MALFORMAÇÃO ARTERIOVENOSA UTERINA COMO CAUSA RARA DE HEMORRAGIA PÓS-PARTO SECUNDÁRIA: REVISÃO DA LITERATURA
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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.18039845
Ariane Galene Ferreira Silva
Nadia Stella Veigas Reis
Fernanda Cristina Galerani Gualtieri Parpinelli
Lais Amancio de Souza
RESUMO
A hemorragia pós-parto secundária constitui um importante desafio na prática obstétrica, estando associada a significativa morbidade materna quando não prontamente reconhecida e manejada. Embora as causas mais frequentes incluam a subinvolução do leito placentário, infecção uterina e retenção de restos ovulares, anomalias vasculares uterinas, como a malformação arteriovenosa uterina (MAVU), representam etiologias raras, porém potencialmente fatais. A MAVU caracteriza-se por comunicações arteriovenosas de alto fluxo entre ramos da artéria uterina e o plexo venoso miometrial, resultando em sangramentos volumosos, abruptos e de difícil controle. O diagnóstico precoce é fundamental para evitar intervenções iatrogênicas, especialmente a curetagem uterina, formalmente contraindicada nesses casos devido ao risco de hemorragia maciça. A ultrassonografia transvaginal associada ao Doppler colorido constitui o método de escolha para a avaliação inicial, permitindo a identificação de padrões hemodinâmicos característicos, como fluxo turbulento multidirecional e baixo índice de resistência. O manejo terapêutico deve ser individualizado, variando desde a conduta expectante e a embolização seletiva das artérias uterinas em pacientes hemodinamicamente estáveis, até a histerectomia como medida salvadora de vida em cenários de instabilidade. Esta revisão da literatura tem como objetivo sintetizar as principais evidências disponíveis acerca da fisiopatologia, apresentação clínica, diagnóstico diferencial e opções terapêuticas da MAVU no contexto da hemorragia pós-parto secundária, enfatizando a importância do reconhecimento precoce dessa entidade rara para a redução da morbimortalidade materna.
Palavras-chave: Hemorragia pós-parto secundária; Malformação arteriovenosa uterina; Doppler colorido; Pseudoaneurisma uterino; Emergência obstétrica.
ABSTRACT
Secondary postpartum hemorrhage constitutes a major challenge in obstetric practice and is associated with significant maternal morbidity when not promptly recognized and managed. Although the most frequent causes include subinvolution of the placental site, uterine infection, and retained products of conception, uterine vascular anomalies, such as uterine arteriovenous malformation (UAVM), represent rare but potentially fatal etiologies. UAVM is characterized by high-flow arteriovenous communications between branches of the uterine artery and the myometrial venous plexus, resulting in massive, abrupt, and difficult-to-control bleeding. Early diagnosis is fundamental to avoid iatrogenic interventions, especially uterine curettage, which is formally contraindicated in these cases due to the risk of massive hemorrhage. Transvaginal ultrasound combined with color Doppler constitutes the method of choice for initial evaluation, allowing the identification of characteristic hemodynamic patterns, such as multidirectional turbulent flow and a low resistance index. Therapeutic management must be individualized, ranging from expectant management and selective uterine artery embolization in hemodynamically stable patients to hysterectomy as a life-saving measure in scenarios of instability. This literature review aims to synthesize the main available evidence regarding the pathophysiology, clinical presentation, differential diagnosis, and therapeutic options for UAVM in the context of secondary postpartum hemorrhage, emphasizing the importance of early recognition of this rare entity for the reduction of maternal morbidity and mortality.
Keywords: Secondary postpartum hemorrhage; Uterine arteriovenous malformation; Color Doppler; Uterine pseudoaneurysm; Obstetric emergency.
INTRODUÇÃO
A hemorragia pós-parto (HPP) permanece como uma das principais causas de morbimortalidade materna em escala global, constituindo um relevante problema de saúde pública, sobretudo em países de média e baixa renda. Tradicionalmente, a abordagem clínica concentra-se na hemorragia pós-parto primária, definida como aquela que ocorre nas primeiras 24 horas após o parto. No entanto, a hemorragia pós-parto secundária, caracterizada por sangramento uterino excessivo que se manifesta após esse período, geralmente entre 24 horas e seis semanas do puerpério, representa um desafio diagnóstico adicional, frequentemente subestimado na prática obstétrica.
