outros homens e com os objetos.
A atividade é, pois, o que irá definir os processos de objetivação e apropriação e, nessa perspectiva, a formação psíquica do ser humano. Leontiev (1988) destaca que a atividade se altera dependendo da realidade que o ser humano está vivenciando, porque a realidade define por sua vez suas necessidades e, conseqüentemente, a atividade a ser desempenhada. Quanto à compreensão do psiquismo infantil, Leontiev (1988,1978b) elaborou o conceito compreendido como “atividade principal” ou “atividade dominante”. Serão assim salientadas as principais tipificações acerca da atividade principal da criança, indicando a importância dos motivos que orientam a ação da criança e a relevância da atividade principal ou dominante, no intento de contribuir para a formação de sentido e significação, por parte da criança.
A atividade principal ou dominante seria, nos termos desse autor, aquela que concretizará substancialmente o psiquismo da criança, isto é, seria aquela mais influente nesse sentido25.
Segundo ele, a atividade principal está totalmente ligada à situação concreta que a criança vivencia, durante o seu desenvolvimento. Nesse sentido, as mudanças ocorridas ao redor da criança vêm a ter reflexos fundamentais em sua atividade, especificando a conceituada como atividade principal. As necessidades mudam e muda também a atividade principal, do que se pode concluir que o primordial atributo da atividade principal é o fato de ela provir essencialmente da condição concreta de vida da criança e de estar subjugada, portanto, a todas as mudanças que ocorrerem nesse sentido.
O que determina diretamente o desenvolvimento da psique de uma criança é a sua própria vida e o desenvolvimento dos processos reais desta vida – em outras palavras: o desenvolvimento da atividade da criança, quer a atividade aparente quer a atividade interna. Mas seu desenvolvimento, por sua vez, depende de suas condições reais de vida. (LEONTIEV, 1988, p.63).
Com as alterações da realidade vivenciada pela criança, suas relações sociais também são modificadas significativamente. As exigências feitas à criança pequena, em sua vida pré-escolar, e à criança já incluída na fase escolar figuram como exemplo desse tipo de relação. A criança pré-escolar possui um conjunto de atributos, de atos com as quais se ocupa. Já a criança que está em idade escolar possui outras responsabilidades. Dessa maneira, sua família, os membros de sua organização familiar passam a gerir sua rotina, considerando igualmente os horários de a criança freqüentar a escola, dentre outras situações. Isso faz com que a criança estabeleça também outras relações com o mundo que a cerca, além de a criança passar a perceber que seu “papel”, dentro da organização familiar, foi alterado. Nisso, não apenas as atividades que precisa desempenhar mudam, mas a forma de se relacionar com as pessoas que estão à sua volta. Em decorrência, isso opera mudanças na atividade da criança.
A atividade principal é concebida como resultante das necessidades das condições concretas de vida da criança, em seus diversos períodos de desenvolvimento, e de sua conseqüente relação estabelecida com o mundo, incluído o manuseio dos objetos e as relações com outros seres humanos (LEONTIEV, 1988).
Há diversos estágios de desenvolvimento, sendo que a cada um corresponde um determinado tipo de atividade principal. Leontiev (1988) é enfático, ao afirmar que isso decorre da realidade da criança e que, em certas ocasiões, tem ligação com sua idade, enquanto, em outras, isso não acontece. Para ele, é incorreto estabelecer rigidamente o esperado para a criança em decorrência de determinada idade, mas há que se considerar sua vivência no sentido de definir o seu desenvolvimento. Assim, a criança pequena utiliza sobretudo o brinquedo como forma de conhecimento e interação com o mundo. Já a criança pré-escolar vai-se basear na mediação do professor, para a transmissão do conhecimento, inclusive no que diz respeito aos conceitos científicos, conforme ainda será discutido. Cabe agora somente pontuar que, com as mudanças na realidade social, a criança irá desempenhar certas atividades que a irão conduzindo, em seu desenvolvimento. Nesse sentido, o desenvolvimento sempre será propiciado pela atividade principal e, por conseguinte, da relação estabelecida com a realidade da criança:
Podemos dizer igualmente que cada estádio do desenvolvimento psíquico é caracterizado por um certo tipo de relações da criança com a realidade, dominantes numa dada etapa e determinados pelo tipo de actividade que é então dominante para ela. (LEONTIEV, 1978b, p. 292).
A esse respeito, Leontiev (1988) chega ainda a destacar que as formas de organização social e econômica pelas quais a sociedade se organiza auxiliam a definir as necessidades da criança. Conseqüentemente, são postas à criança determinadas atividades a desempenhar, definindo assim sua atividade principal, estimulando seu desenvolvimento e colaborando no sentido de formar seu psiquismo.
A atividade principal é ainda compreendida por Leontiev (1988) como aquela em que há a emersão de outros tipos de atividade, lembrando que, por meio dela, há uma diferenciação entre todas. Isso porque há uma mudança nas necessidades, demandando outras atividades. Assim, para a criança pequena, sua principal atividade pode ser o manuseio de objetos, como os brinquedos. Nesse momento de seu desenvolvimento, sua atividade principal recorre ao brinquedo como uma forma de conhecimento. Com o tempo, isso irá se alterar, gerando novas necessidades cognitivas na criança e, por conseguinte, outras atividades aparecerão e irão se constituir enquanto atividade principal. Há, dessa maneira, uma diferenciação das atividades no sentido de cada necessidade gerar um tipo de ação na criança.
Tomando como referência as colocações de Leontiev (1988) e estabelecendo-se uma relação com as crianças sujeitos da pesquisa é possível perceber que a atividade de ambos está totalmente imbricada pela vivência da violência doméstica. Assim, tanto Abelardo quanto Rogério, em sua existência concreta, em sua relação com o mundo circundante estão sendo submetidos a violência física, negligência e psicológica.
A partir da necessidade de se “comportar” na sala de aula posta a Abelardo, seu pai e sua avó se percebiam no direito de agredi-lo, ou seja, para que ele se comportasse na escola, algo que era esperado da criança, se valiam do uso da força física, da negligência e da violência psicológica. Nesse sentido, se viam no direito de deixar a criança trancada no quarto, sem comer, e sobretudo de agredí-lo, chegando até a colocar anéis nas mãos para que a criança sentisse dor. Aliás a vivência da violência na vida de Abelardo se manifesta desde o abandono da mãe biológica e de uma aparente indiferença por parte do pai da criança e uma total negligência da avó em relação aos atendimentos psicológicos e neurológicos de que a criança necessitava. Assim, toda a atividade dessa criança, sua relação estabelecida com o mundo está permeada pela violência doméstica.
O mesmo se aplica com Rogério. Ele também fora abandonado pela mãe e possui uma relação “distante” com o pai biológico. A avó, que assumiu os cuidados pela criança o colocou em contato coma violência doméstica, agredindo-o fisicamente, até com o uso de varas, quando chega tarde em casa, obrigando-o a fazer faxina durante a madrugada e expondo a criança ao contato com adulto que não conhecia chegando a submete-lo a uma situação vexatória, uma tentativa de violência sexual.
Ao passo que Abelardo era agressivo e indesejado na escola, já que agredia outros colegas e até os professores, Rogério se manifesta tímido ao extremo, mas cometeu alguns atos infracionais. Ambos não consegue dominar a leitura nem a escrita. Mas, o que eles possuem de comum é a vivência da violência doméstica, quase que constante. Aliás, a realidade concreta, as necessidades dessas crianças as colocaram frente a adultos agressivos e os submeteram a vivência da violência doméstica.
Retomando o que fora destacado por Leontiev (1988) em relação a atividade principal, ele pontua que durante a atividade principal, os processos psíquicos da criança vão sendo reorganizados, reconstruídos. Isso porque, com o surgimento de novas necessidades, de outras atividades, o contato da criança com o mundo provoca alterações em seu psiquismo, em sua forma de compreender o mundo, de se objetivar e se apropriar dele. Colabora, desse modo, na formação da personalidade da criança. Esses conhecimentos, resultantes das necessidades da criança, vão sendo apreendidos por ela e vêm a se constituir em material importante de sua consciência sobre si mesma e sobre os outros (LEONTIEV,1988). Mas e quando a criança tem seu psiquismo reorganizado, com sua atividade principal mediada pela violência doméstica?Quais são as novas construções que essa criança irá fazer e como tais construções psíquicas poderão orientar sua percepção acerca da realidade circundante.
Essas mudanças da atividade principal, além de provocarem a alteração no psiquismo da criança, a definição de sua personalidade, colaboram ainda para uma especialização da criança, no sentido das operações que ela desempenha. O domínio da escrita e da linguagem podem ser compreendidos nesse sentido. Ocorre, ainda, uma especialização das funções psicofisiológicas da criança, à medida que essas operações se alteram. Leontiev (1988) atenta para uma apuração dos órgãos do sentido por parte da criança. Em função disso, a criança vai atingindo níveis cada vez mais elevados de desenvolvimento. Sempre que novas tarefas, novas exigências são colocadas à criança, ela busca desenvolvê-las e isso a conduz a outros níveis de desenvolvimento. È por isso que Leontiev (1988) defende que a escola passa a ser uma das principais atividades da criança, o que no caso de Abelardo e mesmo de Rogério acabou sendo significativamente influenciada por sua vivência familiar. Isso posto, é possível inferir que tais crianças tiveram sua atividade principal comprometida, comprometendo conseqüentemente o seu desenvolvimento.
Lembrando o que afirma Leontiev (1988,1978b), a atividade principal sempre é orientada em decorrência de uma necessidade. E essa atividade está sempre carregada de emoções e sentimentos, e não está restrita ao desempenhar automático de atos sem coerência para a criança. Esta, ao realizar uma atividade, vai se chocar, nos termos desse autor, com sucessos e fracassos, o que produzirá nela “estados de espírito” diversificados, os quais ele compreende como “emoções e sentimentos”. Assim, a vivência de Abelardo e de Rogério em relação a violência doméstica também vem no sentido de provocar nas crianças “estados de espírito” diferenciados, aliás, Abelardo verbalizou que sentia “triste” em decorrência das agressões e Rogério disse que “não gostava “ de apanhar.
Partindo do princípio acima arrolado de que a atividade principal sempre provém de uma necessidade que a criança tem a satisfazer, Leontiev (1978b) aponta a relevância do motivo, nesse processo, já que ele está relacionado à necessidade e é o fator responsável por impulsionar a criança a agir. Há, nesse caso, “motivos apenas compreendidos” pela criança, que são eficientes no sentido de estimular uma determinada atitude. E há, ainda, os “motivos que agem realmente”, que seriam aqueles que são mais eficazes, os que levam a criança a compreender que o desempenhar de determinadas atividades poderá alterar sua situação social, ou seja, o lugar que a criança poderá ocupar diante das relações que estabelece.
Abelardo e Rogério vem sendo constantemente submetidos a uma sorte de “motivos que agem realmente”, no sentido de impor às crianças uma conduta esperada pelos pais. As crianças já compreenderam esse “motivos” e já sabem até como devem se comportar frente à eles. Os responsáveis por essas crianças também já compreenderam que a “vara”, os “castigos”, as “faxinas na madrugada” são eficiente no sentido de instituir “motivos que agem realmente” e assim manterem a situação que desejam.
Mais uma vez, retomando é por meio da atividade, a criança consegue atribuir sentidos e significação aos fenômenos com os quais estabeleceu contato.
A significação seria, segundo Leontiev (1978b), uma generalização sobre a realidade. Está composta por uma série de informações que a criança abstrai do mundo que a cerca, com o qual tem contato desde o nascimento. A significação colabora no sentido de proporcionar à criança a apreensão do conhecimento produzido pela humanidade ou, melhor dizendo,
[...] a significação é entrada na minha consciência (mais ou menos plenamente e sob todos os seus aspectos), do reflexo generalizado da realidade elaborado pela humanidade e fixado sob forma de conceitos, de um saber mesmo ou de um saber-fazer (modo de acção generalizado,norma de comportamento, etc.) (LEONTIEV, 1978b, p.96).
Portanto a significação irá depender da atividade principal ou dominante da criança, o que por sua vez como sabe-se está relacionado ao seu estágio de desenvolvimento.
Já o sentido possui uma relação muito estreita com a significação. O sentido é, no entanto, pessoal, de modo que cada significação abstraída pela criança possuirá para ela um sentido individual. Portanto, “trata-se aqui da conscientização, isto é, do sentido individual que para a criança toma um dado fenômeno, e não do conhecimento que ela tem deste fenômeno” (LEONTIEV, 1978b, p.302). Para Abelardo, a violência vivenciada adquiriu o sentido de uma prática essencialmente educativa e não agressiva. Além disso, a criança acredita como já foi dito, que a violência foi merecida. Aliás, Rogério também construí quase os mesmos sentidos em relação a violência que vivenciou.
Assim, as crianças atribuem determinados sentidos aos fenômenos com os quais são postas em contato. E esses sentidos podem ser diferenciados, dependendo da realidade concreta na qual a criança está inserida.
A atividade e sobretudo a atividade principal coloca a criança frente a um mundo novo e cheio de possibilidades. É assim que a criança vai, a cada dia, a cada relação com o mundo, impulsionando o seu desenvolvimento e vai atribuindo sentido e significados à realidade circundante. Nesse processo, a atividade da criança a coloca em contato permanente com outros adultos, que mediam seu conhecimento. No tópico seguinte, serão realizados alguns apontamentos sobre a importância do mediador e do meio social, no desenvolvimento psíquico da criança.
4.2.2 A Mediação e o Meio Social
A criança, assim que nasce, é posta em contato com o mundo. É através do processo de mediação estabelecido entre a criança e o adulto e entre a criança e os objetos que ela vai se apropriando da realidade que a cerca, inclusive do meio social. É nesse processo que seu desenvolvimento vai sendo conduzido e ela vai conseguindo dominar a linguagem, passando, dessa maneira, a desenvolver a memória. Vai, desse modo, apreendendo a existência dos próprios objetos e o fenômeno das relações sociais, tendo, então, a sua imaginação constituída. E passa a atribuir sentido à significação trazida à sua mente, fundando, assim, sua personalidade, seu psiquismo.
A mediação é, pois, a maneira pela qual a criança se apropria da cultura formada historicamente pela humanidade. Leontiev (1978b) ressalta que, nessa relação “mediada”, o homem se utiliza dos instrumentos mediadores, que seriam os objetos, e dos signos, no sentido de efetuar a transmissão do conhecimento, da cultura. Os signos são transmitidos à criança pelo adulto, através da linguagem que seria, segundo o autor, uma das maiores riquezas do desenvolvimento do homem.
A mediação faz com que os processos inatos da criança se tornem processos psíquicos. E ela se forma essencialmente através da comunicação, que converte tais processos em processos intrapsicológicos (LEONTIEV, 1978b).
Nessa relação, é de vital importância o contato da criança com o adulto. A criança aprende com aquele que é mais experiente do que ela sobre tudo que a rodeia, sobre o meio social no qual está inserida e sobre os objetos: “Desde o nascimento, a criança é rodeada por um mundo objectivo, criado pelo homem;são os objetos correntes, as roupas, os instrumentos mais simples, a língua e as concepções, as noções, as idéias que o reflectem”(LEONTIEV, 1978b, p.119-120).
A criança é conseqüentemente dependente do adulto, que não garante apenas a transmissão da cultura, do conhecimento, mas é responsável inclusive pela sua sobrevivência, atendendo às necessidades de subsistência que a criança, por sua condição biológica momentânea, não consegue ainda contemplar.
Nos primeiros anos de vida, a criança precisa do adulto essencialmente para tudo o que pretende realizar, de modo que este pode ser compreendido como o “mundo da criança”. Durante o período pré-escolar, a criança apresenta quase que total dependência do núcleo familiar. Essa dependência se dá em virtude de o círculo de pessoas com as quais a criança possui contato não ser ainda tão amplo.
A criança sente a sua dependência para com as pessoas com quem está directamente em contacto; deve contar com as exigências que aqueles que a rodeiam impõem a sua conduta, pois é isso que determina, de facto, as suas relações íntimas, pessoais com elas. Destas relações dependem não apenas os seus sucessos e os seus fracassos, mas são elas que encerram igualmente as suas alegrias e as suas penas, são elas que têm valor de motivo. (LEONTIEV, 1978, p. 283).
Valor de motivo ou valor que pode motivar não somente a ação mas a imaginação, a forma como a criança percebe e se apropria do mundo. É nessa situação inicial que a criança passa a compreender a relação estabelecida com o adulto, a qual vem conduzir a ação da criança, no sentido de satisfazer o adulto. E são essas relações que irão também definir os “sucessos” e os “fracassos” da criança pequena.
Assim, a mediação do adulto é algo que vem definir o psiquismo da criança, de tal maneira que o motivo de suas ações passa a ser, muitas vezes, a satisfação do adulto. Nesse sentido, a criança também busca, através de suas ações, contemplar igualmente as necessidades que o adulto mediador lhe apresenta (LEONTIEV, 1978b). Abelardo e Rogério, possuem a mediação do adulto, no caso o pai biológico de cada um e a figura das avós. Esses adultos foram os que mediaram o conhecimento que a criança possui sobre o mundo, sobre a realidade que os cerca. Considerando o relato dos casos, as crianças receberam além das informações sobre os objetos que os cercam, também a agressão como uma maneira de construção dos conceitos.
O mediador é compreendido, pois, como o adulto, inicialmente aquele incluído no círculo familiar o qual a criança vivencia e, posteriormente, através das relações que ela estabelece na escola, sobretudo com o professor, mediador de conceitos, especialmente os conceitos científicos.
Portanto, quando a criança entra na escola, esse círculo se amplia consideravelmente. Além disso, não apenas esse círculo, mas, segundo Leontiev (1978b), as responsabilidades da criança mudam, e isto muitas vezes a coloca em um lugar de destaque na família, o que traz significativas alterações no psiquismo da criança.
Ao fazer os seus deveres, a criança tem, pela primeira vez, sem dúvida, a impressão de fazer qualquer coisa de verdadeiramente importante. Proíbe os mais pequenos de a perturbar e os próprios adultos sacrificam por vezes as suas actividades para que ela possa trabalhar. Que diferença das suas ocupações e dos seus jogos precedentes! O próprio lugar da sua actividade na vida adulta, a vida “para a verdade” que a rodeia, se tornou diferente. (LEONTIEV, 1978, p. 369).
