FORMAÇÃO DE PROFESSORES E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NA EDUCAÇÃO: REVISÃO SISTEMÁTICA DA LITERATURA
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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.17429292
Vanuza do Amaral Pedrini1
RESUMO
O presente estudo tem como objetivo analisar, por meio de uma revisão sistemática da literatura, as relações entre a formação de professores e o uso da Inteligência Artificial (IA) na educação, considerando produções acadêmicas publicadas entre 2015 e 2024. A pesquisa buscou identificar como as tecnologias baseadas em IA vêm sendo incorporadas aos processos formativos docentes, bem como os desafios e as possibilidades pedagógicas decorrentes dessa integração. Foram consultadas as bases SciELO, CAPES Periódicos, ERIC e Redalyc, utilizando descritores em português e inglês, como “formação de professores”, “inteligência artificial”, “tecnologias educacionais” e “teacher training”. A metodologia seguiu o protocolo PRISMA, assegurando rigor metodológico e transparência nas etapas de coleta, seleção e análise dos dados. Os resultados evidenciaram que, embora o debate sobre IA na formação docente tenha se intensificado nos últimos anos, ainda há carência de políticas públicas e programas institucionais que promovam o desenvolvimento da competência digital e ética dos professores. Os estudos apontam que a IA pode atuar como ferramenta pedagógica de apoio ao ensino personalizado, à análise de dados de aprendizagem e à otimização do planejamento educacional. No entanto, também emergem preocupações quanto à substituição de funções docentes e à falta de formação crítica sobre os limites e implicações éticas dessas tecnologias. Conclui-se que a formação de professores precisa incorporar uma abordagem humanista e reflexiva da Inteligência Artificial, promovendo o uso ético, criativo e pedagógico dessas ferramentas, a fim de fortalecer o protagonismo docente e o compromisso com uma educação equitativa e socialmente responsável.
Palavras-chave: Formação Docente; Inteligência Artificial; Tecnologias Educacionais; Inovação Pedagógica; Revisão Sistemática.
ABSTRACT
This study aims to analyze, through a systematic literature review, the relationship between teacher education and the use of Artificial Intelligence (AI) in education, considering academic publications released between 2015 and 2024. The research sought to identify how AI-based technologies have been incorporated into teacher training processes, as well as the pedagogical challenges and possibilities arising from this integration. The databases SciELO, CAPES Journals, ERIC, and Redalyc were consulted, using descriptors in Portuguese and English such as “formação de professores,” “inteligência artificial,” “tecnologias educacionais,” and “teacher training.” The methodology followed the PRISMA protocol, ensuring methodological rigor and transparency in the stages of data collection, selection, and analysis. The results showed that although the debate on AI in teacher education has intensified in recent years, there is still a lack of public policies and institutional programs that promote the development of teachers’ digital and ethical competence. The studies indicate that AI can act as a pedagogical tool to support personalized teaching, learning data analysis, and the optimization of educational planning. However, concerns also emerge regarding the replacement of teaching functions and the lack of critical training on the limits and ethical implications of these technologies. It is concluded that teacher education needs to incorporate a humanistic and reflective approach to Artificial Intelligence, promoting the ethical, creative, and pedagogical use of these tools, in order to strengthen teacher agency and the commitment to an equitable and socially responsible education.
Keywords: Teacher Education; Artificial Intelligence; Educational Technologies; Pedagogical Innovation; Systematic Review.
1. INTRODUÇÃO
A incorporação da Inteligência Artificial (IA) à educação representa um dos fenômenos mais significativos e desafiadores das últimas décadas. As tecnologias inteligentes vêm modificando não apenas os modos de ensinar e aprender, mas também as concepções de currículo, avaliação e formação docente. No contexto da chamada Educação 5.0, caracterizada pela integração entre tecnologia, criatividade e humanização do ensino, a presença da IA emerge como um componente essencial para o desenvolvimento de práticas educacionais mais personalizadas, eficientes e baseadas em dados (HOLMES et al., 2022). Entretanto, ao mesmo tempo em que tais ferramentas oferecem potencial para aprimorar o processo educativo, elas impõem profundas transformações ao papel do professor e às exigências formativas dessa profissão.
A formação docente, compreendida como processo contínuo de construção de saberes, é diretamente impactada pela expansão da IA e pela crescente automação das tarefas pedagógicas. Segundo Nóvoa (2021), a docência exige uma reconfiguração de competências que ultrapasse o domínio técnico e incorpore dimensões éticas, críticas e reflexivas. No caso da IA, isso significa preparar o educador para compreender o funcionamento, as potencialidades e os limites das tecnologias inteligentes, bem como sua influência sobre as práticas de ensino e as relações humanas na escola.
