O FILME “A CAÇA” E A VIOLÊNCIA SEXUAL: JULGAMENTOS SOCIAIS E INTERVENÇÃO PÚBLICA

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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.17269436


Heloisa Gabriela de Oliveira Munhoz1
Manoel Vitor Santana Pasqualini2
Beatriz de Oliveira Toral3
Aaron Rinhel S. F. da Silva4
Daniela Emilena Santiago5


RESUMO
A violência sexual que afeta crianças e adolescentes na contemporaneidade é um fenômeno que se mostra presente desde os tempos mais longínquos e antigos. Atualmente, no entanto, temos tido o surgimento de legislação protetiva em relação a esses públicos e, no Brasil, observamos que há vários dispositivos protetivos que visam proteger esses segmentos. No filme A Caça temos uma representação de uma violência que teria sido sofrida por uma criança, porém, apesar de advir de uma realidade diferenciada da brasileira, a obra nos permite compreender e pensar nas questões de manejo e que são vitais para a preservação de todos os envolvidos. 
Palavras-chave: Violência sexual. Crianças e adolescentes. A Caça..

ABSTRACT
Sexual violence affecting children and adolescents today is a phenomenon that has been present since ancient times. However, we have recently seen the emergence of protective legislation for these groups, and in Brazil, we observe several protective measures aimed at protecting these groups. The film "The Hunt" depicts violence that would have been suffered by a child. However, despite arising from a reality different from that of Brazil, the film allows us to understand and consider the management issues that are vital to the protection of all involved.
Keywords: Sexual violence. Children and adolescents. "The Hunt."

1. INTRODUÇÃO

A violência sexual constitui uma grave violação dos direitos humanos e um problema social complexo, que atravessa diferentes contextos históricos, culturais e institucionais. Envolve não apenas atos físicos de abuso, mas também dinâmicas simbólicas, psicológicas e sociais que produzem estigmas duradouros para vítimas, famílias e comunidades. Segundo Azevedo e Guerra (2007), a violência sexual contra crianças e adolescentes se manifesta como “[...] um fenômeno histórico, social e cultural, marcado por relações de poder assimétricas, que silenciam as vítimas e legitimam práticas abusivas por meio de valores patriarcais e hierarquias familiares” (op.cit., p. 25). Essa dimensão estrutural da violência sexual desafia não apenas as políticas públicas, mas também os modos de percepção coletiva, frequentemente marcados por preconceitos e julgamentos precipitados.

Para pensar e aprofundar saberes em torno dessa temática participamos de curso de capacitação ofertado por empresa privada e na qual a abordagem esteve orientada para a compreensão da violência sexual. Na formação, como proposta para a integralização curricular foi realizada a proposta de análise e reflexão de filmes que foram sugeridos posteriormente, antes do curso. Houve a organização dos participantes em grupos para a composição de artigos, a partir dos filmes indicados. A aproximação e vinculação entre os autores desse manuscrito evocou a realização da análise do filme A Caça, dada a sua especificidade. Por conseguinte, os autores do artigo assistiram inicialmente a obra, elaboraram uma resenha seguida da análise crítica dos elementos afiançados. Dentre esses elementos definimos por apresentar elementos associados a violência apresentada na obra, ao julgamento ou lixamento social de possíveis agressores e também as intervenções que foram realizadas e as que deveriam ser executadas frente a possível violência sofrida pela criança.

Nesse contexto, a obra cinematográfica A Caça (Jagten, 2012), dirigida por Thomas Vinterberg, apresenta-se como um importante recurso para refletir criticamente sobre as consequências sociais de uma acusação de abuso sexual infantil. O filme narra a história de Lucas, um professor de educação infantil em uma pequena comunidade dinamarquesa, que passa a ser acusado injustamente de abuso sexual contra uma criança. A partir dessa acusação, desenvolve-se um processo de linchamento moral e social, que evidencia como a violência sexual — mesmo quando não comprovada — mobiliza afetos coletivos intensos, desestrutura laços sociais e evidencia fragilidades institucionais.