A criança que vivencia a situação de violência doméstica, por conseguinte, desenvolverá seu psiquismo sob as mesmas determinações. Inicialmente, suas relações familiares irão conferir a tônica ao seu desenvolvimento psíquico e, depois, as relações estabelecidas na escola têm papel relevante. Vigotski (1991) assevera que a aprendizagem começa muito antes do ingresso na escola, na própria família. É assim que a criança pequena “escreve” no papel, imitando a escrita dos adultos. Tanto que Luria (1991) chega a expor experiências de pré-escolares que, através de garatujas em papel, diziam refletir suas expressões. O fato é que esse tipo de comportamento a criança extrai do mundo dos adultos, de sua absorção do conhecimento produzido no ambiente que vivencia, de sorte que todas essas informações são conservadas em sua memória, inclusive aquelas referentes à situação de violência por que passou. Note-se que tanto Rogério e Abelardo, durante a realização das entrevistas referiam-se a fatos acontecidos meses antes, mas, demonstraram lembrar muito bem do que havia acontecido. A memória das crianças está assim permeada por lembranças das situações de violência doméstica.
Em suma, a mediação se dá, assim, cada vez que a criança desempenha uma atividade vital, ocorrendo pelo contato estabelecido dessa criança com outros seres humanos e com os objetos. É de vital importância, nesse processo, que se crie a comunicação entre a criança e adulto. Essa comunicação, que se realiza através da fala, de atos e gestos do adulto, “influencia essencialmente a organização dos processos psíquicos da criança” (LURIA, 1991c, p. 25).
A interação da criança, por meio da linguagem, possibilita também uma ampliação das funções cerebrais. Caso a criança não possuísse esse contato, muito provavelmente o seu cérebro não conseguiria se desenvolver, ou melhor, apresentaria um desenvolvimento totalmente distinto. É dessa maneira que a criança pequena consegue direcionar sua fala, atingindo, de acordo com seu período de desenvolvimento, níveis mais complexos. Desde o balbuciar de algumas palavras até a elaboração de frases decorrem da interação da criança como o meio social, com o adulto, provocando conseqüentemente mudanças em sua atividade mental, cerebral e no psiquismo (LURIA,1985).
O desenvolvimento da criança, no que diz respeito à aprendizagem, figura como exemplo da relevância do papel do mediador. Há, assim, dois níveis de desenvolvimento: o “desenvolvimento potencial ou proximal” e o “desenvolvimento efetivo”. Enquanto este último está ligado a uma série de atividades que a criança consegue desempenhar sozinha, sem a ajuda do adulto, o “desenvolvimento potencial ou proximal” faz referência a atividades que a criança poderá desenvolver com o auxílio do adulto e as quais ainda não consegue desempenhar sozinha. Assim, aquilo que a criança consegue desempenhar hoje, com a ajuda do adulto, poderá fazê-lo amanhã sozinha e isso conduzirá seu desenvolvimento a outros níveis seqüentes. Na verdade significa que esse estágio de desenvolvimento precedente já está em curso, e que apenas por isso, a criança com auxílio do adulto consegue desempenhar atividades propostas. Dessa forma, a mediação é algo necessário sempre que o objetivo é impulsionar a aprendizagem da criança (VIGOTSKI, 1988).
Entretanto, a criança não apenas interage com o meio social. Ela se apropria dele e é por conta disso que são processadas as mudanças na sua atividade cerebral e no seu psiquismo. Deve-se contemplar “[...] a atividade mental da criança como resultado de sua vida, em certas circunstâncias sociais determinadas” (LURIA, 1985, p.10). E as condições determinadas variam muito de criança a criança e, portanto, torna-se impossível o estabelecimento de padrões ou fases estanques de desenvolvimento cerebral.
A palavra, o objeto e as relações estabelecidas pela criança em sua relação com o mundo ao seu redor definem e influenciam substancialmente a atividade cerebral. A palavra sobretudo, porque define e dá significado aos objetos e ainda explica à criança sobre as relações sociais acionadas. É através das palavras que a criança aprende o que é um determinado objeto, sua função, e aprende também sobre as relações sociais, por exemplo, sobre as relações familiares. Aprende, pois, tanto o significado de palavras como “carro”, quanto o que significa possuir uma “mãe”, um “pai” e assim por diante. Ocorre o que Luria (1985) qualifica como “regulação da conduta”, já que a criança aprende igualmente a sua função dentro da sociedade, dentro da organização familiar e dentro dos outros espaços em que irá conviver.
A palavra é transmitida a criança através da linguagem e, segundo Vigotski (1997b), define o pensamento, o psiquismo. Ele aponta que há uma relação entre o desenvolvimento do pensamento e da linguagem, e que essas duas linhas de desenvolvimento da criança chegam a se encontrar e se distanciar, durante o desenvolvimento. Para Vigotski (1997b), é a partir dos dois anos de idade, em média, que o pensamento e a linguagem apresentam certa correspondência, colaborando no sentido de especializar a linguagem. Nesse período, a criança sente a necessidade de saber sobre os objetos, sobre seu nome, sua utilidade. Antes desse período, é comum que a criança balbucie, geralmente, palavras sem sentido para o adulto, em decorrência do seu pensamento ainda não estar plenamente desenvolvido.
Vigotski (1997b) destaca que a linguagem possui quatro etapas básicas de desenvolvimento, as quais influenciam o pensamento e o relacionamento da criança com o meio social. De acordo com o psicólogo russo, pode ser identificada a “etapa da fala primitiva”, a que corresponde o balbuciar, seguida pela “etapa da psicologia ingênua”, na qual a criança se utiliza dos instrumentos para direcionar a fala; a “etapa do signo externo”, quando a criança passa a dominar a linguagem e, por fim, a “etapa do crescimento interno”, marcada pelo fato de a linguagem passar a ser transplantada para a esfera do pensamento intelectual de cada criança. É quando a criança torna a linguagem um processo psíquico interno, sendo essa a fase mais importante, no sentido de formar o psiquismo.
Depois que a criança consegue transferir, diga-se assim, a linguagem para o pensamento, inicia-se uma fase rica de seu desenvolvimento, que condiciona outras áreas “intelectuais” em desenvolvimento da criança. Ela começa a elaborar conceitos, atribuindo a eles um sentido pessoal. Vigotski (1997b) atenta para a existência de dois tipos de conceitos, os quais denomina como “conceitos cotidianos” e “conceitos científicos”.
Os conceitos cotidianos, segundo Vigotski (1997b) são formados pela criança durante a sua atividade principal. Assim, esses conceitos surgem e se formam a partir da experiência pessoal da criança em sua relação com a realidade concreta na qual está inserida. Esses conceitos são caracterizados ainda pelo autor como conceitos não conscientes, ou seja, são informações recebidas pelas crianças, mas sobre as quais, devido ao seu período de desenvolvimento, ainda não puderam refletir.
Já os conceitos científicos, para Vigotski (1997b) seriam aqueles constituídos pela criança em um processo de instrução. É por meio da acumulação do conhecimento, transmitido à criança por meio de um processo educativo, que esses conceitos vão sendo construídos. Assim, eles não são simplesmente apreendidos a partir do contato com a realidade. Por isso, esses conceitos para serem elaborados pressupõem também que a criança possua vivencie um determinado período de desenvolvimento, que fora conduzido a princípio a partir da elaboração dos conceitos cotidianos. Na verdade, para Vigotski (1997b) os conceitos cotidianos e os científicos aparecem e desaparecem durante o desenvolvimento da criança, entretanto, seria impossível que a criança se apropriasse dos conceitos científicos sem um mínimo de conhecimento precedente e formado pelos conceitos cotidianos.
O desenvolvimento dos conceitos científicos pressupõe assim a ampliação de diversas funções intelectuais, as quais seriam: atenção voluntária, memória lógica, abstração, comparação e diferenciação. Essas funções são ampliadas pela criança a partir do processo de instrução e pressupõem a intelectualização além da consciência refletida e o controle ou domínio por parte da criança (VIGOTSKI, 1997b).
Isso posto, os conceitos começam a ser elaborados durante a infância, tendo especial relevo o fato de que os “conceitos cotidianos” se formam substancialmente durante a infância pré-escolar. Entretanto, a maturação de ambos os tipos de conceito somente se dá durante a puberdade. Por conseguinte, o conceito colabora no sentido da formação de juízos, da percepção que a criança tem sobre o mundo e sobre sua personalidade. Quanto a isso, Leontiev (1987) enfatiza que a infância pré-escolar é de suma importância para definir a personalidade da criança. É, para ele, nesse período que a criança “[..] aprende a responder cada vez mais aos requerimentos do adulto: a seguir sua indicação, a subordinar-se a proibição, a compreender o elogio, o incentivo” (op. cit., p. 58)26, isto é, em que a mediação assume grande importância junto ao psiquismo e ao desenvolvimento infantil.
Nesse sentido, quando Abelardo foi chamado pelo pai de “filho do cão”, ou então quando sua avó referia-se a ele como “maluco” ou que necessitava de um “médico de cabeça” ou então ainda quando a avó dizia que era melhor que o Assistente Social levasse “..ele para a sua casa ué” ou mesmo que “Abelardinho podia estar morto” e em relação a essa possibilidade argumentava que “fazer o que né, ninguém fica pra semente”, não foram palavras sem sentido. Ou seja, essas palavras, essa linguagem colabora no sentido de construção psíquica da criança, pois transmite conceitos, “conceitos cotidianos”, à criança e colabora na atribuição de sentidos pela criança.
Rogério também vivenciou tal situação. A avó o descrevia com “fraco da cabeça”, além de dizer que a criança era um “safado” e “igual a mãe”(biológica). Mas a expressão da violência doméstica por meio da linguagem chegou ao ponto de avó dizer na frente da criança que queria devolvê-lo ao pai, mas o pai teria se negado em receber o filho. Rogério, assim como Abelardo se apropriou dessa linguagem e ela serviu de material para a formação psíquica da criança.
Nesse processo, a mediação proporciona à criança a apropriação da linguagem, a formação dos conceitos e sua conservação na memória.
A memória, como a linguagem, tem “fases” de ampliação, a qual está ligada ao desenvolvimento da criança. A criança pequena possui memória, que, em decorrência do seu período de desenvolvimento, é distinta da memória da criança de maior idade e conseqüentemente do adulto. A criança pequena, segundo Luria (1991c), tem certas dificuldades em organizar sua memória. Ela não consegue direcioná-la a um fim específico. Apenas quando há a demanda de direcionar sua ação a um fim específico, a criança consegue superar essas deficiências em sua memória. Em decorrência,
[...] a memória de uma criança de três e quatro anos de idade também tem as suas fraquezas: é difícil organizá-la, torná-la seletiva, ela ainda não é em nenhuma medida uma memória arbitrária capaz de memorizar o necessário, orientado para um dado fim, separando os vestígios fixáveis dentre todos os outros. (LURIA, 1991c, p.91-92).
A capacidade de orientar sua memória por meio da instrução verbal vai se desenvolver apenas mais tarde, na criança, juntamente com uma mudança de comportamento de sua parte (LURIA, 1991c). É apenas com o início da vida escolar, quando o desenvolvimento infantil permite à criança essas “conquistas”.
Verifica-se, deste modo, que o processo de desenvolvimento da memória na idade infantil é um processo de transformações psicológicas radicais cuja essência consiste em que as formas imediatas naturais de memorização se convertem em processos psicológicos superiores, sociais por origem e mediatos por estrutura... (LURIA, 1991c, p. 96).
Dessa maneira, a memória irá depender e estar condicionada pelo período de desenvolvimento no qual a criança estiver. Por sua vez, o desenvolvimento irá provir das experiências que a criança possuir, de sua relação com os outros seres humanos e com os objetos. Assim, a memória se origina da realidade na qual a criança está inserida.
Luria (1991c) ainda destaca que a memória se dividiria em “memória breve” e “memória longa”. Como é possível supor, a “memória breve” é composta por aquelas impressões imediatas que a criança tem sobre o mundo e que não se consolidam junto ao cérebro. Já a “memória longa” faz referência às informações que a criança consegue reter no cérebro. Segundo o mesmo autor, a fixação ou não de determinados fatos na memória irá depender essencialmente da freqüência dos fatos ocorridos e mesmo da intensidade, ou seja, da representação que a criança tem dos mesmos. A “memória breve” e a “memória longa” coexistem.
Provém igualmente da realidade da criança, de sua mediação estabelecida com o adulto e com o meio social, a sua capacidade de imaginar, de criar suas fantasias. Vigostki (1996) compreende a imaginação da criança como um estágio inicial de sua capacidade de criar expectativas sobre sua vida futura. A criança recorre à sua memória, onde dispõe do material que lhe permitirá imaginar, criar, e sua memória, por sua vez, nasce da realidade social na qual está inserida. A imaginação infantil, nesse sentido, é moldada pelos conhecimentos, por todas as informações com as quais a criança toma contato, através de sua relação com o mundo.
Resulta assim que os primeiros pontos de apoio que a criança encontra para sua futura criação é o que vê e o que ouve, acumulando materiais cujas partes fundamentais não combina em vão, sem sentido, de modo casual como nos sonhos e nos delírios insensatos. (VIGOSTKI, 1996, p.27- 28, tradução nossa27).
Tudo aquilo que a criança ouve, vê, sente ou com o que se relaciona acaba se constituindo em material da memória e, por conseguinte, irá exercer influência em sua capacidade de elaboração, da imaginação. Portanto, segundo Vigotski (1996), a imaginação “não se cria do nada”, mas necessita desse material da memória. Para esse autor, a criança pode até mesclar informações sobre aspectos compreendidos pelo adulto como não reais com aspectos ditos como reais. Na verdade, uma criança pode até imaginar um fato assombroso, como um elefante voar, o que seria algo impossível de acontecer na realidade. Todavia, a criança formulou essa possibilidade, tomando como base aspectos da realidade, como o elefante, e a circunstância de que alguns animais voam. De acordo com Vigotski (1996), isso se chama “reelaboração”, que seria a junção de aspectos da realidade e sua combinação em histórias fantásticas.
A capacidade de imaginação da criança está relacionada, pois, com a “memória precedente”, ou seja, com as informações que ela já traz consigo. Interferem nesse processo de imaginação também o período de desenvolvimento o qual a criança estiver vivenciando e as relações estabelecidas por ela. Aliás, a cada período corresponde uma determinada forma de imaginação e mesmo de expressão, por parte da criança. A criança pequena, em geral, devido ao seu estágio de desenvolvimento, se utiliza com grande freqüência dos brinquedos, como forma de mediar a expressão de sua imaginação. Com o tempo, ela passa a usar outros instrumentos, como o desenho, como forma de sua expressão (VIGOTSKI, 1996).
Desse modo, a capacidade que a criança tem de imaginar e mesmo de elaborar suas perspectivas sobre o futuro irá depender da realidade com a qual tem contato direto. A ampliação desse universo resulta em uma conseqüente ampliação da capacidade da criança.
Daqui a conclusão pedagógica sobre a necessidade de ampliar a experiência da criança se queremos proporcionar-lhe base suficientemente sólida para sua atividade criadora. Quanto mais veja, ouça e experimente, quanto mais aprenda e quantos mais elementos reais disponha em sua experiência tanto mais considerável e produtiva será, e igualmente as circunstâncias restantes, a atividade de sua imaginação. (VIGOTSKI, 1996, p.18, tradução nossa).28
Destarte, serão as condições concretas, de vida real e cotidiana, que irão orientar a imaginação da criança. Abelardo quando questionado sobre a vida futura, sobre a forma de educação de seus filhos referiu que pretendia usar o castigo físico, também uma forma de violência, uma maneira de subordinação, mas que é contemplada pela criança como uma alternativa diferenciada diante das agressões já vivenciadas.
Assim, pode-se inferir que o psiquismo da criança é forjado num processo ativo de objetivação e apropriação, em que a linguagem assume um papel de relevância, possibilitando, dentre outras ocorrências, o surgimento de memória, influenciando a capacidade da criança em imaginar e criar expectativas sobre a sua vida futura. É assim que as experiências vivenciadas pela criança vão sendo armazenadas, registradas, e ajudam a compor a sua subjetividade, sua “consciência”, seu psiquismo. No caso em questão, a criança, acostumada desde a idade pequena a ser vítimizada, irá compor sua memória a partir dessas experiências e, dessa maneira, sua subjetividade irá sendo constituída. Será inclusive sob as premissas dessas influências que a criança irá elaborar suas perspectivas de vida futura.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Várias inferências tornaram-se possíveis acerca do fenômeno da violência e, sobretudo com relação à violência doméstica após a realização desse estudo. Busca-se nesse capítulo realizar alguns apontamentos acerca de tais, sem, entretanto considerar que esse estudo está concluído, mas considerando-o a expressão de uma realidade que está em constante devir.
Destarte, o presente estudo permitiu iniciar a edificação de um conhecimento sobre a violência doméstica diferenciado, já que no mesmo focou-se o sentido que fora construído pela criança a partir de sua vivência do fenômeno em questão e como já fora salientado, os trabalhos dessa natureza ainda são raros junto à pesquisa científica no Brasil. Esse conhecimento só foi possível por meio da aproximação à realidade da criança, na qual, considerou-se de vital importância sua vivência e sua fala sobre a violência doméstica. Esse contato permitiu dessa maneira, que o sentido atribuído pela criança em relação a violência doméstica insurgisse e começasse a ser desvelado.
Isso posto, foi possível perceber que a criança compreende a violência doméstica como uma prática que visa apenas a sua educação e não demonstra compreendê-la como uma punição. As crianças demonstraram ainda que a violência a que foram submetidos fora merecida, em decorrência de atos cometidos e que vieram no sentido de desagradar os adultos com os quais possuem vínculo. E demonstraram ainda que, a violência tornou-se algo corrente, natural em seu cotidiano, em seu dia-a-dia. Grosso modo, pode-se dizer que esses foram os sentidos que as crianças construíram a partir da violência doméstica a que foram constantemente submetidos.
