UMA BREVE PROPOSTA PARA SISTEMATIZAÇÃO DE ATENDIMENTO ÀS FAMÍLIAS PERTENCENTES A COMUNIDADES DE TERREIRO NO CADASTRO ÚNICO A PARTIR DAS DEMANDAS DE LIDERANÇAS RELIGIOSAS DO MUNICÍPIO DE NOVA IGUAÇU
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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.15016083
Kleber Luiz Alves dos Santos Gonzaga1
RESUMO
Este artigo propõe uma sistematização dos atendimentos às famílias pertencentes à comunidade de terreiro no âmbito do Cadastro Único, com base nas diretrizes do governo federal e na análise das necessidades e desafios enfrentados por essa população historicamente marginalizada. A pesquisa ressalta a importância fundamental da inclusão dessas famílias no Cadastro Único para Programas Sociais, que serve como um mecanismo crucial para garantir o acesso a direitos sociais essenciais e para a construção de políticas públicas mais justas e equitativas. A proposta apresentada neste estudo visa criar um modelo de atendimento que leve em consideração as especificidades culturais e sociais das comunidades de terreiro, reconhecendo sua diversidade e complexidade. Esse modelo não apenas busca promover a participação ativa dessas comunidades na elaboração e implementação das políticas públicas que as afetam, mas também enfatiza a importância do fortalecimento da identidade cultural e da autonomia dessas populações. A sistematização proposta incorpora práticas de capacitação de profissionais da assistência social, criação de pontos de apoio nas comunidades e ações de busca ativa para identificar e cadastrar famílias em situação de vulnerabilidade. Com isso, espera-se contribuir para um cenário em que as comunidades de terreiro possam usufruir plenamente de seus direitos e se tornar protagonistas na construção de sua própria trajetória, promovendo uma sociedade mais inclusiva e igualitária.
Palavras-chave: Comunidades de Terreiro, Inclusão Social, Políticas Públicas, Nova Iguaçu, Sistema de Atendimento.
ABSTRACT
This article proposes a comprehensive systematization of services for families belonging to the terreiro community within the scope of the Unified Registry, based on federal government guidelines and an analysis of the needs and challenges faced by this historically marginalized population. The research highlights the fundamental importance of including these families in the Unified Registry for Social Programs, which serves as a crucial mechanism to ensure access to essential social rights and to build fairer and more equitable public policies. The proposal presented in this study aims to create a service model that considers the cultural and social specificities of terreiro communities, recognizing their diversity and complexity. This model not only seeks to promote the active participation of these communities in the formulation and implementation of the public policies that affect them but also emphasizes the importance of strengthening cultural identity and the autonomy of these populations. The proposed systematization incorporates practices for the training of social assistance professionals, the establishment of support points within communities, and active search actions to identify and register families in situations of vulnerability. With this, it is expected to contribute to a scenario where terreiro communities can fully enjoy their rights and become protagonists in the construction of their own trajectory, promoting a more inclusive and equitable society.
Keywords: Terreiro Communities, Social Inclusion, Public Policies, Nova Iguaçu, Service System.
1. Introdução
A proposta de sistematização apresentada neste documento oferece um modelo que pode ser adaptado e implementado em municípios que buscam promover a inclusão das famílias pertencentes a Comunidades de terreiro ( Brasil, 2014) em suas políticas públicas, principalmente no Cadastro Único para Programas Sociais. O exemplo de Nova Iguaçu é utilizado para ilustrar as etapas e estratégias que se mostraram eficazes na identificação e no atendimento das necessidades específicas dessas comunidades. A invisibilidade e a exclusão social enfrentadas por essas populações são questões críticas que demandam um planejamento cuidadoso e ações direcionadas”é necessário conhecer para incluir" (Brasil, 2017 p.1), enfatizando a importância da coleta de dados no Cadastro Único para que as ações públicas sejam efetivas. O trabalho desenvolvido em Nova Iguaçu ilustra como a coleta de informações, em conjunto com a valorização das culturas locais, pode resultar em políticas mais eficazes e inclusivas. Além disso, a inclusão das comunidades de terreiro nas políticas públicas é um passo fundamental para garantir a equidade e a justiça social (Brasil, 2015).