A escolha desse filme como objeto de análise se justifica pela sua capacidade de articular elementos simbólicos, jurídicos e sociais, permitindo um diálogo interdisciplinar sobre o tema. Como afirma Bourdieu (1998), “as representações sociais não são meros reflexos da realidade, mas instrumentos de poder que produzem efeitos concretos nas relações sociais” (op. cit., p. 56). Assim, a narrativa de A Caça possibilita compreender como representações coletivas em torno da violência sexual podem operar como mecanismos de controle social, reforçando estigmas e desencadeando reações comunitárias extremas.

Além disso, ao abordar a violência sexual a partir de uma perspectiva cinematográfica, este artigo busca contribuir para uma análise crítica que não se limita à dimensão legal ou psicológica, mas que considera também os processos de construção social da verdade e da culpa. Foucault (1988) já ressaltava que “o discurso sobre a sexualidade é um campo de disputas de poder, no qual instituições, saberes e práticas sociais definem quem pode falar, o que pode ser dito e quem será ouvido” (op.cit., p. 12). Assim, o caso fictício de Lucas permite refletir sobre como acusações de violência sexual são recebidas e julgadas socialmente, mesmo antes de uma verificação jurídica dos fatos.

Dessa forma, este artigo tem como objetivo analisar criticamente a temática da violência sexual a partir do filme A Caça, destacando as dimensões sociais, jurídicas e simbólicas que permeiam as acusações e os julgamentos sociais sobre esse tipo de violência. Busca-se, ainda, compreender como as representações cinematográficas podem contribuir para debates acadêmicos e sociais sobre o tema, evidenciando desafios contemporâneos no enfrentamento da violência sexual e na garantia dos direitos das vítimas e acusados.

Para a elaboração do texto delimitamos por compor um item inicial com a apresentação de elementos históricos que devem ser considerados quando estudamos violência sexual. Na sequência faremos a apresentação do filme A Caça, um resumo que permita a apreensão dos elementos que deflagram a narrativa apresentada. E, por fim, no último item será realizada a análise e discussão de dados apresentados.

2. A VIOLÊNCIA SEXUAL: ASPECTOS HISTÓRICOS E CONCEITUAIS

A violência sexual no Brasil é um fenômeno histórico, social e estrutural, profundamente enraizado nas relações de poder, desigualdade de gênero e nas práticas culturais que marcaram a formação da sociedade brasileira. Desde o período colonial, a sexualidade esteve submetida a uma lógica patriarcal, na qual mulheres, crianças, pessoas escravizadas e indígenas eram frequentemente objetificadas e subjugadas ao poder masculino. Como destacam Azevedo e Guerra (2007, p. 25), “[...] a violência sexual, longe de ser um fenômeno recente, tem origens históricas e culturais que remontam à própria constituição da sociedade brasileira, marcada por relações de dominação e silêncio em torno da sexualidade”.

Durante o período colonial, os corpos indígenas e africanos foram sistematicamente violados como parte do processo de dominação e exploração. A sexualidade era usada como instrumento de poder, tanto pelos colonizadores quanto pelos senhores de escravos, que impunham violência sexual como forma de controle e subjugação. De acordo com Del Priore (2000), “os corpos femininos, sobretudo os das mulheres escravizadas, eram vistos como propriedades, passíveis de uso e abuso, sem que isso representasse qualquer infração moral ou legal significativa para a época” (op. cit, p. 87). Essa naturalização da violência contribuiu para a construção de uma cultura de silêncio e impunidade em torno do abuso sexual.

A violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil Colônia deve ser compreendida dentro do contexto mais amplo das relações de poder, hierarquias raciais e estruturas patriarcais que marcaram os séculos XVI ao XIX. A sociedade colonial estava organizada sob um modelo escravocrata, patriarcal e profundamente desigual, no qual os corpos infantis — especialmente indígenas e negros — eram frequentemente alvo de exploração e dominação sexual, sem que houvesse mecanismos institucionais eficazes de proteção (Camargo; Alves; Quirino, 2021).

