TRANSFORMAÇÃO DA PÓLIS E O ENSINO: O EPICURISMO COMO RESPOSTA ÉTICA NA FORMAÇÃO DE VALORES EDUCACIONAIS
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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.13975722
Felipe Barnabe Batista1
RESUMO
O artigo aborda a transformação sociopolítica e filosófica na Grécia clássica e helenística, destacando o papel da polis e o declínio de sua função unificadora. Na Grécia clássica, a cidadania e o bem comum eram ideais que regiam a vida em comunidade, com foco na política e na temperança. Com a dispersão do mundo grego no período helenístico, surgem novos agrupamentos e o individualismo predomina, refletindo a fragmentação política e a perda de valores comunitários. O texto analisa a separação entre ética e política, destacando o desenvolvimento de uma ética individualista. O surgimento de novas escolas filosóficas, como o epicurismo, é contextualizado como resposta às novas questões morais e à busca pela felicidade individual. Epicuro é apresentado como um pensador que promoveu uma filosofia acessível, sem distinções sociais, e valorizou a amizade como fundamento ético. A difusão do pensamento helenístico e sua influência oriental são discutidas, assim como o impacto das escolas filosóficas que moldaram as bases do pensamento moral da época. A filosofia epicurista se destaca por seu enfoque na moderação dos prazeres e na paz interior, desafiando as frustrações humanas e propondo um modelo de vida harmonioso para seus seguidores.
Palavras-chave: Epicuro, Polís, Filosofia.
ABSTRACT
The article addresses the sociopolitical and philosophical transformation in Classical and Hellenistic Greece, highlighting the role of the polis and the decline of its unifying function. In Classical Greece, citizenship and the common good were ideals that governed communal life, with a focus on politics and temperance. With the dispersion of the Greek world during the Hellenistic period, new groupings emerged, and individualism predominated, reflecting political fragmentation and the loss of communal values. The text analyzes the separation between ethics and politics, emphasizing the development of an individualistic ethics. The emergence of new philosophical schools, such as Epicureanism, is contextualized as a response to new moral questions and the search for individual happiness. Epicurus is presented as a thinker who promoted an accessible philosophy, without social distinctions, and valued friendship as an ethical foundation. The diffusion of Hellenistic thought and its Eastern influence are discussed, as well as the impact of philosophical schools that shaped the foundations of moral thought of the time. Epicurean philosophy stands out for its focus on moderation of pleasures and inner peace, challenging human frustrations and proposing a harmonious model of life for its followers
Keywords: Epicurus, Polis, Philosophy.
1 INTRODUÇÃO
A Grécia antiga foi o berço de inúmeras transformações políticas, sociais e filosóficas que moldaram o pensamento ocidental. No período clássico, a pólis grega representava o centro dessas transformações, sendo o espaço onde se articulavam os conceitos de cidadania, política e o bem comum. A vida comunitária era regida por ideais de temperança e participação ativa na política, criando uma sociedade coesa que se identificava com a coletividade e o ideal de virtude cívica. Entretanto, essa estrutura começou a se fragmentar com as mudanças ocorridas no período helenístico, quando a pólis perdeu seu papel central.
Com a expansão territorial de Alexandre, o Grande, e a consequente dispersão do mundo grego, o individualismo ganhou força, resultando em uma fragmentação tanto política quanto moral. A antiga unidade da pólis foi substituída por um novo cenário em que os indivíduos buscavam formas alternativas de entendimento do mundo e de si mesmos. Nesse contexto, surgem novas questões filosóficas que se distanciam da preocupação coletiva e política, dando lugar a uma ética mais individualista. A separação entre ética e política torna-se evidente, refletindo a necessidade de novas abordagens para lidar com as ansiedades e desafios da nova ordem social.
É nesse panorama de mudanças que florescem novas escolas filosóficas, entre elas o epicurismo. Epicuro, em particular, oferece uma visão inovadora ao priorizar o bem-estar individual e a busca pela felicidade pessoal, sem distinções sociais, propondo uma filosofia acessível a todos. Sua filosofia enfatiza a importância da amizade e da moderação dos prazeres como caminhos para alcançar a paz interior e uma vida plena, desafiando a instabilidade emocional e as frustrações geradas pelas mudanças sociopolíticas do período. A proposta de Epicuro ganha relevância ao tratar de questões existenciais que se tornam ainda mais prementes em um mundo marcado pela incerteza.