Dessa forma, a sistematização proposta não apenas serve como uma sugestão para a implementação de políticas públicas, mas também como um convite à reflexão sobre a necessidade de reconhecimento e valorização das comunidades de terreiro em todo o Brasil. A experiência de Nova Iguaçu pode ser vista como um modelo a ser seguido, promovendo uma sociedade mais justa (Brasil, 2012). Ao respeitar e integrar as particularidades culturais das comunidades de terreiro, as políticas públicas não apenas asseguram direitos, mas também fortalecem a identidade e a autonomia desses grupos.
2. Fundamentação Teórica
A perspectiva de inclusão social das comunidades de terreiro, enquanto grupos historicamente marginalizados, deve ser compreendida a partir de um enfoque de direitos, considerando que o acesso às políticas públicas é, em essência, um direito fundamental (Brasil, 2012). Ao se referir a essas comunidades como grupos vulneráveis, não se trata apenas de uma questão socioeconômica, mas também de vulnerabilidade simbólica, uma vez que tais grupos enfrentam estigmatização religiosa, discriminação racial e falta de reconhecimento por parte do Estado. Isso gera um ciclo de exclusão, onde a falta de acesso a direitos básicos, como moradia, educação e saúde, acaba por reforçar ainda mais a marginalização dessas populações. Nesse contexto, o Cadastro Único se configura como uma ferramenta importante para a efetivação de políticas públicas inclusivas. No entanto, como apontado por Silva (2019), muitas famílias pertencentes às comunidades de terreiro enfrentam desafios estruturais para se cadastrarem.
O Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico), criado pelo Decreto n.º 3.877, de 24 de julho de 2001, estabelece um mecanismo basilar para a inclusão de famílias em situação de vulnerabilidade social. Este formulário é utilizado por órgãos públicos federais para a concessão de programas focalizados do governo. Em 23 de maio de dois mil e onze, um novo campo foi introduzido na Versão 7 do sistema de Cadastro único, permitindo a identificação de famílias pertencentes a grupos específicos, incluindo as comunidades de terreiro, por meio do código 203. Este avanço é um passo significativo para garantir que esses grupos, que desempenham um papel essencial na preservação da cultura de matriz africana, sejam reconhecidos e atendidos adequadamente nas políticas públicas (Brasil, 2011). As comunidades de terreiro constituem espaços que perpetuam valores, símbolos e práticas culturais, mantendo vivas tradições que são parte do patrimônio cultural afro-brasileiro (Brasil, 2012). Essas comunidades organizam-se de maneiras distintas, ocupando e utilizando seus territórios e recursos naturais para suas práticas econômicas, sociais e religiosas, com base nos conhecimentos transmitidos por gerações. Os cultos praticados nessas comunidades incluem, mas não se limitam a, Candomblé, Umbanda, Tambor de Mina, e Pajelança, cada um com suas particularidades regionais e expressões culturais (Brasil, 2011).
A criação do campo 2.07 no Formulário Suplementar 1 do Cadastro Único foi uma resposta à demanda crescente por atendimento a essas populações, que, muitas vezes, enfrentam desafios significativos para acessar serviços e políticas públicas. A identificação e o cadastramento adequados das famílias de terreiro não apenas promovem a inclusão social, mas também contribuem para a valorização de suas identidades culturais e a defesa de seus direitos (Brasil, 2011). Assim, o código 203 torna-se um importante instrumento para as equipes de assistência social e os gestores públicos, facilitando a criação de políticas específicas e focalizadas que atendam às necessidades dessas comunidades. A implementação desse código deve ser acompanhada de estratégias de capacitação e sensibilização dos profissionais da assistência social, principalmente as equipes técnicas dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), garantindo que o atendimento seja realizado de maneira respeitosa e informada sobre as especificidades culturais das comunidades de terreiro. Essa abordagem é fundamental para promover inclusão efetiva e equitativa, assegurando que as vozes sejam ouvidas e que os direitos de todos sejam respeitados.
