VIOLÊNCIA CONTRA CRIANÇA E DISCRIMINAÇÃO: REFLEXÕES A PARTIR DA MINISSÉRIE O SEGREDO DO RIO
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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.15355242
Elaine Teixeira Melico1
Cíntia Luiza Pereira Cazarim2
Jean Carlo Gonçalves Vilas Boas3
Pietro de Carvalho Garcia4
Giórgia Andrade Regiani Ferreira Martins5
Daniela Emilena Santiago6
RESUMO
A violência, incluindo a violência sexual, é um fenômeno que está presente nas sociedades contemporâneas. Como tal, o seu enfrentamento requer estudo e reflexão. No presente texto apresentamos uma reflexão sobre a violência sexual usando como fonte uma obra ficcional, sendo essa a série mexicana O Segredo do Rio. A obra nos chama a pensar sobre a violência sexual, sobre questões de gênero e sobre a importância das políticas sociais na defesa desses segmentos. Concluímos que a obra em questão precisa elementos que são vitais quando pensamos a questão da violência sexual contra crianças e adolescentes, e, mais, que obras ficcionais são importantes para que a sociedade como um todo reflita sobre tais elementos que são vitais para a conscientização em torno do tema em pauta.
Palavras-chave: Violência Sexual. Defesa dos Direitos. Criança e Adolescente. O Segredo do Rio.
ABSTRACT
Violence, including sexual violence, is a phenomenon that is present in contemporary societies. As such, confronting it requires study and reflection. In this text, we present a reflection on sexual violence using a fictional work as a source, the Mexican series The Secret of Rio. The work invites us to think about sexual violence, gender issues, and the importance of social policies in defending these segments. We conclude that the work in question needs elements that are vital when we think about the issue of sexual violence against children and adolescents, and, further, that fictional works are important for society as a whole to reflect on such elements that are vital for raising awareness around the issue at hand.
Keywords: Sexual Violence. Defense of Rights. Children and Adolescents. The Secret of Rio.
1 INTRODUÇÃO
Azevedo (1994) nos apresenta que a violência cometida contra crianças e adolescentes é, antes de tudo, um fenômeno que está presente em várias sociedades e culturas, e que, guarda relação com um tempo histórico que é peculiar em cada momento. A autora percorre a história para indicar que a violência foi sendo incorporada nas famílias e também nas escolas como uma forma de controlar corpos e condutas, porém, sob o argumento falso de atuar como um dispositivo ou meio de educação de crianças e de adolescentes.
Considerando a realidade brasileira observamos que as práticas de tal natureza estão situadas desde o período colonial contexto em que pais recebiam uma ação social quando faziam uso de práticas agressoras. Também do mês período a utilização e aporte da violência como forma de “educação” nas primeiras escolas constituídas as quais possuíam grande vinculação a doutrina jesuíta. Por oportuno, a forma com que a sociedade trata ou enfrenta a violência doméstica também foi mudando ao longo dos séculos.
Hoje, temos uma legislação de proteção a infância e a adolescência vasta e consolidada no Brasil, contudo, ainda contemporaneamente temos observado um grande número de violências pelos quais têm passado crianças e adolescentes. De acordo com dados construídos pela UNICEF no ano de 20247 foram registrados mais de 15 mil óbitos de crianças e adolescentes, considerando os anos de 2021 até 2023. Destes, 01 a cada 05 crianças e adolescentes foram vitimizadas, com a morte, por policiais. A mesma pesquisa destaca ainda que no ano de 2024 165 mil crianças e adolescentes foram vítimas de violência sexual, demonstrando a violência como um fenômeno típico e presente na sociedade brasileira contemporânea.
O enfrentamento da violência, entretanto, requer a escolha de posições políticas atreladas a defesa desses segmentos visando, a longo prazo, a minimização das formas de violência que afetam crianças e adolescentes, podendo, inclusive, chegar à morte das vítimas como salientado nos dados obtidos. Tais posturas, por outro lado, demandam a realização de leituras e de estudos que nos permitam compreender as várias facetas que envolvem a violência que acomete a crianças e adolescentes. Nesse contexto, propusemos a presente pesquisa que, por sua vez, representa as ideias de profissionais e estudantes que, organizados por meio de um grupo de estudos independente tem buscado realizar reflexões e estudos em torno das questões que envolvem a violência cometida contra criança e adolescente.