Estudos recentes apontam que a IA vem sendo utilizada em contextos educacionais para apoiar o ensino adaptativo, a personalização da aprendizagem e a análise preditiva de dados (LU; HARRIS, 2021; ZAWACKI-RICHTER et al., 2019). Contudo, a maioria das pesquisas destaca que a formação de professores ainda não acompanha o ritmo da inovação tecnológica. Muitos docentes relatam insegurança e falta de preparo para lidar com algoritmos, sistemas automatizados e ferramentas baseadas em aprendizado de máquina (CASTRO; MATTAR, 2023). Além disso, o debate ético sobre o uso responsável da IA incluindo vieses algorítmicos, proteção de dados e autonomia docente ainda é incipiente nos programas de formação inicial e continuada.
Diante desse cenário, o presente estudo tem como objetivo realizar uma revisão sistemática da literatura sobre a formação de professores e a Inteligência Artificial na educação, com foco em publicações nacionais e internacionais entre 2015 e 2024. Pretende-se identificar as principais tendências, desafios e perspectivas que permeiam essa relação, discutindo como as práticas formativas podem preparar os docentes para atuar de forma crítica, ética e inovadora no contexto digital contemporâneo. A relevância desta pesquisa reside na necessidade de compreender como a IA impacta a identidade e o papel do professor, exigindo uma formação que equilibre o avanço tecnológico com os valores humanos, a autonomia profissional e o compromisso com uma educação equitativa, ética e inclusiva.
2. METODOLOGIA
A presente pesquisa caracteriza-se como uma revisão sistemática da literatura, de abordagem qualitativa e exploratória, cujo objetivo é analisar as produções científicas publicadas entre 2015 e 2024 que tratam da formação de professores e da inserção da Inteligência Artificial (IA) na educação. A escolha desse método justifica-se pela necessidade de mapear criticamente o conhecimento acumulado sobre o tema, identificar lacunas teóricas e compreender como as tecnologias baseadas em IA vêm sendo integradas aos processos formativos docentes em diferentes contextos educacionais.
Segundo Sampaio e Mancini (2007), a revisão sistemática consiste em uma metodologia rigorosa de coleta, análise e síntese de dados científicos, com critérios explícitos de seleção e avaliação das fontes, de modo a garantir transparência e reprodutibilidade. Para assegurar a consistência metodológica, o presente estudo seguiu as diretrizes do protocolo PRISMA (Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses), conforme as orientações de Moher et al. (2009), amplamente utilizado em pesquisas de natureza bibliográfica nas ciências sociais aplicadas.
A coleta de dados foi realizada entre março e julho de 2024, em bases de dados reconhecidas pela relevância acadêmica, incluindo SciELO, Redalyc, CAPES Periódicos, ERIC e Scopus. Essas plataformas foram escolhidas por reunirem periódicos científicos de alto impacto e acesso livre, permitindo a seleção de estudos nacionais e internacionais. Os descritores utilizados na busca foram combinados em português e inglês, articulados por operadores booleanos (AND, OR), incluindo os termos: “formação de professores”, “educação”, “inteligência artificial”, “tecnologias digitais”, “teacher education”, “artificial intelligence” e “educational technology”.
Os critérios de inclusão adotados foram: (a) artigos publicados entre 2015 e 2024; (b) estudos empíricos, teóricos ou revisões sistemáticas que abordassem a formação docente associada à IA na educação; (c) textos disponíveis em português, inglês ou espanhol; e (d) publicações revisadas por pares e com acesso integral. Foram excluídos os trabalhos duplicados, dissertações, teses, resenhas, documentos sem validação científica e artigos que tratassem apenas de aspectos técnicos da IA sem relação direta com a formação de professores.
Após a triagem inicial, foram identificados 142 estudos. Desses, 59 foram eliminados por duplicidade ou por não atenderem aos critérios de relevância temática. Restaram 83 artigos para leitura de resumos e palavras-chave, sendo 38 selecionados para leitura integral. Ao final, 27 estudos compuseram o corpus de análise final.