Neste contexto, as famílias pertencentes às comunidades de terreiro podem ser classificadas como Grupos Populacionais Tradicionais e Específicos (GPTE), conforme as diretrizes do Governo Federal (Brasil,2023). De acordo com as Diretrizes para Cadastro de Populações Tradicionais e Especiais (Brasil, 2012), os domicílios pertencentes à comunidade de terreiro são definidos como aqueles que têm vínculo com uma casa de tradição de matriz africana. Esses espaços congregam comunidades que compartilham características comuns, como a manutenção das tradições africanas, o respeito aos ancestrais, valores de generosidade e solidariedade, um conceito amplo de família e uma relação próxima com o meio ambiente. Assim, essas comunidades possuem uma cultura diferenciada e uma organização social própria, que constituem um importante patrimônio cultural afro-brasileiro. Esses grupos são reconhecidos como empoderados, conforme definido pela Lei n.º 6.040 de 2007, que ressalta as características socioculturais essenciais desses coletivos. A lei estabelece que são grupos culturalmente diferenciados que se reconhecem como tal, possuem formas próprias de organização social e utilizam territórios e recursos naturais para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica (Brasil, 2007, Art. 3º, I).
Nas comunidades tradicionais o reconhecimento é uma dimensão fundamental representando a maneira como elas exercem sua autonomia e autogoverno. Esse processo de conhecimento envolve a identificação coletiva e a liberdade mútua entre os membros, criando um forte sentimento de pertença e coesão social. Além disso, o autoreconhecimento desempenha um papel vital na valorização da identidade cultural, resistência ao estigma externo e preservação dos costumes ancestrais. Esse aspecto também promove um cuidado com o meio ambiente e com os territórios que habitam, proporcionando uma base sólida para a proteção de suas identidades culturais e reforçando a coesão social e o profundo sentimento de pertença ao grupo e ao território. A forma como essas comunidades são percebidas pela sociedade pode afetar suas interações e, consequentemente, suas oportunidades de inclusão nos sistemas de assistência social, como o Cadastro Único. Discutiremos, portanto, como o reconhecimento e a valorização do autoconhecimento e das identidades culturais são importantes para promover uma sociedade justa, onde as comunidades de terreiro possam ter acesso a direitos sociais fundamentais e participar ativamente da construção de suas próprias narrativas e trajetórias (Gomes, 2020).
As comunidades de terreiro possuem laços profundos com grupos étnicos e tradições de origem africana, preservando práticas culturais que enfatizam a reverência aos ancestrais e valores fundamentais de generosidade e solidariedade. Essas comunidades desempenham um papel importante como parte do patrimônio cultural afro-brasileiro, mas enfrentam uma situação de dupla invisibilidade: uma decorrente da pobreza e outra relacionada a preconceitos e estigmas sociais (Brasil, 2012).
A identificação e o reconhecimento dessas famílias são fundamentais para que possam se tornar o foco de políticas públicas específicas que visem a melhoria de suas condições sociais. Essa inclusão no Cadastro Único não apenas proporciona visibilidade a grupos frequentemente negligenciados, mas também destaca a necessidade de "conhecer para incluir" (Brasil, 2014, p. 13). O atendimento a esses grupos deve ser pautado pelo respeito à diversidade e à forma como vivem e interagem com o meio ambiente, permitindo um cadastramento que abranja todos os cidadãos brasileiros em situação de vulnerabilidade.
Além disso, a eficácia das políticas públicas depende do respeito à cultura dessas comunidades, que não apenas devem ser reconhecidas, mas também ativamente incluídas na elaboração e implementação das políticas que as afetam. Essa abordagem promove uma redução das desigualdades e contribui para o bem-estar de todos os cidadãos, independentemente de sua origem étnica ou cultura, sendo o papel dos agentes de assistência social a superação dessas barreiras. (Brasil, 2018), a capacitação desses profissionais para lidar com as especificidades culturais das comunidades de terreiro é um passo necessário para evitar a perpetuação de preconceitos e práticas discriminatórias no atendimento público. A falta de sensibilidade cultural por parte dos servidores públicos tem sido uma queixa recorrente entre as lideranças dessas comunidades, destacando a necessidade de uma formação que contemple o respeito à multiplicidade religiosa (Gomes, 2020).