Uma das formas de pensar e refletir sobre esse tipo de violação é a expressão artística, ou seja, a construção de músicas, filmes, séries e outros elementos dessa natureza nos auxilia na problematização de temas que não são simples e fáceis de discussão. Além disso, há que se pensar e compreender, como nos aponta Oliveira (2017), que filmes e outras representações artísticas fazem menção a determinadas vivências e situações sociais em um contexto peculiar e específico. O autor nos diz então que ainda que sejam peças que apresentem uma conotação ficcional, fantasiada as mesmas precisam se compreendidas como produto de um determinado tempo e forma de existir humanos.
Derivando desse entendimento e, partindo das reflexões realizadas no contexto do grupo de estudos, houve a indicação da série O Segredo do Rio que foi disponibilizada pela Netflix no ano de 2024. Nela, há apresentação de situações que envolvem a violência sexual contra crianças e adolescentes com base no cenário mexicano. E suscita ainda a discussão atrelada a questão das travestis, nomeadas como moches na obra. A série é composta em 08 capítulos e permaneceu por vários meses como uma das dez mais assistidas da Netflix, indicando adesão social em relação a obra e a história.
Para compreender a obra em pauta e também para que seja possível a reflexão em torno de conceitos atrelados a série delimitamos elementos por realizar a descrição da obra, com a apresentação da narrativa que nos permita compreender como a história se desenvolveu seguida por critérios de análise, sendo esses: dispositivos de manejo frente a violência sexual, incluindo a existência de uma rede de apoio e de políticas e serviços públicos e consequências da vivência da violência sexual e psicológica vivenciada por crianças e adolescentes para o seu desenvolvimento. Na sequência apresentamos então a descrição da obra seguida da análise da mesma em torno dos indicadores.
O Segredo do Rio: violência sexual, violência psicológica
O Segredo do Rio é uma minissérie mexicana que aborda temas sobre a amizade, falta de solidariedade, desamor, brutalidade, identidade de gênero. A série explora a identidade de gênero, destacando a jornada de Manuel/Sicarú, que se identifica como muxe (muxe são pessoas não binárias que vivem na região), pois aborda os desafios enfrentados por Manuel/Sicarú em uma sociedade conservadora, incluindo preconceitos e violência de gênero. A violência é um marcador forte na vida de Manuel/Sicarú, pois ela enfrenta uma grande rejeição e violência, da comunidade local, porém, para a avó que é responsável pelo cuidado da criança não há menção a discriminação. Antes, a avó é bem próxima das muxes que vivem no povoado, algo que é apresentado durante toda a narrativa.
Assim, vemos que a série conta a história de dois meninos que se tornam amigos em uma pequena vila no México: Erik e Manoel. Manoel vai residir com a avó sem saber o porquê. Na verdade a mãe biológica dele está doente, passando por um processo de tratamento de câncer. No vilarejo, uma de aldeia de Oaxaca, os meninos se tornam amigos pelo fato de mãe de Erik e a avó de Manoel serem amigas. Devido a isso condicionam os dois a brincarem juntos e os meninos acabam desenvolvendo uma intensa amizade e vínculo a partir de então. Em princípio é dito que Manoel é compreendido por Erik como estranho. Erik chega a perguntar a Manoel sobre seu modo de andar, de falar e até mesmo em relação as vestimentas usadas pelo menino. É apresentado que Manoel mesmo parece não se compreender ou estar em dúvida sobre si mesmo, sobre o fato de ser ou não “normal”.
No entanto, conforme a trama vai se desenvolvendo Manoel conhece uma grande amiga de sua avó, Solange, uma muxe. Essa figura é apresentada como homens com traços femininos que se vestem com roupas de mulheres, ou seja, ainda não se tinha a compreensão que temos hoje acerca das questões que envolvem gênero e tampouco o respeito necessário para pessoas trans. Ainda que a série não deixe claro em que tempo histórico está sendo estruturada observamos alguns elementos presentes na infância dos meninos e que nos dão uma perspectiva do período em pauta, como, por exemplo: a ausência de telefones celulares nesse contexto da infância de ambos, ausência de qualquer menção a internet ou jogos de computadores, comuns à sociedade contemporânea. Antes, os meios de comunicação apresentados na série estão associados a telefones formais e cartas. Também há poucos meios de transporte no local sendo apresentados apenas os ônibus, hegemonicamente.