Entretanto, além da aproximação do sentido que fora construído sobre a vivência da violência doméstica conforme fora descrito acima, a realização desse estudo proporcionou também uma compreensão sobre a violência e a violência doméstica, recorrendo-se as formulações de autores como Engels, Martin-Baró e Guerra. Foi possível ainda a elaboração de um conhecimento denso sobre o desenvolvimento do psiquismo humano e sobre o desenvolvimento infantil. Entretanto, o mais relevante foi a possibilidade de relacionar o conhecimento teórico obtido pela recorrência aos autores supra, com as crianças entrevistadas. Afinal, a teoria só se valoriza enquanto tal a partir da sua possibilidade de explicar os fatos reais.
Nesse sentido foi possível perceber que a violência produzida no ambiente doméstico pelos responsáveis pelas crianças é antes de tudo uma violência estrutural, ou seja, uma violência que é reproduzida no ambiente doméstico, mas que tem suas origens na maneira da sociedade organizar sua produção e seu consumo, conforme asseveram tanto Engels (1888) quanto Martin-Baró (2003). E por isso, uma violência dotada de historicidade, em que no caso específico, ainda percebe-se a influência de princípios bíblicos, inclusive aqueles originados da tradição católica, e que refletem na forma de organizar a vida em família, defendendo-se, dentre outras ocorrências, que as crianças precisam ser “educadas” com uso da força física, dos castigos e demais punições.
Como tal, é uma violência que se estrutura a partir de uma relação estabelecida entre dois pólos, como diz Engels (1888), sendo um o agredido e outro o agressor. No caso, o adulto como pólo que agride e a criança como pólo agredido. O adulto por possuir meios, inclusive físicos que o permitam manter e perpetuar a agressão. Meios esses, que conforme Engels (1888) vão para além da agressão física, mas que usam também da coerção. E que conforme foi possível observar após a realização da pesquisa de campo, fazem uso de palavras, de castigos e mesmo da força física, mas que visam obter a submissão da criança em favor do adulto.
Devido ao “espaço” onde ocorre, a violência doméstica não é compreendida como tal, antes, ela só se legitima porque vem camuflada por um suposto “caráter benéfico”(MARTIN-BARÓ, 2003), fazendo com que a criança interprete atos agressivos como se fossem atos educativos. E, mais, esses atos, passam a ser compreendidos como inerentes a composição da família, ou seja, são tidos pela criança como naturais, pertencentes ao cotidiano familiar, cumprindo assim uma função ideológica, paradigmática na elaboração de sentido pela criança e legitimando a violência junto ao ambiente doméstico.
Essa legitimação da violência doméstica autentica ainda o “caráter pessoal” (MARTIN-BARÓ, 2003) dos atos agressivos, que foram conferidos pelos adultos em relação às crianças. Assim, a criança além de compreender a violência como possuidora apenas de um caráter benéfico, como se fosse inerente a composição familiar, passa a identificar os atos de agressão relacionando-os com os agressores. É como se a criança já estabelecesse uma relação na qual já sabe o que esperar de tal adulto o momento da agressão.
A aplicabilidade do que é delimitado pela Perspectiva Sócio-Histórica também se mostrou relevante para a compreensão da violência doméstica. Destarte, considerando que, o ser humano tem seu psiquismo, sua subjetividade formada a partir dos processos de objetivação e apropriação, segundo descrito por Vigotski, Luria e Leontiev, e que se dão por meio de sua relação estabelecida com o mundo real, concreto, é possível também compreender a importância da vivência da violência doméstica junto a subjetividade e no desenvolvimento das crianças entrevistadas e ainda sobre outras crianças vítimas desse fenômeno.
Assim, a criança se objetiva e se apropria do conhecimento produzido pela humanidade, inclusive sobre o conhecimento em relação ao desenvolvimento e a organização familiar a partir de seu contato com o homem que a circunda e com os objetos. É a partir dessa relação que a criança, por meio da linguagem começa a elaborar os conceitos sobre si mesmo, sobre o mundo. Conceitos que podem ser compreendidos como cotidianos e científicos e que vem no sentido de conduzir a criança a diferentes períodos de desenvolvimento, condicionando sua linguagem, sua memória e inclusive sua capacidade de fantasiar sobre a vida futura.
Nesse sentido, a relação estabelecida com membros familiares, com os quais a criança possui relação, muitas vezes de dependência é de suma importância, como colocou Leontiev (1978b). O mediador, destacado pelo autor tem relevante importância e essa só é minimizada com o ingresso da criança na escola, onde o círculo de pessoas com as quais a criança passará a ter contato irá se elevar consideravelmente. Entretanto, quando a criança é inserida na escola já possui uma série de conceitos elaborados previamente. Relacionando com a violência doméstica é possível inferir que as crianças, a partir de sua relação estabelecida com os adultos com os quais possuem uma relação continua, cotidiana, foram elaborando seus conceitos sobre diversos assuntos, inclusive sobre a vivência própria da violência doméstica.
A vivência da violência doméstica proporcionou às crianças a construção de sentidos, como já fora descrito, mas condicionou também sua memória, sua capacidade de imaginação da vida futura e também “abalou” o seu desenvolvimento. Assim, as crianças, durante a realização das entrevistas, demonstravam lembrar de detalhes sobre as agressões, apesar de ter decorrido certo tempo entre a vivência da violência doméstica e a realização da pesquisa. Além disso, sobretudo em Abelardo, foi perceptível que a vivência da violência doméstica, figura como uma possibilidade futura a ser adotada pela criança, caos venha a constituir uma família. E, por fim, não há como negar que as crianças tiveram seu desenvolvimento substancialmente abalado, até porque foram prejudicados em sua aprendizagem, já que coincidentemente, ambos não conseguiam dominar minimante a leitura e a escrita. Além do que, Abelardo teve sua vida social substancialmente condicionada, já que devido a seu comportamento agressivo não conseguia estabelecer vínculos de amizade com outras crianças.
A Perspectiva Sócio-Histórica demonstra assim que a realidade concreta na qual a criança está inserida é de vital importância na definição de seu psiquismo e no condicionamento de seu desenvolvimento e por isso foram possíveis as colocações acima. Assim, é necessário que se ressalve nesse texto que, Vigotski, Luria e Leontiev não se detiveram apenas a escrever e estudar sobre o desenvolvimento da criança relacionando-o com a aprendizagem. Antes, o conhecimento elaborado por esses autores se mostra capaz de “explicar” qualquer fenômeno afeto ao psiquismo humano, estabelecendo ainda uma relação importante com o desenvolvimento do sistema capitalista nesse processo. Por isso, essa teoria mostra-se mais que suficiente, inclusive para possibilitar a compreensão da influência da violência doméstica no desenvolvimento e no psiquismo da criança.
Nesse intento, a perspectiva crítica sobre a qual destacou-se as formulações de Engels e Martin-Baró, mostram-se também competentes a “explicar” a violência e são extensivas a violência doméstica. Dessa maneira, tornou-se possível que a violência doméstica fosse compreendida sobre uma ótica totalmente diferenciada, portadora de elementos e pressupostos particulares mas que também está relacionada a organização econômica da sociedade atual.
Entretanto, conforme salientado no início desse capítulo, esse conhecimento sobre a criança vítima de violência doméstica está em construção constante, obedecendo a ordem dialética natural na qual a sociedade se desenvolve constantemente. A partir da realização desse estudo foi possível perceber como é necessário ainda uma maior aproximação à teorias criticas de compreensão do psiquismo e do desenvolvimento humano e sobre a violência e que ainda não estão suficientemente esgotadas no meio acadêmico. Por isso, há necessidade de maior aprofundamento sobre os temas em questão.
Sobretudo deseja-se afirmar mais uma vez, que foi possível se perceber que há necessidade de um compromisso com a infância, sobretudo a vítima de violência doméstica. Nesse sentido é necessário que sempre se procure dar “voz” a esse “segmento”, que além de ser vitimizado dentro do ambiente doméstico, acaba também sendo secundarizado em outras instâncias do fazer humano.
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1 Considere-se que na Base de Dados da CAPES ainda não estavam disponibilizadas as dissertações de Mestrado e Teses de Doutorado referentes ao ano de 2007, na data da pesquisa, especificamente no mês de julho de 2008. Entretanto, a pesquisa junto a base de dados do Scielo, já dispunha diversas publicações referentes aos anos de 2007 e 2008.
2 Foi realizada a análise em torno da família nuclear por se tratar de um modelo ainda hegemônico de constituição das famílias. Entretanto, sabe-se que esse modelo nunca foi a única maneira de organização vigente das famílias, quer seja na Europa, quer seja no Brasil. Em alguns trechos do trabalho foi utilizada a terminologia “família burguesa” fazendo referência a esse mesmo modelo nuclear de organização familiar. Assim sendo, o termo “família burguesa” não faz referência a classes social burguesia no sentido marxiano do termo, mas sim refere-se a família composta por pais, filhos e dependentes diretos.
3 Philipee Ariès não pode ser compreendido como um autor que recorre ao marxismo ou mesmo a uma teoria crítica de compreensão da família. Suas contribuições, entretanto não poderiam ser desprezadas dada a temática de estudo.
4 Friedrich Engels, filósofo alemão que, junto com Karl Marx, fundou o chamado socialismo científico ou marxismo. Foi co-autor de diversas obras com Marx, sendo que a mais conhecida é o Manifesto do Partido Comunista. Também ajudou a publicar, após a morte de Marx, os dois últimos volumes de O Capital. Nesse trabalho é feita referência ao texto Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, obra que Friedrich Engels teria escrito na companhia de Karl Marx, mas que foi publicado alguns anos após o falecimento de Marx
5 Em relação à influência da disciplina junto às escolas, observar o trabalho de Schicotti, R. V. O. Concepções e Práticas de educadores sobre disciplina e limites na educação infantil. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Universidade Estadual Paulista – Assis, SP.
6 Lev Semyonovich Vygotski, Alexander Romanovich Luria e Alex N. Leontiev desenvolveram seus trabalhos na Rússia pós revolução de 1917, pautados na teoria marxiana. Propunham concepções da psicologia e do desenvolvimento do ser humano, tomando como referência a obra de Karl Marx. As principais informações sobre a concepção em questão serão destacadas em capítulos precedentes desse estudo.
7 [...] el organismo dessarrrollado que la célula (VIGOTSKI, 1997a,p.376)
8 “Tal vez sea suficiente descubrir em las formas superiores del comportamiento la existencia de otras inferirores,subordinadas,auxliares” ”(VIGOTSKI,2000b,p.75)“
9 Informações extraídas do site http://www.ibge.gov.br. Acesso em 13 mai. 2008.
10 Ignácio Martin-Baró foi psicólogo e atuou contra a repressão política em San Salvador, El Salvador, na América Central. Suas obras, todas pautadas na teoria marxiana, são de difícil acesso no Brasil, mas versam sobre temáticas relacionadas à violência, poder e ideologia. Ignácio Martin-Baró foi assassinado em 1996, enquanto exercia o cargo de reitor de uma das principais universidades de CentroAmérica, supostamente por membros ligados ao governo local. Estima-se que seu assassinato se deu justamente por denunciar as condições de vida e opressão de grande maioria da população salvadorenha.
11 Así, resulta posible hablar de violência estrutural o institucional, ya que las estructuras sociales pueden aplicar uma fuerza que saque a las personas de su estado o situación, o que les obligue a actuar en contra de su sentir e parecer (MARTIN-BARÓ, 2003, p. 75).
12 [...] ya que es difícil probar que uma estructura social pretende hacer dano a alguiem; em general, la pretensión primaria y objetiva de lãs estructuras sociales es beneficiar a alguien. (MARTIN-BARÓ,
2003, p. 75).
13 Durante a realização das entrevistas com Abelardo, foram retomadas duas ocorrências em que a criança havia sido agredida em sua casa. A primeira delas referiu-se a uma situação em que Abelardo apanhou de uns colegas de classe, na escola onde estudava. Nessa ocasião, vários meninos se dirigiram para agredir Abelardo e este foi retirado do ambiente da briga por sua avó. Quando chegou a sua casa, Abelardo foi agredido fisicamente pelo pai por conta disso, ou seja, porque apanhou dos outros colegas. As agressões começaram com a mão e depois o pai usou uma cinta. Já a segunda entrevista se baseou numa ocorrência em que Abelardo havia saído de casa para
andar de bicicleta e, por causa disso, tinha faltado à escola. Em conseqüência, sua avó o agrediu fisicamente com uma vara de árvore. Essas situações foram recuperadas, porque se acreditou que fosse possível explorar com a criança o sentido que ela atribui à vivência da violência física, da negligência e da violência psicológica. Deseja-se destacar que, em decorrência do acompanhamento que fora realizado com a criança enquanto Assistente Social, durante dois anos, as entrevistas apresentaram certa dificuldade, porque a criança não queria repetir informações
sobre fatos que já havia comentado. Esse também é um dado que merece atenção, porque, mesmo passado certo tempo, Abelardo ainda se lembrava de detalhes das agressões que vivenciou.
14 A entrevista realizada com Rogério retomou a situação em que ele havia saído de casa e retornado durante a madrugada. Rogério, inicialmente, demonstrou não querer falar muito sobre o assunto. Talvez porque esse “acontecimento” já havia sito discutido enquanto o acompanhamento assistencial fora realizado ou até mesmo por orientação de sua avó. Entretanto, quando se dispôs a falar, deixou clara sua percepção sobre o ocorrido.
15 Asi, la justificacion desde el poder de um acto violento lo legitima y lo hace racional al interiro del sistema estabelecido (MARTIN-BARÓ, 2003, p.88).
16 Viviane Nogueira de Azevedo Guerra e Maria Amélia Azevedo são as principais representantes do instituto de pesquisa em questão. As formulações das autoras recorrem a orientação com relação ao psiquismo e outras questões proporcionada pela Escola de Frankfurt. Portanto, trata-se de uma concepção crítica acerca dos fenômenos da vida social, entretanto, as autoras não recorrem ao marxismo ortodoxo.
17 [...] la actividad, em su forma inicial y básica, es la activdad sensorial práctica, durante la cual los hombres se ponen em contacto práctico com los objetos del mundo circundante, experimentan en si mesmos la resistencia de esos objetos y actúan sobre ellos, sobordinándose a sus propriedades objetivas LEONTIEV, 1978a, p.20).
18 Al influir sobre el mundo exterior lo modifican; com ello se modifican también a si mesmos. Por eso lo que los hombres son está determinado por su actividade, la que está condicionada por el nível ya alcanzado en el desarroollo de sus médios y formas de organización (LEONTIEV (1978a , p.22).
19 [...] concebir la personalidad como una nueva formación psicológica que se va conformando en medio de las relaciones vitales del individuo, como fruto de la transformación de su actividad. (LEONTIEV, 1978a, p.135).
20 Em diversos trechos desse trabalho foi realizada referência aos termos “sentido” e significação”. A
“significação” é compreendida como a entrada na consciência humana do conhecimento generalizado sobre a realidade. A “significação” é permeada pelos órgãos do sentido, que possibilitam a percepção do ser humano. O “sentido” por sua vez parte das informações obtidas pelo ser humano com a significação, mas possui um caráter “pessoal,particular”. Assim, ao conhecimento genérico obtido com a significação, pode ser conferido um “sentido” individual. Em relação aos conceitos de “sentido” e “significação” serão tecidas algumas consideração no item seguinte.
21 Será conservado o ano de edição da obras consultadas e não o ano em que foi publicada a primeira versão pelo autor. Esse critério foi utilizado com relação às demais obras consultadas na elaboração deste estudo.
22 As referências aos termos que pais utilizam para com seus filhos, bem como as justificativas para o emprego da violência doméstica que serão ainda destacadas, durante este trabalho, partiram da pesquisa de campo, no caso, das entrevistas realizadas junto a pais/responsáveis pelas crianças vítimas de violência doméstica.
23 [...] El lenguaje oral se desarrolla como resultado directo de la imitación y de la comunicación con los demás, el escrito se desarrolla como resultado de un estudio consciente y sigue conservando las huellas de su origen en sus etapas más avanzadas de su desarrollo (LURIA ,1974a, p.374-375).
24 [...] estructuras que nacen durante el proceso del desarrollo cultural, las calicaremos como superiores, em cuanto representan uma forma de conducta genéticamente más compleja y superior (VIGOTSKI, 2001,p. 121)
25 Será utilizado termo atividade principal no decorrer do trabalho.
26 Aprende a responder cada vez más a los requerimientos del adulto: a seguir su indicación, a subordinarse a la prohibición,a comprender la alabanza, el incentivo (LEONTIEV, 1987, p. 58).
27 Resulta así que los primeiros puntos de apoyo que encuentra el nino para su futura creación es lo que ve y lo que oye, acumulando materiales, cuyas partes fundamentales no combina em vano,sin sentido, las imagenes de la fantasia,amontoadas arbitrariamente unas sobre otras, de modo casual como en lo sueños o em los delírios insensatos (VIGOTSKI, 1996, p.27-28).
28 De aqui la condusión pedagógica sobre la necessidad de ampliar la experiencia del niño si queremos proporcionarle base suficientemente sólida para su actividade creadora. Cuanto más vea, oiga y experimente, cuanto más aprenda y asimile, cuantos más elementos reales disponga em su experiencia, tanto más considerable y productiva será, a igualdad de las restantes circunstanciias, la actividade de su imaginación (VIGOTSKI, 1996, p.18).
ANEXOS
Anexo 1
1. Diário de Campo e Entrevistas – Abelardo
Diário de Campo
Em 22 de fevereiro de 2005, após aprovação em teste seletivo fui encaminhada para atuar como assistente social junto a escolas de ensino fundamental da rede municipal e ainda junto a uma creche. Inicialmente, a atuação foi pensada para acompanha casos de alunos com faltas ou então evadidos da escola. Mas, com o tempo, essa intervenção passou a ser solicitada para o acompanhamento de casos de crianças que apresentavam “problemas de comportamento” (agressivas com colegas e professores, inquietas na sala de aula, etc) e ainda aquelas com dificuldade de aprendizagem.
As escolas reunem-se bimestralmente,a reunião é denominada “Conselho de Classe”. São essas reuniões que são usadas para que professores, coordenador pedagógico, diretor e s equipe técnica estejam a par do que está acontecendo com cada criança. Nessas reuniões os professores apontavam, segundo a série escolar, a criança que estava faltando muito, a criança evadida, a criança com os ditos “problemas de comportamento” e ainda aquelas com “dificuldade de aprendizagem”. Partindo assim dessas reuniões, os casos eram encaminhados aos técnicos disponíveis na escola: assistente social, psicólogo e fonaudiólogo, a depender da demanda apresentada pela criança.
