SISTEMA ENDOCANABINÓIDE COMO ALVO TERAPÊUTICO NO MANEJO DE DOENÇAS IMUNOMEDIADAS

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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10344879


João Marcos Ramos Fontoura¹
Orientadora: Maria Elizabete Neves Ramos²


INTRODUÇÃO

A discussão sobre cannabis medicinal é extensa e envolve primariamente o conhecimento acerca do sistema endocanabinóide - um sistema interno complexo que participa da regulação de inúmeras funções biológicas.

O sistema endocanabinóide é composto por receptores canabinóides bem como de ligantes endógenos. Os últimos são constituídos pela anandamida e 2-araquidonilglicerol (2-AG). Há dois receptores, CB1, que predomina no sistema nervoso central (SNC), no terminal axônico dos neurônios, e CB2 com expressão, sobretudo, nas células do sistema imune. Os receptores CB2 tem participação fundamental na regulação das funções do sistema imunológico e podem ser encontrados também em neurônios e células da micróglia, em resposta a agressões associado principalmente à inflamação crônica do sistema nervoso.

Esse integrado sistema pode ser modulado por agonistas, endógenos ou de administração exógena, como fitocanabinóides ou mesmo canabinóides sintéticos.

O objetivo dessa pesquisa é tratar do sistema endocanabinóide em sua ação no sistema imune, e das intrínsecas relações decorrentes das disfunções na imunidade. E para tratar desse tema, a pesquisa teve início com uma revisão de literatura. Utilizando o termo “Endocannabinoids” no campo do título combinado ao termo “allergy” em qualquer campo, fiz uma busca avançada no banco de dados no Portal de Periódicos da CAPES.

Como forma de refinar a busca, utilizei como filtro apenas os artigos publicados nos últimos dez anos, e mais especificamente os artigos publicados em periódicos revisados por pares, que conferem maior rigor às publicações.

Dessa forma, identifiquei sete artigos, dentre os quais apenas quatro foram selecionados para esse estudo. Os artigos resultantes da busca no Portal de Periódicos da Capes estão elencados no quadro 1, abaixo.

Quadro 1: Artigos acessados pela revisão de literatura

Fonte: Portal de Periódicos da CAPES.

Os artigos de Dey, 2010; Felton et al., 2017 e Gouveia-Figueira et al, 2017 foram excluídos da seleção da pesquisa porque as alterações biológicas de que tratavam os artigos resultavam de fatores externos.

A partir dos quatro artigos selecionados na busca, outros quatro foram incluídos nessa análise, por serem referências citadas. Na próxima seção, será desenvolvida uma discussão acerca da leitura desses textos.

DISCUSSÃO

O sistema endocanabinóide está relacionado com a neuroproteção e modulação do sistema imune. Seu desempenho, de acordo com PANDEY (2009), dá-se por vários mecanismos, de acordo com o tipo celular envolvido, de indução à apoptose de células imunes à modulação negativa da resposta dos sistemas imunes inato e adaptativo.

Está bem estabelecido que todas as regiões e tecidos do corpo produzem endocanabinóides como parte de um sistema homeostático com ação em quase todos os níveis biológicos, com enfoque no controle de inúmeros estados fisiopatológicos e na manutenção da saúde humana. Seu papel na regulação do sistema imune é provavelmente o mais próspero e promissor campo de estudo devido ao crescente reconhecimento da sinalização endocanabinóide em diversas doenças inflamatórias crônicas¹ (CHIURCHIU, 2016, p. 59). 

Os endocanabinóides são potentes imunomoduladores. Seus efeitos variam em função de sua concentração, do tipo celular, do mecanismo celular envolvido e reações orgânicas, conforme afirma PANDEY (2009). Carecem estudos e informações quanto às interações dos ligantes endógenos com demais componentes da inflamação, como citocinas, moléculas de adesão, dentre outros.

Nessa perspectiva, diversos estudos buscaram elucidar o mecanismo de ação dos endocanabióides na regulação do sistema imune. Apesar de haver dúvidas quanto à elucidação completa da fisiologia, entende-se sua função na homeostase, bem como sua desregulação nas alterações inflamatórias orgânicas. O sistema endocanabinóide apresenta potencial terapêutico relevante.

Sistema imune inato

A ação do sistema endocanabinóide na regulação do sistema imune inato é vasta e complexa. Os endocanabinóides são reguladores neuroendócrinos da função de mastócitos. Inúmeras patologias clínicas, afecções inflamatórias crônicas e desordens alérgicas envolvem a ativação e quantidade excessivas de mastócitos e consequente degranulação dessas células.