Para tanto, quando Manoel conhece Solange, como indicado acima, e que era muito amiga de sua avó, passa a se identificar com ela e com o seu universo. É apresentado que Solange, assim como outras muxes vivem em uma residência partilhada e sobrevivem por meio da confecção de roupas e também de prostituição. Todas que residem no local acolhem Erik, porém, Solange se mostra como a mais receptiva no sentido de buscar viabilizar o conhecimento de si por parte dele. Quanto as muxes há menções que indicam que as mulheres do vilarejo não demonstram tanto preconceito sendo o mesmo externado sobretudo pela fala de homens. As muxes chegam até a reivindicar para a Igreja o direito de participarem de celebrações religiosas, porém, são impedidas de fazê-lo pela Igreja, retratada como a denominação Católica.
Há ainda a apresentação de um casamento da tia de Erik. Os meninos participam da festa e vão até o rio próximo a mesma. Na verdade Manoel vai até o local e o noivo, recém casado, chega ao local muito bêbado e tenda abusar dele. Quando isso acontece Erik chega e consegue evitar a violência sexual, contudo, nesse momento é travada uma luta das crianças com o agressor que, cai no rio e morre. Os meninos definem então por um pacto de amizade em que prometem nunca contar a ninguém o que aconteceu, fazendo alusão ao título da série, afinal estabelecem como marco o segredo do que aconteceu no rio. E eles selam ali uma amizade que, duraria a vida toda.
A série avança apresentando o falecimento da mãe de Manoel, e, nesse mesmo período a criança começa a se identificar como vinculado ao gênero feminino chegando a colocar roupas de sua mãe e fazendo uso de maquiagem e brincos. Quando Erik se depara com essa circunstância, em princípio, se assusta mas com algum tempo amadurece a questão e mantém a amizade. Para tanto, o pai de Erik apresenta grande descontentamento com a amizade dos dois e pede ao pai de Manoel que venha buscar o filho visando o afastamento das crianças. A série apresenta o sofrimento dos meninos no dia desse afastamento e apresenta Erik, várias vezes, procurando a avó de Manoel para obter informações e qualquer contato com o amigo, porém, sem sucesso algum.
A sequência dos eventos mostra agora Erik casado com uma amiga de infância, Paulina. Aliás, Paulina sempre foi amiga de Manoel e de Erik e nunca demonstrou se importar com a suposta diferença de um dos “meninos”. Nesse momento, passados cerca de 20 anos da história original Manoel retorna já como Sicarú. Uma das primeiras pessoas que ela procura é o amigo Erik porém a recepção dele não é muito acolhedora. Sicarú retorna em um dia em que está sendo velada Solange e a sua grande amiga é enterrada com o cabelo cortado e roupas masculinizadas o que que causa muita dor em Sicarú e nas demais muxes.
A amizade de Sicarú e Erikapresenta-se bastante estremecida. Isso porque há uma perspectiva, ainda que isso não seja dito claramente, que Sicarú vivenciou o processo de transição o que incluiria a realização de cirurgias e também o uso de hormônios. Quando isso é desvelado mesmo as muxes demonstram um estranhamento uma vez que entendem que precisam ser aceitas como são e sem mudanças corpóreas. No entanto Sicarú fortalece com o grupo a importância de irem além, de querem mais para si e visando sua identificação com o gênero que as representam e para além do sexo biológico de nascimento.
A trama avança com a identificação de Sicarú de situações de exploração sexual e tráfico de crianças muxes e nas quais a polícia está implicada e envolvida. Por conta dessas circunstâncias e considerando ainda o apoio de Paulina, Sicarú e Erik retomam a amizade que possuíam anteriormente. Há um momento da trama em que chega haver uma suposta menção a um romance entre Sicarú e Erik, porém, ela já tem um noivo por quem é apaixonada e Manoel é casado e igualmente envolvido e apaixonado por Paulina. Conforme a história avança é conferida ênfase ao vínculo e amizade firmada desde a infância e é destacado também a importância do respeito da diversidade, algo que, como é destacado é a espinha dorsal da série, para além do segredo que os protagonistas juraram defender.