Na lógica acima exposta,no mês de abril de 2005, foi encaminhado o caso da criança Abelardo. Abelardo estava então com 07anos e freqüentava a primeira série do ensino fundamental, na escola municipal de ensino fundamental “Dr. Renato Monforte”. A professora referia que a criança não parava quieta, sentada em sal cadeira. Assim, Abelardo anda constantemente pela sala de aula e nunca fazia qualquer atividade proposta pelo professor. Quando caminhava pela sala de aula, Abelardo agredia as outras crianças, além de ficar sempre cantando as músicas do Latino. Enquanto cantava, era comum que a criança fizesse gestos ditos como obscenos, como segurar o próprio pênis. Isso fazia com que a professora constantemente retirasse Abelardo da sala de aula encaminhando-o a coordenação. Era também comum que os pais e mães, ou responsáveis pela as outras crianças solicitassem a expulsa de Abelardo para outras escolas.
Assim, tendo em vista todo o quadro da criança, abordagens fora iniciadas, ambas desenvolvidas pelo psicólogo e pelo assistente social. As abordagens foram inicialmente desenvolvidas junto a criança e no mês de maio foram extensivas à família. Após as primeiras intervenções do psicólogo ocorridas em 07/04/2005 e 14/04/2005, este definiu por bem encaminhar a criança para o atendimento clínico disponível no município e devido a isso estabeleceu um contato informal com a família. A princípio a família, no caso a avó da criança, recebeu bem a proposta da escola.
Nas abordagens iniciais que realizei com Abelardo, essas ocorridas nos dias 05/04/2005,12/04/2005, 18/04/2005 e 25/04/2005, a criança muito pouco falou. Assim, agendei uma visita domiciliar para o dia 05/05/2005. Mas, não havia ninguém na casa. Permanecemos em uma caçada de gato e rato durante todo o mês de maio, sem que qualquer responsável comparecesse a escola, ou permanecesse em casa durante as visitas, agendadas previamente.
No dia 30/05/2005 estabeleci contato com o psicólogo do Centro de Saúde, responsável pelo atendimento da criança. Esse me informou que até o presente momento pouco havia sido o progresso do caso, já que a criança comparecia ao atendimento em semanas alternadas e sempre chegava atrasada do horário proposto.
Assim, no daí 31/05/2005, sem agendar a visita compareci a residência de Abelardo, por volta das 9:30 horas da manhã. A residência de Abelardo localiza-se a Rua Latino,s/ nº. no Bairro Postar. È o bairro mais pobre do município. Realizei a abordagem junto a avó da criança e essa sim nos ofereceu informações que mereceram nossa atenção.
È a Sra. Ivana, viúva, com 52 anos de idade que se ocupa dos cuidados de Abelardo. Ela e avó paterna da criança e nos disse que Abelardo fora abandonado pela mãe quando tinha apenas oito meses de vida. Seu filho, Ulisses, pai da criança reside na mesma casa e há ainda outro filho Adolfo, tio da criança. Após o abandono Abelardo não teve mais contato ou qualquer notícia da mãe. Nessa abordagem a Sra. Ivana declara-se uma pessoa amável e compreensiva e sempre faz questão de declarar seu amor pela criança. Ao ser questionada quanto as queixas escolares apenas “ri” e diz que isso é coisa de criança. Já no que diz respeito ao atendimento psicológico, Ivana, por sua vez se mostrou resistente. Declara que a criança não precisa disso e que, se tiver algum “problema de cabeça” deus irá curar. Apesar disso, deixamos acordado que o próximo atendimento psicológico ocorreria no dia 03/06/2005 às 14:00 horas e que Abelardo deveria comparecer ao que a responsável demonstrou concordar.
No entanto, o mês de junho se mostrou “catastrófico”. A Sra. Ivana não compareceu em qualquer atendimento assistencial e Abelardo compareceu em apenas uma sessão de atendimento psicológico, essa no dia 10/06/2005. O comportamento na sala de aula permanecia inalterado e a alfabetização da criança permanecia “inalterada”. Combinamos então com a escola de realizarmos uma avaliação do caso e dos procedimentos necessários a serem adotados no fim do mês de julho já que iniciava-se o período de férias.
No final do mês de julho, em reunião realizada entre o psicólogo clínico responsável pelo atendimento do caso, o assistente social, a coordenação e a direção da escola, definiu-se que seria acompanhado o caso por mais dois meses e caso não houvesse mudança, esse seria encaminhado ao Conselho Tutelar. Essa “decisão” foi participada a Sra. Ivana em 02/06/2005, por meio da uma visita domiciliar realizada sem comunicação prévia. Ao ser colocada essa possibilidade, a Sra. Ivana apenas sorriu e exclamou uma única frase”maior poder tem deus”.
Assim, no mês de agosto e setembro, Abelardo continuou a ser acompanhado pelo assistente social e houve tentativa do atendimento psicológico clínico. Apesar disso, dos nove atendimentos psicológicos que estavam agendados, mas a criança compareceu apenas em dois. Como já havia sido acordado com a avó de Abelardo, o caso dói então encaminhado ao Conselho Tutelar. O Conselho Tutelar aplicou a medida de advertência, conforme disposto no ECA.
Os atendimentos assistenciais foram mantidos. Isso porque eram desenvolvidos com a criança na escola, em seu horário de aula. Mas, Abelardo falava muito pouco sobre sua vivência familiar, sobre suas perspectivas de futuro e duro dizer que, depois que o caso foi encaminhado a Conselho Tutelar, a criança se manteve mais distante.
Nos meses seqüentes, outubro e novembro, Abelardo passou a freqüentar os atendimentos psicológicos. Na clínica, no entanto, a criança passou a ser mais participativa. Mas, na escola o comportamento ainda não havia se alterado.
Mas, a criança viajou nos meses de dezembro e janeiro sem avisar e retornou apenas em fevereiro de 2006. Os atendimentos foram retomados e até mantiveram certa freqüência durante os meses de fevereiro e março. Porém o comportamento de Abelardo ainda se manteve. Aliás, na primeira semana de abril um acontecimento veio a alterar a situação da criança. Aconteceu que Abelardo, ao fazer uso do transporte escolar, colocou parte do seu corpo para fora do ônibus pela janela. Assim, o motorista responsável procurou a direção da escola e “informou” que não iria mais transportar a criança. Após esse acontecimento Abelardo foi retirado da escola em questão e transferido para a Emeif Ozira de Arruda Mendes, onde cursaria a 2ª. Série do ensino fundamental, próxima a sua casa.
Logo após a transferência, medida aliás adotada pela avó da criança, o assistente social foi chamado a intervir junto ao caso. Relatava a professora que Abelardo, além de prosseguir andando pela sala de aula, começava a xingar outros alunos, sobretudo as meninas usando termos como “bucetuda” e “puta”. As agressões se davam, segundo a professora sem haver qualquer motivo aparente. A Sra. Ivana, ao ser questionada sobre os termos usados pela criança, em entrevista, apenas dizia, várias vezes a frase “é o capeta tentando”.
Abelardo já estava com quase oito anos e ainda não sabia ler, nem escrever. Era temido na escola, tanto por outras crianças quanto pelos professores e seu caso se tornou notório junto ao Departamento de Educação. Como não fazia qualquer das atividades propostas na sala de aula e permanecia nela apenas agredindo outros alunos, era constantemente encaminhado para a sala da coordenadora. Essa passava uma série de atividades de pintura para ocupar a criança.
O mês seguinte, o de maio foi mais complicado ainda. Abelardo não compareceu em nenhum dos atendimentos psicológicos propostos e o psicólogo clínico definiu por bem encaminhar o relatório do caso ao Conselho Tutelar, novamente. O atendimento psicológico foi assim “suspenso”. O Conselho Tutelar aplicou mais uma advertência a família, dessa vez por escrito. No mês de junho a criança permaneceu sem atendimento psicológico, haja visto que havia sido “suspenso” e aguardava outra vaga.
Mas, apesar de todas as vicissitudes da vida da criança, esse mês, representou um avanço no atendimento assistencial. Nesse mês, Abelardo recebeu uma carta de sua mãe. Foi a primeira vez que sua mãe biológica, Cassandra, estabeleceu contato com a criança. Havia na carta um número de telefone para contato. Segundo a avó, foi estabelecido contato com a mãe da criança, mas essa se negou a assumir qualquer responsabilidade de cuidar da criança.
Esse fato mudou tudo. Com medo de perder a guarda da criança, a Sra. Ivana procurou o assistente social solicitando orientação. Tato inédito!Mas, depois do que aconteceu Abelardo teve algum dispositivo que o motivou a falar sobre sua família. As informações que destacarei a seguir foram extraídas das abordagens que realizei com a criança. Elas foram anotadas em relatórios de abordagem social e foram aqui “compiladas” Decidi, por minha conta, anotar com detalhes as informações sobre o caso de Abelardo. Isso porque, após o meu ingresso no Programa de Mestrado da Unesp de Assis – SP, passei a considerar a possibilidade de Abelardo figurar entre os sujeitos de minha pesquisa de campo.
Assim, no atendimento ocorrido em 19/06/2006, Abelardo se dispôs a falar sobre sua mãe biológica. Relatou que sentia muita vontade de conhecê-la, mesmo que fosse desencorajado por sua avó e por seu pai. Nessa ocasião, a criança relatou que, segundo sua avó, sua mãe era uma pessoa má, que vivia bêbada. Abelardo disse ainda na mesma ocasião que sua avó teria contado que quando criança, quase que Abelardo morreu. Segundo sua avó lhe informara, a cãs aonde residiam pegou fogo e sua mãe, em alto estado alcoólico não percebeu o que estava acontecendo. Assim, ao mesmo tempo que a criança demonstrava vontade de conhecer a mãe, também demonstra possuir uma série de pré-conceitos acerca da figura materna. Esse atendimento foi todo conduzido em torno da discussão da figura materna e quando a criança optou por não mais discorrer sobre isso, ou sobre qualquer outro assunto, o atendimento era concluído.
Em 26 de junho, ao invés de entrevista formal com a criança realizamos atividade lúdica, com jogos. Já em 29 de junho foi realizada entrevista, com a Sra. Ivana, onde algumas das colocações estarão aqui discutidas. Ao serem retomadas as questões acerca de Cassandra,ma~e de Abelardo, a Sra. Ivana, retomou toda a histórica que a criança havia contado posteriormente. Nessa abordagem, a Sra. Ivana declarou que Cassandra “não valia nada” e que vivia “ uma vida cheia de pecados”. Segundo a Sra. Ivana sempre, Cassandra bebia e chegou ao cúmulo de dormir bêbada. Nessa ocasião a casa onde residia pegou fogo e Abelardo, ainda bebê dormia na cama da mãe. A Sra. Ivana declarou que chegou no exato momento em que a casa pegava fogo e retirou Abelardo e sua mãe do ambiente. Assim, a Sra. Ivana, concluiu que Cassandra era uma péssima influência para Abelardo.Declarou ainda que meses após esse fato, Cassandra foi morar em São Paulo e ficou quase oito anos sem qualquer notícia até o envio da carta, da qual já me referi nesse diário. Após todas essas colocações a abordagem foi concluída. Particularmente, percebi que a Sra. Ivana tem uma certa aversão a mãe biológica de Abelardo, Cassandra. Associa os atos de Cassandra como “beber” a um pecado, algo que supostamente contraria qualquer designo universal de momo deve-se portar alguém que é bom. E mais, para a Sra. Ivana, seu julgamento se expressa como real ao passo que Cassandra abandonou a seu filho.
No mês de julho o atendimento foi suspenso em virtude das férias que retirei e foi retomado em agosto de 2006.
No dia 07 de agosto de 2006 fiz outro atendimento com a criança e, nessa ocasião discutimos sobre a situação familiar atual que Abelardo vivenciava.Abelardo contou que morava em sua casa com sua mãe, a Sra.Ivana, seu pai e seu tio. Disse que “mãe”, era na verdade, sua avó e que ela o criava desde bebê. Em relação ao seu tio, a criança pouco falou. Disse apenas que chamava-se Adolfo, que trabalhava na usina de açúcar e álcool, no corte de cana-de-açúcar. Em relação ao pai, Abelardo, informou-nos que seu pai chama-se Ulisses e que seu pai é pedreiro e trabalhava as vezes. Ao ser questionado sobre sue relacionamento com seu pai, Abelardo, a princípio disse que possuía uma boa relação. Depois, disse que o pai, as vazes batia nele. Relatou que, sempre que seu comportamento na escola era “descoberto” pelo pai, que Abelardo apanhava. A criança relatou que quando recebia os bilhetes da escola, sempre os entregava para sua avó porque se seu pai recebesse, que Abelardo apanhava do pai. Ao ser questionado sobre essa situação, sobre o pai agredí-lo, Abelardo colocou que seu pai estava acerto em agredi-lo, já que sempre se comportava mau na escola. Destaquei, no entanto que esse tipo de comportamento não era assim tão acertado e que diante das colocações de Abelardo, que eu devia encaminhar relatório do caso ao Conselho Tutelar. Expliquei assim que esse órgão iria entrar em contato com seus familiares e que eles saberiam do que estávamos conversando. Abelardo se mostrou muito, mas muito assustado com essa possibilidade, mas , enfim acabou aceitando. A possibilidade de que as agressões parassem foi o que motivou Abelardo a aceitar o encaminhamento do seu caso ao Conselho Tutelar. R assim, realizei o encaminhamento do caso da criança ao Conselho Tutelar. Nessa ocasião o comportamento da criança permanecia igual aos meses anteriores e ainda continuava sem atendimento psicológico.
Hoje, no dia 10 de agosto, o conselheiro tutelar Benji Michel estabeleceu contato por telefone. Declarou que havia realizado uma visita domiciliar e aplicado medida de advertência junto ao pai de Abelardo. Informou o conselheiro que o pai da criança afirmou que havia realizado todas as agressões que a criança havia relatado em atendimento. Segundo Benji, o pai de Abelardo em nenhum momento negou as colocações e ainda justificou sua postura como correta. O conselheiro tutelar ainda me pontuou que irá estabelecer contato com o psicólogo do Centro de Saúde solicitando uma vaga para das continuidade ao atendimento.
Nova ocorrência no caso de Abelardo, hoje no dia 14 de agosto de 2006. Ao chegar na escola logo me deparei com a criança na sala da direção. A diretora veio até mim e me informou que Abelardo havia subido na sua carteira e começou a cantar uma música do Latino. Segundo a diretora, enquanto a criança cantava fazia também gestos obscenos. O pedido da professora para que Abelardo parasse com esse tipo de comportamento foi inútil, segundo me contou a diretora. Passamos assim a sala de atendimento na ocasião apenas Abelardo e eu. Discutimos sobre o que havia acontecido na sala de aula e Abelardo apenas dizia-se arrependido do que havia afeito. Declarou que sentia uma “gonia” e por isso que subia na carteira e cantava. Como Abelardo se negava a conversar comigo sobre qualquer assunto que fosse, demos seguimento ao atendimento jogando um dominó e depois foi concluído.
Nesse mesmo dia, por volta das 14:30 horas fui chamada a escola pela direção. Quando cheguei novamente estava Abelardo na sala da direção. A diretora Marina, disse que por conta do comportamento da criança no período da manhã, não deixou que Abelardo fosse embora para sua casa após o término do período da manhã. Marina me disse que, esperava que a avó de Abelardo, percebendo que a criança não retornava da escola, que fosse procurá-lo nesse local. Mas até as 14:30 horas ninguém havia procurado a criança e Abelardo acabou almoçando e até dormindo na escola. Depois disso, fui até a casa de Abelardo que estava fechada e, aparentemente não havia ninguém, em casa. Deixei recado com a vizinha, solicitando que Ivana fosse até a escola. Retornei a escola e como Abelardo estava acordado começamos a conversar. Abelardo me disse que nem sempre quando retorna da escola encontra almoço pronto. Disse que quando isso acontece, toma um danone ou um copo de leite. Colocou que depois disso sai para a rua e fica com seus colegas. Por volta das 16:00 horas a Sra. Ivana chegou até a escola. Informou que tinha recebido o recado de sua vizinha e que tinha vindo buscar a criança. Chamei-a para uma conversa e discutimos sobre o fato dela não perceber que Abelardo não havia voltado da escola e sobre o fato de ela, como responsável não providenciar a alimentação da criança. Para minha surpresa, a Sra. Ivana confirmou todas as colocações de Abelardo. Primeiro me disse que sai de casa quase todas as tardes, sendo que ora saia para vender seus produtos da natura ou ora para realizar seus trabalhos na igreja. Assim, por conta de seus compromissos não podia esperar Abelardo chegar da escola. Em relação a alimentação da criança, a Sra. Ivana justificou que Abelardo não fora habituado a comer comida quando criança. Disse que qualquer comida logo “enchia” a criança e ele parava de comer já que desde muito jovem só ingeria leite e derivados. Apesar de tentar o máximo ser técnica, não pude esconder meu assombro diante das colações da Sra. Ivana. Não conseguimos estabelecer um consenso sobre a melhor maneira de alimentar uma criança, mas , solicitei com insistência que ao menos a Sra. Ivana aguardasse o retorno de Abelardo da escola ao que ela assentiu. Assim, deixei acertado que, eventualmente não realizaria o encaminhamento do caso ao Conselho Tutelar, mas que esse seria acompanhado sistematicamente.
Hoje, no dia 28 de agosto realizei visita domiciliar. Apesar de agendada previamente não havia ninguém na casa. Recorri, mais uma vez, a vizinha , a Sta. Marieta. A Sra. Marieta começou a me perguntar porque eu vinha tanto a casa de Sra. Ivana. Disse do seu interesse porque era mãe de Sra. Ivana, por conseguinte bisavó de Abelardo. Perguntou se eu era do “titelar” porque se eu fosse era bom eu levar Abelardo preso. Diante dessa colocação me interessei e perguntei porque eu deveria prender uma criança. Marieta disse que Abelardo estava envolvido com “gente do mau daqui da vila”. Declarou que durante o período da tarde Abelardo desaparece no bairro onde mora. Disse ainda que dias atrás Abelardo havia saído depois da escola para a rua e que havia voltado para a casa apenas as duas horas da madrugada. Segundo Marieta, isso era constante. Então, para ela, a melhor alternativa era prender Abelardo na Febem. Tentei esclarecer qual era o meu papel e da instituição mencionada. A Sra. Marieta demonstrando concordar com tudo apenas m e pediu licença e disse que precisava fazer seu almoço. Solicitei que entregasse a sua filha a solicitação de comparecimento e ela concordou.
