LINGUAGEM, IDENTIDADE E RESISTÊNCIA: O LETRAMENTO RACIAL NO CURRÍCULO ESCOLAR

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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.17429829


Josefa Edna Amâncio1
Magno de Souza Holanda2


RESUMO
Este artigo analisa criticamente as relações entre currículo, políticas públicas educacionais e práticas pedagógicas voltadas à promoção da educação das relações étnico-raciais no Brasil. De abordagem qualitativa, bibliográfica e documental, o estudo adota como referenciais a Lei nº 10.639/2003, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais (DCNERER) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Compreende-se o currículo como um espaço de disputas simbólicas e políticas, atravessado pela hegemonia de referenciais eurocêntricos e pela invisibilidade dos saberes e identidades negras e indígenas. Fundamentado em Bardin (2016), o estudo evidencia avanços legais e formativos, mas revela contradições entre as normativas e a prática escolar, nas quais ainda predominam concepções curriculares conservadoras e a reprodução de estereótipos raciais. Os resultados indicam a necessidade de fortalecer a formação docente para o enfrentamento do racismo institucional e a construção de práticas pedagógicas emancipadoras. Conclui-se que a consolidação de um currículo antirracista requer compromisso ético, político e coletivo dos sujeitos da educação, aliado à revisão dos Projetos Político-Pedagógicos (PPP) e dos Projetos Pedagógicos de Curso (PPC) em uma perspectiva plural, democrática e inclusiva.
Palavras-chave: Currículo. Relações Étnico-Raciais. Educação Antirracista. Políticas Educacionais.

ABSTRACT
This article critically analyzes the relationships among curriculum, public educational policies, and pedagogical practices aimed at promoting education on ethnic-racial relations in Brazil. Using a qualitative, bibliographic, and documentary approach, the study is based on Law No. 10.639/2003, the National Curriculum Guidelines for the Education of Ethnic-Racial Relations (DCNERER), and the National Common Curricular Base (BNCC). The curriculum is understood as a space of symbolic and political disputes, marked by the hegemony of Eurocentric references and the invisibility of Black and Indigenous knowledge and identities. Based on Bardin’s (2016) thematic content analysis, the study highlights legal and formative progress but also reveals contradictions between normative frameworks and everyday school practices, where conservative curricular conceptions and the reproduction of racial stereotypes still persist. The findings emphasize the need to strengthen teacher education for addressing institutional racism and developing emancipatory pedagogical practices. It concludes that consolidating an antiracist curriculum requires an ethical, political, and collective commitment from all educational actors, as well as a revision of the Political-Pedagogical Projects (PPP) and Course Pedagogical Projects (PPC) from a plural, democratic, and inclusive perspective.
Keywords: Curriculum. Ethnic-Racial Relations. Antiracist Education. Educational Policies.

1. INTRODUÇÃO

O cenário educacional brasileiro ainda é atravessado por estruturas de poder que perpetuam lógicas coloniais, racistas e eurocêntricas, refletidas nos currículos e nas práticas pedagógicas. Mesmo após a promulgação da Lei nº 10.639/2003, que tornou obrigatória a inserção da História e Cultura Afro-Brasileira na educação básica, sua efetivação enfrenta resistências institucionais, epistemológicas e pedagógicas. Esse descompasso entre a legislação e a prática escolar revela que a colonialidade do saber persiste como obstáculo à consolidação de uma educação verdadeiramente plural e antirracista.

A problemática que orienta esta investigação parte do seguinte questionamento: como o letramento racial pode ser integrado ao currículo escolar, em diálogo com práticas pedagógicas insurgentes e narrativas negras, de modo a contribuir para a desconstrução das lógicas racistas e a construção de uma educação crítica e emancipatória? Essa indagação desdobra-se em reflexões sobre os processos históricos que sustentam as desigualdades raciais, o papel da linguagem e da identidade na reprodução das exclusões e o potencial das práticas educativas antirracistas para transformar o espaço escolar em território de resistência e justiça cognitiva.