A incidência da hemorragia pós-parto secundária é estimada entre 1% e 3% das gestações e, na maioria dos casos, está relacionada à subinvolução do leito placentário, retenção de restos ovulares e processos infecciosos uterinos. Apesar de menos frequentes, as causas vasculares uterinas assumem importância clínica desproporcional à sua prevalência, uma vez que estão associadas a episódios de sangramento abrupto, volumoso e potencialmente fatal, especialmente quando não reconhecidas de forma oportuna.
Entre as anomalias vasculares uterinas, a malformação arteriovenosa uterina (MAVU) destaca-se como uma entidade rara, caracterizada pela presença de comunicações diretas de alto fluxo entre ramos arteriais uterinos e o plexo venoso miometrial, sem a interposição do leito capilar. Essa configuração vascular anômala resulta em um sistema de baixa resistência e alto débito, predispondo a hemorragias uterinas de difícil controle. As MAVUs podem ser classificadas em congênitas ou adquiridas, sendo esta última forma a mais frequentemente observada na prática clínica.
As MAVUs adquiridas estão fortemente associadas a traumas uterinos prévios, incluindo curetagens, procedimentos cirúrgicos ginecológicos, abortamentos e, de forma crescente, cesarianas. O aumento progressivo das taxas de cesariana em todo o mundo tem sido apontado como um fator contribuinte para a maior identificação dessas lesões no período puerperal. O reconhecimento precoce da MAVU é de extrema relevância clínica, uma vez que abordagens terapêuticas comumente empregadas no manejo da hemorragia pós-parto secundária, como a curetagem uterina, são formalmente contraindicadas na presença de lesões vasculares de alto fluxo, devido ao risco elevado de hemorragia catastrófica e colapso hemodinâmico.
Diante da raridade da condição e do risco significativo associado ao atraso diagnóstico, torna-se fundamental a compreensão aprofundada dos mecanismos fisiopatológicos, das manifestações clínicas, dos métodos diagnósticos e das estratégias terapêuticas disponíveis para a MAVU no contexto do puerpério. Assim, o presente artigo tem como objetivo revisar de forma abrangente a literatura científica acerca da malformação arteriovenosa uterina como causa de hemorragia pós-parto secundária, destacando os principais desafios no diagnóstico diferencial e no manejo clínico dessa entidade rara, porém potencialmente letal.
METODOLOGIA
O presente estudo foi delineado como uma revisão bibliográfica integrativa, de caráter descritivo e exploratório, com o objetivo de sintetizar as evidências científicas disponíveis acerca da malformação arteriovenosa uterina (MAVU) como causa de hemorragia pós-parto secundária. A revisão integrativa permite a análise e a integração de diferentes tipos de estudos, proporcionando uma compreensão abrangente do tema investigado.
Estratégia de busca e fontes de dados
A busca bibliográfica foi realizada nas bases de dados eletrônicas PubMed/MEDLINE, Scopus, SciELO e LILACS, consideradas relevantes para a literatura médica e obstétrica. Foram utilizados descritores controlados (MeSH e DeCS) e termos livres, incluindo: “uterine arteriovenous malformation”, “secondary postpartum hemorrhage”, “uterine pseudoaneurysm”, “Doppler ultrasound” e “uterine artery embolization”, bem como seus correspondentes nos idiomas português e espanhol. Os termos foram combinados por meio dos operadores booleanos AND e OR, a fim de ampliar a sensibilidade da busca e garantir a identificação de estudos pertinentes ao tema.
Critérios de elegibilidade
Foram incluídos artigos originais, revisões narrativas e sistemáticas, metanálises, séries de casos e diretrizes clínicas de sociedades científicas, publicados no período compreendido entre janeiro de 2000 e janeiro de 2025, nos idiomas inglês, português e espanhol, disponíveis na íntegra. Os estudos elegíveis deveriam abordar aspectos relacionados à fisiopatologia, apresentação clínica, diagnóstico por imagem ou manejo terapêutico das MAVUs no contexto da hemorragia pós-parto secundária.
