O CABELO CRESPO E A FORMAÇÃO DA AUTOESTIMA NEGRA NO ESPAÇO ESCOLAR
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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.17666166
Nicole Santos Sabino Neves1
RESUMO
O presente estudo tem como objeto a autoestima do corpo negro no espaço escolar, analisando a construção da identidade por intermédio do cabelo crespo. A pesquisa parte de uma revisão bibliográfica explicativa e qualitativa, com base em autores como Nilma Lino Gomes, Franz Fanon, Neusa Santos Souza, Ivone Martins de Oliveira e bell hooks, buscando compreender como o ambiente escolar atua na formação do autoconceito e na valorização dos elementos estéticos e simbólicos ligados à negritude. A partir das referências selecionadas, observa-se que o cabelo crespo se constitui como um importante marcador identitário, capaz de promover o fortalecimento da autoestima e a resistência cultural. O estudo destaca a relevância de práticas pedagógicas antirracistas que reconheçam a pluralidade dos corpos e fomentem a construção de uma educação inclusiva, democrática e decolonial.
Palavras-chave: Autoestima negra. Cabelo crespo. Identidade. Educação antirracista. Corpo negro.
ABSTRACT
This paper examines how afro-textured hair functions as a key element in shaping Black self-esteem and identity within school settings. Through an explanatory and qualitative bibliographic review, the study draws upon the works of Nilma Lino Gomes, Franz Fanon, Neusa Santos Souza, Ivone Martins de Oliveira, and bell hooks to explore how educational environments influence self-concept and the appreciation of aesthetic and symbolic aspects of Blackness. The findings suggest that afro hair serves as a powerful identity marker, fostering both self-acceptance and cultural resistance. Ultimately, the paper underscores the importance of anti-racist pedagogical practices that embrace bodily diversity and promote an inclusive, democratic, and decolonial education.
Keywords: Black self-esteem. Afro hair. Identity. Anti-racist education. Black body.
1. INTRODUÇÃO
Este artigo tem como estudo a autoestima do corpo negro no espaço escolar: a construção da identidade por intermédio do cabelo crespo. A escolha do tema se deu pela trajetória escolar de estudantes negras e negros e pela redescoberta da autoestima desses sujeitos em espaços formais de ensino.
Estudar o cabelo crespo como elemento de identidade e autoestima permite compreender como o ambiente escolar participa da formação subjetiva e sociocultural de crianças e adolescentes negros. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) aponta como competência geral da Educação Básica o dever de “valorizar e utilizar os conhecimentos historicamente construídos sobre o mundo físico, social, cultural e digital para entender e explicar a realidade, continuar aprendendo e colaborar para a construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva” (BRASIL, 2019, p. 9). Apesar desse ideal, alguns autores reconhecem que a escola ainda reproduz mecanismos de dominação e desigualdade, afetando diretamente a formação do autoconceito e da autoestima de alunos negros (OLIVEIRA, 1994).
O autoconceito (OLIVEIRA, 1994), “é a atitude que o indivíduo tem de si mesmo, decorrente da maneira como se percebe”. A autoimagem enfatiza o aspecto social da formação, e a autoestima, pode ser entendida como a atitude valorativa que o sujeito desenvolve em relação a si próprio. Essas dimensões, embora frequentemente confundidas, são interdependentes e têm papel central na constituição da identidade e na forma como o indivíduo se percebe e se posiciona no mundo.
As discussões sobre autoestima, autoimagem e autoconceito se intensificaram com o Movimento da Escola Nova, que introduziu a preocupação com o desenvolvimento afetivo e psicossocial dos alunos. Pesquisas posteriores, evidenciaram a correlação entre gênero, raça e desempenho escolar, apontando que meninos negros e pardos de baixa renda são os mais indicados ao reforço escolar e os que mais sofrem preconceito e exclusão (CARVALHO, 2004).