Em tempo quando Sicarú e Erik já estão adultos a polícia acaba descobrindo que os meninos poderiam estar envolvidos na morte do tio de Manoel, porém, não conseguem comprovar o ato. Manoel explica para sua tia que seu marido havia falecido e narra o que aconteceu. Nesse sentido, não há um final feliz na obra, mas, há indicações de que naquele momento ainda há grande preconceito em relação as muxes, porém, mesmo isso, não é hegemônico. Ao que parece é uma sociedade menos preconceituosa porque as muxes são compreendidas como um terceiro gênero comum para aquela realidade.
Partindo dos elementos associados a narrativa e apresentados na série acima indicada desejamos destacar os elementos que foram sumariados como referências para a análise, sendo esses: dispositivos de manejo frente a violência sexual, incluindo a existência de uma rede de apoio e de políticas e serviços públicos e consequências da vivência da violência sexual e psicológica vivenciada por crianças e adolescentes para o seu desenvolvimento. Obviamente que aqui precisamos estabelecer um destaque: o exemplo retratado apresenta a realidade observada em uma aldeia, no Chile, e, grande parte do que compreendemos como sistema protetivo provém da legislação que o disciplina no Brasil. Para tanto, ainda assim é possível realizar uma crítica reflexiva considerando o exemplo proposto.
Considerando assim a série apresentada observamos a situação em que Sicarú, na infância quase foi abusada. No contexto em que a situação se desenvolveu as crianças conseguiram se defender do abusador, porém, mantiveram um segredo que as assombrou durante muitos anos. Por conseguinte, não há acionamento da proteção formal de qualquer natureza. Nenhuma instituição como polícia, Conselho Tutelar ou equivalente é apresentado. Também não há menção a possíveis serviços como o de Saúde Mental é acionada após a tentativa de violência sexual de Sergio contra Manuel/Sicarú. Isso advém, em grande medida, devido ao fato de que as crianças esconderam no momento da situação mas também possivelmente porque o fato de não haver um sistema protetivo a quem as crianças pudessem recorrer sem sentir exposição ou visando sentir, de fato, a proteção social. Isso é uma escolha narrativa significativa, pois mostra como o medo e a vergonha fazem com que casos de abuso muitas vezes não sejam denunciados, especialmente quando envolvem figuras de poder ou familiares (Sergio era tio de Erik).
Paixão; Deslandes (2010) enfatizam que o atendimento de casos de violência sexual infantojuvenil é vital e essencial, porém, salientam a importância de políticas e serviços sociais públicos e consolidados para tal fim. Por conseguinte, uma ação não deve ser eventual ou pontual antes, deve ser gerida e organizada pelo Poder Público com delimitação de atividades a serem desenvolvidas em cada área. Dessa forma, é responsabilidade do Estado a consolidação desses dispositivos de proteção às vítimas com a menção a fluxos de atendimento a serem desenvolvidos em cada área.
O fato de definirem pelo silêncio pode também ser compreendida como uma espécie de símbolo que tem analogia com a forma com que vítimas de violência sexual agem, muitas vezes por medo de represálias ou por falta de confiança nas instituições. A obra representa a ausência de instituições protetoras no contexto da narrativa. No caso ainda os as crianças se apoiaram nessa situação ainda que não demonstrassem tanto entendimento a respeito do que estavam fazendo. O segredo do que houve só foi revelado quando os dois já estavam adultos, inicialmente para Paulina, esposa de Erik e posteriormente para a tia de Erik.
Azevedo (1994) cita a existência de um pacto de silêncio termo pelo qual designa a imposição firmada entre agressor e vítima sempre que esse tipo de violação acontece. No entanto, não há na literatura consultada referências teóricas que permitam discutir o chamado pacto de silencio que fora firmado entre Sicarú e Erik, mesmo porque não houve a conversa sobre o fato após o mesmo ter ocorrido. Antes, Erik vivenciou o processo pois ele viu a cena e chegou no momento em que a violência quase aconteceu. Para tanto, o estabelecimento da confiança em relação ao que aconteceu e firmado entre as crianças foi o motivador para que defendessem o segredo por um longo período de suas vidas e permaneceram com essa defesa até a vida adulta.