Foram excluídos estudos duplicados nas bases de dados, publicações que não abordassem especificamente malformações vasculares uterinas no período puerperal, estudos experimentais em modelos animais, editoriais e resumos de congressos sem dados clínicos ou metodológicos suficientes para análise crítica.
Seleção e análise dos estudos
A seleção dos estudos ocorreu em duas etapas. Inicialmente, foi realizada a triagem dos títulos e resumos, com o objetivo de identificar publicações potencialmente relevantes. Em seguida, os artigos selecionados foram avaliados na íntegra, aplicando-se os critérios de elegibilidade previamente definidos. Ao final do processo, aproximadamente 120 estudosforam identificados na busca inicial, dos quais cerca de 30 a 35 publicações atenderam aos critérios de inclusão e foram consideradas para a análise final.
Os dados extraídos dos estudos incluídos contemplaram informações sobre definição diagnóstica, achados de imagem à ultrassonografia com Doppler colorido, critérios para diagnóstico diferencial com outras causas de hemorragia pós-parto secundária e desfechos relacionados às diferentes estratégias terapêuticas, incluindo conduta expectante, embolização das artérias uterinas e tratamento cirúrgico. A síntese dos resultados foi realizada de forma narrativa e organizada por eixos temáticos, permitindo uma discussão estruturada das evidências disponíveis.
Aspectos éticos
Por se tratar de um estudo de revisão da literatura, baseado exclusivamente em dados secundários de domínio público, sem envolvimento direto de seres humanos ou utilização de informações identificáveis, não foi necessária a submissão a Comitê de Ética em Pesquisa, em conformidade com as normas éticas vigentes.
DESENVOLVIMENTO
Fisiopatologia e Fatores de Risco
A malformação arteriovenosa uterina (MAVU) consiste em uma anomalia vascular caracterizada pela presença de comunicações diretas entre o sistema arterial uterino e o sistema venoso miometrial, sem a interposição do leito capilar. Essa configuração resulta em um sistema vascular de alto débito e baixa resistência, no qual o fluxo sanguíneo arterial é desviado diretamente para o sistema venoso, promovendo aumento da pressão venosa local e predisposição à ruptura vascular e à hemorragia uterina de grande magnitude.
Do ponto de vista fisiopatológico, essa alteração hemodinâmica cria um ambiente instável no miométrio, no qual pequenos traumas ou alterações no tônus uterino podem desencadear episódios súbitos de sangramento. O fluxo turbulento e de alta velocidade compromete os mecanismos normais de hemostasia, tornando o sangramento frequentemente refratário às medidas clínicas convencionais utilizadas no manejo da hemorragia pós-parto.
As MAVUs são tradicionalmente classificadas em congênitas e adquiridas, sendo estas últimas as mais frequentemente observadas na prática obstétrica. As formas congênitas resultam de falhas no desenvolvimento embrionário do sistema vascular e costumam apresentar múltiplas comunicações arteriovenosas difusas, podendo infiltrar tecidos adjacentes e manifestar-se ainda em fases precoces da vida reprodutiva. Em contraste, as MAVUs adquiridas surgem como consequência de trauma miometrial prévio, sendo geralmente localizadas e associadas a eventos obstétricos ou procedimentos ginecológicos.
Entre os principais fatores de risco descritos na literatura destacam-se procedimentos invasivos uterinos, como curetagens, aspirações uterinas, miomectomias, histeroscopias cirúrgicas e, de forma crescente, a cesariana. O aumento global das taxas de cesariana tem sido apontado como um fator determinante para a maior incidência de MAVUs adquiridas no período puerperal. Nessas situações, acredita-se que falhas no processo de cicatrização vascular ou na involução fisiológica dos vasos do leito placentário possam resultar na formação de fístulas arteriovenosas traumáticas ou pseudoaneurismas uterinos.
Além dos fatores mecânicos, mecanismos relacionados à angiogênese aberrante e à resposta inflamatória local também têm sido implicados na gênese dessas lesões. A persistência de estímulos angiogênicos no puerpério pode favorecer a manutenção de comunicações vasculares anômalas, especialmente em áreas previamente lesionadas do miométrio.