A construção de um atendimento que respeite a pluralidade implica também em ações que promovam o fortalecimento da autonomia das comunidades de terreiro. Isso pode ser feito por meio da criação de canais de diálogo permanentes entre o Estado e essas comunidades (Brasil, 2015). A participação ativa das lideranças religiosas e dos membros das comunidades no planejamento e na execução das políticas públicas voltadas para elas é fundamental para que essas ações sejam eficazes e adequadas às suas reais necessidades. Dessa forma, o reconhecimento do terreiro como um espaço de resistência e cultura também se traduz em reconhecer sua capacidade de protagonismo nas ações de inclusão (Gomes, 2020).
Por fim, como apontado na análise de Silva(2019), a identidade coletiva das comunidades de terreiro deve ser uma questão central nas políticas públicas. O respeito à sua religiosidade, à sua organização comunitária e às suas práticas culturais deve guiar as ações estatais, promovendo uma inclusão que não seja meramente burocrática, mas que valorize a diversidade e combata as raízes da exclusão. Em última instância, a proposta de sistematização aqui discutida não busca apenas ampliar o acesso ao Cadastro Único, mas também fomentar a construção de um Estado mais inclusivo, que reconheça as diversas identidades e histórias que compõem a sociedade brasileira.
3. Metodologia
Foram realizadas 46 entrevistas com as lideranças religiosas das comunidades de terreiro, com o intuito de captar a pluralidade de vozes dentro dessas comunidades no Município de Nova Iguaçu considerando tanto os diferentes cargos hierárquicos nas estruturas religiosas quanto às perspectivas de gênero, raça e localidade. Como as comunidades de terreiro variam em tamanho e organização, foi importante garantir que as entrevistas contemplassem líderes de diferentes contextos, desde os terreiros mais tradicionais até aqueles localizados em áreas mais urbanizadas e com isso construir uma sugestão metodológica para atendimento às famílias que se autodeclaram pertencentes a comunidade de terreiro no tocante ao Cadastro Único para Programas Sociais avaliando também as barreiras enfrentadas no acesso às políticas públicas, especialmente no Cadastro Único, que, , ainda apresenta desafios na inclusão de grupos tradicionalmente marginalizados (Brasil, 2018).
A metodologia qualitativa adotada neste estudo é fundamentada no entendimento das particularidades culturais, sociais e religiosas das comunidades de terreiro, buscando uma compreensão profunda das experiências vividas pelas famílias pertencentes a essas comunidades no processo de inclusão no Cadastro Único. A escolha por entrevistas semiestruturadas foi deliberada, pois permitiu a flexibilidade necessária para abordar temas sensíveis e complexos, como a discriminação religiosa e a exclusão social, de maneira que as lideranças de terreiro pudessem expressar suas percepções e vivências sem as restrições de uma estrutura de entrevista rígida (Naiff e Naiff, 2005).
Além das entrevistas, a análise documental incluiu a revisão de legislações federais, estaduais e municipais, como os relatórios do Ministério do Desenvolvimento Social sobre Grupos Populacionais Tradicionais e Específicos (Brasil, 2012), além de documentos do próprio município de Nova Iguaçu. Esses relatórios foram essenciais para entender as lacunas existentes nas estratégias de implementação de programas sociais voltados para comunidades de terreiro e a falta de diretrizes claras que considerem suas especificidades culturais.
A triangulação de métodos – entrevistas semiestruturadas, análise documental e a comparação com experiências de outras regiões – fortalece a credibilidade dos dados e possibilitou uma visão multidimensional do problema. Os dados coletados nas entrevistas revelaram não apenas as barreiras burocráticas e estruturais enfrentadas por essas comunidades, mas também as expectativas quanto ao tipo de atendimento que consideram adequado, com respeito à sua identidade cultural. Entre as barreiras mais citadas, estavam a dificuldade de obtenção de documentos exigidos para o cadastro, o preconceito por parte de alguns funcionários públicos e a falta de informação sobre os programas sociais disponíveis.A formação continuada de assistentes sociais e outros profissionais envolvidos no atendimento dessas famílias também se destacou como uma prática positiva, uma vez que proporciona um atendimento mais humanizado e sensível às questões culturais e religiosas ( Marcondes, 2014).