Anos depois, novos estudos denunciam o estereótipo da agressividade atribuída a pessoas negras como forma de culpabilização e controle social (HOOKS, 2019). Essa representação reforça uma estrutura racista que limita as possibilidades de reconhecimento e pertencimento, pois o corpo negro e seus elementos simbólicos, entre eles o cabelo crespo, tornam-se espaços de disputa identitária. Nesse sentido, a construção da subjetividade negra se dá num contexto histórico de desumanização, em que o corpo negro é atravessado por marcas coloniais. O sujeito preto além de ser libertado das inerências impostas pela cor (FANON, 2020), precisa passar pelo processo de reconhecimento e reconstrução de si (SOUZA, 1983).
A partir desses aportes teóricos, compreende-se que o cabelo crespo é mais que um atributo físico, é um signo cultural, político e identitário. Sua valorização representa um ato de resistência frente à hegemonia branca e aos padrões estéticos eurocentrados. Nesse sentido, o ambiente escolar tem papel decisivo na promoção da autoestima e no fortalecimento da identidade negra, devendo atuar como espaço de reconhecimento e não de exclusão.
A justificativa para esta pesquisa parte da necessidade de compreender como a escola, enquanto instituição formadora, pode atuar para desconstruir os estereótipos ligados ao corpo negro e ao cabelo crespo, fortalecendo a construção da identidade e da autoestima de crianças e adolescentes.
A escolha pelo tema é relevante por tratar de um problema que ainda persiste na sociedade e nas práticas pedagógicas: a desvalorização dos traços e símbolos da negritude, que impactam diretamente o processo de aprendizagem e o desenvolvimento emocional de estudantes negros. Dessa forma, o estudo busca contribuir para ampliar as discussões sobre a educação antirracista, fornecendo subsídios teóricos que auxiliem na formação de professores e no desenvolvimento de ações pedagógicas que valorizem a diversidade.
O objetivo geral é analisar de que maneira o cabelo crespo pode ser compreendido como um elemento fundamental na construção da autoestima e da identidade da pessoa negra no espaço escolar. Como objetivos específicos, propõe-se identificar os fatores que interferem na percepção de si e na valorização da estética negra dentro da escola, bem como discutir o papel dos educadores na promoção de práticas que reconheçam e respeitem as diferenças étnico-raciais.
Assim, o estudo se propõe a refletir sobre a importância da valorização do cabelo crespo e do corpo negro como formas de resistência e de afirmação identitária, reconhecendo o ambiente escolar como espaço de construção, desconstrução e reconstrução de subjetividades e saberes.
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA OU REVISÃO DA LITERATURA
2.1 Autoconceito e Preconceito
As crianças negras em idade escolar carregam em si um espelho daquilo que veem e escutam em casa, nas mídias e na sociedade em geral, e tudo isso contribui para a construção da sua autoimagem. A escola, que deveria ser o lugar onde se reconhecem e valorizam as diferenças, acaba sendo o primeiro espaço institucional onde essas crianças têm contato direto com o racismo e a desigualdade racial, e esse contato, ainda que não intencional, afeta diretamente sua formação emocional e cognitiva (OLIVEIRA, 1994).
A autoestima, o autoconceito e a autoimagem estão interligados, sendo a escola um dos espaços mais importantes para essa construção. O autoconceito “é a atitude que o indivíduo tem de si mesmo, decorrente da maneira como se percebe” (OLIVEIRA, 1994). Já a autoimagem se constitui como uma forma de representação social e simbólica da própria identidade, e a autoestima se relaciona diretamente com o valor que o sujeito atribui a si mesmo dentro das relações que estabelece com o outro.
Essas dimensões, embora frequentemente confundidas, estão em constante diálogo com o ambiente social. No espaço escolar, isso significa que a forma como a criança é tratada, nomeada e representada afeta diretamente o modo como ela constrói o próprio valor. Um elogio, um olhar de reprovação ou a ausência de referências positivas são elementos que moldam silenciosamente o autoconceito. Dessa forma, o ambiente escolar, quando não pautado pelo respeito e pela diversidade, torna-se um espaço de negação simbólica da identidade negra.
