EQUILÍBRIO ENTRE COMBATE AO CRIME ORGANIZADO E PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS: UMA ANÁLISE DAS DELAÇÕES PREMIADAS NO BRASIL

PDF: Clique Aqui


REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10990054


Lucas Rocha Andrade1


RESUMO
O presente artigo, explora o contexto jurídico brasileiro no combate às organizações criminosas, focando em acordos de delação premiada e na aplicação de tipos penais, com o objetivo de avaliar a eficácia dessas ferramentas à luz dos direitos fundamentais. Utiliza-se uma abordagem analítica que revisa legislações, decisões judiciais, como as do Supremo Tribunal Federal, e cooperações internacionais, particularmente com Portugal, para examinar as implicações legais e constitucionais dos métodos empregados. Os resultados indicam tensões entre a necessidade de combate efetivo ao crime e a proteção dos direitos humanos, destacando casos em que cláusulas de delação comprometem a presunção de inocência e contrariam normas internacionais. Concluímos que, enquanto essenciais, as estratégias de combate ao crime organizado no Brasil devem ser continuamente revisadas para assegurar o equilíbrio entre segurança pública e respeito aos direitos fundamentais, sugerindo a necessidade de reformulações para garantir conformidade legal e eficácia sustentável.
Palavras-chave: Direitos fundamentais; Delação premiada; Crime organizado

1 INTRODUÇÃO

A criminalidade urbana é uma característica persistente da sociedade brasileira atual, afetando toda a população com uma crescente insegurança. Esta microcriminalidade abrange delitos contra o patrimônio, violência de gênero e crimes contra a pessoa, aumentando a demanda por intervenções efetivas do Estado. Paralelamente, a macrocriminalidade tem expandido de maneira alarmante, comprometendo as estruturas estatais e minando as bases da democracia através de atividades como homicídios e controle territorial por facções criminosas. Segundo Adorno (2016), essa violência representa uma das principais preocupações da sociedade, influenciando tanto o sistema judicial quanto a formulação de políticas de segurança pública.

O agravamento da violência nas metrópoles brasileiras trouxe à tona a formação de organizações criminosas complexas, muitas originadas no ambiente prisional, com o propósito de cometer diversos crimes, incluindo tráfico de drogas e armas, assaltos e corrupção. As gangues prisionais são exemplos típicos dessas organizações. Zaluar (2003) critica o atraso no reconhecimento e combate a esses grupos criminosos, o que prejudicou as chances de conter a expansão do crime organizado. A realidade atual demonstra como o crime organizado é intrinsecamente ligado não só à criminalidade, mas também às esferas econômica e política, evidenciando a necessidade de reconhecer a natureza organizada da criminalidade moderna como parte essencial da história contemporânea.

De acordo com autores como Guilherme de Souza Nucci (2018) e Fernando Capez (2017), a criminalização da promoção, constituição, financiamento ou integração a organizações criminosas, prevista no art. 2º da Lei 12.850/2013, visa atingir não apenas indivíduos que atuam diretamente nas atividades criminosas, mas também aqueles que contribuem para a estruturação e sustentação dessas organizações. Diante desse cenário, torna-se fundamental analisar como a revisão brasileira tem interpretado e aplicado o tipo penal do art. 2º da Lei 12.850/2013, considerando a necessidade de garantir a efetividade do combate às organizações criminosas sem violar os princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito.

Considerando a importância da legislação brasileira na luta contra as organizações criminosas, este artigo pretende realizar uma análise aprofundada da aplicação do art. 2º da Lei 12.850/2013, com base em precedentes jurisprudenciais do Brasil. O objetivo é contribuir para o debate sobre a efetividade da lei no enfrentamento dessas estruturas delituosas, levando em consideração as especificidades do ordenamento jurídico nacional e a necessidade de garantir a segurança jurídica e a proteção dos direitos individuais.