O objetivo geral deste estudo é analisar e discutir criticamente como o letramento racial, aliado às práticas pedagógicas insurgentes e à valorização das narrativas negras, pode ser integrado ao currículo escolar para promover justiça social e a construção de uma educação emancipatória. De forma mais específica, busca-se: (1) investigar os processos históricos e sociais que influenciam a construção da identidade étnico-racial no contexto educacional brasileiro; (2) problematizar o papel da linguagem e dos processos identitários na manutenção ou superação do racismo; (3) discutir o letramento racial como ferramenta político-pedagógica de enfrentamento às opressões; (4) analisar o currículo como campo de disputa simbólica; e (5) identificar políticas públicas e experiências pedagógicas que contribuem para a efetivação de práticas antirracistas.

A justificativa desta pesquisa ancora-se em dimensões sociais, científicas e pedagógicas. Socialmente, responde às demandas históricas dos movimentos negros por uma educação equitativa e libertadora, capaz de reconhecer e valorizar as identidades afro-brasileiras e indígenas. No campo científico, contribui para o fortalecimento dos estudos críticos sobre currículo, letramento racial e epistemologias do Sul, ampliando o debate sobre práticas decoloniais e de resistência. Pedagogicamente, propõe-se a refletir e a propor caminhos para a reconstrução de currículos que expressem a diversidade cultural brasileira e promovam uma formação comprometida com a equidade racial e a justiça social.

Assim, este artigo reafirma que o letramento racial, ao articular-se com o currículo e as práticas pedagógicas, constitui uma via potente para a descolonização dos saberes e a construção de uma escola plural, democrática e socialmente transformadora.

2. METODOLOGIA

A construção metodológica deste estudo fundamenta-se na compreensão de que todo processo de produção do conhecimento é atravessado por dimensões éticas, políticas e históricas. Assim, adota-se uma abordagem qualitativa, de caráter bibliográfico, analítico e crítico, que se alinha às perspectivas decoloniais e antirracistas, entendendo a pesquisa como prática insurgente e politicamente situada. Essa escolha metodológica não é neutra, mas configura-se como uma tomada de posição epistemológica frente às estruturas eurocentradas que historicamente sustentaram o epistemicídio e o silenciamento de saberes de populações negras e indígenas.

A opção pela abordagem qualitativa justifica-se pela natureza complexa e simbólica do objeto de estudo — o letramento racial e suas relações com o currículo escolar —, cuja análise requer compreensão das tramas discursivas, ideológicas e culturais que estruturam o campo educacional. Segundo Lüdke e André (2013), a pesquisa qualitativa busca interpretar fenômenos a partir do contexto e do significado atribuído pelos sujeitos, o que se articula com a perspectiva de Santos (2019) e Smith (2021), que defendem metodologias contra-hegemônicas ancoradas nas epistemologias do Sul. Dessa forma, o fazer científico aqui adotado recusa a universalidade epistemológica ocidental e valoriza os saberes produzidos nos territórios das resistências, assumindo-se como prática de denúncia da colonialidade e de construção de justiça cognitiva.

A coleta de dados consistiu em um levantamento bibliográfico e documental criterioso, envolvendo a seleção de obras teóricas, artigos científicos e produções culturais que tratam das relações étnico-raciais, do currículo e do letramento racial. O processo foi conduzido em bases acadêmicas reconhecidas — SciELO, CAPES Periódicos, Google Acadêmico e repositórios institucionais —, com descritores como “letramento racial”, “educação antirracista”, “práticas pedagógicas decoloniais”, “currículo e relações étnico-raciais” e “epistemologias negras”. Também foram incluídas narrativas e produções oriundas dos movimentos sociais negros, dos povos indígenas e de coletivos culturais que atuam como sujeitos epistêmicos na luta contra a colonialidade.

A análise dos materiais seguiu a técnica de análise de conteúdo temática proposta por Bardin (2016), buscando identificar categorias de sentido que expressassem as formas de representação, resistência e reconfiguração curricular presentes nos discursos analisados. Os dados foram interpretados à luz do referencial teórico crítico, com base em autores como Gomes (2023), Freire (2002), Santos (2019), Walsh (2020) e Nogueira (2022), de modo a articular as dimensões discursivas, políticas e pedagógicas do letramento racial.