O modo como o aluno é percebido por seus professores e colegas pode interferir diretamente em seu desempenho escolar, o que revela que o processo educativo não é neutro, mas atravessado por questões subjetivas e sociais. Deste modo, entende-se que quando o aluno negro é constantemente exposto a comentários depreciativos ou quando não se reconhece nas representações presentes nos livros e nas atividades escolares, ele tende a desenvolver uma percepção negativa de si mesmo e de suas capacidades (OLIVEIRA, 1994).
Ao analisar a relação entre raça, gênero e desempenho escolar, percebe-se que meninos negros e pardos de baixa renda são os mais indicados ao reforço escolar e os que mais sofrem exclusão (CARVALHO, 2004). Isso demonstra que há uma relação direta entre a cor da pele e o tratamento recebido no ambiente escolar.
(...) estão relacionados à renda familiar até cinco salários mínimos, ao sexo masculino e à heteroclassificação como negro (preto ou pardo). Em linhas gerais, esse resultado tem semelhanças com o que se encontra no país como um todo e mesmo no plano internacional, quando se mede o desempenho das crianças por meio de testes padronizados. (Carvalho, 2004, p.29).
Esses dados apontam para a persistência de uma estrutura social racista que ainda hoje interfere na forma como o corpo negro é percebido dentro da escola. O preconceito racial, muitas vezes disfarçado de “brincadeira” ou “comentário inocente”, deixa marcas profundas no desenvolvimento emocional e na autoestima das crianças. A escola, ao invés de ser um espaço de desconstrução dessas violências simbólicas, por vezes as reproduz. As práticas pedagógicas, os materiais didáticos e até mesmo as atitudes dos profissionais da educação, quando não pautados pela diversidade e pela consciência racial, contribuem para reforçar estereótipos negativos e a desvalorização do corpo negro. Essa ausência de representatividade reforça a ideia de inferioridade e compromete a formação do autoconceito positivo.
É importante considerar que o racismo, ao se manifestar nas sutilezas do cotidiano escolar, não apenas marginaliza, mas também define quem é legitimado a aprender. Essa legitimação, está diretamente ligada ao processo de desumanização do sujeito negro, que é constantemente colocado em um lugar de subalternidade (FANON, 2020). A criança negra, desde cedo, internaliza a ideia de que precisa corresponder a padrões que não foram criados para ela, o que acentua o sentimento de inadequação e baixa autoestima. Nesse sentido, ao pensar o autoconceito dentro da perspectiva do corpo negro, é importante retomar as análises em que o sujeito preto precisa ser libertado das inerências impostas pela cor, entendendo que a individualidade foi historicamente concedida apenas a corpos brancos.
O racismo, enquanto estrutura de poder, molda subjetividades, e por isso a criança negra, ao se ver constantemente excluída das narrativas positivas, acaba internalizando o discurso de inferioridade. Isso afeta não apenas sua autoestima, mas sua capacidade de imaginar e projetar o futuro. A desigualdade racial também opera nas relações de poder e nos espaços educativos, sustentando estereótipos de agressividade e incapacidade. Ele “culpabiliza” a população negra por sua condição social, reforçando o controle e a exclusão (hooks, 2019). Assim, o ambiente escolar precisa ser repensado como um espaço de emancipação e não de reprodução dessas opressões. Quando o racismo protege pessoas brancas e elege-as como padrão de beleza e inteligência, gera nas pessoas negras o sentimento de inferioridade, expresso principalmente em seus corpos, na cor da pele e no tipo de cabelo:
Ao proteger as pessoas brancas e elegê-las como padrão universal de beleza, inteligência, competem sensibilidade, o racismo inculca e gera, em suas vítimas, o sentimento antagônico a todos esses atributos. Essa negatividade é expressada principalmente em seus corpos, na superfície de sua pele e no tipo de cabelo. (Gomes, 2019, p.13).