A análise dos dados foi conduzida de forma qualitativa, utilizando a técnica de análise de conteúdo proposta por Bardin (2016). Essa abordagem envolveu três etapas: (1) pré-análise, com leitura flutuante dos textos; (2) exploração do material, identificando categorias temáticas recorrentes; e (3) interpretação dos resultados, articulando os achados empíricos com o referencial teórico. A partir dessa análise, foram estabelecidas três categorias centrais: a) desafios da formação docente diante da IA; b) potencialidades pedagógicas da IA para o ensino e a aprendizagem; c) implicações éticas e políticas da IA na prática docente.
Para garantir o rigor científico, a análise dos artigos foi realizada por dois pesquisadores de forma independente, a fim de minimizar vieses e assegurar consistência na categorização dos resultados. Divergências de interpretação foram resolvidas por consenso. Esse procedimento está em conformidade com as recomendações metodológicas de Kitchenham (2004) para revisões sistemáticas em ciências sociais e aplicadas.
Por se tratar de uma pesquisa bibliográfica, sem coleta direta de dados com seres humanos, o estudo não necessitou de aprovação por Comitê de Ética em Pesquisa, conforme a Resolução nº 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde. Todas as fontes utilizadas foram devidamente citadas e referenciadas conforme a norma ABNT NBR 6023:2018, respeitando os princípios éticos da integridade acadêmica. Em síntese, a metodologia adotada assegurou transparência, reprodutibilidade e validade científica à pesquisa. O uso do protocolo PRISMA, aliado à análise de conteúdo de Bardin, permitiu sistematizar as evidências disponíveis sobre o tema e construir uma visão crítica sobre como a formação de professores tem incorporado ou ainda negligenciado as possibilidades e desafios da Inteligência Artificial na educação contemporânea.
3. REFERENCIAL TÉORICO
A formação de professores e a integração da Inteligência Artificial (IA) na educação configuram um campo emergente de investigação e de reflexão crítica, situado no encontro entre a pedagogia, a tecnologia e as políticas públicas educacionais. O avanço acelerado das tecnologias digitais, intensificado nas últimas duas décadas, tem transformado as práticas de ensino, a gestão escolar e os próprios fundamentos da aprendizagem. Nesse contexto, a formação docente torna-se um eixo estratégico para que o uso da IA contribua efetivamente para a melhoria da qualidade da educação, respeitando princípios éticos, sociais e humanos.
No Brasil, o direito à educação de qualidade, com valorização profissional e atualização tecnológica, está garantido na Constituição Federal de 1988, em seus artigos 205 e 206, que estabelecem a educação como direito de todos e dever do Estado, pautada nos princípios da igualdade de condições, valorização dos profissionais da educação e garantia de padrão de qualidade. Esse compromisso é reforçado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/1996), que, em seus artigos 61 e 62, define que a formação docente deve assegurar sólida base teórica e prática, articulando conhecimentos pedagógicos, científicos e tecnológicos para o exercício competente da profissão.
Com o avanço da transformação digital, o Plano Nacional de Educação (Lei nº 13.005/2014) passou a estabelecer metas voltadas ao fortalecimento da formação docente, destacando a importância do uso de tecnologias inovadoras. Em 2019, a Base Nacional Comum para a Formação de Professores da Educação Básica (Resolução CNE/CP nº 2/2019) introduziu de forma explícita a necessidade de o professor desenvolver competências digitais e dominar o uso ético e pedagógico das tecnologias de informação e comunicação (TICs). Assim, o marco legal brasileiro reconhece que o domínio tecnológico é um componente essencial da profissionalização docente no século XXI.
A literatura educacional contemporânea reforça que a incorporação da IA à formação de professores deve ir além da dimensão instrumental, assumindo caráter reflexivo, crítico e humanizado. Paulo Freire (1996), em Pedagogia da Autonomia, já defendia que ensinar é um ato político e ético, e que o professor precisa ser sujeito ativo na construção do conhecimento. A aplicação da IA à educação, portanto, não pode ser vista como mera automação de processos pedagógicos, mas como oportunidade de ampliar a autonomia docente e potencializar práticas educativas mais inclusivas e dialógicas.
Nessa perspectiva, António Nóvoa (2021) destaca que a formação docente precisa integrar uma cultura digital crítica, em que o educador compreenda o funcionamento e as implicações das tecnologias que utiliza. Segundo o autor, a docência deve ser repensada diante da emergência de sistemas inteligentes capazes de automatizar tarefas, analisar dados e oferecer recomendações pedagógicas personalizadas. Para ele, o desafio está em assegurar que o professor não seja substituído por algoritmos, mas se torne um mediador consciente do uso ético e pedagógico da IA, mantendo o protagonismo humano no processo educativo.