Ao longo do texto, serão examinados os entendimentos dos tribunais brasileiros quanto aos requisitos para a configuração do crime de promoção, constituição, financiamento ou integração a organizações criminosas, bem como as nuances na interpretação dos conceitos apresentados no art. 2º da Lei 12.850/2013. A análise jurisprudencial contribuirá para uma compreensão mais aprofundada sobre a aplicação prática dessa importante ferramenta jurídica no combate às organizações criminosas no contexto brasileiro.

Neste artigo, objetiva-se analisar a eficácia dos tipos penais no combate às organizações criminosas no Brasil, levando em conta as especificidades do sistema jurídico brasileiro e a necessidade de um combate eficiente que respeite os princípios de legalidade, proporcionalidade e a salvaguarda dos direitos fundamentais. A investigação foca na forma como os acordos de delação premiada e as leis relativas à organização criminosa têm sido aplicados e interpretados, considerando as críticas e controvérsias, especialmente no que tange à presunção de inocência e às questões de legalidade e constitucionalidade.

2 CONTEXTO HISTÓRICO DAS ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS

Bastos Neto (2006) apresenta uma visão que se contrapõe radicalmente às ideias de Santos (2015) sobre a origem do crime organizado no Brasil. Ele argumenta que este fenômeno está intrinsecamente ligado às práticas históricas das elites brasileiras, que têm usado o clientelismo e o coronelismo como meios para manipular a coisa pública em benefício próprio desde a fundação do país.

Autores como Raimundo Faoro (2017), Sérgio Buarque de Holanda (2006) e Caio Prado Júnior (2012), embora não tratem diretamente do crime organizado, fornecem análises que elucidam como as práticas ilícitas e a fusão entre o público e o privado ajudaram a moldar a sociedade brasileira. Essas interpretações destacam o patrimonialismo, definido como uma relação corrupta entre o Estado e a sociedade, onde os detentores do poder tratam os bens públicos como se fossem propriedades privadas. Esse contexto favorece a colaboração entre os agentes públicos e o poder econômico, exemplificado na figura dos "coronéis" latifundiários (SCHWARCZ, 2019).

Essa perspectiva sugere que o patrimonialismo ainda é uma prática recorrente nos diversos níveis do governo brasileiro, potencialmente explicando os frequentes escândalos de corrupção e lavagem de dinheiro que são amplamente noticiados. A teoria proposta pode esclarecer o surgimento de formas endêmicas de crime organizado dentro do Estado, uma característica da criminalidade das elites, mas não necessariamente abrange outras formas de organizações criminosas mais difusas e menos institucionalizadas.

O "cangaço", um fenômeno histórico do Nordeste brasileiro, exemplifica um dos primeiros registros de uma organização criminosa com estrutura hierárquica e tarefas definidas entre seus membros. Virgulino Ferreira da Silva, mais conhecido como Lampião, liderou o grupo mais notório desta era, ganhando a alcunha de "Rei do Cangaço". Seu bando operava em diversos estados do Nordeste, desde a Bahia até o Ceará, envolvendo-se em atividades como roubos e homicídios. A motivação dos crimes praticados pelos cangaceiros, seja por razões pessoais ou como uma forma de banditismo social, ainda é objeto de debate. No entanto, a presença de uma estrutura organizacional clara e uma divisão de tarefas específicas são evidências incontestáveis de que se tratava de uma organização criminosa (Facciolli, 2018).

Além de Lampião, Lucas da Feira é outra figura significativa no contexto do cangaço. Nascido em 1807 em Feira de Santana, Bahia, Lucas foi inicialmente um escravo que fugiu em 1828 para unir-se a um grupo criminoso. Sua história é particularmente interessante por sua atuação ter começado durante o período da escravidão no Brasil, conferindo-lhe uma dimensão de resistência contra a opressão da elite dominante da época imperial (Lima, 1990). Lucas da Feira foi preso em 1848 e executado no ano seguinte, destacando-se como uma das primeiras figuras do cangaço, antecipando mesmo a era de Lampião.