Por fim, o impacto do pensamento epicurista se estendeu para além da Grécia, influenciando diversos aspectos do pensamento moral da época e deixando um legado duradouro. A fusão do pensamento helenístico com influências orientais também contribuiu para a difusão dessas ideias. A filosofia de Epicuro, com seu foco na moderação e na harmonia, oferece um modelo de vida que se distingue pelo seu pragmatismo e acessibilidade, tornando-se uma resposta valiosa às frustrações e anseios do período helenístico
Contexto Histórico
Na Grécia clássica, a vida do homem regia-se pela política que, por sua vez, procurava abranger a todos e passava temperança à comunidade. O povo tinha como ideal a cidadania; se entendiam como uma unidade em busca do que é útil para a Cidade-Estado. O bem comum e a amizade, mesmo não sendo por obrigação, aparecia como um objetivo acuradamente necessário.
Com o helenismo, o mundo grego se dispersa em agrupamentos e não mais em uma comunidade de cidadãos. Prevalece, desde modo, o individualismo de um povo que fora subjugado. Nesse período, a polis (πόλις) perde sua categoria unificadora, passando a vigorar o convívio com outros povoados, línguas e outros recortes étnicos. Nesta multiplicidade, abriga-se a divergência de pensamentos. Pensamentos que se desdobram em discussões acerca de ciência e filosofia.
Naquele recorte historiográfico, pode-se acompanhar o surgimento de novos Estados e uma desvalorização do monarquismo legado por Alexandre, acarretando desesperança e instabilidade aos governos. Registra-se o declínio de um organismo político, nomeadamente, em Atenas. A vida do homem clássico deixa de ser independente e a convivência torna-se conflituosa. Redimensionado, o indivíduo deixa de ser necessário à sociedade, como antes acontecia, transformando a harmonia da polis e suprimindo a vertente sociopolítica fortemente praticada pelos gregos.
Reale (2007, p. 250-251) comenta aquele momento no qual o homem grego voltase ao “ideal cosmopolita”:
Em 146 a.C., a Grécia perde totalmente a liberdade, tornando-se província romana. O que Alexandre sonhou, os romanos o realizaram de outra forma. E assim o pensamento grego, não vendo uma alternativa positiva à polis, refugiou-se no ideal do “cosmopolitismo”, considerando o mundo inteiro uma cidade, a ponto de incluir nessa Cosmópolis não só os homens, mas também os deuses. Desse modo, dissolve-se a antiga equação entre homem e cidadão; e o homem é obrigado a buscar sua nova identidade.
Ocorre então uma “revolução emblemática” no pensamento grego. Há um direcionamento para os interesses de poucos homens no poder, quando “as novas formas políticas, nas quais o poder é mantido por um só ou por poucos, permitem sempre mais a cada um forjar a seu modo a própria vida e a própria fisionomia moral”. Vê-se, portanto, que tais pressupostos prontificam o entendimento de que a insubordinação do homem com a política refletiu-se no afloramento do indivíduo. “E, como é óbvio, na descoberta do indivíduo cai-se, às vezes, nos excessos do individualismo e do egoísmo. Mas a revolução tinha tal importância que não era fácil mover-se com equilíbrio na nova direção”, como descreve Reale (2007, p. 251).
Esse direcionamento é classificado como um distanciamento da “ética e da política”, divinamente pronunciado por Reale (2007, p. 251):
Como consequência da separação entre o homem e o cidadão, nasce a separação entre “ética” e “política”. A ética clássica, até Aristóteles, baseava-se no pressuposto da identidade entre homem e cidadão; por isso, baseava-se na política e até subordinava-se a ela. Pela primeira vez na história da filosofia moral, na época helenística, graças à descoberta do indivíduo, a ética se estrutura de maneira autônoma, baseando-se no homem como tal, na sua singularidade. As tentações e as concessões egoístas [...] são precisamente a exasperação dessa descoberta.
Todo esse processo desdobra um distanciamento das doutrinas gregas. Até mesmo os conhecimentos amplamente difundidos pelos clássicos, como os ensinamentos de Platão (427-346 ou 347 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.), adormecem na obscuridade. Superava-se o tempo das grandes construções especulativas: Platão havia morrido (347 a. C.) sete anos antes de Epicuro; Aristóteles em 322 a.C. Apesar da proximidade destes acontecimentos, “nenhum metafísico original lhes tinha sucedido”. Assim, o pensamento grego manifestava “numerosos sinais de lassidão”. Todos os filósofos que permaneceram a difundir os conhecimentos clássicos na Academia e no Liceu não tinham iniciativa e “cada vez amesquinhavam mais as doutrinas de seus mestres”. Já não havia qualquer interesse pelas questões voltadas à vida prática (JOYAU,1988, p. 07-08).