De acordo com os métodos seleção, como estabelecido no recorte dessa pesquisa foram definidos estudos os quais propuseram o envolvimento do sistema endocanabinóide como alvo terapêutico no manejo das desordens imunes que apresentam mecanismo fisiopatológico primariamente associado à excessiva resposta de mastócitos.

No estudo de Sugawara (2013), observou-se como os estímulos à via endocanabinóide alteram da resposta dos mastócitos, em uma cultura de pólipos nasais humanos. Por meio da ação agonistas e antagonistas do receptor CB1, analisaram a resposta dos mastócitos da mucosa humana. 6 Conclui-se que a maturação e ativação dos mastócitos estão sujeitas à potente ação inibitória dos endocanabinóides, via CB1.

A pesquisa de Sugawara (2013), inclusive, foi mencionada no artigo de Chiurchiù (2015):

A participação de anandamida e CB1 na modulação da função de mastócitos foi confirmada posteriormente com a observação de que, nos mastócitos da mucosa respiratória humana, houve inibição da ação e maturação pela estimulação dos receptores CB1² (CHIURCHIÙ; BATTISTINI; MACCARRONE, 2015, p. 358).

Em outro estudo de Sugawara (2012) foi observada a resposta celular de mastócitos de tecido cutâneo humanos à sinalização endocanabinóide. Com estímulo dessa via pelo uso agonistas e antagonistas do receptor CB1 ficou evidente a regulação fisiológica dos mastócitos no tecido cutâneo pelo sistema endocanabinóide, e seu papel ao modular negativamente a excessiva ativação e maturação de mastócitos. O estudo vai além, e sugere ainda que doenças cutâneas inflamatórias surjam de um insuficiente estímulo de receptores CB1 locais.

Segundo Ferrara (2019), a expressão de receptores canabinóides nos mastócitos também foi relatada, bem como sua regulação por meio dos endocanabinóides. Esse estudo, contudo, aponta divergência com os anteriores (SUGAWARA, 2012; SUGAWARA, 2013) ao descrever que a via de ativação dos receptores CB2 por anandamida e 2-AG promove redução da ativação dos mastócitos.

Sistema imune adaptativo 

A sinalização do sistema endocanabinóide está envolvida ao mediar também o sistema imune adaptativo. Ao longo dos anos, agonistas dos receptores canabinóides (ligantes endógenos e THC) mostraram-se relacionados à ativação linfocitária e a partir de estudos em modelos animais, conforme Robinson (2013) demonstrou, houve aumento na expressão de CB2 nos linfócitos, e consequentemente função reduzida.

A sinalização endocanabinóide compõe a modulação da imunidade celular. Essa associação é de relevância à prática clínica e possibilita manejo de patologias mediadas por linfócitos Th1 e Th17.

No trabalho de Chiurchiù (2015), se estabelece o papel do sistema endocanabinóide nas funções da imunidade celular:

Está aceito que a anadandamida seja um potente imussupressor da proliferação de linfócitos T e da liberação de citocinas, com ação principalmente por meio do receptor CB2, […] Nosso grupo foi pioneiro em demonstrar a ação antiproliferativo da anandamida sobre linfócitos T CD4 e CD8, sem efeito sobre a viabilidade celular. Além disso, publicamos seu efeito inibitório sobre a produção de interferon-gma por Th1 e produção de IL-17 por Th17. Essa ação da anandamida sobre linfócitos Th17 foi recentemente reproduzida em um modelo animal com hipersensibilidade celular³ . (CHIURCHIÙ; BATTISTINI; MACCARRONE, 2015, p. 358).

Em relação aos linfócitos B, Chiurchiù (2015) aponta que conforme os modelos animais investigados, os receptores CB2 mediaram o processo da troca de classe da imunoglobulina, alterando IgM para IgE. Com isso, sugere que esse receptor canabinóide desempenhe papel crucial ao gerar a composição dos linfócitos B e na regulação da resposta humoral via Th2.

Nesse mesmo sentido, Sido (2016) observou que, em modelos animais com hipersensibilidade tardia (resposta inflamatória mediada por linfócitos Th1 e Th17), 2-AG age diretamente nos linfócitos, ao suprimir sua ativação e proliferação. Essa autora demonstra também, que os linfócitos T e B ativados, aumentam sua produção de 2-AG, modulando negativamente a reação tardia de hipersensibilidade, e sugere, desse modo uma função autorregulatória.