No dia 28, solicitei que a Sra. Ivana comparecesse a Emeif no dia 04/09, ou melhor deixei acertado com sua mãe por meio da entrega de uma convocação escrita. No entanto, a Sra. Ivana não compareceu. Nesse dia também estabeleci contato com o psicólogo do Centro de Saúde, Alfredo, que me informou quanto do novo início do atendimento reservado para a criança, por sinal toda a sexta-feira, as 14:30 horas. Alfredo colocou que já havia informado a família de Abelardo.
Hoje, no dia 06 de setembro de 2006, enquanto eu fazia o atendimento assistencial na Emeif. Dr. Renato Monforte, fui chamada a Emeif. Ozira de Arruda Mendes, a pedido da direção. Fui informada ao telefone que a Sra. Ivana me aguardava. Quando cheguei a escola estavam na sala da direção a diretora Marina, a Sra. Ivana e Abelardo. Logo percebi que alguma coisa grave havia acontecido. Ao ingressar na sala de aula, digo , na sala da direção, a Sra. Marina me relatou que Abelardo havia roubado oitenta reais de sua avó. A Sra. Ivana, muito exaltada passou a falar que tinha guardado o dinheiro embaixo do colchão e que só Abelardo sabia onde estava. A diretora começou a falar que a Sra. Ivana adentrou a escola e depois a sala de aula de Abelardo e se atirou contra a criança, encontrando o dinheiro que havia desaparecido. Até tentei discutir o que havia acontecido, mas a Sra. Ivana estava tão alterada que não foi possível e a abordagem foi encerrada, Mas, algo me diz que, isso não vai ficar só na conversa.
Meus “pressentimentos” da semana passada se comprovaram hoje no dia 11 de setembro quando cheguei a Emeif. Abelardo mais uma vez, me aguardava na direção. Dessa vez, entretanto, Abelardo que havia solicitado que eu o atendesse. Assim, nos dirigimos a sala de atendimento onde Abelardo se pôs a falar assim que fechei a porta. Abelardo começou me contando que após o dia do roubo ao chegar em sua casa foi mantido em um quarto escuro durante a tarde e a noite. Nesse período segundo Abelardo, ficou sem comer e sem falar com ninguém. Perguntei sobre o que Abelardo havia “achado” dessa situação e ele me disse que tinha ficado com muita raiva de sua avó que o havia colocado no quarto fechado. Ai ele me disse que sentiu tanta raiva, mas tanta raiva que quebrou a cama. Disse que ficou ouvindo quando todos saíram de casa. Ai começou a pular na cama, até que o estrado quebrasse. Depois disse que ia quebrar o guarda-roupa quando seu pai chegou e ouviu os barulhos dentro do quarto. Abelardo me contou que seu pai abriu a porta do quarto e o retirou de dentro a socos e pontapés. Nessa ocasião disse que seu pai começou a bater na sua “bunda”, depois passou para a cabeça e pernas. Aliás
Abelardo chegou a mostrar algumas escoriações na perna, referindo ser resultado dessa surra. A criança prosseguiu contando que na hora da agressão seu pai gritava “filho do cão” por repetidas vezes. As agressões só teriam cessado quando a avó de Abelardo chegou, retornando da igreja. Abelardo me disse que isso era a noite e que depois disso foi recolocado no quarto onde dormiu no colchão disposto e só saiu de lá no dia seguinte para almoçar.A criança ainda se “justificou” dizendo “ foi por isso que eu não fui no desfile tia”. Retomei a situação e perguntei a criança o que ele achava daquilo que viveu. Ele me disse que foi ruim, que sentiu fome. Mas argumentou que seu pai estava certo, afinal ele tinha roubado sua avó, tinha tentado quebrar a cama, então devia mesmo apanhar. Abelardo prosseguiu ainda dizendo que só não gostou de ser chamado de “filho do cão”, que ele era sim “filho de deus”. Discutimos sobre que atitude tomar frente a essa situação, de maneira que, perguntei a ele”o que você quer que eu faça?”. Abelardo, com tom até irônico me disse:”Chame o Tutilar de novo pô”. Ai eu perguntei o porquê deveria chamas o conselho e a criança me disse que as agressões sempre diminuíam após a visita desse órgão. E, deixei combinado que primeiro chamaria o Conselho Titelar, mas que convidaria também sua avó e seu pai para o próximo atendimento ao que ele concordou. Logo após a conclusão da entrevista tornei a encaminhar relatório do caso de Abelardo ao Conselho Tutelar e solicitei também a presença do pai da criança e de sua avó.
Hoje, excepcionalmente compareci a Emeif. No período da tarde. Isso porque o atendimento com a família de Abelardo havia sido agendado para o dia 15 no período da manhã, mas a Sra. Ivana compareceu a escola informando impossibilidade de comparecimento e, declarou ainda que só poderia participar da entrevista hoje. Iniciamos o atendimento retomando o fato ocorrido no dia 06/09, mais especificamente em relação ao fato narrado por Abelardo de ter ficado trancado no quarto, sem comida e ainda de ter apanhado. A Sra. Ivana que compareceu a entrevista, visto que o pai de Abelardo não veio, iniciou a falar. Começou dizendo que precisava educar Abelardo e que depois do que ele aprontou era o mínimo que podia fazer. Disse que, partiu dela a iniciativa de colocar Abelardo no quarto fechado e de deixar a criança sem comer. Perguntei o que ela achava disso, desse tipo de atitude e ela me disse que ela precisava educar. Disse que era ela que lhe dava de comer desde bebê, desde quando sua mãe biológica o abandonou e, portanto sabia qual era a melhor maneira de educar. A Sra. Ivana disse que até ficou com dó quando chegou e viu Abelardo apanhando, mas era para o bem dele. A Sra. Ivana ainda falou que na bíblia sagrada, que é o melhor livro que existe, diz que “Vara e correção dão a sabedoria, menino abandonado a sua vontade se torna a vergonha da mãe” e por isso deve-se usar a vara para corrigir a criança. Perguntei aonde isso estava escrito e a Sra. Ivana me disse que isto estava escrito no Antigo Testamento, do livros dos provérbios, no capítulo 29, no verso 15. Segundo a Sra. Ivana, a bíblia diz que deve castigar o filho para que ele possa ser educado e assim evitar envergonhar seus pais. Orientei quanto a esse tipo de atitude era nociva a criança e inclusive quanto a situação legal. Mas, a Sra. Ivana ainda se manteve em sua postura. Passamos em seguida a tratar da informação sobre Abelardo, a qual, segundo vizinhos, a criança perambulava pelas ruas do bairro inclusive chegando a retornar para a sua casa por volta das duas horas da madrugada. A Sra. Ivana, confirmou todas as informações e ainda me disse”se eu prendo vocês falam, se eu solto, vocês falam” e em um tom agressivo me disse “leva ele para a sua casa ué”. Declarou ainda que a igreja lhe orienta como agir e sempre depois que bate em Abelardo, depois se ajoelha e ora a deus. Por isso, para a Sra. Ivana pouco importava o que eu pensava ou o que qualquer juiz pensasse pois juiz de sues atos era deus. Assim, percebendo o embate conclui apenas informando que as medidas legais possíveis seriam adotadas. Devo destacar que, nessa ocasião a Sra. Ivana pouco demonstrou estar preocupada. Demonstrou estar tão certa que a maneira que educa seu filho, digo, seu neto é a mais correta que cheguei a ficar surpresa.
Nesse mesmo dia (11/09) estabeleceu contato com a professora de Abelardo. Ela me informou que a criança estava “menos pior”, mas isso em relação ao comportamento , já a aprendizagem se mantinha estável, ou seja, a criança não havia “evoluído” nem na escrita, quanto menos na leitura. De modo que, por conta disso, Abelardo foi encaminhado a sala de reforços.
Hoje, no dia 02 de outubro retomei minhas atividades junto a escolas. Estive afastada durante quinze dias por ter contraído conjuntivite. Logo que eu cheguei a escola, procurei informações sobre Abelardo. Segundo informações da direção o “quadro” manteve-se estável. Também falei com Abelardo. Perguntei sobre a escola, a família e ele só me respondia “tudo sussa”. Perguntei com relação ao atendimento psicológico e Abelardo me disse que havia ido uma vez no “psico”. Por conta dessa declaração após o término do atendimento estabeleci contato com o psicólogo Alfredo. O psicólogo me informou que realmente a criança havia comparecido a uma única sessão, ocorrida no dia 15/09. Aliás Alfredo me disse que nessa vez Abelardo chegou meia hora após o horário combinado na companhia de sua avó. O psicólogo me disse que já havia encaminhado um ofício para o Conselho Tutelar comunicando os fatos e ainda me falou que dessa maneira como vinha ocorrendo, o atendimento clínico nunca traria qualquer resultado.Alfredo ainda me falou que tinha conversado com a avó de Abelardo sobre a importância do horário de atendimento e da freqüência. Mas, segundo o psicólogo ela apenas sorriu e disse que o único que poderia ajudar seu neto era deus. Percebi que Alfredo está tão atônito quanto eu com relação ao comportamento de Sra. Ivana e, sobretudo quanto a essas colocações. Cada vez que reflito sobre isso percebo a importância que a religião ainda tem na vida das pessoas aqui da cidade. E também a crença nesses ideais acaba os privando de assumirem suas responsabilidades. Parece que é mais fácil, acreditar em algo sobrenatural. Enfim, considerando toas essas colocações, resolvi estabelecer contato por meio de uma visita domiciliar, se possível para o dia 03/11 (amanhã).
Apesar das minhas tentativas apenas hoje, dia 10 de outubro que consegui estabelecer contato com a Sra. Ivana através de visita domiciliar. A Sra. Ivana já me recebeu com certa hostilidade, tanto que me atendeu no portão de sua casa. Disse que não era para eu entrar na casa porque estava muito bagunçada. Iniciamos assim, conversando sobre o atendimento psicológico. A Sra. Ivana disse que não levava Abelardo porque era muito longe de sua casa e também porque não acreditava nessas “coisas”, “besteiras que o homem cria”. Voltou a afirmar que a única pessoa que poderei mudar Abelardo era deus. Perguntei se ela acreditava mesmo nisso e ela me disse que sim. Disse ainda que o deus dela “passou o mar vermelho a pé enxuto”, que curou muitos enfermos e que eu precisava saber mais sobre ele. Me indicou a leitura do evangelho de São João e se prontificou até a me emprestar uma bíblia para eu ler. Eu me seguei e a conversa foi longe. A Sra. Ivana me contou do livros genises, da criação do mundo e tudo mais. Depôs disso, ainda me chamou para ir a culto. Declarou que atualmente freqüenta a igreja congregação cristã do brasil. Bom, em resumo, nesse dia percebi que ela realmente não acredita no atendimento psicológico proposto. E mais, ela até se propõem a levar a criança, mas nunca faz o que é combinado. Conclui a vista sem nada muito concreto estabelecido.
E, 31 de outubro o psicólogo me ligou e me informou que Abelardo havia comparecido em todos os atendimentos, esses ocorrido em 20 e 27 do referido mês. Pontuou no entanto que no atendimento do dia 27/10 a Sra. Ivana havia solicitado que o psicólogo encaminhasse Abelardo para um “médico de cabeça”. Marcamos de conversar sobre isso e nos reunimos no período da tarde. Alfredo iniciou dizendo que a Sra. Ivana, após o encerramento do atendimento, entrou na sala na companhia de Abelardo solicitando a atenção do psicólogo. Segundo o psicólogo me contou a Sra. Ivana disse que precisava passar Abelardo em um “médico de cabeça”. Ao ser questionada o porquê dessa solicitação, a Sra. Ivana declarou que tinha ido com Abelardo na caixa receber seu pagamento e entrou na fila já que não sabe sacar o dinheiro no caixa eletrônico. Disse ao psicólogo que enquanto aguardava Abelardo subiu na parte superior do banco e começou a cuspir na cabeça das pessoas que estavam na parte de baixo. A Sra. Ivana teria dito para Alfredo que isso era coisa de “maluco”. E por isso queria que Abelardo fosse submetido a uma consulta médica específica. Alfredo me disse que contrariado fez o encaminhamento e a consulta com neurologista foi agendada par ao dia 07 de novembro na cidade de Presidente Prudente com o médico responsável.
Hoje, dia 10 de novembro, no período da manhã, a Sra. Ivana me procurou na escola e como não me encontrou foi até o departamento municipal de educação. Fui atende-la e a Sra. Ivana me perguntou se eu podia auxiliar com relação ao medicamento de Abelardo. Disse que o neurologista fez um mapeamento e que constatou qu e Abelardo tinha um “problema de atenção”. Observei a receita médica e estava prescrito ritalina. Orientei que procurasse o posto de saúde e foi o que ela fez. Logo retornou com as caixas do medicamento e disse que já iria administrar. Pareceu esquecer do poder curado do seu deus!
Hoje dia 20 quando cheguei a escola, a diretora logo me procura. Refere que a professora da sala de aula de Abelardo a procurou dizendo que agora a criança não conseguia ficar acordado na aula. Relatou ainda a diretora que, segundo a professora, Abelardo chegava sonolento e assim permanecia durante todo período e que várias vezes chegava a dormir em sua carteira por mais de uma hora. Pressupus que fosse resultado do medicamento e por conta disso fui até a residência da criança para conversar com sua avó. Ela ao perceber minha chagada logo me perguntou “o que Abelardo aprontou?”. Expliquei a ela o porque da realização da visita e ela percebeu que por enquanto maior gravidade era o sono da criança. A Sra. Ivana declarou que havia percebido isso em casa também, mas que era melhor assim. Perguntei o porque de tal afirmação e ela me disse “assim ele dá paz para vocês e para mim”. Mesmo assim combinamos de a criança quando fosse submetida a retorno médico fosse reavaliada. Aliás, segundo a Sra. Ivana me informou o retorno estava agendado para o dia 21, dia seguinte. Como não havia mais o que discutir a abordagem foi concluída.
Hoje, dia 24 de novembro procurei a Sra Ivana em sua residência a fim de receber informações sobre a possível consulta neurológica a que Abelardo teria s submetido no dia 21/11. A Sra. Ivana, que devo dizer me recebeu muito bem, e até me ofereceu um café, começou reclamando de ter ido até Presidente Prudente. Iniciou dizendo que teve que ir com o carro da prefeitura, um ônibus que levava várias pessoas para serem atendidas no hospital universitário. Pro conta disso teve que sair de Quatá as cinco e meia da manhã. Foi atendida logo, mas teve que esperar ate que todos os outros que também viajaram estivessem sido atendidos. De maneira que, foi retornar para Quatá por volta das 16:30 horas. Em relação ao atendimento médico especificamente, a Sra. Ivana disse que relatou os sintomas de Abelardo ao médico, mas isso não mudou sua prescrição. De volta a Quatá, a Sra. Ivana disse que iria continuar administrando o medicamento ao menos até o fim da caixa que tinha recebido do posto de saúde.
As atividades na escola são concluídas hoje, dia 15 de dezembro de 2006. Também entramos em período de recesso e só retornaremos no dia 02 de janeiro de 2007. Ainda hoje, dia 15, a Sra. Ivana me procurou dizendo que irá viajar para a cidade de Presidente Epitácio, onde irá passar o período de natal e o mês de janeiro. Como no mês de fevereiro eu terei que tirar minhas férias pressuponho que não terei mais contato com Abelardo. Iss porque também nesse mês encerrará meu contrato com a prefeitura municipal. Mas, penso em voltar ao caso de Abelardo por conta do mestrado. Devo entretanto “dizer” aqui que esse caso me deixou muito inquieta. Percebi várias coisas, primeiro que a violência doméstica é compreendida tanto pela criança, quanto pelos responsáveis como uma prática educativa. Também percebi a ineficiência da orientação diante de conceitos já tão arraigados nas pessoas e mais, percebi que o Conselho Tutela aplicando só advertências não ajudou quase nada. Enfim...
Eu pensava que não teria mais contato com Abelardo, ou melhor,imaginava que isso só ia acontecer quando eu fosse fazer a entrevista para a minha pesquisa. Mas hoje em 04 de setembro solicitou o juiz que eu realizasse acompanhamento do caso de Abelardo. Agora eu estou novamente trabalhando na Prefeitura Municipal, mas concursada e no departamento de Promoção Social. Estive afastada de fevereiro a julho de 2007. Combinamos uma entrevista entre eu e o juiz para o dia 06/09 onde ele me explicaria o porque de sua solicitação.
Profissionalmente, hoje dia 06/09 foi um dia muito ruim. O motivo foi a entrevista com o juiz, Sr. Rafael. Fui até o Fórum para que pudéssemos conversar sobre o caso Abelardo. O Sr. Rafael disse que aparentemente Abelardo havia tido um comportamento agressivo na escola, isso no mês de agosto. Declarou o juiz ainda que por conta disso foi encaminhado ao assistente social responsável pela educação. Segundo Abelardo, o assistente social teria dito que ele precisava era apanhar. Ai, consta na história que, Abelardo foi até o Conselho Tutelar e depois foi até o Fórum reclamar da postura do profissional. Isso teria feito com que o juiz encaminhasse a criança a mim novamente. Aliás, decisão que o juiz tomou junto com a criança. Quando passamos a tratar acerca do caso de Abelardo, percebi que o juiz Rafael não sabia de grande parte do que já havia acontecido. Quando contei algumas passagens, como a de ter ficado trancado no quarto escuro, o juiz demonstrou-se totalmente surpreso. Ele disse que não havia nada relatado na pasta da criança. Passamos a analisar os documentos e percebi que havia pouquíssimas informações sobre os quase dois anos em que eu acompanhei o caso. Observei ainda que não havia quase informação também da maneira que era desempenhado pela família o acompanhamento psicológico. Diante dessa infeliz constatação fomos até ao Conselho Tutelar. Lá, falei com o conselheiro Benji Michel. O conselheiro me abriu uma pasta onde estavam todos os relatórios que envolviam o caso de Abelardo, tanto os meus quanto os do psicólogo. Aconteceu que, o conselheiro não julgou pertinente encaminhar aquelas informações ao Fórum. O Sr. Rafael, muito constrangido com aquela situação solicitou que fosse tirado xérox de tudo e encaminhado a ele e ainda concluiu com a frase “isso é para ontem”. Eu me despedi do juiz e fui até o Centro de Saúde verificar sobre o atendimento psicológico. O psicólogo Alfredo me disse que desde o meu afastamento do caso, Abelardo nunca mais havia comparecido aos atendimentos, mas pontuou que já tinha avisado o conselho tutelar e ninguém adotou qualquer postura. O psicólogo me disse ainda que agora, por causa de um lance de transferência, que não tem mais condições para acompanhar Abelardo e que, ele deveria ser encaminhado a outro profissional.