As principais vítimas eram crianças escravizadas, indígenas e meninas pobres. Crianças negras escravizadas eram consideradas propriedade dos senhores e, por isso, submetidas a relações sexuais coercitivas desde muito cedo. Tais práticas não eram registradas como crimes, já que a legislação e os costumes da época tratavam os corpos dessas crianças como objetos passíveis de uso e controle. De forma semelhante, meninas indígenas eram alvo de violência sexual nos processos de conquista, catequização e nas relações coloniais cotidianas, sendo frequentemente submetidas à exploração por colonizadores e religiosos (Freitas, 2019).

Oliveira (2016) por outro lado nos indica que além disso, crianças de famílias pobres — ainda que não escravizadas — eram expostas a casamentos precoces ou a relações arranjadas desde a infância, o que naturalizava a exploração sexual e reprodutiva. Os casamentos de meninas com homens mais velhos eram socialmente aceitos e, muitas vezes, incentivados como estratégia de sobrevivência ou ascensão social.

As formas de violência sexual mais frequentes incluíam estupros cometidos por senhores ou homens livres contra meninas escravizadas ou indígenas; casamentos e uniões forçadas em idade precoce; e abusos no contexto doméstico ou do trabalho. Nas casas-grandes, engenhos e fazendas, meninas escravizadas eram particularmente vulneráveis à violência de membros da família senhorial e visitantes, sem qualquer possibilidade de denúncia ou proteção (Camargo; Alves; Quirino, 2021).

Os registros históricos sobre essa realidade aparecem principalmente em documentos judiciais e eclesiásticos — como processos criminais, registros de batismo e casamento — e, em menor escala, em relatos de viajantes e cronistas. Estudos micro-históricos desses documentos mostram que, quando casos de estupro ou abuso eram formalmente registrados, geralmente estavam ligados à defesa da honra da família da vítima “livre”, e não à proteção da integridade da criança. Em situações envolvendo meninas escravizadas ou indígenas, os casos eram frequentemente ignorados ou resolvidos em termos patrimoniais, como indenizações aos senhores, e não como crimes sexuais (Doria, 2020; Alves; Marin, 2021).

A invisibilidade institucional dessas violências estava ligada a diversos fatores: a negação de subjetividade jurídica às pessoas escravizadas, a centralidade da honra masculina na legislação colonial, a autoridade patriarcal e o papel legitimador da Igreja Católica. Assim, práticas de exploração sexual infantil eram não apenas toleradas, mas, muitas vezes, incorporadas à lógica do sistema colonial (Camargo; Alves; Quirino, 2021; Freitas, 2019).

Estudos contemporâneos apontam que essa herança colonial deixou marcas profundas na sociedade brasileira. A naturalização da exploração sexual de crianças negras e indígenas no período colonial está na base de padrões atuais de vulnerabilidade, em que raça, gênero e classe continuam a estruturar o risco de violência sexual infantil e adolescente . A persistência de desigualdades históricas evidencia a necessidade de compreender a violência sexual não apenas como fenômeno individual, mas como produto de uma longa trajetória histórica de dominação e exclusão.

No século XIX, com a promulgação do Código Criminal do Império (1830) e posteriormente do Código Penal Republicano (1890), surgiram as primeiras tentativas de regulamentar juridicamente os crimes sexuais. No entanto, tais legislações refletiam uma moralidade conservadora e machista, preocupando-se mais com a “honra familiar” do que com os direitos das vítimas. Como observa Soares (1999, p.112), “[...]a legislação penal brasileira do século XIX tratava os crimes sexuais não como ofensas à integridade física e psicológica da mulher, mas como atentados à moralidade pública e aos bons costumes”. Dessa forma, a proteção jurídica era seletiva e restrita, excluindo grande parte das vítimas, especialmente mulheres pobres, negras e crianças.