Nessa mesma pesquisa (SIDO, 2016), demonstrou-se reduzida resposta inflamatória na reação tardia ao administrar 2-AG exógeno. Esse achado corrobora com a função do 2-AG de suprimir a inflamação, pela inibição da ativação linfocitária e sua proliferação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS 

O sistema endocanabinóide está interrelacionado com a fisiologia do sistema imune. A função imunomoduladora dos endocanabinóides e a extensa ocupação dos receptores canabinóides nas células do sistema imune conferem ao sistema endocanabinóide um importante alvo terapêutico no manejo das doenças inflamatórias e demais disfunções imunomediadas.

Essa pequena revisão de literatura sinaliza um vasto campo de investigação que merece maior aprofundamento em pesquisas futuras.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CHIURCHIÙ, Valerio; BATTISTINI, Luca; MACCARRONE, Mauro. Endocannabinoid signalling in innate and adaptive immunity. Immunology, v. 144, n. 3, p. 352-364, 2015.

CHIURCHIU, Valerio. Endocannabinoids and immunity. Cannabis and cannabinoid research, v. 1, n. 1, p. 59-66, 2016.

DEY, Rafik; PERNIN, Pierre; BODENNEC, Jacques. Endocannabinoids inhibit the growth of free-living amoebae. Antimicrobial agents and chemotherapy, v. 54, n. 7, p. 3065-3067, 2010. 

FELTON, Sarah J. et al. Serum endocannabinoids and N-acyl ethanolamines and the influence of simulated solar UVR exposure in humans in vivo. Photochemical & Photobiological Sciences, v. 16, n. 4, p. 564-574, 2017.

FERRARA, Anne Lise et al. Altered Metabolism of Phospholipases, Diacylglycerols, Endocannabinoids, and N-Acylethanolamines in Patients with Mastocytosis. Journal of immunology research, v. 2019, 2019.

GOUVEIA-FIGUEIRA, Sandra et al. Mass spectrometry profiling of oxylipins, endocannabinoids, and N-acylethanolamines in human lung lavage fluids reveals responsiveness of prostaglandin E2 and associated lipid metabolites to biodiesel exhaust exposure. Analytical and bioanalytical chemistry, v. 409, n. 11, p. 2967-2980, 2017.

PANDEY, Rupal et al. Endocannabinoids and immune regulation. Pharmacological research, v. 60, n. 2, p. 85-92, 2009. 

ROBINSON, Rebecca Hartzell et al. Cannabinoids inhibit T-cells via cannabinoid receptor 2 in an in vitro assay for graft rejection, the mixed lymphocyte reaction. Journal of Neuroimmune Pharmacology, v. 8, n. 5, p. 1239-1250, 2013. 

SIDO, Jessica M.; NAGARKATTI, Prakash S.; NAGARKATTI, Mitzi. Production of endocannabinoids by activated T cells and B cells modulates inflammation associated with delayed‐type hypersensitivity. European journal of immunology, v. 46, n. 6, p. 1472-1479, 2016.

SUGAWARA, Koji et al. Endocannabinoids limit excessive mast cell maturation and activation in human skin. Journal of Allergy and Clinical Immunology, v. 129, n. 3, p. 726-738. e8, 2012.

SUGAWARA, Koji et al. Cannabinoid receptor 1 controls human mucosal-type mast cell degranulation and maturation in situ. Journal of allergy and clinical immunology, v. 132, n. 1, p. 182-193. e8, 2013.


¹ Discente do curso de Medicina da Faculdade Souza Marques.
² Orientadora: Maria Elizabete Neves Ramos. Psicóloga, Mestre e Doutora em Educação.

¹ Tradução nossa do original: “It is now well established that all body districts and tissues produce eCBs as part of a homeostatic system that acts at almost every level of biological life, with the aim of controlling several physiopathological states and maintaining human health. Their role in the regulation of the immune system is probably the most flourishing and promising research field due to the increasing recognition of the eCBs signaling in several chronic inflammatory diseases” (CHIURCHIU, 2016, p. 59).
 
² Tradução nossa do original: “The involvement of AEA and CB1 in modulating human mast cell functions was further confirmed by the observation that in human airway mucosal mast cells, maturation and excessive activation were inhibited by the endocannabinoid tone through CB1 stimulation” (CHIURCHIÙ; BATTISTINI; MACCARRONE, 2015, p. 358).
³ Tradução nossa do original: It is now accepted that AEA is a potent immunosuppressor of T-cell proliferation and cytokine release, acting mainly through CB2 , […] Our group was the first to demonstrate the anti-proliferative effect of AEA on both CD4 and CD8 T-cell subsets, without any effect on cell In addition, we disclosed its inhibitory effect on interferon-c-producing Th1 and IL- 17-producing Th17. This effect of AEA on Th17 has been recently reproduced in a mouse model of hypersensitivity. (CHIURCHIÙ; BATTISTINI; MACCARRONE, 2015, p. 358).