Eu não entendi direito isso, mas compreendi que Alfredo não tem mais condições de continuar com o atendimento. Com essas e outras, me ocupei a manhã toda com as novas informações sobre Abelardo. Pensei em ir na escola no dia seguinte mas é feriado, então vou deixar para a próxima semana.
Hoje eu fui para a escola. Expliquei que iria acompanhar o caso novamente a pedido judicial, primeiro a diretora Marina. Depois eu e a diretora fomos falar com o assistente social e ele se mostrou aparentemente indiferente. Ai fui até a sala mas a professora havia abonado, hoje dia 14/09/2007. Deixei acertado o retorno para o dia 17/09.
Em 17/09 fiz uma outra abordagem com a escola. Dessa vez, fiz contato com a professora de Abelardo. Agora, a criança já está com 09 anos e iniciou ao 3º ano do ensino fundamental. Iniciamos a entrevista discutindo sobre a questão da aprendizagem. A professora me disse que Abelardo ainda não lê, nem escreve. Disse que ele apenas copia e com muita dificuldade. Comentou que a única coisa que consegue escrever é o primeiro nome. A professora me falou ainda que Abelardo vinha freqüentando as aulas de reforço escolar, mas isso também não tinha provocado qualquer mudança. Assim, segundo relatou, ela fazia atividades separadas para Abelardo, mas ele nunca conseguia desempenha-las. A professora declarou-se preocupada com essa situação da aprendizagem da criança. A professora ainda dando seguimento a suas colocações falou sobre o comportamento da criança. Relatou que Abelardo não permanecia quieto na carteira, nunca. Informou que em certos momentos ele trafega pela sala de aula e quando faz isso sempre está mexendo com as outras crianças. Perguntei o que Abelardo fazia e a professora passou a me descrever toda uma série de comportamentos atribuídos a criança. Relatou que quando passeia pela sala, vai batendo na cabeça dos outros alunos, ou como ela mesmo afirmou “ele vai dando um pedala robinho nas crianças”. A professora me contou ainda que as outras crianças às vezes reagem, mas, em geral sentem muito medo de Abelardo. Por conta disso, em reunião de pais, os pais dos colegas de sala solicitaram a expulsão de Abelardo da sala de aula. A professora ainda falou que às vezes ele se irrita com algum colega e ai pata agredir, chama a criança de “dona nega”, o que não tem muito sentido para os outros alunos. Ela ainda me disse que ele sobe na carteira e começa a cantar, assim sem qualquer motivo aparente. A professora me falou que sempre que Abelardo fazia isso e cantava uma música do Latino ou um funk. Recentemente a preferido de Abelardo seria a piriguete, funk, que ele canta e dança em cima da carteira. As advertência da professora não faziam com que Abelardo interrompesse o que ele fazia e, de tanto ela advertir com relação a música, outro dia ele começou a cantar o hino nacional. A professora está visivelmente abalada com o comportamento da criança e não sabe o que fazer. Por fim, me contou que Abelardo pediu para desenhar, esses dias. Ela teria lhe dado papel e caneta e ainda alguns lápis de cor. Disse que a criança permaneceu quieta por horas e quem nessa ocasião nem subiu mais na carteira para cantar. Depois de certo tempo, segundo relatou a professora, Abelardo lhe entregou suas folhas. A professora me disse e até me mostrou uma folha que havia aguardado. O papel estava com desenhos de folhas de maconha e havia a inscrição P.C.C., mas tudo errado. A professora, aproveitando o desenho me disse que atualmente, Abelardo referia que queria fazer parte do primeiro comando capital. Depois de todas essas informações conclui a abordagem e deixei acertada uma próxima visita a escola para o dia seguinte, dia 18/098, com Abelardo, ali na escola. Solicitei apenas que a professora deixasse eu avisá-lo e ela consentiu.
No dia 18 compareci a escola e fiz atendimento com Abelardo. Na verdade no dia em questão apenas informei que estaria retornando a acompanha-lo e iríamos discutir sobre tudo aquilo que fosse relacionado a sua vida. Visando não atrapalhar o bom andamento escolar de Abelardo propus que o atendimento ocorresse no período da tarde, já que ele estuda no período da manhã. A criança assentiu e então fui até a residência da criança para comunicar o fato a sua família. A Sra, Ivana, presente na sua casa, apenas mostrou-se ciente. Assim, hoje, dia 19 fiz o atendimento com Abelardo as 14:00 horas. Perguntei sobre a escola, a família e tudo mais e a criança só dizia que estava “tudo sussu”. Perguntei então sobre o relacionamento familiar, mas Abelardo apenas dizia que estava tudo bem em casa. Ainda perguntei se as situações envolvendo agressões ainda continuavam, mas Abelardo negou. Em relação as ocorrência na escola Abelardo foi taxativo. Disse que sentia uma “gunia” que o fazia subir nas carteiras e cantar. E falou ainda que essa mesma “gunia” o motivava a agredir os outros alunos. Fiz algumas orientações com relação a esse comportamento mas Abelardo dizia que era algo incontrolável. Ai o próprio Abelardo me falou que em uma dessas brigas com colega, sem querer, bateu a mão no óculos da professora e acabou machucando seu rosto. Perguntei o que ele achava disso ele me disse que azar da professora, “ela que ficasse na dela”. Mas, depois de conversarmos sobre todos esses atos, Abelardo disse que ia tentar controlar a sua “gunia”. Concluímos assim a entrevista. Depois disso estabeleci contato com o juiz, Sr. Rafael a fim de saber como está a atual situação processual. A secretária me disse que o juiz estava em audiência mas que estava ciente do caso. Ela me informou que havia sido agendada audiência com a Sra. Ivana, avó de Abelardo e com o pai da criança para o próximo dia 21/09. A secretária me falou ainda que estava ciente que o juiz havia requisitado uma vaga no atendimento clínico do Centro de Saúde e ainda aguardava retorno. Assim, deixei acordado com ela que após essa audiência eu entraria em contato para me informar do que fora acordado.
Ontem, dia 24/09, o juiz me ligou no departamento e solicitou minha presença ao fórum, par ao dia 26/09 às 14:00horas. Compareci assim, na data de hoje. O juiz havia me avisado pelo telefone que se tratava de uma discussão sobre o Abelardo, como eu já imaginava. O Sr. Rafael me disse que a audiência ocorrida no 21 foi “intensa”. De posse das informações quanto as agressões que Abelardo vivenciou e ainda pela negligência em relação ao atendimento psicológico o juiz disse que a família já havia sido orientada constantemente e que, de agora em diante isso não mais ocorreria. Portanto, o juiz colocou que, informou a Sra. Ivana e a seu filho Ulisses que a cada agressão que cometessem iriam responder a processo judicial, chegando até a ponderar a possibilidade de perda da guarda da criança. Já em relação a negligência no atendimento psicológico, o juiz informou que se isso voltasse a ocorrer, iria ser obrigada a pagar uma cesta básica a uma família carente. O Sr. Rafael me disse que a Sra. Ivana chorou, brigou, mas, teve que aceitar. Assim, concluímos a “entrevista”.
Passei assim a realizar os atendimentos de Abelardo. Nesses, conversávamos sobre a rotina da criança, na escola e na família. Praticamente durante esse mês de outubro Abelardo não relatou qualquer ocorrência de violência doméstica. Aparentemente a situação familiar manteve-s estável. Na escola o comportamento foi alterando-se. Ao menos as agressões à outras crianças diminuíram bastante. Mas, a aprendizagem manteve-se passiva. Ele não consegue ler nada, copia algumas palavras, com muita dificuldade, mas não consegue escrever nada sozinho. Nesse mês também o atendimento psicológico foi seguido corretamente, sem faltar, nem atrasos.
Hoje, dia 05 de novembro compareci a escola a pedido da direção a fim de ser informada sobre um novo fato envolvendo Abelardo. Ao chegar à escola, como de costume, já me aguardava a diretora. Marina me procurou dizendo que Abelardo havia tido um “surto” no dia 01/11 (véspera de feriado). A professora havia contado a ela e ela me reproduziu. Assim, a Sra. Marina me falou que Abelardo caminhando pela sala e se desentendeu com outro aluno, o Leonardo. Ai passaram a agredir-se verbalmente e logo passaram aos socos. A professora os afastou e a aula seguiu o curso normal. No entanto, no final da aula Leonardo com outros meninos esperaram Abelardo para agredi-lo. Segundo a diretora me falou eram uns doze meninos, provavelmente quase todos da sala de Abelardo. A diretora me contou que um dos meninos chegou até pegar um pedaço de pau que estava misturado a entulhos na tuas para agredir Abelardo. A diretora me falou que foi a maior correria para tentar afastar as crianças e evitar as agressões. Marina me disse ainda que na ocasião da briga Abelardo acabou apanhando de alguns meninos, mesmo com a intervenção dos inspetores e de outros funcionários da escola. A diretora me falou ainda que no exato momento da briga, a Sra. Ivana, avó de Abelardo, apareceu e arrancou a criança do meio dos outros meninos levando-o para a casa. Depois desse relato fui até a sala de atendimento onde passei a discorrer sobre o assunto da briga de Abelardo vom ele mesmo. Abelardo me disse que havia se desentendido com Leonardo na sala de aula e quando saiu da classe, depois do fim da aula, vários meninos queriam agredi-lo. Abelardo me contou que havia um menino que estava com um pedaço de pau na mão e que acabou levando uma paulada. Disse ainda que levou muito soco na cabeça e pontapé. Aliás, até levantou e mostrou as pernas, os braços e até a cabeça, todos cheios de marcas. Eu mostrei surpresa. As marcas estavam bem latentes ainda e davam a impressão de serem resultado de emprego da força física com veemência. Mas, perguntei sobre isso a criança e ele me disse que, na verdade, isso era de duas brigas, duas surras que ele havia vivido no mesmo dia. Solicitei mais detalhes e ele me falou que depois que sua avó o tirou da briga, foi levado para a casa. Abelardo me disse que, quando chegou na sua casa seu pai estava lá, almoçando. Quando perguntei o seguimento da história, Abelardo hesitou, mas contou. Abelardo me disse que quando seu pai o viu chegando perguntou o que havia acontecido e quando tomou ciência dos fatos apenas terminou o almoço. Após isso, foi até Abelardo e passou a agredi-lo, primeiro com a mão e depois com uma cinta. Abelardo me disse que seu pai só parou com as agressões porque sua avó pediu. Eu perguntei o porque das agressões, se Abelardo compreendia o porque de estar apanhando. Ele me disse sim, disse que isso era porque ele tinha apanhado na briga. Assim, Abelardo disse que seu pai já havia lhe avisado que se ele apanhasse na escola iria apanhar em casa também. Perguntei a Abelardo se seu pai havia lhe dito algo na ocasião da agressão ou se havia lhe dito algo alguma outra coisa mas a criança me disse que não. Mas uma vez, informei que precisaria encaminhar o caso de Abelardo ao Conselho Tutelar e ele assentiu. Devo apenas destacar a questão da aparente naturalidade com que Abelardo relatava os fatos em questão. Parece que a criança está tão habituada com as agressões físicas que vivencia que isto para ser algo natural. Ao menos essa foi a impressão que eu tive. Depois da abordagem fui providenciar relatório do caso ao Conselho Tutelar.
Depois das colocações de Abelardo no dia 05/11 fiz uma visita domiciliar, hoje, dia 09/11 no período da manhã, eventualmente. A avó de Abelardo, quando me viu chegar começou a rir e me disse “logo cedo na minha casa é?”. Informei que a visita seria utilizada para discutirmos sobre a ocorrência do dia 05/11. Passei a lhe informar o que Abelardo havia me contado após a briga e ela confirmou todas as minhas informações. Disse a mim que não concordou com a postura do pai da criança mas que não pode impedir. Informei a ela que, mas uma vez realizaria os encaminhamentos necessários ao que a Sra. Ivana não mostrou-se muito preocupada. Daí ela começou a falar da briga de Abelardo na escola. Disse que estava na sua casa “orando a deus” quando foi avisada por um vizinho do que estava acontecendo na porta da escola e por isso foi até lá. Para a Sra. Ivana, isso foi um recado de um anjo de deus. Ainda me falou que se não fosse essa intervenção agora “Abelardinho podia estar morto” e ainda concluiu a frase rindo muito e falando “e essa hora a gente não ia estar aqui conversando...ia estar no velório de Abelardinho”. Perguntei a ela, aproveitando a oportunidade o que ela acharia se isso viesse a acontecer. A Sra. Ivana me disse que “fazer o que né, ninguém fica pra semente”. E ainda falou que na hora que nascemos, deus já traça o nosso destino e ele já sabe a hora que vamos morrer, então, cada um tem sua hora e Abelardo terá também a sua hora, “fazer o que né?”. Totalmente conformada com a possibilidade, a Sra. Ivana demonstra sim certa frieza com relação a vida da criança. Após tais colocações a visita foi concluída.
O juiz me ligou no dia 19/1 para informar que a família de Abelardo foi chamada por conta das agressões e que o Sr. Ulisses, pai de Abelardo foi obrigado a pagar uma cesta básica ao asilo dos velhos. Aproveitei o ensejo e me informei sobre o atendimento psicológico e o juiz me informou ter requisitado ao Centro de Saúde. Foi alocada uma vaga no fim de outubro e segundo informações Abelardo compareceu corretamente a todos os atendimentos.
Nesse mês de novembro os dias que seguiram foram mais tranqüilos. Abelardo não relatou mais a ocorrência de agressões de qualquer natureza. O comportamento na sala de aula também se alterou. As agressões aos colegas diminuíram, mas não cessaram. Mas, pelo menos a criança parou de subir na carteira e cantar.
Cheguei ao final do ano. O ano letivo também já está concluído. Apesar disso, eu pretendia dar seguimento ao acompanhamento de Abelardo. Mas ele irá viajar para a casa de parentes, como ele diz em Presidente Venceslau, onde irá permanecer durante o mês de dezembro e janeiro de 2008.
Eu fiquei e estou pensando profundamente nessa possibilidade, quer dizer, na possibilidade de Abelardo ser uma das crianças da minha pesquisa da tese. Ele se encaixa no critério que havia pensado já que foi vítima de violência doméstica física, negligência e psicológica. Além do que, possuo muito material sobre ele, o que deve me auxiliar na análise. Já discuti isso com a Olga e ela também está animada com essa possibilidade. Bom, vamos ver o que o ano de 2008 irá me reservar nesse sentido.
E não é que a Sra. Ivana voltou de férias e veio me informar hoje, dia 07 de fevereiro de 2008. Eu até achei que ela tinha compreendido a importância do atendimento assistencial mas logo percebi que me enganei. Logo ela explicou o porquê. Disse que veio me dar uma satisfação porque o juiz havia avisado-a que poderia ser penalizada caso não comparecesse aos atendimentos assistenciais. Deixamos agendados os próximos atendimentos para o dia 14/02 na escola.
Como havia acertado a posteriori compareci dia 14/02 para a entrevista com Abelardo. Antes falei com a nova professora. Ela me disse que Abelardo não deu qualquer problema de comportamento. Disse que tinha recebido informações sobre Abelardo da antiga professora e da direção da escola, mas não corresponderam em nada. A professora colocou entretanto que a criança possui muitas dificuldades de aprendizagem. Disse que ele ainda só copia e que quase não escreve nada sozinho. A leitura então, é mais grave ainda. A professora me disse que ele até conhece as letras e consegue juntar algumas sílabas isoladas mas que a palavra toda já é difícil. A professora fez até um caderno separado para Abelardo. Nesse caderno passou um monte de tarefas de acordo com a “capacidade” dele, segundo ela mesmo diz. Na verdade, ela me pareceu bem mais preocupada com a aprendizagem do que com a questão do comportamento tão popular da criança. Depois de tais informações fui fazer a entrevista com Abelardo. Perguntei a ele sobre as férias, sobre o natal, carnaval e tudo mais. Abelardo me disse que gostou. Só não gostou mais porque teve que ir na igreja quase todo dia.Disse que tinha que acompanhar sua avó para os cultos e as orações. Em relação a família, Abelardo apenas disse que estava tudo bem , ainda falou “não apanhei” e “me deram bastante comida”. Perguntou também sobre mim, sobre minhas férias. Ai me disse que esse ano ele ia parar de brigar, que estava cansado, que não tinha amigos e que ia até estudar. Conversamos muito sobre isso e me pareceu que Abelardo estava sendo bem verdadeiro. A abordagem foi assim concluída.
Prossegui com os atendimentos no mês de março mas coloquei a periodicidade quinzenal. Mantive o contato com a escola e com a psicóloga. Nesse mês nada de atípico aconteceu.