Naquele momento, o pensamento helênico volta-se à valorização das ciências naturais, a observação, a análise. Por sua vez, especificamente em Atenas, há uma preocupação mais atenuante em resolver os problemas morais dos homens. Já em Alexandria, os estudos científicos ganham contornos mais analíticos e empíricos, contestando, em sua grande parte, os velhos ensinamentos metafísicos.
Reale (2007, p. 252) consagra
A cultura “helênica”, com sua difusão entre os vários povos e raças, torna-se “helenística”. Essa difusão comportou, fatalmente, perda de profundidade e pureza. Entrando em contato com tradições e crenças diversas, a cultura helênica devia fatalmente assimilar alguns de seus elementos. Fez-se sentir a influência do Oriente. E os novos centros de cultura, tais como Pérgamo, Rodes e, sobretudo Alexandria, com a fundação da Biblioteca e do Museu, graças aos Ptolomeus, acabaram por ofuscar a própria Atenas. Se Atenas conseguiu permanecer a capital do pensamento filosófico, Alexandria tornou-se inicialmente o centro no qual floresceram as ciências particulares [...] compreende- 10 se assim que o pensamento helenístico tenha se concentrado, sobretudo nos problemas morais, que se impõe a todos os homens. E ao propor os grandes problemas da vida e algumas soluções para os mesmos, os filósofos dessa época criaram algo de verdadeiramente grandioso e excepcional. O cinismo, o epicurismo, o estoicismo e o ceticismo propuseram modelos de vida nos quais os homens continuam a se inspirar ainda durante outro meio milênio e que, ademais, tornaram-se paradigmas espirituais.
É exatamente dentre os muitos sábios da época revoltos nesse novo interesse intelectual que surge a filosofia epicuriana. Busca-se, então, compreender as dificuldades do homem. De fato, a primeira das grandes Escolas helenísticas, cronologicamente, foi a de Epicuro, que aparece em Atenas no final do século IV a. C. (REALE, 2007, p. 259).
Ali, cresce e se difunde, estreitando a busca da paz pela moderação dos prazeres e desafiando as remotas frustrações humanas. Epicuro (341-271 ou 270 a.C.) veio ao mundo no ano terceiro da 109ª Olimpíada, na cidade de Samos. Embora tenha nascido naquela polis, a exemplo de Pitágoras (570-495 a.C.), o pensamento dos dois não demonstra qualquer aproximação ideológica. O filósofo tinha como pai Néocles, que era mestre-escolar, e Queréstrata, a mãe, que exercia o cargo de curandeira e advinha. Costumeiramente “o filho acompanhava-a e recitava as fórmulas propiciatórias”. Essa relação o aproxima das “superstições populares e os males que causa a credulidade dos homens” (JOYAU,1988, p. 03).
Na verdade, Epicuro teria se interessado pela filosofia do acadêmico Pânfilo, dos 14 aos 18 anos e, mais tarde, o pai dele o encaminha para a cidade de Teo. Lá, o aprendiz de filósofo encontra Nausífanes (350-290 a.C.), discípulo de Demócrito (460-370 a.C.), passando a conhecer os ensinamentos sobre o atomismo (JOYAU,1988, p.03).
Epicuro é um pensador precoce que procura diferentes escolas para se orientar. Busca no atomismo de Demócrito a grande inspiração para delimitar um conceito de física e ética; grande parte de sua doutrina. Mesmo as filosofias anteriores estando ainda presentes pelo teor vastamente estudado (Platão e Aristóteles), o filho de Néocles não daria muita importância àqueles conhecimentos. Por percorrerem caminhos alheios aos dele, não demonstra qualquer interesse que possa se orientar em sua filosofia.
Seguindo os trilhos do pai, ele se torna mestre das letras, inaugurando uma escola de filosofia em Lâmbsaco, onde ficou por alguns anos. Todos os seus primeiros discípulos eram dali. Depois, muda-se para Mitilene e abre outra escola. Em Colofonte, repete o feito, porém, não consegue um grande número de seguidores, por isso, tantas mudanças. E, só então, aos 36 anos de idade, fixa-se em Atenas (306 a.C). Ali, adquire uma casa com jardins, 11 bem perto da extremidade do subúrbio, na qual passa a ministrar aulas ao ar livre (JOYAU,1988, p. 03-04).