A identificação desses fatores de risco é de extrema relevância clínica, pois permite elevar o grau de suspeição diagnóstica em pacientes que apresentam hemorragia pós-parto secundária associada a histórico recente de trauma uterino. O reconhecimento precoce da possibilidade de MAVU nesse contexto é fundamental para direcionar adequadamente a investigação diagnóstica e evitar intervenções iatrogênicas potencialmente fatais.
Diagnóstico: O Papel Central da Ultrassonografia com Doppler Colorido
O diagnóstico da malformação arteriovenosa uterina no contexto da hemorragia pós-parto secundária representa um desafio clínico significativo, sobretudo devido à sobreposição de manifestações com causas mais frequentes de sangramento puerperal. Nesse cenário, a ultrassonografia transvaginal associada ao Doppler colorido consolida-se como o método de escolha para a avaliação inicial, por ser amplamente disponível, não invasiva e altamente sensível para a detecção de lesões vasculares uterinas de alto fluxo.
Na avaliação em modo bidimensional (escala de cinza), a MAVU pode se manifestar como áreas hipoecoicas ou anecoicas no miométrio, frequentemente descritas como estruturas tubulares, serpiginosas ou císticas. Esses achados, quando analisados isoladamente, podem ser confundidos com lagos venosos, restos ovulares ou até mesmo imagens cavitárias fisiológicas do puerpério, o que reforça a limitação do modo B na definição diagnóstica.
A aplicação do Doppler colorido é fundamental para a correta caracterização da lesão. Nessa modalidade, observa-se fluxo turbulento multidirecional, com padrão em mosaico de cores, classicamente descrito como sinal do “Yin-Yang”. Esse achado reflete a comunicação direta entre artérias e veias uterinas, sem a interposição do leito capilar, sendo altamente sugestivo de malformações arteriovenosas ou pseudoaneurismas uterinos.
A análise espectral do Doppler fornece informações hemodinâmicas quantitativas que auxiliam não apenas no diagnóstico, mas também na estratificação de risco. As MAVUs tipicamente apresentam velocidades sistólicas elevadas, frequentemente superiores a 60–80 cm/s, associadas a índices de resistência reduzidos (geralmente < 0,4). Esses parâmetros refletem o shunt arteriovenoso de alto débito e diferenciam de forma confiável as lesões vasculares de outras etiologias de hemorragia pós-parto secundária.
Métodos de imagem complementares, como a ressonância magnética, podem ser utilizados em casos selecionados para melhor delimitação anatômica da lesão, especialmente quando há dúvida diagnóstica ou planejamento terapêutico. A angiografia por subtração digital, embora invasiva, permanece como o padrão-ouro para a confirmação diagnóstica, além de permitir a realização simultânea de tratamento endovascular por meio da embolização seletiva das artérias uterinas.
A incorporação sistemática da ultrassonografia com Doppler colorido na avaliação de pacientes com hemorragia pós-parto secundária, particularmente naquelas com antecedente de trauma uterino recente, é amplamente defendida pela literatura como estratégia essencial para reduzir erros diagnósticos, evitar intervenções iatrogênicas e direcionar precocemente o manejo mais seguro e eficaz.
Diagnóstico Diferencial da Hemorragia Pós-Parto Secundária
A hemorragia pós-parto secundária engloba um amplo espectro de etiologias, sendo fundamental a diferenciação adequada entre essas condições para a escolha da conduta terapêutica mais segura. A falha no reconhecimento das causas vasculares uterinas, particularmente da malformação arteriovenosa uterina (MAVU), pode resultar em intervenções iatrogênicas com consequências potencialmente fatais. Nesse contexto, a integração entre dados clínicos, laboratoriais e achados de imagem é essencial para o diagnóstico diferencial preciso.
A retenção de restos ovulares representa a causa mais frequente de hemorragia pós-parto secundária. Clinicamente, costuma manifestar-se por sangramento persistente ou intermitente, frequentemente associado à subinvolução uterina. À ultrassonografia em modo B, observa-se geralmente uma massa ecogênica intracavitária, com espessamento endometrial. Ao Doppler colorido, a vascularização costuma ser ausente ou discreta, limitada à periferia da lesão, diferindo do padrão vascular intenso e miometrial observado nas MAVUs.