No campo ético, a pesquisa adota uma ética decolonial, comprometida com a valorização dos saberes de povos negros, afro-diaspóricos e indígenas, rejeitando práticas epistêmicas extrativistas e priorizando o diálogo, o reconhecimento e o fortalecimento das lutas antirracistas. Assim, o percurso metodológico deste artigo configura-se como uma prática de reparação histórica e justiça cognitiva, reafirmando o papel da pesquisa como instrumento de transformação social e emancipação humana.

3. RESULTADOS

Os resultados desta pesquisa revelam que, apesar dos avanços legais e políticos conquistados nas últimas décadas, o currículo escolar brasileiro ainda se estrutura sob a lógica da hegemonia epistemológica eurocêntrica, que persiste em legitimar determinados saberes em detrimento de outros, perpetuando o silenciamento e a marginalização das epistemologias negras, indígenas e populares. O estudo evidencia que a implementação das políticas de educação das relações étnico-raciais, previstas na Lei nº 10.639/2003 e nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais (DCNERER), ainda se encontra em processo de consolidação, enfrentando obstáculos estruturais, epistemológicos e pedagógicos no contexto escolar.

A análise bibliográfica e documental permitiu identificar quatro eixos principais de resultados: (1) o letramento racial no discurso pedagógico; (2) a colonialidade do saber e a estrutura curricular excludente; (3) o protagonismo docente e discente nas práticas pedagógicas antirracistas; e (4) os desafios institucionais e as macroestruturas que limitam a efetivação das políticas de educação antirracista.

3.1 Letramento Racial no Discurso Pedagógico

O primeiro eixo evidencia que o conceito de letramento racial tem ganhado espaço no campo educacional, principalmente em documentos oficiais e programas de formação docente. No entanto, observa-se que, em muitos casos, ele é apropriado de forma superficial, restrito à retórica da diversidade e à inclusão simbólica de conteúdos afro-brasileiros e indígenas. As análises indicam que as práticas pedagógicas frequentemente reduzem o letramento racial à inserção de datas comemorativas, sem promover um debate crítico sobre o racismo estrutural, a desigualdade de oportunidades e o lugar da negritude na produção do conhecimento escolar.

Essa constatação corrobora a análise de Gomes (2023), que argumenta que o letramento racial precisa ser compreendido como um processo político-pedagógico contínuo, voltado à construção de uma consciência crítica sobre as hierarquias raciais que atravessam a escola e a sociedade. Assim, a ausência de uma formação sistemática dos educadores sobre o tema limita a transformação das práticas docentes, contribuindo para a manutenção de um currículo que ainda reproduz silenciamentos históricos.

3.2. Colonialidade do Saber e Estrutura Curricular Excludente

O segundo eixo aponta que o currículo brasileiro permanece impregnado pela colonialidade do saber, conceito discutido por Quijano (2005) e retomado por Santos (2019) e Walsh (2020), que descrevem o domínio epistêmico europeu sobre outras formas de conhecimento. Essa lógica manifesta-se na seleção dos conteúdos escolares, na ênfase em autores e referências eurocêntricas e na marginalização das produções intelectuais negras, indígenas e latino-americanas. Os resultados da pesquisa indicam que, mesmo após a implementação da Lei nº 10.639/2003, a maioria das escolas ainda adota currículos que tratam as culturas afro-brasileira e africana como complementares, e não como constitutivas da identidade nacional e da formação cidadã.

Observou-se também que a presença das epistemologias negras e indígenas no currículo é, em geral, fragmentada e descontextualizada. Quando abordadas, são frequentemente apresentadas a partir de uma ótica folclorizante, que reforça estereótipos e esvazia o potencial político dessas narrativas. Essa prática demonstra que o desafio central não está apenas na inserção de novos conteúdos, mas na reconfiguração epistemológica do currículo, de modo a reconhecer o pluralismo de saberes e romper com a hierarquia cognitiva imposta pela modernidade ocidental.