Dessa forma, a metodologia utilizada neste estudo não apenas identificou as barreiras enfrentadas pelas famílias de terreiro no acesso ao Cadastro Único, mas também trouxe contribuições importantes para o desenvolvimento de políticas públicas mais inclusivas e culturalmente sensíveis.
4. Resultados e Discussão
Os resultados revelaram três principais barreiras enfrentadas pelas comunidades de terreiro, a partir das informações de suas lideranças, no acesso ao Cadastro Único: desconhecimento sobre os direitos de acesso, preconceito e discriminação religiosa e dificuldades estruturais de acesso, como a localização geográfica e a falta de documentação adequada. Esses obstáculos, conforme descrito pelas lideranças entrevistadas, perpetuam a invisibilidade dessas comunidades dentro do sistema de assistência social, dificultando o acesso aos programas sociais essenciais para o bem-estar das famílias que integram os terreiros.
Um dos pontos mais destacados nas entrevistas foi a invisibilidade social vivida por essas comunidades. A fala de uma mãe de santo entrevistada ilustra esse sentimento: “É como se a gente não existisse para as políticas públicas. Nossos filhos, nossas famílias, precisam de apoio, mas os terreiros são vistos com preconceito.” Esse depoimento revela como a exclusão dessas famílias é percebida não apenas como uma questão de acesso a direitos, mas também como um reflexo de processos históricos de marginalização e discriminação religiosa. Conforme ressaltado por Brasil (2015), a exclusão de grupos culturalmente específicos como as comunidades de terreiro reflete a continuidade do racismo estrutural, que nega a esses grupos a oportunidade de serem reconhecidos e incluídos em políticas públicas de maneira efetiva.
No que tange ao preconceito e à discriminação religiosa, os relatos de líderes de terreiro evidenciaram que agentes públicos pouco preparados para lidar com a liberdade religiosa muitas vezes reforçam barreiras simbólicas ao invés de promoverem a inclusão. A falta de capacitação dos profissionais da assistência social foi um dos fatores mais mencionados nas entrevistas, com exemplos de situações em que líderes e membros das comunidades de terreiro relataram sentir-se desrespeitados ou desconsiderados ao buscar apoio nas instituições públicas. Esses dados corroboram as análises de Silva (2019), que destacam a necessidade de uma formação continuada para os profissionais que atuam no campo da assistência social, a fim de garantir um atendimento inclusivo e sensível às particularidades culturais e religiosas das famílias de terreiro.
Além disso, as dificuldades estruturais também surgiram como uma barreira significativa. Muitas comunidades de terreiro estão localizadas em áreas afastadas ou periféricas, o que dificulta o acesso aos serviços públicos. Essa questão é agravada pela exigência de documentação formal, muitas vezes inexistente para essas famílias, que por estarem à margem do sistema, enfrentam maiores dificuldades para regularizar sua situação. O Cadastro Único, enquanto principal porta de entrada para os programas sociais, impõe requisitos que, embora universais, são de difícil cumprimento para grupos como as comunidades de terreiro, que têm uma relação particular com os territórios que ocupam e enfrentam desafios maiores em termos de acesso à cidadania formal (Brasil, 2018).
Diante desses resultados, a proposta de um modelo de atendimento deve ser orientada pela capacitação dos profissionais da assistência social, para que sejam capazes de lidar de forma mais inclusiva e respeitosa com as culturas e religiosas presentes nas comunidades de terreiro. Silva (2019) enfatiza que o fortalecimento da identidade e pertencimento das comunidades de terreiro deve ser um componente central das políticas públicas voltadas para a inclusão social. Isso implica não apenas o reconhecimento formal dessas comunidades como grupos populacionais tradicionais, mas também a promoção de ações que combatam o racismo religioso e cultural que ainda persiste em muitos setores da sociedade.