Ao longo do século XX, o tema da violência sexual permaneceu invisibilizado por muito tempo, sendo tratado no âmbito privado, familiar ou religioso, com pouca intervenção do Estado. Somente a partir da década de 1980, com o fortalecimento dos movimentos feministas e de defesa dos direitos humanos, começaram a surgir políticas públicas e debates mais amplos sobre o enfrentamento da violência sexual. Segundo Schraiber e d’Oliveira (2002), “os movimentos sociais feministas tiveram papel fundamental na publicização da violência sexual, deslocando-a da esfera privada para a agenda pública e política” (op. cit., p. 48). Esse processo foi crucial para que o Estado brasileiro reconhecesse a violência sexual como violação de direitos humanos e problema de saúde pública.

A Constituição Federal de 1988 marcou um divisor de águas ao estabelecer a dignidade da pessoa humana como fundamento do Estado e ao garantir a proteção integral de crianças e adolescentes (artigos 1º e 227). Em 1990, com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) — Lei n.º 8.069/1990 —, o Brasil deu um passo significativo ao reconhecer crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, estabelecendo deveres estatais de proteção contra qualquer forma de violência, incluindo a sexual. O artigo 5º do ECA determina que “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais” (BRASIL, 1990).

Na década de 2000, o país avançou na criação de políticas públicas e planos nacionais de enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes, como o Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes (2000) e a Lei n.º 12.015/2009, que reformulou os crimes sexuais no Código Penal, reconhecendo a violência sexual como crime contra a dignidade sexual, e não mais contra os “costumes”. Essa mudança foi fundamental para alinhar a legislação brasileira a princípios internacionais de direitos humanos.

Mais recentemente, a Lei Henry Borel (Lei n.º 14.344/2022) e a Lei n.º 13.431/2017, que estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, reforçam a centralidade da proteção da vítima e a necessidade de mecanismos intersetoriais para prevenir e enfrentar a violência sexual. Essas legislações demonstram um avanço no reconhecimento do problema e na tentativa de estruturar respostas institucionais mais eficazes.

Apesar desses avanços legais e institucionais, a violência sexual no Brasil permanece marcada por subnotificação, impunidade e desigualdades sociais. Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2023), apenas uma parcela dos casos é denunciada e chega ao sistema de justiça, e a maioria das vítimas são meninas entre 0 e 14 anos, vítimas de pessoas próximas. Esse quadro revela a persistência de estruturas patriarcais e a necessidade contínua de políticas de prevenção, educação e responsabilização.

3. O FILME A CAÇA E A VIOLÊNCIA SEXUAL

O filme "A Caça" dirigido por Thomas Vinterberg e estrelado por Mads Mikkelsen, apresenta a história central da vida de Lucas, um professor de jardim de infância que teve de lidar com uma série de acontecimentos advindos de uma acusação de abuso sexual. Na verdade, a criança, Klara, relata que Lucas, professor da escola e amigo de sua família com quem convivia diariamente, havia tocado em partes do seu corpo. A menina mandava bilhetinhos para Lucas e sempre dizia que ele era seu namorado, ao que Lucas sempre negava e explicava que isso não era correto. A criança contou para a diretora da esocla onde a diretora demonstra grande impacto ao ouvir o que Klara disse. Com isso, a profissional decide intervir no caso. Imediatamente afastou Lucas, chamou os pais de criança e lhes contou o relato de Klara e convocou uma reunião de pais onde expôs a situação para todos os presentes. Pelo aval da diretora, tornou-se definitivo de que Lucas realmente teria abusado da criança e a notícia se espalhou rapidamente pela cidade, causando grande revolta. A vida social de Lucas foi prejudicada pois ele foi agredido em supermercado, teve sua cachorra morta, sua casa vandalizada e chegou até a ter a convivência com seu filho prejudicada. No caso é apresentado que Lucas termina até um namoro por conta dessa situação.