3.3. Protagonismo Docente e Discente nas Práticas Antirracistas

O terceiro eixo dos resultados aponta para experiências significativas de resistência e reconfiguração curricular, protagonizadas por docentes e discentes que se apropriam do espaço escolar como território de enfrentamento e transformação. As práticas observadas envolvem projetos interdisciplinares sobre cultura afro-brasileira, oficinas de literatura negra, debates sobre identidade racial e produção de textos que valorizam as vozes e histórias de sujeitos negros e indígenas. Essas iniciativas emergem, em grande parte, do engajamento de professores comprometidos com a justiça racial e da mobilização de estudantes que reivindicam visibilidade e representatividade.

A literatura analisada indica que tais experiências configuram formas de prática pedagógica insurgente, conforme propõem Freire (2002) e Hooks (2020), para quem a educação libertadora exige um posicionamento ético e político diante das injustiças estruturais. Nesses espaços, o letramento racial assume uma função emancipatória, promovendo a leitura crítica do mundo e o reconhecimento das identidades racializadas como parte legítima da história e da produção do saber escolar.

3.4. Desafios Estruturais e Macroinstitucionais

O quarto eixo revela que a consolidação de uma educação antirracista ainda enfrenta entraves significativos nas macroestruturas institucionais da educação brasileira. As principais dificuldades observadas incluem a falta de formação continuada dos professores, a escassez de materiais didáticos decoloniais, a resistência de parte das gestões escolares e a ausência de políticas públicas integradas que articulem currículo, formação docente e avaliação educacional a partir de uma perspectiva antirracista.

Esses resultados dialogam com as análises de Silva e Batista (2022), que destacam a distância entre os marcos legais e as práticas escolares cotidianas. Mesmo em contextos onde há reconhecimento da importância da diversidade racial, o racismo institucional se manifesta nas microrelações escolares, nas expectativas reduzidas em relação aos estudantes negros e na falta de espaço para discussões sobre desigualdade racial no planejamento pedagógico.

Além disso, as análises apontam que o projeto político-pedagógico (PPP) das escolas ainda carece de uma abordagem efetivamente decolonial. Em muitos casos, as ações voltadas para a educação das relações étnico-raciais são tratadas como projetos temporários, e não como eixos estruturantes do fazer pedagógico. Essa descontinuidade reflete a necessidade de uma mudança paradigmática, em que o letramento racial seja reconhecido como base para a construção de um currículo democrático e plural.

Em síntese, os resultados demonstram que o currículo escolar brasileiro opera, simultaneamente, como instrumento de reprodução e de resistência. De um lado, mantém práticas e discursos que reforçam o eurocentrismo e o racismo institucional; de outro, abre brechas para a emergência de experiências pedagógicas insurgentes, nas quais o letramento racial se consolida como uma ferramenta de crítica e transformação. Assim, a pesquisa confirma que a efetivação de uma educação antirracista e decolonial depende não apenas de políticas públicas, mas também de uma mudança ética, epistemológica e institucional profunda, capaz de reconfigurar as bases do ensino e da formação docente no país.

4. DISCUSSÃO

A análise crítica dos resultados revela que o currículo escolar é um território de disputa simbólica e ideológica, no qual se produzem e se reproduzem as estruturas do racismo epistêmico que atravessam a sociedade brasileira. O que se entende, a partir de Santos (2019) e Walsh (2020), é que o currículo é também um campo de colonialidade, isto é, um espaço que historicamente se construiu sobre hierarquias de saber, legitimando o conhecimento ocidental e silenciando as epistemologias negras, indígenas e periféricas. Essa constatação permite compreender que a luta por uma educação antirracista ultrapassa o plano normativo e demanda um reposicionamento epistemológico e político dentro das instituições escolares.