Assim, um modelo de atendimento que se proponha a incluir essas famílias de forma digna e equitativa precisa ser abrangente e intersetorial, englobando não só o setor da política de assistência social, mas também educação, saúde e cultura, criando uma rede de apoio que valorize e respeite a diversidade cultural e religiosa. Além disso, a educação permanente dos profissionais que atuam no atendimento ao público deve ser prioridade, uma vez que apenas a partir de uma formação que reconheça e combata preconceitos arraigados será possível garantir um atendimento mais inclusivo e eficaz (Brasil, 2012).
5. Breve Proposta para sistematizações para atendimentos às “ Famílias pertencentes a comunidades de terreiro no Âmbito do Cadastro único para Programas Sociais
5.1 Capacitação de Profissional
A promoção de formação e capacitação contínua para os agentes da assistência social é primordial para a construção de um atendimento sensível e eficaz. Essas formações devem abranger não apenas a liberdade religiosa, mas também as especificidades culturais das comunidades de terreiro, incluindo temas como a história, os valores e as práticas dessas religiões. Segundo Jesus (2013), o fortalecimento da identidade cultural deve ser um componente central das políticas públicas, e a formação dos profissionais é uma forma de garantir que isso aconteça.
A capacitação pode incluir workshops, palestras e grupos de discussão que estimulem a reflexão crítica sobre preconceitos e estigmas associados a essas comunidades. Essas atividades são fundamentais para desmistificar noções errôneas e promover um entendimento mais profundo da cultura no Brasil. Conforme argumenta Caputo (2012), um diálogo aberto e educacional é faz-se necessário para combater a discriminação religiosa e promover a inclusão.
Além disso, a formação pode ser complementada por intercâmbios e visitas a terreiros, onde os profissionais podem vivenciar as práticas culturais e religiosas em primeira mão. O contato direto ajuda a humanizar o atendimento e a construir uma relação de respeito e confiança entre os profissionais da assistência social e as comunidades atendidas, alinhando-se à proposta de um atendimento inclusivo que respeite as particularidades de cada grupo (Mello, 2018).
O desenvolvimento de materiais didáticos que reflitam a realidade das comunidades de terreiro também pode ser uma ferramenta valiosa nesse processo, garantindo que os conteúdos abordados sejam contextualizados e relevantes. Segundo Pereira (2021), materiais adaptados à realidade das comunidades ajudam a promover um entendimento mais igualitário nas abordagens sociais, além de reconhecer e valorizar a cultura afro-brasileira.
5.2 Criação de Pontos Focais em Comunidades de Terreiro
Estabelecer parcerias com lideranças religiosas é uma estratégia eficaz para que os terreiros atuem como pontos de apoio no cadastramento das famílias no Cadastro Único. Esses pontos focais podem funcionar como centros de referência, onde as famílias encontram informações sobre seus direitos, assistência social e processos de cadastramento, criando um ambiente acolhedor e de apoio (Almeida, 2018). A presença de lideranças respeitadas nas comunidades pode facilitar a confiança das famílias no sistema e promover uma maior adesão ao Cadastro Único.
Essas parcerias devem ser formalizadas por meio de acordos que garantam a participação das lideranças nos processos de elaboração e implementação das políticas públicas. Segundo Costa (2020), a inclusão de representantes das comunidades de terreiro nas discussões sobre políticas de assistência social é imperativo para garantir que suas vozes sejam ouvidas e suas demandas atendidas. Essa abordagem não apenas empodera as comunidades, mas também enriquece o processo de formulação de políticas ao integrar perspectivas e necessidades específicas.
Além disso, a formação de grupos de trabalho compostos por representantes da assistência social e das comunidades de terreiro pode facilitar o diálogo e a construção conjunta de soluções. Essa interação pode resultar em propostas mais adequadas e eficazes, considerando as particularidades culturais e sociais dessas comunidades (Nogueira, 2019). A colaboração entre diferentes atores sociais é essencial para superar as barreiras enfrentadas pelas famílias de terreiro e garantir um atendimento mais inclusivo e respeitoso.