O “tornar-se negro” (SOUZA, 1983), é um processo de reconhecimento e reconstrução de si mesmo. Ele não acontece de forma espontânea, mas como resposta a uma sociedade que constantemente nega o valor da negritude. É no enfrentamento ao preconceito e na reconstrução simbólica de sua imagem que o sujeito negro reafirma sua identidade e passa a se reconhecer como portador de uma história e de uma cultura próprias.
Nesse contexto, o papel da escola deve ir além da mera transmissão de conhecimento. Ela precisa atuar como um espaço de valorização das diferenças, de escuta e de reconstrução das narrativas sobre o corpo negro. Para que o processo educativo seja verdadeiramente emancipador, é necessário reconhecer que a formação do autoconceito e da autoestima das crianças negras está diretamente ligada à forma como a instituição escolar compreende e aborda as questões raciais.
Portanto, pensar o autoconceito dentro da perspectiva do corpo negro é compreender que o desenvolvimento emocional e intelectual dos alunos está profundamente ligado ao reconhecimento da sua humanidade. A descolonização do olhar, do currículo e das práticas pedagógicas é o primeiro passo para que o ambiente escolar se torne um lugar de pertencimento e não de exclusão.
2.2. A Autoestima e o Cabelo Crespo Como Elemento de Identidade
A construção da identidade negra é atravessada pela experiência com o corpo e com os significados sociais atribuídos a ele. O cabelo crespo, enquanto símbolo estético e político, ocupa um lugar central nesse processo. Ele é, ao mesmo tempo, um marcador de diferença e um campo de resistência frente às tentativas históricas de apagamento cultural (GOMES, 2019).
Durante séculos, o cabelo crespo foi associado à sujeira, à desordem e à feiura, e esses estigmas foram internalizados pela população negra por meio de práticas coloniais e discursos eurocentrados (FANON, 2020). Essa construção histórica faz com que o cabelo crespo seja muito mais que uma característica física, ele se torna uma expressão de identidade e uma ferramenta de afirmação. Esse processo faz parte do que se compreende como “tornar-se negro” (SOUZA, 1983), um movimento de autoconhecimento e reconstrução subjetiva no qual a pessoa negra passa a se reconhecer e a se orgulhar das características que antes foram motivo de vergonha. Trata-se também de um exercício de liberdade, pois é através da conscientização e da valorização da própria imagem que os sujeitos se libertam das opressões impostas.
(...) temos a oportunidade de trabalhar pela liberdade, exigir de nós e de nossos camaradas uma abertura da mente e do coração que nos permite encarar a realidade ao mesmo tempo em que, coletivamente, imaginemos esquemas para cruzar fronteiras, para transgredir. Isso é a educação como prática da liberdade. (HOOKS, 2013, p.273)
Esse percurso é uma das formas mais potentes de resistência, pois desloca o olhar sobre o corpo negro, de um lugar de estigmatização para um lugar de potência e beleza. Ao assumir o cabelo natural, homens e mulheres negras rompem com os padrões de beleza eurocêntricos e reafirmam sua ancestralidade. O cabelo crespo se torna, assim, um símbolo de resistência e reexistência. Essa ressignificação, porém, não é apenas estética, é também política e afetiva.
No ambiente escolar, esse processo assume dimensões ainda mais significativas. A criança negra que vê seu cabelo representado de forma positiva nas imagens, nas histórias e nos discursos escolares tende a desenvolver uma autoestima mais sólida e uma relação mais saudável com sua identidade (OLIVEIRA, 1994). Por outro lado, quando o ambiente reforça padrões brancos e ignora as características negras, o resultado é o apagamento simbólico e o enfraquecimento da autoconfiança
Compreender o cabelo crespo como um elemento de identidade é essencial para repensar as práticas pedagógicas e promover uma educação antirracista (GOMES, 2019). Valorizar o cabelo crespo é valorizar a história, a cultura e a dignidade de um povo que historicamente foi silenciado. Quando a escola reconhece essa simbologia, ela também reconhece a existência e o valor das diferentes estéticas que compõem a sociedade.