A subinvolução do leito placentário constitui outra etiologia comum, caracterizada por falha na regressão fisiológica dos vasos uterinos no local de implantação placentária. O quadro clínico inclui sangramento uterino tardio de intensidade variável, e os achados ultrassonográficos podem ser sutis. Embora possa haver algum grau de vascularização ao Doppler, o fluxo geralmente apresenta padrão arterial de maior resistência, sem as características de alto débito e turbulência observadas nas malformações arteriovenosas.
A doença trofoblástica gestacional, embora menos frequente no puerpério imediato, deve sempre ser considerada no diagnóstico diferencial, especialmente em casos de sangramento persistente. Nessa condição, os níveis de beta-hCG encontram-se persistentemente elevados ou em ascensão, diferentemente do declínio fisiológico esperado após o parto. À ultrassonografia, observa-se massa intrauterina heterogênea, frequentemente descrita como aspecto de “tempestade de neve”, com vascularização intensa ao Doppler, porém de distribuição difusa, o que auxilia na distinção em relação às MAVUs, que apresentam lesões mais focais e miometriais.
Os pseudoaneurismas uterinos, frequentemente considerados dentro do espectro das lesões vasculares adquiridas, compartilham muitas características com as MAVUs, incluindo o padrão de fluxo turbulento e o sinal do “Yin-Yang” ao Doppler colorido. A diferenciação entre essas entidades é, muitas vezes, mais conceitual do que prática, uma vez que ambas exigem abordagem semelhante e contraindicam a instrumentação uterina.
A dosagem sérica de beta-hCG desempenha papel auxiliar importante no diagnóstico diferencial, especialmente na exclusão de doença trofoblástica gestacional. Níveis negativos ou em declínio fisiológico no puerpério favorecem o diagnóstico de etiologias vasculares ou de restos ovulares não ativos, enquanto valores persistentemente elevados direcionam a investigação para patologia trofoblástica.
Em síntese, o diagnóstico diferencial da hemorragia pós-parto secundária exige avaliação sistemática e criteriosa. A ultrassonografia transvaginal com Doppler colorido, associada à análise clínica e laboratorial, constitui ferramenta indispensável para diferenciar as MAVUs de outras causas mais comuns, evitando intervenções inadequadas e direcionando o manejo terapêutico mais seguro.
Tabela 1: Diagnóstico Diferencial da Hemorragia Pós-Parto Secundária: MAVU, Restos Ovulares e Doença Trofoblástica.
| Característica | MAVU / Pseudoaneurisma | Retenção de Restos Ovulares | Doença Trofoblástica (Mola) |
|---|---|---|---|
| História Clínica | Trauma uterino prévio (cesariana, curetagem, miomectomia). Sangramento súbito e volumoso. | Sangramento persistente ou intermitente; subinvolução uterina. É a causa mais frequente. | Sangramento persistente. |
| Ultrassonografia (Modo B) | Áreas hipoecoicas/anecoicas miometriais (tubulares ou serpiginosas). | Massa ecogênica intracavitária; espessamento endometrial. | Massa intrauterina heterogênea ("tempestade de neve"). |
| Doppler Colorido | Fluxo turbulento multidirecional ("Yin-Yang"); Mosaico de cores. | Vascularização ausente ou discreta (geralmente periférica). | Vascularização intensa, porém difusa. |
| Doppler Espectral | Alta velocidade sistólica (>60-80 cm/s); Baixo índice de resistência (IR < 0,4). | Padrão arterial de maior resistência (se houver fluxo). | Baixa resistência, similar à MAVU, mas em distribuição difusa. |
| Beta-hCG | Negativo ou em declínio fisiológico. | Baixo/Declínio (exceto se tecido muito ativo). | Persistentemente elevado ou em ascensão. |
| Conduta Principal | Curetagem CONTRAINDICADA. Embolização ou Cirurgia. | Curetagem uterina ou esvaziamento. | Esvaziamento especializado / Quimioterapia. |
Manejo Terapêutico da Malformação Arteriovenosa Uterina
O manejo da malformação arteriovenosa uterina (MAVU) no contexto da hemorragia pós-parto secundária deve ser individualizado, considerando-se principalmente a estabilidade hemodinâmica da paciente, a gravidade do sangramento, os parâmetros hemodinâmicos observados ao Doppler, o desejo reprodutivo e a disponibilidade de recursos especializados. A conduta adequada depende do reconhecimento precoce da lesão e da estratificação correta do risco hemorrágico.