Ao implementar pontos focais nas comunidades de terreiro, é possível não apenas facilitar o acesso ao Cadastro Único, mas também fortalecer a rede de apoio social, contribuindo para a construção de um ambiente que respeite e valorize a diversidade cultural e religiosa do Brasil, por isso, abordagens dialogadas são fundamentais para conquistar a confiança das comunidades, pois o respeito à sua cultura é basilar para o sucesso dessas iniciativas (Brasil, 2012). Além disso, as ações de busca ativa devem considerar a presença de lideranças, que podem atuar como facilitadores no processo. Sua participação é valiosa, pois podem ajudar a desmistificar a assistência social e encorajar as famílias a se cadastrarem, promovendo um ambiente de confiança e acolhimento (Brasil, 2019). Além disso, a experiência de comunidades rurais e indígenas em programas de inclusão social demonstra que o engajamento de líderes comunitários pode aumentar significativamente a adesão às políticas públicas (Brasil, 2017). Nesse contexto, ao integrar práticas de busca ativa com o conhecimento local e a participação de lideranças, as políticas de inclusão social podem se tornar mais eficazes e respeitosas, garantindo que as comunidades de terreiro tenham acesso aos direitos e benefícios sociais a que têm direito. Dessa forma, o modelo proposto visa não apenas a inclusão, mas a construção de um relacionamento de respeito mútuo entre as famílias de terreiro e os profissionais da assistência social.
5.3 Monitoramento e Avaliação Contínua
A criação de mecanismos de monitoramento contínuo é vital para garantir que as ações de inclusão propostas sejam efetivas e realmente atendam às necessidades das comunidades de terreiro. Esse monitoramento deve ser realizado de maneira colaborativa, envolvendo não apenas as equipes de assistência social, mas também as próprias comunidades (Brasil,2012). A coleta de dados deve incluir tanto abordagens qualitativas quanto quantitativas, permitindo uma análise abrangente dos impactos das políticas de inclusão e contribuindo para uma melhor compreensão das realidades locais. O retorno das comunidades deve ser um componente essencial do processo de avaliação. Realizar reuniões periódicas com as lideranças comunitárias e as famílias atendidas pode ajudar a identificar desafios e propor ajustes nas estratégias de inclusão, garantindo que as políticas sejam dinâmicas e responsivas às necessidades em constante mudança (Brasil, 2012). A criação de um sistema de relato e retorno contínuo, onde as comunidades possam expressar suas opiniões e sugestões, é fundamental para garantir que as políticas permaneçam alinhadas às suas realidades e necessidades. A avaliação não deve ser vista apenas como uma formalidade, mas como uma oportunidade para aprendizado e melhoria contínua. Como sugere Gomes (2018), a promoção de fóruns de discussão, onde as experiências e os resultados das ações Ações de Busca Ativa
5.4 Ações de Busca Ativa
A busca ativa é uma estratégia utilizada na área da saúde, educação e assistência social que visa identificar e cadastrar indivíduos e grupos em situação de vulnerabilidade social, com o objetivo de garantir o acesso a serviços e políticas públicas. Essa abordagem se concentra na proatividade dos profissionais, que vão até as comunidades para localizar e envolver as pessoas que podem estar fora dos sistemas de atendimento, promovendo assim a inclusão social e o acesso a direitos (Brasil, 2023)
O Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), em seu relatório intitulado “Busca Ativa Escolar: Contexto Geral da Busca Ativa no Brasil” (UNICEF, 2022, p. 15), ressalta a importância da busca ativa, afirmando que ela é fundamental porque
uma sociedade que busca um futuro mais justo e equânime para todas as pessoas precisa usar todas as estratégias para garantir que os direitos de cada um(a) dos(as) cidadãos(ãs) sejam respeitados e garantidos de maneira efetiva. Não basta que o poder público ofereça um rol de serviços acessíveis e de qualidade, faz-se necessário implementar ações afirmativas, assegurando às populações menos favorecidas acesso às políticas públicas que lhes são de direito.