Além disso, é preciso entender que o cabelo crespo, em sua diversidade de texturas e formas, reflete a pluralidade da própria população negra. Essa pluralidade é frequentemente negada pela imposição de um ideal único de beleza, associado ao liso e ao europeu. No entanto, é justamente na diversidade dos fios, nas formas de cuidado e nas expressões de estilo que reside a força cultural da negritude. O cabelo é memória viva, herança e linguagem. Ele conta histórias que atravessam gerações e resistem às tentativas de apagamento.
O cabelo crespo é um símbolo de luta, de resistência e de afirmação da identidade negra. Assumir o cabelo natural é, portanto, um ato político que rompe com as imposições históricas e culturais de um padrão estético que desumaniza e inferioriza. (GOMES, 2019, p.22)
O reconhecimento desse simbolismo dentro da escola também envolve a formação docente. Professores e educadores precisam compreender o impacto das palavras e das representações que utilizam. Pequenos gestos, como elogiar um penteado afro, evitar comentários pejorativos ou incluir livros e imagens com personagens negros de cabelo natural, têm poder transformador. São atitudes simples que ajudam a reconstruir o olhar da criança sobre si mesma, e a reafirmar que seu corpo é digno e belo.
Assim, o cabelo crespo deixa de ser visto como um problema a ser corrigido e passa a ser entendido como uma marca de orgulho, pertencimento e resistência. Ele é uma narrativa viva da ancestralidade africana e uma forma de afirmar que o corpo negro tem lugar, voz e valor dentro e fora da escola. Valorizar o cabelo crespo é, portanto, um gesto político e educativo, que contribui diretamente para a construção de uma autoestima coletiva e para a formação de uma sociedade mais justa e igualitária.
3. METODOLOGIA
A metodologia utilizada foi de uma revisão bibliográfica explicativa e qualitativa, como o levantamento de informações a partir de livros e artigos encontrados em bibliotecas e pela internet. A escolha desse tipo de pesquisa se deu pela necessidade de compreender, por meio de autores já consolidados, como o cabelo crespo pode ser compreendido como um elemento fundamental na construção da autoestima e da identidade negra. Esse formato de pesquisa permite entender o fenômeno a partir de diferentes perspectivas teóricas, observando como cada autor aborda o corpo, a identidade, a escola e os processos de subjetivação.
A revisão bibliográfica foi escolhida também por permitir o acesso a produções já estabelecidas na área, o que possibilita mapear conceitos, analisar discussões existentes e identificar pontos de convergência ou divergência entre os autores. Por ser um tema que envolve dimensões históricas, sociais, políticas e simbólicas, a análise dos textos disponíveis oferece uma visão ampla sobre como o cabelo crespo foi e ainda é tratado nas relações sociais e no ambiente escolar.
A fundamentação teórica foi composta por autoras e autores que dialogam diretamente com o tema e que, juntos, permitem uma leitura crítica sobre corpo, identidade e resistência. São produções que discutem a subjetividade negra, a formação do autoconceito, o papel do racismo nas instituições e a importância da valorização da estética negra. A seleção desses materiais considerou a relevância das obras e sua contribuição para compreender o cabelo crespo como um símbolo político, cultural e identitário. Dessa forma, a pesquisa não contou com aplicação de questionários ou entrevistas, mas com a análise de produções bibliográficas já existentes, buscando compreender o fenômeno sob a ótica dos autores. A opção por não realizar pesquisa de campo está relacionada ao objetivo central do estudo, que é analisar as construções teóricas que fundamentam a relação entre cabelo crespo, autoestima e escola. Assim, a ênfase está no aprofundamento conceitual e não na coleta de dados empíricos.