No contexto nem Sicarú nem Erik procuram apoio de adultos ou de familiares para contar o que aconteceu. “No entanto, quando ocorre a revelação, essa é geralmente realizada para alguma pessoa em quem a criança confia, quando percebe uma oportunidade para estabelecer uma conversa com privacidade” (Santos, Dell’aglio, 2010, p. 08). Pode ser porque não confiassem nas pessoas ou por outros fatores como o medo, a vergonha do que aconteceu ou por outros fatores afins. Porém, um dos elementos observados nesse aspecto é atrelado também a questão de gênero uma vez que Sicarú, caso revelasse a violência sexual, poderia sofrer uma segunda discriminação pois já vinha sendo julgada na vila como diferente e como incorreta.
Para tanto, a solução e arranjo conferido pelas crianças a situação vivenciada trouxe consequências a longo prazo para ambos. Na infância Erik apresenta pesadelos que se manifestam durante a vida adulta dele. Os pesadelos são apontados por Azevedo; Guerra (2000,p. 5) como um dos possíveis resíduos que são gerados pela violência sexual, ou, como nos indica: “Pesadelos freqüentes, padrões de sono perturbados, medo do escuro, suores, gritos ou agitação noturna”. E, ainda que as crianças pudessem apresentar outros possíveis comportamentos que indicassem a situação vivida, a série não apresenta outros elementos além dos sonhos frequentes de Erik.
Manuel/Sicarú carrega as marcas do trauma em silêncio e nunca tem a oportunidade de elaborar esse sofrimento com apoio profissional. Manuel/Sicarú encontra o único espaço de acolhimento que foram das muxes (rede comunitária informal), que oferecem apoio emocional e um espaço de pertencimento. Essa rede funciona como uma forma alternativa de proteção, ainda que não substitua o suporte psicológico ou jurídico adequado. No entanto, nem as muxes tinham conhecimento da situação vivida por Sicarú.
A serie não romantiza esse silêncio, mas o apresenta como algo trágico, com consequências duradouras, pois ela provoca o espectador a refletir: "E se houvesse escuta, apoio, justiça?". Ela denuncia, de forma sutil, mas poderosa, a ausência do Estado, da escola, da família e da sociedade na proteção de crianças e adolescentes em situação de violência. Aliás, há várias situações de violência cometidas por outros alunos em relação à Sicarú na escola e não há adoção de nenhuma providência no sentido posto.
O que deveria acontecer no caso da tentativa de violência sexual é o acolhimento imediato da vítima A vítima deveria ser encaminhada a um serviço especializado onde deveria ser atendida pelo serviço de escuta especializada. A partir desse procedimento outros dispositivos poderiam ser acionados, como, por exemplo o encaminhamento para atendimento médico como primeira medida em caso de qualquer forma de violência que causasse prejuízo para a criança no aspecto biológico. Outras abordagens como o atendimento psicológico poderiam ser acionadas para avaliação por profissionais específicos em relação a tal atendimento.
No entanto, a intervenção demonstrada é na seara da polícia tendo em vista a investigação iniciada para que fosse possível identificar quem foi o assassino do noivo recém falecido. O ideal seria que, a partir da fala da criança fosse desenvolvida uma investigação para verificar que há condições para que o agressor seja responsabilizado criminalmente. E, como na série o agressor morreu, a depender da justiça legal poderia ser estudada uma alternativa que mesmo após a morte do mesmo ele fosse responsabilizado postumamente. Outro contorno importante é que o caso poderia ter sido tratado como legítima defesa de terceiro por parte de Erik, se tudo tivesse sido relatado.
Mas a série demonstra uma outra realidade, totalmente díspar da que é idealizada para aqueles que atuam no ordenamento de políticas públicas de proteção à infância e a adolescência. Por que a série mostra o oposto?. Possivelmente, porque ela quer denunciar como as vítimas de violência sexual, especialmente as que fogem do padrão cisgênero (uma pessoa cisgênero é aquela que se identifica com o sexo biológico que lhe foi atribuído ao nascer. Por exemplo, uma pessoa que nasceu com genitália feminina e se identifica como mulher é cisgênero) ou heterossexual, são invisibilizadas. Na verdade, consideramos que seja vital destacar esse elemento uma vez que o mesmo pode ser compreendido como um dos dispositivos que fortalece a ocorrência das violências sexuais ao passo que a vítima passa a ser tratada como responsável pela violência vivida.