Os achados indicam que a presença do letramento racial no discurso pedagógico representa um avanço simbólico importante, mas ainda insuficiente. Conforme destaca Gomes (2023), o letramento racial deve ser compreendido como processo contínuo de conscientização e ação política, e não apenas como inclusão de conteúdos sobre diversidade. Ele implica um exercício pedagógico de escuta, reconhecimento e legitimação das vozes negras como produtoras de saber. Nessa perspectiva, o professor torna-se mediador crítico entre o currículo e as experiências raciais vividas pelos estudantes, deslocando o ensino da neutralidade para o engajamento ético e social.

A educação, nesse sentido, assume a dimensão de ato político e de resistência, tal como proposto por Freire (2002), que concebe o ensino como prática de liberdade. O letramento racial, ao estimular a leitura crítica do mundo e das estruturas de poder que sustentam o racismo, traduz o pensamento freiriano em uma pedagogia que desvela e confronta as opressões. Assim, os projetos pedagógicos insurgentes observados — como rodas de memória, literatura afro-brasileira e produções artísticas comunitárias — configuram-se como estratégias decoloniais de reconstrução curricular, nas quais o conhecimento nasce do diálogo entre saberes acadêmicos e experiências comunitárias.

De modo convergente, Hooks (2020) propõe a sala de aula engajada, um espaço de afeto, escuta e compromisso político com a transformação. Essa perspectiva é confirmada nos resultados da pesquisa, que mostram como o afeto, quando articulado à criticidade, torna-se elemento central do enfrentamento às desigualdades raciais. A docência antirracista não se limita à transmissão de conteúdos, mas se compromete com a criação de um ambiente de pertencimento, onde cada sujeito reconhece sua história e se vê representado nos processos de aprendizagem.

No campo das epistemologias, Santos (2019) e Walsh (2020) defendem que a superação da monocultura do saber exige a construção de uma ecologia de saberes, baseada na coexistência e no diálogo entre diferentes racionalidades. Isso implica reconhecer que os conhecimentos produzidos em territórios negros, indígenas e periféricos não são complementares, mas constitutivos da totalidade da experiência humana. A análise do material evidencia que práticas decoloniais no currículo escolar — como o uso de narrativas orais, mitologias africanas e cosmologias quilombolas — operam como formas de insurgência cognitiva, confrontando o epistemicídio e produzindo novas formas de significar o mundo.

Entretanto, como observa Nogueira (2021), o currículo não é apenas um documento, mas um campo de disputa permanente, no qual forças sociais e políticas competem pela legitimidade da representação. Isso significa que as transformações curriculares dependem de embates institucionais e de escolhas éticas conscientes. Lopes (2023) complementam essa visão ao defender que a superação do modelo transmissivo de ensino exige que os docentes se reconheçam como aprendizes dos territórios, construindo com as comunidades escolares uma ética relacional mais horizontal e solidária. Essa postura desafia a autoridade pedagógica tradicional e inaugura novas formas de mediação educativa baseadas na reciprocidade e no reconhecimento mútuo.

Por outro lado, Prado (2022) alerta para a fragilidade das políticas públicas quando dependem exclusivamente da boa vontade individual dos docentes, sem respaldo institucional. Essa crítica se reflete nos resultados desta pesquisa, que apontam para a necessidade de políticas estruturantes de formação docente e acompanhamento curricular. A ausência de diretrizes concretas e de investimentos materiais compromete a continuidade das práticas insurgentes e reforça a distância entre o discurso político e a prática pedagógica.

Em síntese, as discussões evidenciam que o território escolar, quando compreendido como espaço político, pode se converter em território de insurgência e reexistência. As experiências relatadas demonstram que, embora o racismo ainda se reproduza nas estruturas escolares, há uma crescente mobilização de educadores comprometidos em romper com essa lógica. Esses educadores ressignificam o currículo e as práticas pedagógicas como instrumentos de transformação social, pautados pela justiça cognitiva e pela valorização das identidades plurais.