Durvernoy (1993, p. 17) refere a um fato que possivelmente o fez adquirir uma propriedade em Atenas e passar a ministrar aulas naquela vivenda:
Um segundo acontecimento acentuou o caráter marginal de usa filosofia, e de seu estilo de vida, depois de sua instalação em Atenas em 306. Mesmo ateniense, a vida de Epicuro sempre foi periférica. Se o Jardim era uma propriedade privada, era também para escapar à proibição de ensinar em público, provavelmente. O decreto pró-macedônio de Sófocles de Súnia (307), que dava poderes ao ginasiarca para proibir o magistério público dos filósofos indesejáveis, fora revogado em 306, quando Demétrio Poliocertes conquistara a cidade: foi precisamente nessa época, provavelmente depois da revogação, que Epicuro comprou a propriedade e nela se fixou.
Assim, a escola epicurista de Atenas é logo denominada de kepos/κηπος (jardim). “O jardim estava longe do tumulto da vida pública citadina e próximo do silêncio do campo, aquele silêncio e aquele campo que não diziam nada para os filósofos clássicos”, porém, “se revestiam de grande importância para a nova sensibilidade helenística” (REALE, 2007, p. 259).
O certo é que, naquele grupo, circundado pelo famoso jardim, “vicejava uma autêntica comunidade”. Em comunhão, “mestre e discípulos viviam de maneira quase ascética” e consumiam unicamente “as hortaliças que eles próprios cultivavam às quais acrescentavam apenas pão e água, ou ainda queijo em ocasiões especiais” (LORENCINE; CARRATORE, 2002, p. 10).
Considerado por muito uma pessoa amável, Epicuro demonstra ser bom para todos; um sábio que promove com delicadeza e compaixão as maneiras do bom viver, nunca se alterando e sempre de natureza terna. A amizade na prática epicurista molda-se sob justa medida e nunca ultrapassa os limites dos princípios básicos de virtude da sua filosofia (JOYAU,1988, p. 04).
A respeito da amizade, o sábio, em Sentenças Vaticanas (SV), segue enunciando: “Se prescindirmos da contemplação, da conversa e trato com as pessoas queridas se desvanece toda paixão do amor”. E mais: “Toda amizade é por si mesma desejável, porém recebe sua razão de ser da necessidade de ajuda”. Cada ser humano, portanto, precisa um do outro. “Não se deve dar por bons nem aos predispostos à amizade, nem aos lentos para aceitá-la, mas que é mister ganhar a satisfação da amizade ainda que seja às custas de certos riscos”. E continua: “A amizade percorre o mundo inteiro proclamando a todos que se despertem imediatamente para a felicidade”. Por fim, conclui: “Não é chorando que compartilhamos os sentimentos dos amigos, mas preocupando-nos realmente com eles” (SV 18, 23, 28, 52, 66).
Conforme apura Reale (2007, p. 252), o pensador de Samos não só lidava de forma familiar os escravos, como também os desejará participantes do seu ensinamento. Buscava Epicuro abranger a todos que desejassem aprender sua filosofia.
Durvernoy (1993, p. 10) também confirma esse modelo de ensino, sem preconceitos, quando afirma:
Os doxógrafos da Antiguidade registram desde o início, como um traço raro e característico, o estranho paradoxo dessa filosofia “popular”, [...] oferecido a todos: às mulheres como aos homens, aos escravos tanto quanto aos homens livres, às crianças, aos estrangeiros e aos helenos. Nenhuma narração se esquece de nos falar de Leontion, a cortesã, discípula e amante. Assim, há pouca comparação possível com os círculos platonizantes, ou com o estoicismo mais aristocrático.
Desta forma, percebe-se nessa filosofia que, aparentemente, todos são iguais, porque todos “aspiram à paz de espírito”. Todos teriam direito a paz. Todos podem atingi-la, se quiserem. Essa busca pela harmonia dos menos favorecidos da época traduz uma nova forma de filosofar. “O jardim quer abrir suas portas para todos: nobres e não-nobres; livres e nãolivres; homens e mulheres; e até para prostitutas em busca de redenção”, explica Reale (2007, p. 260). Em Sentenças Vaticanas 15 (SV 15), o próprio filósofo aponta:
Apreciamos nosso comportamento exatamente da mesma forma que qualquer outra coisa de nossa exclusiva propriedade, agimos da mesma forma se são bons e causamos por isso a inveja de muita gente. Pois bem, outro tanto interessa fazer com os do próximo, se este é razoável.