A diretora da escola, a Sra. Marina me ligou hoje (03/04) solicitando minha presença na escola. Ela me disse que Abelardo havia solicitado minha presença alegando ter algo muito urgente a me contar. Fui até escola e nos dirigimos para o atendimento. Na entrevista Abelardo começou a falar que tinha solicitado minha presença porque tinha apanhado mais uma vez. Levantou a calça de uniforme e me mostrou a perna toda marcada. Perguntei o que havia acontecido e ele me disse que tinha apanhado porque tinha faltado na aula de reforço para ficar andando de bicicleta. Disse que quando chegou em casa a noite sua mãe o esperava, muito brava. Disse que ela esperou ele entrar no banheiro para tomar banho e quando estava pelado passou a agredi-lo com uma vara de amora. Ele me mostrou ainda que ela só tinha batido em um lado do corpo e que tinha deixado o outro lado para o outro dia. Depois fez ele tomar banho com sabonete. Ele disse a mim que isso fazia doer ainda mais as lesões. Me falou ainda que enquanto apanhava sua avó gritava “não chore” e ainda repetia “castiga teu filho com a vara”, durante o tempo todo. Abelardo, mais uma vez, me contou isso como se me narrasse um fato qualquer de sua vida, algo cotidiano, comum a sua rotina. Mas, me pediu para que estabelecesse contato com o juiz ou com alguém do conselho. Eu disse a Abelardo que faria isso mas que iria primeiro falar com sua avó e aliás fiz isso no período da tarde. Por volta das 14:00 horas fui até a residência da Sra. Ivana. Logo participei do assunto que me trazia a residência da Sra. Ivana e ela começou a rir. Mais uma vez, confirmou toda a história que fora contada por Abelardo. A Sra Ivana me disse que Abelardo tinha saído de sua casa com uma bicicleta e não tinha ido para a aula de reforço. Ela me disse que era por volta das oito horas e Abelardo ainda não havia voltado. Ai me disse que, saiu andando pelo quintal de sua mãe, onde tentou retirar uma vara de amora. Como não conseguiu arrancar foi até a cozinha de sua casa, pegou uma faca e tirou uma vara. Retornando a sua casa guardou a vara no armário da cozinha. Segundo a Sra. Ivana quando Abelardo chegou era por volta das 22:00 horas. Me disse que ele foi até o banheiro e se despiu. Quando ela viu que ele já estava sem roupa, retirou-o do box e começou a agredi-lo. Colocou que bateu só de um lado e disse que ia bater do outro lado quando ele voltasse a deixar seus compromissos para andar de bicicleta. E ela me contou tudo isso rindo o tempo todo. Eu perguntei se ela achava isso correto ele me disse que sim. Me disse que sempre apanhou quando criança e “nunca morri”. Disse que ela apanhava de pau e que Abelardo se dê por satisfeito por estar apanhando com uma varinha. Perguntei assim qual era o seu relacionamento com sua mãe hoje e ela me disse que amava muito sua mãe, porque ela só queria educá-la. Depois de me falar tudo isso me disse que sabia o que eu faria, que eu ia “entregar” o que havia me contado. Eu assenti. A Sra. Ivana, então me disse que já não ia mas agredir Abelardo. Perguntei até entusiasmada se ela havia se arrependido e ela me disse que não. Estava só com medo de precisar pagar cesta básica de novo. Fiz as costumeiras orientações quanto aos prejuízos desse tipo de educação e a Sra Ivana seguiu sentada no sofá rindo para mim, ou de mim. Fiz encaminhamento direto a promotoria.
Hoje no dia 11/04 solicitei a Comarca de Quatá o desligamento do acompanhamento do caso de Abelardo. Tomei essa medida porque tive contato com o juiz. Em relação ao ocorrido no dia 04/04 o juiz me disse que comprovou a veracidade de todos os fatos, e que definiu a Sra Ivana apenas a aplicação de medida de advertência. Disse que tomou essa medida porque a Sra Ivana declarou não possuir condições de pagar cesta básica. Isso me fez ver que eu já fiz o possível enquanto assistente social. Assim, fiz todas as orientações possíveis mas a Sra. Ivana não mudou em nada sua forma de compreender a educação, ou melhor, a forma de eucar-se uma criança. Por outro lado entendo que a situação chegou a um patamar que pata preservar a integridade física da criança e psicológica também, seriam necessárias medidas mais enérgicas frente aos familiares. Como isso não acontece, meu próprio fazer está ficando desacreditado a mim mesmo e logo isso também será latente para Abelardo também. Procurei o Fórum e protocolei o meu pedido. Falei com Abelardo e com a Sra. Ivana. Tentei explicar a Abelardo mais percebi que ele se decepcionou demais comigo, pela minha decisão. Já a Sra. Ivana, muito mas muito feliz, não conseguiu conter seu riso característico. È preciso saber a hora que os limites foram atingidos e eu percebi que os meus foram agora. Retornarei ao caso apenas para a análise do mestrado, porque a Sra. Ivana consentiu com a pesquisa.
Entrevista 1 – Abelardo
D – Olá Abelardo, Bom dia.
A – Bom dia dona assistente.
D – Tudo bem com você?
A – Sim.
D – Hoje nos vamos falar sobre aquela vez que você já me contou, que estava envolvido numa briga, lembra dessa situação?Você brigou dentro da escola, foi assim, não foi?
A – Foi
D – Ai você estava apanhando e
A – Minha mãe chegou
D – Agora me conta, a partir daí, o que aconteceu?
A – Daí veio mais dois. Agarraro ne mim ai ela não queria que eu deixasse ele me bater. Eu reagi. Ai eu bati nele. Ni um. Ai fui lá no outro. Ai ele catou um pedaço de pau assim. Ai minha mãe chegou e tomou o pau dele
D – As sei. Ela tomou o pau dele, mas ele te defendeu?
A – É.
D – E ela te levou embora para a casa?
A – É
D – E em casa o que aconteceu?
A – Ai meu pai me bateu e foi só
D – Teu pai te bateu? Bateu muito? Pouquinho? Como que foi?
A – Ele me deu uns tapas
D – Ele te bateu com o que?
A – Com a mão
D – Com a mão?
A – É ele falou assim que quando está doendo, ele sente pela mão dele. A mão dele dói, ai ele sabe que ta doendo ne mim
D – Ai quando ta doendo o que ele faz?
A – Ai ele para e pega a cinta
A – Nesse dia ele só bateu com a mão
D – Ah ta, mas enfim, nos outros dias, quando ele para de bater com a mão ele bate com a cinta?
A – É.
D – e dói?
A – Dói
D – Com qual dói mais?
A – Os dois doem Dói demais
D – A sua avó bate em você
A – Bate de vez em quanto. Quando eu faço bagunça.
D – Hum. E você acha que é certo, quando você apanha?
A – É. Porque eu apanho. Quando eu apanho, é certo né?
D – É ? Porque?
A – Porque eu bagunço, eles tem que me bater. Mas de vez em quando eles batem assim, fundo com a cinta, aqui assim na perna
D – Sei e fica com marca né?
A – É. Teve outra vez. Quando eu tava com dor na perna, a noite, foi dia de quoresma.
D – Foi dia de que?
A – De quoresma. Sabe?
D – Sei
A – Era o primeiro dia de aula meu. Ai eu tava com dor nas pernas. Ai eu fui falar lá para minha mãe. Ai eu ouvi o barulho de galinha morrendo.
D – Do que?
A – De galinha morrendo. Daí eu passei um troço na perna. No outro dia meu pai queria correr atrás de mim dentro de casa. Ai eu corri dele. Ai mina mãe correndo também e quase que os dois se pega lá dentro.
D – Porque o seu pai queria bater em você depois do dia de quaresma?
A – Porque porque ele tava falando que era mentira a minha dor.
D – Ah ta. A dor que você estava na perna.
A – É. Eu chorei a noite inteira.
D – Você não dormiu a noite?
A – Não
D – Porque você chorou?
A – Porque tava doendo mesmo.
D – A perna?
A – Sim.
D – E depois que o seu pai te bate ou a sua avó, o que você sente?
A – Dor ué
D – Dor. E você fica como? O seu sentimento?
A – Triste
D – Se um dia assim quando você crescer, vai querer ter filhos?
A – Vou
D – E você acha que vai fazer assim, da mesma maneira que o seu pai faz com voe? Ou como a sua avó?
A – Não. Eu não. Quando eu tiver um filho . Se ele bagunçar eu só vou bater com a mão
D – Ah, só com a mão? E assim, conversar, explicar porque está erra. O seu pai faz isto?
A – Não
D – E você acha que apronta muito? Como você diz, faz muita bagunça?
A – Sim né. E é por isso que ele me bate
D – É? Então você acha que está certo ele te bater?
A – Sim
D – E Brendon como é que se deve educar uma criança?
A – Conversando, é assim tudo que os filhos querer, você tira. Se eles quere assistir televisão, querer brincar tira
D – Ah tira quando fizer alguma coisa errada?
A – É
D – Ah ta. È esse o jeito? Então não precisa bater?É isso?
A – Ah é mais ou menos
D – O que você acha que é isso, quando tira a televisão?
A – Isso é ficar de castigo
D – Castigo? Mas porque? Será que adianta deixar de castigo?
A – Adianta
D – Adianta porque?
A – Porque não vai dar para eu fazer nada de brinca. Ai seus amigos ta brincando e você não
D – Ah ta, Ai você fica meio triste? De ver que os outros estão fazendo as coisas e você não?
A – Isso tia
D – Quem é que bate mais em você, o seu pai ou a sua avó?
A – Meu pai
D – Teu pai?
A – É
D – E você ama teu pai? Você gosta do teu pai?
A – Gosto
D – Mesmo ele te batendo?
A – É
D – Será que o seu pai apanhou quando ele era criança?
A – Ah. Ele apanhou das professoras
D – Da professora também?
A – É
D – E as suas professoras te batem ou não?
A – Não, Acha tia, eu só apanho em casa.
D – Ta bem Brendon. Obrigado por hoje é só isso.
A – Valeu tia
Entrevista 2 – Abelardo
D – Então Abelardo hoje nós vamos conversar sobre um acontecimento envolvendo a sua nova bicicleta. Tudo bem?
A – Sim.
D – Então me diga o que aconteceu nesse dia em que você ganhou a bicicleta? A Eu ganhei essa bicicleta do meu tio.
D – Do seu tio?
A – É. Ai né o pneu tava furado e meu outro tio arrumou Ai peguei uma grana, ai não ia ter aula...falaram que não ia ter aula...ai não teve ai quarta eu não fui pra escola.
D – E então você ficou andando de bicicleta?
A – Ai quando eu cheguei em casa eu apanhei.
D – De quem você apanhou?
A – Da minha mãe
D – E como que foi?
A – Foi de cinta.
D – Foi de cinta?Porque aqui para nós ela disse que foi com uma varinha.
A – Não foi com uma varinha...uma varinha de amora...amora não é acerola
D – Acerola?Ela te bateu com a vara de acerola?Mas porque?
A – Sei lá. Acho que porque eu cheguei tarde em casa.
D – Mas como foi isso?Aonde você estava?
A – Eu cheguei e falei mãe não me bate não. Eu só tava brincando na pracinha.
D – E onde você estava na hora em que ela foi te bater?
A – No quarto
D – E ai?
A – Ela me trancou no quarto para eu não sai e me bateu.
D – Bateu como?
A – Bateu Batendo ué.
D – Batendo ...não sei como é que foi.Ela bateu aonde?
A – Na perna
D – Na perna. E doeu?
A – Doeu.
D – E demorou? Você apanhou muito?
A – Apanhei...apanhei muito
D – E ai Brendon..o que você acha..você acha que está certo...está errado?Sobre isso que aconteceu.
A – Ta errado.
D – Está errado?O que está errado?Ela bater em você?
A – Não.
D – E o que está errado então?
A – Eu ter saído.
D – Sei ...você sair está errado?E ela te bater?
A – Não.
D – Está certo?
A – Ta claro
D – Mas porque está certo?
A – Porque eu bagunço...eu apronto..ué e ela tem que me corrigir
D – E ele corrige batendo em você?
A – É ué. Mas tem também o castigo.
D – Ah tem é? E como que é o castigo?
A – É assim fica debaixo da cama..ai lá embaixo da cama ela não vem me bater
D – Você fica embaixo da cama?
A – É. Mas também tem ficar sem assistir televisão..Porque se eu assistir televisão ai ele vai me bater
D – Sei. E aquele castigo de você ficar sem comer...ficar trancado em quarto. Isso acontece ainda?
A – Isso não mais. Passou…
D – E o que mais acontece? Quem bate mais?E o pai ou sua mãe?
A – Ah mais é o meu pai
D – E como ele te bate?
A – Bate de mão mesmo.
D – De mão?Como é isso?
A – Ué com a mão assim
D – Mas como que ele te bate?
A – Começa assim...ele poe os anel dele..tudinho no dedo e ai me bate
D – Porque?
A – Porque o que?
D – Porque ele põem o anel?
A – Ué pra doer mais
D – E ele te bate com a mão…
A – É e ele fala assim que quando a mão dele ta doendo ai ela para...que ele sabe que ta doendo em mim…
D – E ai ele para de bater?
A – Não
D – E o que ele faz ai?
A – Ai continua e demora e depois para.
D – Entendi. E quando você apanha ele s falam alguma coisa? Por exemplo no dia, que a sua avó de bateu lá com a varinha de amora, ela falava alguma coisa para você?
A – Ela falava assim..vai andar de bicicleta mais é?E eu falei não.
D – Só isso que ela te disse?
A – Só.
D – E o seu pai quando te bate?O que ele te fala?
A – Ele fala que é pra mim não fazer mais o que eu fiz. De verdade deixa eu brincar ele deixa mas antes de eu aprontar e antes das seis horas eu tenho que chegar em casa.
D – E se você chega depois das seis horas?
A – Ai ele me bate
D – Por qualquer motivo assim ele bate?
A – Depende se chagar tardão as vezes ele não bate mas se eu ficar em frente de casa...ai ele não me bate.
D – E está certo o pai bater assim?
A – Ta né. È pra educar porque é errado né chegar tarde e tal
D – É mesmo? O que você acha assim, no geral, você acha que é certo? Você sempre diz assim que você apronta. Você acha mesmo certo eles te baterem?
A – Sim. Está certo
D – Porque?
A – Porque eu vou bagunçar e eles não querem isso. que eu bagunço
D – E quando você tiver seus filhos?Você vai agir assim também?
A – Ah não.
D – E como você vai fazer?
A – Ah eu vou só deixar de castigo só
D – Ah só de castigo?E que tipo de castigo você pensar em fazer?
A – Sem assistir televisão.
D – É ruim ficar sem assistir televisão
A – É
D – E o que é pior. Ficar sem assistir televisão ou ficar embaixo da cama?
A – Sem assistir televisão
D – E o que você fica fazendo quando ela te coloca lá embaixo da cama?
A – Fico lá ué
D – Bom sem comer você não tem ficado mais?
A – Não
D – Mas você já ficou. E você se lembra porque aconteceu isso?
A – Foi porque eu cheguei no outro dia. Sai e cheguei no outro dia
D – E você ficou sumido?
A – É fiquei na casa da minha tia
D – E você ficou quanto tempo sem comer?
A – Dois
D – Dois o que?
A – Dias
D – E isso foi certo?Você acha que foi certo é?
A – Não
D – Porque?
A – Ué porque eu fiquei fora de casa...sem avisar
D – Não é certo o que você fez?
A – É
D – Mas o castigo foi certo?
A – Ta
D – Ficar sem comer é certo?
A – É
D – E você não ficou com dor no estômago?Não sentiu nada
A – Eu não. Se quer saber eu nem como..
D – Você não liga de ficar sem comer?
A – Eu não. Já acostumei.
D – Então está bem. Por hoje só isso. Obrigada viu.
A – Valeu tia.
Anexo 2
2. Diário de Campo e Entrevista – Rogério
Diário de Campo
Ontem, dia 13 de junho de 2008, ao chegar a Emeif. Dr. Renato Monforte, fui chamada a sala da coordenadora pedagógica para que a mesma discorresse sobre um fato ocorrido com um aluno da referida escola. A coordenadora me relatou que Rogério, 10 anos, cursando a 3ª. Série do ensino fundamental havia chegado na escola distribuindo leite condensado para os amigos. A coordenadora me relatou que esses colegas com os quais Rogério tem contato e para os quais teria dado as latas de leite condensado haviam dito que a criança estava roubando esses “alimentos” em um mercado local. Tentei um contato com Rogério, mas, na ocasião ele havia faltado a escola. De sorte que, hoje, dia 14 de junho fui até a casa da criança para discutir esse acontecimento com a criança e com os seus familiares. O psicólogo da escola me acompanhou dizendo que caso a criança estivesse realmente roubando, isso poderia demonstrar algum aspectos subjetivo interessante. Enfim, fomos os dois. Recebeu-nos a avó de Rogério, a Sra. Olívia, a qual declarou possuir atualmente 50 anos de idade. A casa onde reside é alugada, está em péssimas condições de conservação e possui poucos móveis. Inicialmente, a avó da criança relatou-nos que na casa residem seu esposo, o Sr. Manoel de 55 anos, seu filho Francisco de 22 anos e seu neto Rogério, de 10 anos. Antes que fosse feita qualquer pergunta, a Sra. Olívia começou a dizer que seu filho, pai de Rogério, o Sr. Luis de 27 anos trabalhava e morava em São Paulo. Prosseguiu relatando que seu filho quando tinha 17 anos, engravidou “uma vagabunda ai”. Disse que desse relacionamento nasceu Rogério. Prosseguiu contando-nos que após o nascimento da criança a mãe do mesmo, chamada Paula, mas a quem a Sra. Olívia só se refere pelo termo “vagabunda” abandonou a criança aos seus cuidados e “sumiu no mundo”. A Sra. Olívia disse ainda que após esse acontecimento ficou com dó da criança, na época com um mês de nascimento e resolveu cuidar da criança. Contou das noites que passou acordada cuidando da criança e sobre as dificuldades do menino em se adaptar com leite. A Sra. Olívia contou que precisava comprar leite de cabra, que era o único que a criança aceitava. Relatou que na época era muito difícil encontrar esse tipo de leite e que o preço era muito elevado, consumindo grande parte de sua renda. Relatou-nos ainda que quando a criança tinha um ano, seu filho, então com 18 anos foi para São Paulo, trabalhar em uma metalúrgica, na qual ainda trabalha atualmente. Por conta disso, a Sra. Olívia informou-nos que assumiu totalmente a responsabilidade pelo cuidado da criança. A Sra. Olívia disse-nos que seu filho sempre teve uma relação distante com Rogério, seu neto e que isso só se intensificou com sua ida para São Paulo. Informou-nos que Luis vem uma vez por ano, sempre no Natal ou no Ano Novo e que quando tira férias prefere ficar em São Paulo mesmo. Informou-nos que seu filho lhe envia E$200,00 todo mês para as despesas do menino. Após toda essa exposição, que foi aliás longa e cheia de detalhes, a Sra. Olívia me perguntou qual era o motivo da visita, se era sobre o fato de Rogério ter roubado no mercado. Eu, que não sabia que a Sra. Olívia já estava ciente do que havia acontecido, questionei como havia sido informada do que aconteceu. A Sra. Olívia me disse que o supermercado roubado havia percebido o que aconteceu e entrou em contato com ela. Em seguida, levantou-se dizendo não saber o porque de tal atitude da parte de Rogério e ainda abriu os seus armários da cozinha mostrando que todos estavam cheios de comida. Aliás, atentou para o fato de haver vários pacote de bolacha, inclusive recheada, além de latas de creme de leite, danone e leite condensado. Logo em seguida disse que na verdade Rogério tinha roubado porque ele era um “safado” e porque “era igual a mãe”. Apesar de tentar ponderar com a Sra. Olívia sobre suas “falas” ela insistia ainda mais. Prosseguiu dizendo que, quando foi informada pelos donos do mercado sobre o roubo de Rogério, que o trancou no quarto e que bateu bastante nele. Perguntei sobre o porque desse tipo de educação, mas a Sra. Olívia mostrou-se muito contrariada e, ainda me disse que se eu quisesse poderia até mandar o caso para o Conselho Tutelar. Fiz uma proposta, de que a princípio, não adotaria essa medida se a Sra. Olívia se propusesse a não mais agredir a criança ao que ela assentiu, mas não se mostrou muito convencida. O psicólogo que não havia falado até o momento, interveio com a proposta de atendimento para Rogério, ao menos uma sondagem. A Sra. Olívia mais que prontamente se manifestou. Nossa, muito brava, disse que Rogério não era louco e que ela mesmo ia “dar jeito nele” e que só faria isso se o juiz obrigasse. De maneira que, o psicólogo acabou “retirando” sua “proposta”. Quando saimos da casa, já havia passado uma hora e meia. Deixei acordado que retornaria na semana seguinte para que pudéssemos retomar alguns pontos discutidos na entrevista, digo, visita ao que a Sra. Olívia assentiu.