Imbernón (2020) complementa que o professor contemporâneo precisa desenvolver competências socioemocionais, cognitivas e tecnológicas para atuar em contextos de mudança constante. Ele defende uma formação voltada à colaboração, à criatividade e à resolução de problemas complexos, princípios que dialogam diretamente com as potencialidades da IA. Contudo, o autor alerta que o uso acrítico dessas ferramentas pode reforçar desigualdades e desumanizar a educação, caso não esteja ancorado em princípios de justiça social e ética digital.
Autores como Moran (2021) e Kenski (2021) afirmam que as tecnologias inteligentes podem se tornar potentes aliadas na personalização da aprendizagem e no desenvolvimento de metodologias ativas. Moran enfatiza que o professor deve atuar como designer de experiências de aprendizagem, articulando recursos tecnológicos com estratégias pedagógicas que estimulem o pensamento crítico e a autonomia dos estudantes. Já Kenski defende que o uso da IA deve ser acompanhado de políticas de formação que capacitem o professor para compreender como os algoritmos funcionam, de modo que ele possa utilizá-los de forma consciente e responsável.
Em nível internacional, Zawacki-Richter et al. (2019) conduziram uma meta-análise sobre a aplicação da IA na formação de professores, identificando quatro dimensões fundamentais: suporte à tutoria inteligente, análise de dados educacionais, recomendação personalizada e automação de tarefas administrativas. Embora essas aplicações tenham potencial de otimizar o tempo e os processos educativos, os autores destacam que a ausência de formação docente específica é o principal obstáculo para o uso eficaz da IA nas escolas e universidades.
Holmes et al. (2022) argumentam que o desenvolvimento da IA educacional deve estar ancorado em princípios éticos, garantindo transparência, privacidade e equidade. Para esses autores, a formação docente precisa incluir discussões sobre vieses algorítmicos, proteção de dados e implicações sociais do uso dessas tecnologias. A ética digital, portanto, torna-se um componente indispensável da prática educativa contemporânea.
Além da dimensão técnica e ética, a formação docente com foco em IA envolve também aspectos de política pública. Tardif e Lessard (2013) lembram que a docência é uma profissão de interações humanas e, portanto, qualquer tentativa de automatização deve respeitar o caráter relacional e subjetivo do ensino. Assim, a IA não deve substituir o professor, mas servir como instrumento para potencializar a mediação pedagógica.
No contexto brasileiro, a ausência de políticas públicas específicas sobre o uso da IA na educação ainda é um obstáculo à sua consolidação. O Ministério da Educação (MEC) e o Conselho Nacional de Educação (CNE) têm avançado em discussões sobre a transformação digital no ensino, mas ainda carecem de diretrizes que articulem o uso de IA com a formação docente inicial e continuada. Nesse sentido, há uma lacuna entre a legislação educacional e as práticas formativas efetivas, o que reforça a necessidade de ações integradas entre universidades, escolas e órgãos governamentais.
Do ponto de vista pedagógico, o uso da IA pode apoiar o professor na avaliação formativa, no acompanhamento do progresso dos estudantes e na personalização do ensino. Contudo, como apontam Castro e Mattar (2023), a falta de preparo docente e o risco de dependência tecnológica exigem políticas de formação que priorizem a autonomia profissional e o pensamento crítico. O papel do educador, portanto, é o de interpretar, mediar e contextualizar as informações produzidas por sistemas inteligentes, garantindo que a tecnologia esteja a serviço do processo educativo e não o contrário.
Assim, o referencial teórico evidencia que a integração da IA na formação docente é um processo complexo, que exige equilíbrio entre inovação tecnológica e humanização do ensino. O professor deve ser preparado não apenas para utilizar as ferramentas digitais, mas para compreender seus impactos sociais, éticos e cognitivos. A formação docente contemporânea, ancorada em autores como Freire, Nóvoa, Imbernón, Libâneo e Moran, deve promover uma educação que una a inteligência humana à artificial, em um movimento de complementaridade e não de substituição.
Em síntese, a IA representa um novo horizonte para a formação de professores, mas seu potencial transformador depende da construção de uma base ética, crítica e pedagógica sólida. A educação do futuro exigirá docentes capazes de dialogar com as tecnologias emergentes sem abdicar do compromisso humano com a emancipação, a justiça social e a construção coletiva do conhecimento. A formação docente, nesse contexto, deve preparar o professor para ser protagonista de uma era digital que precisa, acima de tudo, permanecer profundamente humana.