Na prática, a Busca Ativa pode envolver uma variedade de estratégias, incluindo visitas domiciliares, campanhas de conscientização, parcerias com líderes comunitários e o uso de tecnologia para identificar necessidades, entre outros métodos. O objetivo é atingir aqueles que se encontram em situações de vulnerabilidade ou que podem ter dificuldades em acessar os serviços disponíveis (UNICEF, 2022). No contexto específico da presente pesquisa, o serviço de Busca Ativa pode ser empregado para identificar e apoiar famílias pertencentes à comunidade de terreiro, assegurando que elas sejam incluídas nos programas sociais e recebam o suporte necessário (Brasil, 2012). A Busca Ativa é uma estratégia que demanda articulação intersetorial e mobilização tanto dos governos quanto da sociedade civil, visando garantir que novos grupos familiares tenham acesso aos serviços públicos. Isso torna essencial o engajamento e a supervisão de todo o processo pelas instâncias de pactuação e pelo controle social democrático do SUAS (Brasil, 2023)
A implementação de ações de busca ativa direcionadas à identificação e inclusão de famílias pertencentes a comunidades de terreiro no Cadastro Único é crucial para superar as barreiras que essas comunidades enfrentam (UNICEF, 2022). Essas ações devem ser planejadas com atenção às realidades geográficas e sociais, utilizando metodologias que respeitem a cultura local. A realização de reuniões comunitárias e eventos nas áreas dos terreiros pode ser uma maneira eficaz de disseminar informações sobre os direitos sociais e os programas disponíveis, criando um espaço de diálogo e interação entre os profissionais de assistência social e as famílias ( Brasil, 2023).
As equipes de busca ativa devem ser compostas por profissionais que compreendam as dinâmicas locais e que possam se aproximar das famílias de maneira respeitosa. A utilização de técnicas de escuta ativa e que possam ser compartilhados, pode fortalecer a articulação entre as comunidades e os serviços públicos, promovendo um ambiente de colaboração e co-criação de soluções (Brasil, 2012; Brasil, 2023). Esse processo participativo não apenas valida as vozes das comunidades, mas também contribui para a construção de políticas públicas mais justas e inclusivas, refletindo a complexidade das realidades enfrentadas pelas comunidades de terreiro (Brasil, 2023).
6. Considerações Finais
A inclusão das famílias pertencentes a comunidades de terreiro no Cadastro Único é uma questão urgente e necessária para garantir o acesso a direitos e promover a justiça social. Este artigo apresentou uma proposta de sistematização dos atendimentos a essas famílias, destacando a importância de ações que respeitem suas especificidades culturais e religiosas.
O exemplo de Nova Iguaçu ilustra a implementação de algumas políticas nesse sentido e é desse lugar que se constrói essa breve proposta a partir da escuta ativa de algumas lideranças de terreiro ouvidas. No município, a mobilização de lideranças religiosas e a construção de parcerias com a assistência social têm mostrado resultados interessantes na identificação e no cadastramento das famílias de terreiro. Essas iniciativas demonstram que, quando as políticas públicas são adaptadas às realidades locais e às particularidades culturais, é possível iniciar um rompimento com ciclos de exclusão e invisibilidade.
Algumas práticas propostas nesse artigo foram e estão sendo aplicadas em Nova Iguaçu, e podem ser um exemplo possível de superar barreiras estruturais e facilitar o acesso das famílias a programas sociais. A participação das comunidades de terreiro no processo de formulação das políticas públicas também é um aspecto fundamental, pois garante que suas vozes e demandas sejam reconhecidas, respeitadas e endossadas.
Por fim, o fortalecimento das políticas públicas de inclusão social deve estar aliado ao reconhecimento e valorização das comunidades de terreiro. A promoção de um diálogo intersetorial, que envolva diversos setores da sociedade, é crucial para a construção de uma sociedade mais justa e inclusiva. É possível que a trajetória de inclusão das comunidades de terreiro sirva de exemplo para outros municípios, evidenciando que a multiculturalidade é uma riqueza que deve ser celebrada e respeitada no desenvolvimento de políticas públicas. Ao garantir o acesso a direitos sociais, estamos não apenas promovendo a inclusão, mas também construindo uma sociedade que valoriza suas múltiplas identidades.
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1 Psicólogo, Doutor em Psicologia pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). E-mail: psiklebersg@gmail.com