No dia 20 de junho, realizei abordagem com Rogério. Pretendia discutir sobre sua família, mas a criança falou muito pouco. Em relação ao fato de ter roubado então é que a criança falou menos ainda. Discutimos então sobre a escola, a freqüência as aulas e o contato com os colegas, divagando sem qualquer assunto específico. Destaquei entretanto que voltaria até a casa da criança para continuar conversando com sua avó ao que o mesmo assentiu.
Na escola, Rogério era uma criança muito quieta, quase apática. Segundo informações do professor da sala de aula e do professor da sala de recursos, o menino quase não conversava com ninguém. Também possuía uma relação de timidez para com as professoras. Segundo ambas, Rogério não lia e nem escrevia nada. Segundo elas a criança sequer conseguia copiar o nome próprio. Por isso foi incluído na sala de recursos, em horário distinto ao freqüentado na escola.
De posse de tais informações retornei hoje, dia 22 de junho a residência de Rogério. Sua avó me aguardava porque já havia agendado anteriormente. Participei a Sra. Olívia que eu queria discutir alguns pontos, falas emitidas por ela quando na realização da visita. Iniciei mesmo pela questão da agressão, que a Sra. Olivia declarou ter comedido contra Rogério devido ao roubo. A mesma me disse que, estava no lugar de sua mãe e que precisava “corrigir o menino”. Fiz orientação quanto essa prática, mas a Sra. Olívia nem demonstrou me ouvir. Seguimos por essa discussão por muito tempo. Não houve consenso e concluímos a visita.
No dia 28 de junho a coordenadora da escola me ligou e pediu o comparecimento a escola, ainda no período da tarde. Fui até a escola e só quando cheguei até o local fui comunicada que se tratava de Rogério. A coordenadora informou que a criança havia contado a um colega que havia um senhor que tinha tentado beija-lo e tirar suas calças. Informou ainda a coordenadora que o colega com quem Rogério conversou logo a procurou e relatou o que havia se passado e ela me chamou logo em seguida. Assim, procurei Rogério na sala de recursos e iniciei a entrevista. Rogério me disse que o Sr. Lauro, um morador da cidade de Quatá – SP, havia o acompanhado da porta da escola em um dia de chuva até a sua casa. Disse que nesse dia entrou em sua casa e passou a conversar com sua avó. Nessa ocasião, o Sr. Lauro teria se disposto a acompanhar Rogério todos os dias após a aula, oferecendo-lhe almoço e auxiliando-o nas tarefas. Segundo Rogério, sua avó que já não gostava nem um pouco de ir buscá-lo na escola prontamente concordou. O menino contou essa primeira parte da história de uma vez só. Depois disso parou e ficou me olhando. Pedi que continuasse o relato e Rogério prosseguiu. Informou que durante os primeiros dias foi tudo normal. Mas que ontem, o Sr. Lauro, após ter servido o almoço, quando iam concluir a tarefa tentou beija-lo na boca e ainda pediu que abaixasse as calças. O menino caiu em grande choro quando me contou isso. Parecia estar aterrorizado. Informei a criança o quanto isso era errado e que diante de tais colocações o Conselho Tutelar precisaria ser participado. Aliás, após ter concluído a entrevista, foi a medida que adotei.
Hoje, dia 30 de junho, a conselheira Maria Inês estabeleceu contato para me informar que já havia tomado todas as medidas necessárias ao caso e que isso já havia causado muito impacto na cidade, já que a própria avó da criança fez questão de contar a história para todos na cidade. Alias, segundo Maria Inês, a Sra. Olívia tinha sido advertida por sua negligência.
Infelizmente não foi possível contato com a Sra. Olívia e agora vou sair de férias, regressando apenas na primeira semana de agosto.
Hoje, no dia 01 de agosto retornei a escola. Logo de princípio quis saber informações sobre o caso de Rogério, ao que a coordenação referiu não possuir novas informações. Assim, fui até a casa da criança já que não havia conversado com a avó do mesmo sobre a tentativa de abuso porque passou. Em visita a residência, a Sra. Olívia ao ser participada sobre os motivos de tal logo começou a se justificar. Disse que o senhor Lauro possui comércio, pertence a família antiga dessa cidade e que apesar de nunca ter trocado com o mesmo uma única palavra, sentiu, em seu coração que podia confiar nele. Como já estava cansada de levar e buscar Rogério da escola resolveu que seria uma boa alternativa. Além do que, declarou que quase não estudou e devido a isso não conseguia auxiliar Rogério em suas tarefas. Perguntei a Sra. Olívia se ela alguma vez chegou ir até a casa de tal senhor ao que ela disse que não. E, informou que a “moça do Conselho” já havia lhe dito que tinha agido errado, mas, segundo ele, fez tudo pensando apenas no bem estar da criança. De forma que, após tais colocações a visita domiciliar fora concluída.
Continuei o acompanhamento do caso ,mas o mês de setembro transcorreu sem maiores problemas. Entretanto, hoje, em 03 do mês de outubro houve uma nova ocorrência em relação ao caso. A professora as sala me chamou para dizer que Rogério estava comparecendo a aula já por dias consecutivos com uma blusa de moleton azul. Apesar do calor que fazia o menino se recusava em tirar tal blusa. A professora achou no mínimo, esquisito. Chamei Rogério até a sala e passamos a conversar sobre assuntos afins até passarmos a tratar sobre a blusa. Rogério a princípio disse que estava com frio, apesar do suor escorrer em seu rosto. Perguntei se queria ir ao médico mas ele respondeu com enfático não. Ai fui conversando até que ele me disse que havia apanhado de sua avó com uma vara de árvore e que tinha colocado a blusa para que ninguém observasse as marcas nos braços. Eu pedi que ele tirasse a blusa ou pelo menos suspendesse a manga. O corpo do menino estava cheio de marcas, algumas com um tom avermelhado. Os braços, a barriga e as costas eram repletas de marcas bem finas. O menino ficou visivelmente constrangido com esse exposição. Teve que explicar a ele que precisaria acionar o Conselho Tutelar mas ele não queria. Disse que sua avó tinha batido nele porque tinha saído no sábado a noite e voltado durante a madrugada. Disse que ela havia mandado, a princípio que ele tomasse banho e depois o agrediu no quarto onde dormia. Depois da agressão ele colocou a blusa de moleton e não tirou mais, até então. Com a chegada do Conselho Tutelar as medidas necessárias foram tomadas e o caso foi encaminhado a promotoria pública. No mesmo dia 03, ao fim da tarde a Conselheira Tutelar estabeleceu contato para comunicar que o juiz havia determinado o abrigamento da criança pelo período de quinze dias, sendo que foi instaurado processo. Combinamos de visitar a criança no dia seguinte, 04/10/06.
De maneira que, conforme havíamos acertado, fomos até o Leais, onde Rogério estava. A conselheira tutelar conversou com ele um pouco sobre o que havia acontecido. O menino apresentou certa resistência ao falar e apenas verbalizava a todo tempo que queria voltar a morar na companhia de sua avó. Em relação a agressão, Rogério apenas insistiu que sua avó apenas queria corrigi-lo para que não mais ficasse fora de sua casa.
Os quinze dias transcorreram rápido. Fizemos outras abordagens com Rogério, mas a criança pouco falava. A sua avó, a Sra. Olívia se recusou a nos receber durante grande período. Logo Rogério voltou a conviver com sua avó.
Os meses de novembro e dezembro que seguiram foram mais calmos. Ao menos a criança não se queixou de nada mais que houvesse.
No mês de dezembro, nessa primeira quinzena, antes do fim das aulas Rogério solicitou que falasse comigo. Veio até mim para dizer que tinha saído na noite de domingo e retornado para a casa por volta da meia noite. Veio para me dizer que dessa vez sua avó não o tinha batido, agredido, mas que o tinha obrigado a limpar a casa toda. Rogério não percebeu isso como agressão e só veio me contar porque acreditou que com isso inocentaria sua avó pelos atos que ele já havia cometido. Mesmo que eu tentasse pontuar o quão agressivo era esse ato, Rogério não o percebia assim. Só então pude perceber como a criança já estava habituada com a violência doméstica. Fiz, “como de prache” o encaminhamento ao Conselho Tutelar a Sra. Olívia recebeu outra advertência. Tentei vários contatos mas ela se negou a me receber ou a falar comigo.
No mês de janeiro e fevereiro, como não havia aula, não teve informações sobre Rogério. A única informação que obteve foi que a criança havia tido sua matrícula renovada.
Após isso, conclui as abordagens, já que nesse mês deixarei a rede municipal de ensino,e , também o município. Entretanto, acredito que Rogério poderá ser um sujeito para a pesquisa do mestrado.
Hoje, em minha primeira semana de retorno a administração municipal, iniciei o atendimento nos plantões do departamento municipal de promoção social. De maneira que as pessoas vem para “solicitar” tudo aqui. As solicitações vem de cesta básica a prótese dentária. Tudo que é fornecido ou não é de responsabilidade do assistente social. Mas, eu estou anexando esse comentário ao diário de campo de Rogério porque foi sua avó, a Sra. Olívia, uma das primeiras pessoas que atendi. Assim, no dia 18 de julho, a Sra. Olívia compareceu ao departamento solicitando a doação de cesta básica. Fiquei surpresa já que a referida senhora, quando era acompanhada pelo departamento de educação, sempre declarou possuir condições financeiras para sustentar toda a família. Mas, no departamento de assistência social, o diálogo era outro. A Sra. Olívia não declarava a sua renda total, aliás omitia o fato de ser aposentada e não declarava que seu filho a auxiliava no custeio das despesas com Rogério. Além de tudo isso, a mesma senhora que se negava a falar se comportou totalmente diferente. Mais surpresa me causou o fato de saber que a administração municipal iria fornecer todo o material de construção para a casa da referida senhora. Aliás, no departamento municipal, aparentemente, todos são comovidos com a Sra. Olívia. Enfim, foi entregue a cesta solicitada.
Durante os meses seguintes, agosto, setembro, continuei acompanhando a família, mas sob o enfoque da política de assistência social. Nos meses supra, apesar de várias abordagens, em relação a violência doméstica, nada foi percebido ou narrado. Acredito que voltarei ao caso, apenas para realizar as entrevistas com a criança. Aliás, essa possibilidade já foi discutida com a avó de Rogério, que assentiu.
Hoje, em março, dia 12, o Conselheiro Tutelar, Marcelo estabeleceu contato telefônico comigo. Disse que havia atendido a Sra. Olívia, e que, por ela teve ciência que acompanhei o caso de Rogério durante sua permanência na rede municipal. Marcelo me disse que Rogério vinha se recusando a comparecer nas aulas. Fui até o Conselho Tutelar para verificar o que estava acontecendo e lá estava a Sra. Olívia, com Rogério a seu lado. Ela estava muito nervosa, chorando e dizendo na frente da criança que queria devolver Rogério para seu pai, mas que o mesmo não queria o filho. O conselheiro, perplexo, sem saber o que fazer . E ela prosseguiu falando que o menino era “fraco de cabeça” (sic) e, por isso queria que o pai se responsabilizasse. O menino, ao lado, quieto ouvindo tudo o que a avó falava. Pedi assim, que ele saísse da sala enquanto ela insistia em chorar e gritar. Depois que se acalmou, o conselheiro telefonou para o pai que, se declarou impossibilitado em receber a criança. De maneira que, o Conselheiro diante dessa situação, encaminhou o caso para a Promotoria, mais uma vez.
A Sra. Olívia continuou sendo acompanhada devido a construção da casa pelo departamento municipal. Em uma visita ocorrida no dia 18 de março de 2008, verbalizei que havia sido chamada pelo Promotor mas que tinha resolvido “ficar com Rogério” até o mês de novembro corrente e então o encaminharia para São Paulo com o pai. A mesma disse que o neto não queria ir morar com o pai, mas que ela não agüentava mais. Enfim, nada mais, a visita foi concluída. Mas, nossa, a Sra. Olívia parece que não vê a hora de ficar livre do neto.
Apesar disso, não foram relatadas mais agressões físicas por parte da criança, ou porque elas realmente cessaram ou então porque Rogério foi instruído a não falar. Concluo, por enquanto essas anotações e passo a considerar que essa criança irá figurar com sujeito de minha pesquisa do mestrado.
Entrevista 1 – Rogério
D – Olá Rogério, tudo bem com você?
Criança – Tudo sim.
D – Bem hoje nos vamos conversar sobre um dia que você saiu de casa e só voltou tarde da noite. Ai na hora que você voltou o que aconteceu?Como a sua avó te recebeu? Pode contar.
Criança – A ai ela mandou eu toma banho, que eu tava sujo, e ai quando acabei de fazer serviço…
D – Mas serviço a noite ou cedinho?Que horas eram quando você voltou?
Criança – Acho que era duas horas
D – Da manhã?
Criança – Era, da madrugada
D – E você ficou fazendo serviço de madrugada?
Criança – É
D – E ela não ficou brava com você?
Criança – Não.
D – Não, não bateu em você dessa vez?
Criança – Não
D – Mas e ai você ficou fazendo faxina na casa a noite toda?
Criança – Sim
D – E isso foi até que horas?
Criança – Até amanhecer...
D – Até amanhecer?
Criança – É tia
D – E você não estava com sono?
Criança – Tava. Ai quando amanheceu eu fui lá dormir.
D – E não foi para escola então?
Criança – Ah não dava. Tava com sono. Dormi até quase duas horas.
D – Da tarde?
Criança – É.
D – E não acordou nem para almoçar?
Criança – Não. Não deu.
D – E as vezes que você sumia assim, quando você voltava, o que a sua avó fazia?
Criança – Primeiro assim ela mandava eu tomar banho
D – E dormir? Bater em você, ela nunca bateu?
Criança – Ah tia, você sabe né bater ela já bateu sim né…
D – Por causa disso, de chegar tarde em casa?Porque ela te bate?Como ela te bate?
Criança – Hum é por causa disso sim. Mas ela sempre me bate de vara
D – De vara? Que vara? Como é isso? Qualquer vara?
Criança – Vara de árvore
D – E de cinta não?
Criança – Não né, só de vara mesmo.
D – Sei e o que ela fala enquanto ela bate?
Criança – Ela só fica falando pra mim não sair mais
D – E o que você acha disso?
Criança – Do que?
D – Dela te bater?
Criança – Ruim
D – O que?
Criança – Ruim
D – Ruim porque?
Criança – Sei lá eu não gosto de apanhar não
D – É ruim apanhar né?
Criança – è
D – E você acha assim que ela está certa ou está errada de fazer isso?
Criança – Ah olha eu não sei viu
D – Como assim não sabe? Pode falar o que você pensa. Você já disse que é ruim, que você não gosta, mas é certo ou é errado?
Criança – Olha tia eu não sei direito falar o que a senhora ta me perguntando, acho que eu não posso falar não
D – Mas porque você não pode falar?
Criança – É que também eu não sei tia, se isso é certo ou se é errado.
D – Ah sei você está em dúvida.
Criança – É eu acho certo tia. Porque ai ela só está me educando.
D – Ah entendi. Ela te batendo está te educando?
Criança – è. Para eu não fazer de novo sabe?
D – Sei, para você não fazer isso de novo. E você apanha muito?
Criança – Não
D – Não? E agora que você não está querendo ir na escola como sua mãe, quer dizer sua avó ele te bateu?
Criança – Não pra falar a verdade, eu não estou a fim de ir na escola. Agora lá é muito rápido. Na verdade eu queria fazer um curso.
D – Mas para fazer um curso você tem que estudar um pouco.
Criança – É né. Meu pai nunca estudou, porque eu tenho que estudar.
D – É e seu pai. Quando você fica com ele?
Criança – Quando ele vem pra cá
D – Sei e ele bate em você também.
Criança – Ah não ele não. Ele briga só.
D – Ele só fala bravo?
Criança – É
D – Porque ele briga? O que acontece para que ele brigue com você?
Criança – Ah quase nada.
D – Então ta bem. Por hoje é só. Obrigada viu.
Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Mestre em Psicologia (Área de Conhecimento: Psicologia e Sociedade)
Orientadora: Dr.a Olga Ceciliato Mattioli