Muitas pessoas deste período viam os epicuristas de maneira vulgar e preconceituosa por conta dessa nova comunidade diversa que ali surgia. Porém, estavam enganados. Para entender um pouco mais desse amor ao próximo, Durvernoy (1993, pg. 18) acrescenta:
13 Os laços de amizade fazem parte da sabedoria. O sábio epicurista não é um homem isolado: a amizade não é, pois, para ele um acidente feliz, mas a constituição, por ele mesmo e com outros, de um cosmo com sentido, sentido que não é recebido (a existência dos compostos humanos que nós somos não tem mais sentido em si mesma do que a existência de qualquer outro composto), mas construído. A vida do sábio não pode ter sentido se não for uma relação com outros sábios. Os laços que os amigos tecem entre si são as únicas leis que têm sentido no universo. Eles vão além dos “contratos” e das “conversões” que ligam os homens nas sociedades em geral, dando nascimento ao direito (justo-justiça).
A amizade torna-se, assim, uma característica do homem sábio. Do pensador, emanam as fortes ideias sintéticas que dão tom àquela temperatura cultural. Essa qualidade intensifica a busca dos discípulos em conviver com o mestre. “Embora cada escola helenística carregasse o termo com conotações próprias, o denominador comum para todas foi o da superioridade do sábio em relação às coisas e aos acontecimentos, que, graças à sua virtude, ele pode perfeitamente dominar” (REALE, 2007, p. 252).
Epicuro é compreensível, acessível a todos, portanto, possível notar que atenuava uma peculiaridade naquela época. Seus estudos comportam uma série de fundamentos que eram difundidos a seus amigos no Jardim. Reale (2007, p. 259-260), indica sucintamente alguns de seus conceitos:
A palavra que vinha do Jardim pode ser resumida em poucas preposições gerais: a) a realidade é perfeitamente penetrável e cognoscível pela inteligência do homem; b) nas dimensões do real existe espaço para a felicidade do homem; c) a felicidade é falta de dor e de perturbação; d) para atingir essa felicidade e essa paz, o homem só precisa de si mesmo; e) não lhe servem, portanto, a Cidade, as instituições, a nobreza, as riquezas, todas as coisas e nem mesmo os deuses: o homem nem é perfeitamente “autárquico”.
É comum para o filósofo e seus discípulos a fraternidade. Epicuristas são mais que pupilos: acima de todo tipo de contexto social, apresentavam-se como amigos. Na escola, tolera-se até mesmo a presença de todos. Não se via nele “um mestre rodeado de discípulos, mas um grupo de amigos que filosofavam juntos”. A influência marcante que Epicuro imprimiu sobre os discípulos deve-se “ao ascendente da sua personalidade mais que as suas doutrinas” (JOYAU, 1988, p. 04).
Grande exemplo de amizade do mestre com o pupilo advém da relação com Metrodoro (331-277 a. C.). Ele se tornou amigo de Epicuro desde quando vivia em Lâmpsaco. O discípulo-amigo resolve dedicar a vida a acompanhar o professor. Apesar de ter morrido com uma idade já avançada, seus filhos ficam aos cuidados de Epicuro até o fim da vida:
Metrodoro de Lâmpsaco, a quem Cícero chama “quase um outro Epicuro” e a quem o próprio mestre tinha conferido o título de Sábio. São algumas vezes apresentados como sendo dele os fragmentos de um tratado Acerca das Sensações publicado no tomo sexto dos papiros de Herculano, mas a atribuição é duvidosa. Metrodoro morreu sete anos antes de Epicuro, que não deixou de lhe cuidar dos filhos. Existe um Louvre um busto de Epicuro com duplo rosto, representando de um lado o mestre, do outro o discípulo inseparável. (JOYAU, 1988, p. 06).
Após a morte de Epicuro, não há grandes mudanças nos hábitos dos epicuristas. Essa escola vangloria-se como uma das únicas que, até a atualidade, se mantém próxima os seus conceitos originais. Mesmo assim, muitos intelectuais de escolas diferentes os incriminavam de adorarem o mestre com uma divindade. A “extrema docilidade dos epicuristas”, observa Joyau (1988, p. 06-07), deu motivo a uma singular acusação: “censuraram-nos de terem considerado Epicuro como um deus e de o terem adorado”.