A partir das leituras realizadas, foi possível observar as semelhanças e diferenças entre as perspectivas teóricas, destacando as contribuições de cada autor para o entendimento do objeto de estudo. O material analisado possibilitou articular as ideias apresentadas, relacionando os conceitos de autoconceito, identidade, corpo e educação de maneira integrada. E esse movimento permitiu construir uma compreensão mais ampla do papel simbólico do cabelo crespo e de como a escola influencia a forma como estudantes negros percebem sua própria imagem.
A natureza qualitativa do estudo permitiu analisar o tema sob uma perspectiva simbólica e social, observando os significados atribuídos ao cabelo crespo e sua relação direta com a construção da autoestima e da identidade no ambiente escolar. A abordagem qualitativa também possibilitou compreender emoções, percepções, discursos e sentidos presentes nas obras consultadas, permitindo que o fenômeno fosse interpretado para além do aspecto superficial, alcançando sua dimensão subjetiva e histórica. Além disso, a revisão bibliográfica possibilitou identificar elementos que se repetem nos textos analisados, como a importância do reconhecimento, a necessidade de práticas antirracistas no ambiente escolar, o impacto das representações visuais e discursivas e a urgência de uma educação que considere a pluralidade de corpos e experiências. Assim, a metodologia adotada garantiu uma análise consistente, coerente e alinhada aos objetivos da pesquisa, fornecendo a base necessária para discutir os resultados e aprofundar a reflexão proposta ao longo do estudo.
4. RESULTADOS E DISCUSSÕES OU ANÁLISE DOS DADOS
A partir das análises teóricas, observa-se que o cabelo crespo se constitui como um importante marcador identitário e simbólico para a construção da autoestima negra no ambiente escolar. Os resultados obtidos a partir da revisão bibliográfica demonstram que a escola desempenha papel central na formação do autoconceito das crianças e adolescentes, sendo um espaço de legitimação ou negação das identidades negras. Ao considerar que o espaço escolar é também um ambiente de construção de valores, expectativas e pertencimento, torna-se evidente que a maneira como o corpo negro é percebido e tratado interfere diretamente na forma como os estudantes constroem sua percepção de si.
O autoconceito e a autoestima se formam nas relações sociais e nos julgamentos que o sujeito faz sobre si mesmo (OLIVEIRA, 1994). Quando o aluno negro não se reconhece nas representações e vivências do ambiente escolar, esse processo se enfraquece, e o indivíduo tende a reproduzir a visão depreciativa que a sociedade constrói sobre seu corpo e suas origens. A escola, por ser um espaço de convívio social e de produção de saberes, é também um dos lugares onde o racismo se manifesta de forma simbólica e cotidiana. O apagamento da estética negra, a ausência de referências positivas nos materiais didáticos e as práticas discriminatórias contribuem para a manutenção das desigualdades (GOMES, 2019).
Esses elementos revelam que, para além do currículo formal, há um currículo oculto que reforça os padrões eurocêntricos de beleza, comportamento e conhecimento. Quando a escola falha em reconhecer e valorizar o cabelo crespo e o corpo negro, ela participa ativamente da reprodução do racismo estrutural. Muitos alunos negros, mesmo sem vivenciarem atos explícitos de discriminação, percebem essa falta de reconhecimento como uma mensagem constante de que sua aparência não pertence ao ideal escolar.
Portanto, a educação deve ser compreendida como um ato político e libertador (HOOKS, 2019). Isso significa que o processo de ensino e aprendizagem deve se comprometer com a transformação da realidade e com a emancipação dos sujeitos historicamente oprimidos. Nesse sentido, o reconhecimento da estética negra como legítima é parte essencial da construção de uma educação democrática e decolonial.