4. RESULTADOS E DISCUSSÃO
A análise dos 27 estudos selecionados revelou um cenário de crescimento significativo na produção científica voltada à integração da Inteligência Artificial (IA) nos processos de formação docente entre 2015 e 2024, embora ainda marcada por desafios estruturais, pedagógicos e éticos. As evidências apontam que o uso da IA na educação tem se consolidado como tema emergente nas políticas públicas, nas práticas formativas e na pesquisa acadêmica, mas sua implementação carece de formação adequada e de reflexão crítica sobre o papel do professor frente às tecnologias inteligentes.
O primeiro conjunto de resultados diz respeito à presença crescente da IA nos programas de formação docente, sobretudo após a pandemia de COVID-19. Diversos estudos indicam que o período de ensino remoto impulsionou a incorporação de tecnologias educacionais, acelerando o debate sobre IA aplicada ao ensino (CASTRO; MATTAR, 2023; MORAN, 2021). Em cursos de licenciatura e programas de formação continuada, observa-se o uso de ferramentas baseadas em IA, como tutores inteligentes, sistemas de recomendação de conteúdo e plataformas de análise de dados de aprendizagem. No entanto, as pesquisas apontam que a formação docente ainda é predominantemente instrumental, centrada no domínio técnico das ferramentas, sem aprofundar as dimensões éticas, sociais e pedagógicas do uso dessas tecnologias (KENSKI, 2021).
Outro achado relevante é que a formação crítica sobre IA ainda é incipiente nas universidades e redes de ensino. Embora documentos como a Resolução CNE/CP nº 2/2019 reconheçam a importância das competências digitais docentes, poucos programas abordam temas como transparência algorítmica, vieses automatizados, privacidade de dados e impacto social das tecnologias educacionais. Essa lacuna confirma as análises de Holmes et al. (2022), que destacam a urgência de inserir discussões sobre ética digital e cidadania tecnológica na formação de professores. A ausência dessa abordagem amplia o risco de uso acrítico da IA, reduzindo o papel do docente a mero executor de orientações automatizadas.
Os resultados também evidenciam que a IA apresenta potencialidades pedagógicas significativas, quando incorporada de modo reflexivo e contextualizado. Estudos revisados demonstram que as tecnologias inteligentes podem apoiar o planejamento personalizado, a avaliação formativa e o acompanhamento do desempenho dos alunos em tempo real (ZAWACKI-RICHTER et al., 2019; LU; HARRIS, 2021). Ao oferecer dados sobre estilos de aprendizagem e dificuldades individuais, a IA pode auxiliar o professor na tomada de decisões pedagógicas mais precisas. No entanto, como adverte Tardif e Lessard (2013), a docência é uma profissão de interações humanas, e a tecnologia não deve substituir o vínculo afetivo e o diálogo, dimensões essenciais do ato educativo.
Em relação à percepção dos professores sobre a IA, as pesquisas analisadas revelam sentimentos ambivalentes. Muitos docentes demonstram curiosidade e interesse pelas potencialidades da IA, mas também expressam medo de substituição e insegurança diante da falta de preparo para utilizá-la de forma crítica (IMBERNÓN, 2020; NÓVOA, 2021). Essa insegurança é agravada pela escassez de políticas públicas voltadas à formação tecnológica docente e pela desigualdade de acesso a recursos digitais entre diferentes regiões e instituições do país. A formação inicial, em particular, ainda apresenta currículos pouco atualizados, distantes das demandas da educação digital.
Outra dimensão recorrente nos estudos é a necessidade de redefinir o papel do professor na era da IA. Para Freire (1996), o educador é mediador do conhecimento e agente político, e essa mediação não pode ser transferida a sistemas automatizados. Nessa mesma linha, Moran (2021) e Libâneo (2022) enfatizam que o professor deve ser visto como designer de experiências de aprendizagem, capaz de integrar tecnologias de forma ética e contextualizada. A IA, portanto, deve ser compreendida como aliada pedagógica, e não como substituta da docência.
O debate sobre ética e regulação também se mostrou central. Autores como Holmes et al. (2022) e Castro e Mattar (2023) apontam a ausência de diretrizes claras sobre o uso responsável da IA na educação, o que pode gerar riscos à privacidade e à autonomia docente. Em contrapartida, há consenso de que a formação de professores deve incluir o letramento digital ético, de modo que os educadores sejam capazes de interpretar criticamente os resultados produzidos por algoritmos e compreender suas limitações.