No decorrer da história é notável a presença da violência de diversas maneiras nos remetendo a uma ampla reflexão. No início do filme é mostrado grande desinteresse dos pais com relação aos filhos, onde em uma cena a menina escuta os pais discutindo para decidir qual responsável iria levá-la para a escola, até que Lucas sendo amigo próximo da família decide ir com Klara para o colégio. Ao chegar na casa dela e ver o que estava acontecendo, devido as brigas dos pais, hipoteticamente a atenção que Lucas dava para Klara poderia acabar acarretando nela sentimentos confusos por receber dele um cuidado que aparentava não receber de seus pais. A família possuía outros filhos e não tinha uma atenção à Klara como a que fora dispensada por Lucas. Além disso, Lucas tinha uma cachorra, Funny, com quem Klara sempre gostava de brincar. No contexto em que Lucas se afasta da família Klara chega ir escondida a casa de Lucas procurando a cachorra p brincar.

Uma das inúmeras cenas importantes no filme para se aprofundar em uma análise é quando os meninos mostram um vídeo de pornografia para a Klara, causando na criança grande desconforto e desencadeando uma série de acontecimentos posteriormente. Klara então começa a mostrar comportamentos inapropriados quando está com Lucas e em um momento de fragilidade, quando ela fica na escola até tarde esperando seus pais buscá-la, ela relata para a diretora experiencias supostamente fictícias de que teria sido abusada por Lucas, descrevendo com clareza aspectos físicos do órgão genital masculino. Importante frisar que a criança permanecia, por longos períodos, sem a supervisão dos adultos e sob a responsabilidade do irmão mais velho.

No que diz respeito a postura profissional frente a um relato de abuso, a diretora do colégio deveria ter tomado medidas cautelosas, prezando pelo sigilo das informações para não colocar em risco a segurança dos envolvidos, sem fazer julgamentos pré-estabelecidos diante de determinada situação, até que tivesse total consciência do que realmente teria de fato ocorrido. Em certo momento a diretora recebe na escola um homem para fazer perguntas a Klara sendo elas perguntas específicas e inflexíveis que se esperava como resposta apenas um simples “sim” ou “não”, porém quando se trata de casos infantis , essa não seria a maneira adequada de se fazer uma investigação da história, sendo necessário a utilização de técnicas adequadas como a presença de profissionais capacitados.

Após isso, se torna certeza de que o Lucas é culpado e a notícia se espalha rapidamente, como resultado a cidade se revolta contra ele, acontecendo julgamentos e grande histeria social, onde é mostrado que até alguns dos amigos e decidem se afastar.

A violência física, psicológica e moral começa a estar presente na vida de Lucas, que foi demitido do trabalho interferindo na sua vida financeira para poder conseguir sustentar suas necessidades básicas e relacionado a isso foi impedido de comprar alimentos nos estabelecimentos locais, sofrendo agressões físicas devido a sua resistência diante de tais acontecimentos. Lucas sofre pelo vandalismo em sua casa e o assassinato de sua cachorra de estimação, sendo essa uma cena profunda para se refletir sobre a violência que está envolvida na sociedade e como pode causar sério sofrimento psíquico em um indivíduo, acarretando até mesmo o suicídio em alguns casos, mas a respeito de Lucas ele não comete este ato, entretanto é notável seu isolamento social.

Lucas então decide ir a igreja, um lugar que na teoria é descrito como sendo acolhedor a todos os indivíduos sem qualquer julgamento, onde todos são pecadores e estão perdoados, porém nota-se que assim que Lucas entra no ambiente e se senta em um dos primeiros bancos sem se importar com sua reputação, a grande maioria das pessoas que estavam na igreja o transmite um olhar carregado de julgamentos e desconfiança. Lucas estando em um estado desorientado psicologicamente acaba agindo com agressividade da mesma maneira que as pessoas agiram com ele. No final Lucas é inocentado e a sociedade não tendo motivos para julga-lo volta a tratar ele com respeito como se não tivessem causado nenhum dano.