Naquela pequena sociedade, praticavam-se ritos; realizavam-se reuniões para festas; celebravam-se estátuas. Os discípulos traziam sempre sobre eles sua imagem ou um anel, como os escravos forros. Defendiam que ele era bem digno do seu nome de auxiliador (epikourios). Alguns realmente o adoraram. A maior parte tratava sua filosofia como um tratamento dos males da alma.
Mas essa filosofia criada por Epicuro foi memoravelmente sucedida nos séculos que se passaram? O que ocorreu após a morte do mestre? Sabe-se que, “os estudiosos se sucederam em Atenas depois da morte de Epicuro (271/270 a.C.) até a primeira metade do séc. I a.C”. Entretanto, na segunda metade daquele século, o terreno no qual se sedimentara a Escola de Epicuro foi vendido: o “jardim” estava morto em Atenas (REALE 2007, p. 273).
Reale (2007, p. 273) destaca:
A palavra de Epicuro encontraria uma segunda pátria na Itállia. No séc. I a.C., por obra de Filodemo de Gadara (nascido por volta de fins do séc. II a. C. e morto entre 40 e 30 a.C.), constitui-se um círculo de epicuristas, de caráter aristocrático, que teve sua sede em uma vila de Herculano, de propriedade de Calpúrnio Pisão, notável e influente político (foi cônsul em 58 a.C.) e grande mecenas. As escavações realizadas em Herculano levaram à redescoberta dos restos da vila e da biblioteca, constituída por escritos epicuristas e do próprio Filodemo. Mas a contribuição mais significativa para o Epicurismo veio de Tito Lucrécio Caro, que constituiu um unicum na história da filosofia de todos os tempos.
Nasceu no início do séc. I a.C., morreu por volta de meados desse século. O seu de rerum natura, que canta em versos admiráveis o pensamento de Epicuro, constitui o maior poema filosófico de todos os tempos.
No entendimento de alguns estudiosos, o poema do filósofo latino Titus Lucretius Carus (99-55 a.C.) chegou a equiparar Epicuro aos deuses, posicionando-o acima de Hércules ou de Ceres. Em De rerum natura, Lucretius sugere que haveria menções crédulas ao epicurismo. Porém, Joyau (1988, p. 06) não ver outra coisa que “não seja um brilhante desenvolvimento poético”. Para ele, “o que o resto do poema nos faz conhecer do caráter e dos sentimentos do autor não nos permite ter dúvidas sobre o sentido destas expressões”.
Uma coisa é certa: o epicurismo sobrevive também na era imperial, embora sem apresentar inovações. O documento mais significativo que atesta essa vitalidade pode ser encontrado no grandioso livro mural que Diógenes de Enoanda (na Ásia Menor) mandou esculpir (séc. II d.C). Mesmo assim, no século seguinte, o epicurismo se extinguiu. (REALE 2007, p. 273).
CONCLUSÕES
No decorrer dos séculos as obras do mestre do Jardim foram se perdendo no tempo. De acordo com Diógenes Laércio, a obra de Epicuro compreendia cerca de trezentos títulos: somente Sobre a Natureza compreenderia 37 livros. Dessa grande quantidade de escritos, todavia, pouco restou.
Sobre a grande dificuldade em ter acesso aos textos completos, “Diógenes Laércio conservou uma Carta a Heródoto (que trata da física), uma Carta a Pítocles (de autenticidade contestada e tratando dos meteoros) e uma Carta a Meneceu (sobre a moral)”. Essas obras conservadas por Diógenes Laércio aparecem divididas em cartas de 40 sentenças atribuídas a Epicuro e conhecidas sob a denominação de Máximas Principais.
Com o passar do tempo, nenhuma obra relacionada ao epicurismo foi descoberta, Em 1888, K. Wotke descobriu, num manuscrito depositado na grandiosa Biblioteca do Vaticano, 81 Máximas de Epicuro. Entretanto algumas delas já se encontravam inseridas nas Máximas Principais. Escavações realizadas em Herculanum trouxeram à luz uma biblioteca epicurista, contendo inclusive o De Rerum Natura (JOYAU, 1988, p. XIII).
Das poucas obras que sobreviveram ao tempo, lê-se o pensamento epicurista a partir de uma sistematização que se divide em canônica (lógica), física e ética. Tais concepções serão esclarecidas no decorre do texto.
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.1 Mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Tocantins. E-mail: [email protected]