Conduta expectante e manejo conservador
Em pacientes hemodinamicamente estáveis, assintomáticas ou com sangramento de baixa intensidade, especialmente quando as lesões apresentam fluxo de baixa velocidade ao Doppler espectral, a conduta expectante pode ser considerada. Estudos demonstram que algumas MAVUs adquiridas podem regredir espontaneamente durante o processo de involução uterina puerperal, sobretudo na ausência de fatores de risco adicionais.
O manejo conservador pode incluir observação clínica, acompanhamento seriado com ultrassonografia e Doppler colorido, e, em casos selecionados, o uso adjuvante de uterotônicos. No entanto, essa abordagem requer vigilância rigorosa, uma vez que a evolução clínica pode ser imprevisível, com risco de sangramento súbito e volumoso.
Embolização das artérias uterinas
A embolização seletiva das artérias uterinas (EAU) consolidou-se como o tratamento de primeira linha para pacientes hemodinamicamente estáveis que apresentam MAVU sintomática e desejam preservar a fertilidade. O procedimento consiste na oclusão seletiva dos vasos anômalos por meio de técnicas endovasculares, utilizando diferentes agentes embolizantes, como partículas, coils ou adesivos líquidos, conforme a anatomia vascular e a experiência da equipe.
A literatura relata taxas de sucesso clínico superiores a 90%, com controle eficaz do sangramento e baixa taxa de recorrência. Além disso, a EAU está associada à preservação da função ovariana e à possibilidade de futuras gestações, embora o acompanhamento obstétrico subsequente deva ser criterioso. A angiografia realizada durante o procedimento permite a confirmação diagnóstica e o tratamento simultâneo, tornando a EAU uma estratégia terapêutica eficiente e minimamente invasiva.
Tratamento cirúrgico
O tratamento cirúrgico, particularmente a histerectomia, permanece reservado para cenários de emergência, nos quais há instabilidade hemodinâmica, sangramento maciço refratário às medidas iniciais ou indisponibilidade imediata de radiologia intervencionista. Nessas situações, o controle rápido e definitivo da fonte de sangramento é prioritário para a preservação da vida materna.
Embora represente a perda definitiva da função reprodutiva, a histerectomia continua sendo uma intervenção salvadora em contextos críticos. A decisão pela abordagem cirúrgica deve ser tomada de forma ágil, considerando o risco iminente de deterioração hemodinâmica e a possibilidade de evolução para coagulopatia, acidose metabólica e hipotermia.
Estratégia terapêutica integrada
A literatura contemporânea enfatiza que o manejo da MAVU deve seguir uma abordagem estratificada e multidisciplinar, integrando obstetras, radiologistas intervencionistas, anestesiologistas e equipes de terapia intensiva quando necessário. A escolha terapêutica deve ser guiada pela avaliação clínica global da paciente, e não apenas por achados isolados de imagem.
Em síntese, a condução adequada da MAVU exige equilíbrio entre a preservação da função reprodutiva e a garantia da segurança materna. A identificação precoce da lesão, aliada à tomada de decisão rápida e baseada em evidências, é fundamental para a redução da morbimortalidade associada a essa condição rara, porém potencialmente letal.
DISCUSSÃO
A malformação arteriovenosa uterina (MAVU) configura-se como uma causa rara, porém de elevada gravidade, no espectro etiológico da hemorragia pós-parto secundária. Embora sua incidência seja baixa, o impacto clínico é significativo, sobretudo em razão do risco de diagnóstico tardio e da possibilidade de intervenções iatrogênicas potencialmente fatais. A literatura revisada demonstra que a MAVU permanece subdiagnosticada, frequentemente reconhecida apenas após episódios recorrentes ou volumosos de sangramento.
Um dos principais desafios no manejo reside na semelhança clínica com causas mais prevalentes, como a retenção de restos ovulares e a subinvolução do leito placentário. Essa sobreposição sintomática contribui para a indicação empírica de curetagem uterina, conduta que, embora apropriada para outras etiologias, é formalmente contraindicada na presença de lesões vasculares de alto fluxo. A literatura relata consistentemente casos de hemorragia catastrófica após instrumentação uterina inadvertida em pacientes com MAVU.