A última cena, no entanto, é bastante emblemática pois apresenta Lucas com seu filho e com os amigos que o haviam excluído de tudo, em uma atividade de caça. Dá uma ideia de que Lucas e seu filho, junto aos demais colegas saem na abordagem de caça e dá uma ideia de que alguém atira em Lucas pelas costas, porém, isso não fica claro na narrativa.

As discussões entorno desse filme são amplas, onde um público tende a acreditar que Lucas realmente cometeu tais atos, como de outro lado um público que acredita que Lucas fora inocente. Independente disso a reflexão que vale a pena ter diante dessa obra é sobre o peso da acusação derivada de pré-julgamentos e como assuntos sérios se espalham depressa reproduzindo na sociedade comportamentos de violência como resposta, colocando em risco a segurança de todos os envolvidos, acarretando uma série de sofrimentos psicológicos de ambas as partes por conta de uma má conduta ética na decisão tomada diante de um relato de abuso, expondo uma situação de sigilo ao caráter público, sem pensar nas consequências para a criança como para as outras pessoas relacionadas.

No caso posto é importante frisar que a obra apresentada retrata também os prejuízos que esse pré-julgamento trouxe para a criança. E mais, que essa situação apresentada advém de deixar a criança exposta, ou seja, as acusações surgiram porque Klara esteve exposta a conteúdos para os quais não possuía repertório para lidar. Por conseguinte, a supervisão da família é essencial para evitar a situação de violência. No Brasil, uma abordagem correta seria encaminhar a criança para os órgãos de proteção e iniciar acompanhamento sociofamiliar e jamais expor a criança ou a família socialmente.

CONCLUSÃO

No tocante aos elementos associados pelo filme há que se considerar que os mesmos permitem uma reflexão e uma problematização sobre a violência que afeta criança e adolescentes. Nesse sentido, há que se considerar que a criança que teve acesso a vídeos pornôs já é uma vítima, ou seja, mesmo que o não tenha participado de uma relação sexual, esteve exposta e isso resultaria em prejuízos ao seu desenvolvimento. Por outro lado, a exposição do suposto agressor, como narrado no filme é extremamente prejudicial para o desenvolvimento do acompanhamento do caso. Há inclusive situações que a população chega até a agredir os possíveis agressores fisicamente resultando até em sua morte.

Outro elemento que chama a nossa atenção é a situação que demarca a importância da rede de proteção para garantir que a criança ou o adolescente seja preservado, tal como propomos organizar na realidade brasileira. A ausência de rede resulta em ações dispersas, desarticuladas, sem planejamento, colocando a criança em uma situação de segunda violação, resultado no que chamamos no Brasil como revitimização. A conduta da escola, nesse sentido, foi extremamente prejudicial a sanar as demandas apresentadas pela criança.

Por fim, o filme chama a atenção ainda para a formação dos trabalhadores, dos profissionais que atuam com crianças e com adolescentes. Isso colaboraria substancialmente para que as intervenções fossem menos penosas a agressivas junto as vítimas.

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FONTE

A caça. Direção: Thomas Vinterberg. Produção de Zentropa Entertainments, Zentropa International Sweden e Film i Väst. Dinamarca/Suécia: California Filmes, 2013.


1 Graduanda em Psicologia pela Unip. E-mail: [email protected]

2 Graduando em Psicologia pela Unip. E-mail: [email protected]

3 Psicóloga graduada pela Unip. com pós graduação em Psicologia Organizacional e do Trabalho (Faveni), Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes (UNIP) e Programação Neurolinguística (PNL). Coordenadora do CRAS de Palmital, responsável pela Escuta Especializada no Município. E-mail: [email protected]

4 Graduado em Medicina pela Unesp de Botucatu. E-mail: [email protected]

5 Consultora e Assessora em SUAS. Docente do Curso Superior de Psicologia do Instituto de Ciências Humanas da UNIP, Campus Assis. Mestre em Psicologia pela Unesp de Assis, Mestre em História pela Unesp de Assis e Doutora em História pela Unesp de Assis. E-mail: [email protected]