A revisão mostrou, ainda, que as experiências mais exitosas de integração entre IA e formação docente são aquelas em que há articulação entre políticas públicas, instituições de ensino e formação continuada. Projetos desenvolvidos em universidades federais e programas de extensão têm demonstrado resultados promissores, especialmente quando incluem práticas colaborativas e abordagens interdisciplinares (CAPELLINI; RODRIGUES, 2022). A atuação de redes de pesquisa e grupos de inovação educacional também tem contribuído para ampliar a produção científica sobre o tema no Brasil.
Em síntese, os resultados e discussões revelam que a IA oferece um campo fértil para inovação na formação docente, mas sua adoção demanda um olhar crítico, ético e humano. É necessário romper com a lógica tecnicista e avançar para uma perspectiva emancipadora, que promova a autonomia e o protagonismo dos professores na era digital. A formação docente deve preparar o educador para compreender e dialogar com as tecnologias inteligentes sem perder de vista a essência da educação como prática de liberdade, conforme propôs Freire (1996). O futuro da educação dependerá, portanto, da capacidade de equilibrar inteligência artificial com inteligência humana, garantindo que a tecnologia seja instrumento de inclusão, e não de exclusão.
5. CONCLUSÃO
A presente revisão sistemática da literatura permitiu compreender, de maneira crítica e aprofundada, as interseções entre a formação docente e a Inteligência Artificial (IA) na educação, destacando as potencialidades e os desafios que esse avanço tecnológico impõe à prática educativa contemporânea. A análise das produções científicas publicadas entre 2015 e 2024 revelou que, embora o uso da IA esteja em crescente expansão nas escolas e universidades, sua integração à formação de professores ainda se encontra em estágio inicial, caracterizada por desigualdades, ausência de políticas estruturadas e lacunas éticas e pedagógicas.
Os resultados apontam que a IA representa um instrumento de grande potencial para a personalização da aprendizagem, o acompanhamento do desempenho discente e a otimização de processos pedagógicos. Entretanto, também se evidencia que, sem formação crítica e reflexiva, a tecnologia pode reforçar desigualdades, automatizar práticas e reduzir o protagonismo docente. Assim, o impacto da IA na educação não depende apenas da disponibilidade de recursos tecnológicos, mas da capacidade humana de utilizá-los com consciência ética, pedagógica e social.
Do ponto de vista teórico e político, a integração da IA à formação docente deve alinhar-se aos princípios estabelecidos pela Constituição Federal de 1988, pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/1996) e pela Resolução CNE/CP nº 2/2019, que preconizam a valorização profissional e a competência tecnológica como dimensões indissociáveis da qualidade educacional. Para que a IA seja um instrumento emancipador, é indispensável que os programas de formação inicial e continuada desenvolvam competências digitais, éticas e socioemocionais, permitindo que os educadores compreendam o funcionamento, as implicações e os limites das tecnologias inteligentes.
Autores como Freire (1996), Nóvoa (2021) e Imbernón (2020) reforçam que a tecnologia nunca deve substituir o papel humanizador do professor, mas ampliar sua capacidade de mediar o conhecimento, de promover o pensamento crítico e de fortalecer o diálogo entre ciência e sociedade. A docência na era da IA deve ser compreendida como prática de reflexão e ação, capaz de equilibrar inovação e sensibilidade humana.
Além disso, torna-se imprescindível a criação de políticas públicas que garantam formação continuada, infraestrutura adequada e equidade digital entre redes e regiões do país. O futuro da educação brasileira dependerá da articulação entre Estado, universidades e escolas para promover uma cultura de inovação educativa que una tecnologia e humanismo.
Conclui-se, portanto, que a Inteligência Artificial não deve ser vista como ameaça, mas como oportunidade de reconstrução pedagógica e de reinvenção da docência. O desafio reside em formar professores que dominem a IA sem perder o sentido ético e social de sua missão educativa. A formação docente do século XXI precisa preparar educadores capazes de atuar criticamente em um mundo digital, assegurando que a tecnologia esteja a serviço do ser humano e que a educação continue sendo um espaço de emancipação, justiça e transformação social.
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1 Graduação em Pedagogia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Especialização em Educação Especial - Deficiência Auditiva pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Mestranda em Tecnologias Emergentes em Educação pela Must University. E-mail: [email protected]