Nesse contexto, a ultrassonografia transvaginal com Doppler colorido é a ferramenta central na propedêutica. Além da identificação qualitativa do padrão turbulento, a análise espectral quantitativa — especificamente a Velocidade de Pico Sistólico (PSV) — emergiu como um parâmetro objetivo fundamental para a decisão terapêutica. Estudos sugerem cut-offs práticos para estratificação de risco: lesões com PSV < 50 cm/s tendem a ter maior probabilidade de regressão espontânea, favorecendo uma conduta expectante em pacientes estáveis. Por outro lado, valores de PSV > 83 cm/s estão associados a maior risco de sangramento contínuo e menor taxa de resolução espontânea, indicando fortemente a necessidade de intervenção, como a embolização. Essa diferenciação objetiva é vital para evitar tratamentos invasivos desnecessários em casos de baixo risco, ao mesmo tempo que garante intervenção precoce nos casos graves.
A avaliação hemodinâmica da paciente também requer atenção especial. Estados de compensação simpática em mulheres jovens podem mascarar a gravidade da perda volêmica inicial. Portanto, a interpretação isolada da pressão arterial pode ser enganosa, sendo imprescindível a avaliação global da perfusão tecidual.
No âmbito terapêutico, a embolização seletiva das artérias uterinas (EAU) consolidou-se como o tratamento de escolha para pacientes estáveis. A técnica oferece altas taxas de sucesso clínico e preservação do útero. No entanto, o aconselhamento sobre a fertilidade futura deve ser balanceado. Embora a função reprodutiva seja mantida, evidências recentes alertam para um risco aumentado de complicações em gestações subsequentes, como placentação anômala (acretismo), restrição de crescimento intrauterino e recorrência de hemorragia pós-parto, decorrentes das alterações na vascularização miometrial pós-procedimento.
Em cenários de instabilidade hemodinâmica ou indisponibilidade de radiologia intervencionista, a histerectomia mantém seu papel fundamental como intervenção salvadora. A decisão cirúrgica deve ser ágil para prevenir a deterioração para coagulopatia e choque irreversível.Em suma, a MAVU deve integrar o diagnóstico diferencial de toda hemorragia pós-parto secundária, particularmente após traumas uterinos. A combinação de suspeição clínica, uso criterioso dos parâmetros Doppler (especialmente os cortes de velocidade sistólica) e uma abordagem terapêutica escalonada é determinante para a redução da morbimortalidade materna
CONCLUSÃO
A malformação arteriovenosa uterina constitui um diagnóstico diferencial crítico na hemorragia pós-parto secundária, exigindo elevado grau de suspeição clínica, especialmente em puérperas com antecedente de trauma miometrial ou cesariana prévia. Apesar de sua baixa prevalência, o impacto clínico da MAVU é significativo, uma vez que o atraso diagnóstico ou a adoção de condutas inadequadas pode culminar em hemorragia maciça e risco iminente à vida materna.
A ultrassonografia transvaginal associada ao Doppler colorido consolida-se como o principal método diagnóstico inicial, permitindo a identificação de padrões hemodinâmicos característicos e a diferenciação segura entre MAVU e outras causas mais frequentes de hemorragia pós-parto secundária. A utilização da análise espectral quantitativa amplia a acurácia diagnóstica e auxilia na estratificação do risco, orientando a escolha da estratégia terapêutica mais apropriada.
O manejo da MAVU deve ser individualizado e escalonado, variando desde a conduta expectante em casos selecionados até a embolização seletiva das artérias uterinas, que permanece como o tratamento de escolha para pacientes hemodinamicamente estáveis e com desejo de preservação da fertilidade. Em situações de instabilidade hemodinâmica ou indisponibilidade de tratamento endovascular, a histerectomia mantém seu papel insubstituível como intervenção salvadora de vida.
Portanto, a redução da morbimortalidade materna associada à MAVU depende diretamente do reconhecimento precoce da entidade, da incorporação sistemática do Doppler colorido na avaliação da hemorragia pós-parto secundária e da atuação de equipes multidisciplinares capacitadas para a tomada de decisão rápida e baseada em evidências. A ampliação do conhecimento sobre essa condição rara é fundamental para aprimorar a segurança no manejo das emergências obstétricas.
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