2 CONCLUSÃO/CONSIDERAÇÕES FINAIS
A série retrata o estigma de se reconhecer, desde a infância, como pertencente a um gênero diverso daquele do nascimento e mais, de descobrir isso em um momento que estava em uma cidade pequena, mais especificamente, em um vilarejo e com a morte da mãe. Por outro lado, destaca que entre as crianças foi estabelecido um vínculo tamanho que essa questão não parecia interferir na amizade.
A escolha de não acionar a proteção social das vítimas em O Segredo do Rio não é uma falha da narrativa, mas pode sinalizar uma crítica ao sistema que falha com os mais vulneráveis. Enquanto a ficção denuncia, a vida real exige ação. O que deveria acontecer, a partir da relevação da criança, seria a atuação das políticas públicas visando a proteção das vítimas. De acordo com as diretrizes de proteção às vítimas de abuso sexual (vigentes no Brasil e similares em outros países da América Latina), o correto seria:
Acolhimento imediato da vítima em serviços especializados;
Notificação obrigatória do caso ao Conselho Tutelar, polícia ou Ministério Público;
Responsabilização do agressor, garantindo que a vítima seja ouvida com sigilo e empatia;
Acompanhamento contínuo e reinserção em ambiente seguro;
Ação intersetorial entre educação, saúde, assistência social e sistema de justiça.
A ausência completa dessa rede na série serve como crítica contundente ao abandono vivido por milhares de crianças e adolescentes em situação de violência.
A obra também se destaca por retratar a identidade de gênero de forma delicada e realista. Manuel/Sicarú, após anos de silêncio e sofrimento, reencontra sua verdade ao se identificar com a cultura das muxes e adota o nome de Sicarú. Essa representação amplia o debate sobre a interseccionalidade entre abuso, gênero e exclusão social, propondo ao público uma reflexão sobre como o preconceito é uma forma de violência que também silencia.
O Segredo do Rio não oferece respostas fáceis nem finais redentores imediatos, ao contrário, convida à reflexão sobre tudo o que é negligenciado como, o trauma que não é tratado, o sistema que não acolhe e a identidade que é ignorada. Por meio da dor de seus personagens, a série mostra que o verdadeiro segredo é o silêncio imposto pelas estruturas sociais, e que romper esse silêncio é o primeiro passo para a justiça, a cura e a liberdade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Azevedo, M. A. Infância e violência doméstica: fronteiras do conhecimento. São Paulo: Cortez, 1994.
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SANTOS, S. S. DOS .; DELL'AGLIO, D. D.. Quando o silêncio é rompido: o processo de revelação e notificação de abuso sexual infantil. Psicologia & Sociedade, v. 22, n. 2, p. 328–335, maio 2010.
Fonte
O SEGREDO DO Rio. Direção: Alberto Barrera, Ernesto Contreras. Local: México, 2024. Mídia: Netflix
1 Pedagoga, coordenadora do CRAS de Platina-SP. E-mail: [email protected]
2 Pedagogia graduada pela Unip de Assis, Pós-graduada em Educação Especial e Inclusão Social, professora do ensino fundamental em Assis. E-mail: [email protected]
3 Psicólogo graduado pela UNIP, campus Assis-SP. Psicólogo clínico. E-mail: [email protected]
4 Graduado em Gestão de Segurança, Especialista em Psicologia Organizacional e em Educação Especial e Inclusão Social. E-mail [email protected]
5 Psicóloga, pós graduada em “Psicanálise-Curso Fundamental de Freud a Lacan” pela Umiderp, graduada em Pedagogia pela Unesp, Pós Graduada em Gestão e Organização Escolar pela Unopar e Mestra em Educação pela Unesp de Marilia. E-mail: [email protected]
6 Docente do Curso Superior de Psicologia do Instituto de Ciências Humanas da UNIP, Campus Assis. Mestre em Pedagogia e Psicologia pela Unesp de Assis, Mestre em História pela Unesp de Assis e Doutora em História pela Unesp de Assis. E-mail: [email protected]
7 Disponível em https://www.unicef.org/brazil/comunicados-de-imprensa/mais-de-15-mil-criancas-e-adolescentes-foram-mortos-de-forma-violenta-no-brasil-nos-ultimos-3-anos. Acesso: 01 de maio 2025.