(...) temos a oportunidade de trabalhar pela liberdade, exigir de nós e de nossos camaradas uma abertura da mente e do coração que nos permite encarar a realidade ao mesmo tempo em que, coletivamente, imaginemos esquemas para cruzar fronteiras, para transgredir. Isso é a educação como prática da liberdade. (HOOKS, 2013, p.273).
O cabelo crespo carrega significados que vão além da aparência, pois ele é um símbolo de ancestralidade e resistência, que expressa orgulho, pertencimento e reconexão com a história de um povo. A desumanização da pessoa negra começa pelo corpo, e a libertação passa necessariamente pela reconstrução de sua imagem e de seu valor no mundo (FANON, 2020). A partir disso, compreende-se que assumir o cabelo crespo é um ato político e subjetivo que desafia a lógica racista que sempre buscou submeter o corpo negro à inferiorização. Quando a escola reconhece e valoriza essas expressões, ela colabora para o fortalecimento da autoestima e para a formação de identidades positivas (GOMES, 2019).
Os resultados também indicam que o desenvolvimento de práticas pedagógicas antirracistas é indispensável para romper com os estigmas e promover uma educação que acolha a diversidade. A formação continuada de professores é apontada por vários autores como o caminho mais eficaz para esse processo, pois permite o debate crítico e o reposicionamento das práticas docentes (PEREIRA & ROCHA, 2020). A escola deve se posicionar como um espaço que incentive discussões sobre raça, identidade e pertencimento, permitindo que estudantes negros se sintam representados e reconhecidos.
Compreendendo que esta formação é uma maneira de expandir a prática pedagógica e os conteúdos disciplinares aos professores(as) que não tiveram uma experiência com a Educação das Relações Étnico-Raciais (ERER) em sua formação inicial, dessa forma, ampliando os debates, as construções de conhecimentos e um maior arsenal de saberes, pois uma educação antirracista não só proporciona bem-estar humano, como também promove a construção saudável da cidadania e da democracia brasileira. (CORENZA, 2018; SILVA & ROCHA, 2020 apud PEREIRA & ROCHA, 2020)
Portanto, os resultados da análise teórica permitem afirmar que a escola, ao reconhecer a pluralidade dos corpos e das estéticas, contribui para o fortalecimento da autoestima negra e para a construção de uma sociedade mais justa e inclusiva. Valorizar o cabelo crespo é reconhecer a humanidade e a dignidade de estudantes negros, oferecendo-lhes condições reais de pertencimento e afirmação.
5. CONCLUSÃO/CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir das leituras e análises realizadas, foi possível compreender que o cabelo crespo é um importante elemento identitário e símbolo de resistência dentro do contexto escolar. A escola ainda é um espaço onde o racismo se manifesta de maneira velada, muitas vezes por meio da desvalorização da estética negra e da falta de representatividade nos materiais didáticos e nas práticas pedagógicas. Esses elementos, mesmo que pareçam sutis, têm grande impacto na formação emocional e subjetiva das crianças, principalmente naquelas que dependem do reconhecimento escolar para construir sua percepção de valor e pertencimento.
O cabelo crespo carrega uma carga simbólica e histórica profunda, que ultrapassa a dimensão estética e se torna parte essencial da construção da autoestima e da identidade da pessoa negra. E quando o aluno negro não se reconhece nos espaços educativos, sua autoestima é afetada, e o processo de aprendizagem tende a ser comprometido (OLIVEIRA, 1994). Por isso, a valorização do cabelo crespo não é apenas um gesto pontual, mas uma mudança estrutural que transforma a forma como a escola lida com a diversidade e com as relações raciais.
Com base nas reflexões apresentadas, entende-se que a valorização do cabelo crespo dentro do ambiente escolar é também um ato político, pois questiona a lógica racista que sempre associou o corpo negro à inferioridade. Essa valorização contribui para o fortalecimento do autoconceito, para o reconhecimento da diversidade e para a promoção de uma educação mais justa e democrática (HOOKS, 2019). Por isso, a valorização do cabelo crespo não é apenas um gesto pontual, mas uma mudança estrutural que transforma a forma como a escola lida com a diversidade e com as relações raciais.