Por fim, é possível afirmar que a construção de uma educação antirracista e decolonial exige coragem institucional, políticas públicas coerentes, e, sobretudo, uma pedagogia fundamentada no letramento racial — não como adendo, mas como eixo estruturante da formação humana. Somente a partir desse compromisso ético e coletivo será possível reconfigurar o currículo escolar em um espaço de reconhecimento, pertencimento e emancipação.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa permitiu compreender que a problemática proposta — relacionada à inserção do letramento racial no currículo escolar como instrumento de transformação social e combate ao racismo estrutural — foi plenamente abordada ao longo do estudo. As análises demonstraram que, embora o currículo brasileiro ainda mantenha traços de colonialidade e eurocentrismo, existem movimentos emergentes de resistência e reconfiguração pedagógica capazes de romper com essa lógica. O letramento racial, ao articular linguagem, identidade e educação, mostrou-se uma ferramenta efetiva para a construção de práticas escolares que promovem a justiça cognitiva e a valorização das identidades negras e indígenas.

Os objetivos estabelecidos — analisar criticamente o papel do currículo na promoção da educação das relações étnico-raciais, discutir o potencial do letramento racial como instrumento de enfrentamento às desigualdades e identificar os limites e possibilidades das práticas pedagógicas antirracistas — foram atingidos com êxito. As evidências apresentadas confirmam que o letramento racial, quando compreendido como prática política e pedagógica, contribui significativamente para a reconstrução do currículo e para a formação de sujeitos críticos e socialmente engajados. Observou-se também que as práticas escolares que incorporam perspectivas antirracistas promovem o fortalecimento do pertencimento e da identidade, transformando a escola em um espaço de reconhecimento e emancipação.

No entanto, o estudo também revelou que a efetivação do currículo antirracista ainda enfrenta desafios. Persistem lacunas relacionadas à formação docente, à ausência de políticas públicas de acompanhamento e à resistência de parte das instituições em adotar uma abordagem decolonial de forma sistemática. Tais limitações indicam que a consolidação do letramento racial no espaço escolar requer compromisso coletivo, continuidade de políticas formativas e vontade política para transformar as estruturas que sustentam o racismo institucional.

Dessa forma, é possível afirmar que a problemática inicial foi parcialmente solucionada: o letramento racial se confirma como caminho viável e necessário, mas sua efetivação plena ainda depende de avanços institucionais, pedagógicos e epistemológicos. A pesquisa contribui, assim, para o fortalecimento do debate sobre currículo e educação antirracista, reafirmando a necessidade de compreender o ambiente escolar como território de resistência e reexistência.

Como recomendações para pesquisas futuras, sugere-se a realização de estudos de campo que analisem práticas de letramento racial em contextos escolares específicos, de modo a identificar experiências exitosas e compreender os processos formativos que as sustentam. Também se propõe a ampliação das investigações sobre a formação inicial e continuada de professores, especialmente no que se refere à inserção das temáticas étnico-raciais nos cursos de licenciatura. Outra frente relevante seria o acompanhamento longitudinal de projetos pedagógicos que implementem políticas antirracistas, permitindo avaliar seus impactos sobre o desempenho escolar, o clima institucional e as relações inter-raciais no ambiente educativo.

Em síntese, o estudo reafirma que a transformação do currículo e da prática pedagógica é uma tarefa histórica e coletiva. O letramento racial se estabelece como um caminho de emancipação intelectual e social, que convoca todos os sujeitos da educação a assumirem o compromisso ético de construir uma escola verdadeiramente democrática, plural e comprometida com a equidade racial.

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1 Graduada em História pela Universidade Estadual da Paríba (UEPB), graduada em Licenciatura em Educação Física pela Faculdade IBRA, Graduada em Licenciatura em Língua Portuguesa pela Faculdade IBRA, Especialista em Fundamentos da Educação pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), Mestre Ciências da Educação pela Universidad de La Integración de Las Américas – UNIDA, em Doutoranda em Ciências da Educação pela Universidad de La Integración de Las Américas. E-mail: [email protected].

2 Orientador. Mestre pela Universidad de Las Integración de las Américas – UNIDA – PY. E-mail: [email protected]

Instituição de Ensino Superior: UNIDA (Universidade de La Integración de Las Américas Paraguay)