Nesse sentido, a escola tem papel fundamental na desconstrução dos estereótipos raciais e na promoção da autoestima negra. Quando ela reconhece o cabelo crespo como parte da identidade e da história de resistência do povo negro, ela contribui não apenas para o desenvolvimento pessoal dos alunos, mas também para a transformação social e cultural da comunidade escolar. A inserção de práticas, materiais e discursos que valorizem a estética negra fortalece o sentimento de pertencimento e legitima as múltiplas formas de existir no mundo..
Antes de fechar esta reflexão, é importante destacar que este artigo nasce de um estudo maior, desenvolvido originalmente como Trabalho de Conclusão de Curso. Naquela etapa, a escrita era em primeira pessoa, construída a partir das minhas próprias vivências, do que observei na escola e das reflexões que surgiram no processo. O trabalho reunia relatos, experiências e referências teóricas que ajudavam a compreender como o cabelo crespo atravessa identidades e produz sentidos dentro do ambiente escolar. Na adaptação para o formato de artigo, optei por trabalhar apenas a parte teórica e analítica da pesquisa, deixando de fora os relatos pessoais, mas preservando as discussões que deram forma ao estudo. Alguns ajustes foram necessários porque a escrita muda com o tempo, e certas expressões ou construções passaram por pequenas adaptações para atender ao formato acadêmico. Ainda assim, procurei manter o estilo, o ritmo e a perspectiva que conduziram o texto original, respeitando a essência da pesquisa.
Dessa forma, o artigo funciona como uma síntese ampliada da pesquisa: mantém as bases conceituais, reorganiza a estrutura e abre espaço para que outras pessoas possam acessar a discussão e refletir sobre a importância da valorização do cabelo crespo na escola. As experiências que motivaram o trabalho continuam presentes como fundamento, mesmo que não apareçam diretamente no texto, sustentando o olhar crítico que orienta a análise.
O cabelo crespo é mais do que um traço físico, é uma marca de ancestralidade, de luta e de afirmação. Reconhecer sua importância no espaço escolar é reafirmar o direito de existir com dignidade, liberdade e pertencimento. Ao valorizar o cabelo crespo, a escola amplia horizontes e cria condições para que a identidade negra seja construída de forma saudável, fortalecendo não apenas a autoestima individual, mas também a memória coletiva e a resistência cultural.
Assim, reforça-se que reconhecer os diversos tipos de cabelo no espaço escolar é reconhecer histórias, identidades e trajetórias que foram silenciadas por muito tempo. Revisitar esse trabalho de conclusão de curso e transformá-lo em artigo é também reafirmar a urgência de uma educação comprometida com diversidade, respeito e dignidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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CARVALHO, Marília Pinto de. Diferenças e desigualdades na escola: gênero, sexualidade e raça nas práticas pedagógicas. Campinas: Papirus, 2004.
CORENZA, Camila. Formação docente e práticas antirracistas: reflexões sobre a educação das relações étnico-raciais. Revista Educação em Foco, v. 23, n. 2, p. 45–59, 2018.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. 4. ed. Salvador: EDUFBA, 2020.
GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. 12. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.
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OLIVEIRA, Ivone Martins de. Autoimagem e autoconceito do negro: estudo sobre identidade e escola. Belo Horizonte: Mazza Edições, 1994.
PEREIRA, Thalita Silva; ROCHA, Daniele Alves. Educação antirracista e formação de professores: práticas, desafios e perspectivas. Revista Interfaces da Educação, v. 11, n. 31, p. 234–250, 2020.
SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Graal, 1983.
1 Psicopedagoga graduada pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. E-mail: [email protected].