Estes personagens e suas organizações fornecem um vislumbre sobre as raízes históricas das organizações criminosas no Brasil, com paralelos observáveis nas modernas facções criminosas, como o Primeiro Comando da Capital e o Comando Vermelho, que ainda hoje impõem medo através de táticas semelhantes de liderança intimidadora e violência extrema.

No final do século XIX, enquanto o Nordeste brasileiro enfrentava o fenômeno do cangaço, um grupo criminoso emergia na cidade de São Carlos, no Oeste de São Paulo, formado por imigrantes italianos originários da Calábria. Este grupo, conhecido como a quadrilha Mangano e liderado por Francisco Mangano, envolveu-se em atividades ilícitas como roubos, extorsões e latrocínios entre 1895 e 1898. A organização contava com 38 homens calabreses indiciados, incluindo membros da pequena burguesia italiana local, operando com uma estrutura mais próxima de uma rede de colaboração do que uma hierarquia rígida. Segundo Monsma, Truzzi e Conceição (2003), essa rede era composta por executores de crimes e uma logística de apoio envolvendo informantes, vendedores e receptadores, facilitando tanto a realização dos delitos quanto a disposição dos bens obtidos ilegalmente.

A pesquisa dos sociólogos também destaca a migração de italianos para as Américas, que não apenas resultou na disseminação de indivíduos com ligações prévias com atividades criminosas, mas também na expansão do crime organizado nos países receptores, especialmente nos Estados Unidos com a formação de organizações mafiosas. No Brasil, contudo, a situação foi diferente. A falta de quadrilhas etnicamente organizadas como as mafiosas italianas é atribuída a quatro fatores principais: uma maior possibilidade de mobilidade social para os italianos, a diversidade regional entre os imigrantes que dificultava a solidariedade, a complexa integração com a elite local, e a dificuldade em corromper autoridades já comprometidas com os coronéis do interior. Esses elementos contribuíram para um cenário onde o crime organizado entre os imigrantes italianos no Brasil não se configurou da mesma maneira que em outras nações com forte presença italiana.

Facciolli (2018) identifica a origem do "jogo do bicho", criado no final do Império no Brasil, como um marco na estruturação do crime organizado. Esse jogo de azar desenvolveu uma complexa organização com banqueiros, gerentes e apostadores, todos hierarquizados e responsáveis por diferentes funções e tarefas. Apesar de considerado uma contravenção penal pelo Decreto-Lei 3.688/1941, o jogo do bicho segue ativo e é parte de uma vasta rede criminosa que opera de maneira cartelizada. Os líderes desse esquema, conhecidos como banqueiros, frequentemente recorrem à violência para eliminar rivais e manter o controle sobre seus territórios.

Mingardi (1998) classifica o jogo do bicho como uma forma tradicional de organização criminosa, envolvida não apenas em atividades ilegais diretas, mas também em corrupção, como o financiamento de campanhas políticas, e possíveis conexões com o tráfico de drogas. Essa estrutura utiliza a violência e a exploração de prestígio para estabelecer monopólios e expandir seu alcance.

Essas análises ressaltam que a organização de grupos criminosos no Brasil não é um fenômeno recente, mas tem se tornado cada vez mais sofisticado e lesivo com o passar do tempo. Desde os primeiros tempos da colonização até a era moderna, o crime no Brasil tem se transformado, especialmente com a globalização, que trouxe mudanças profundas para as atividades criminosas, incluindo o tráfico de drogas. Este último se adaptou e evoluiu para se tornar uma operação econômica significativa, defendendo seus territórios violentamente e escondendo a origem ilícita dos lucros através de complexas redes de operações financeiras tanto nacionais quanto internacionais.

Em resposta a essa escalada, o Estado tem sido pressionado pela sociedade para agir, resultando em uma expansão do direito penal. Isso inclui a criação de novas tipificações criminais e o aumento das penas, uma tendência observada tanto no Brasil quanto em outras democracias contemporâneas. A continuidade e a evolução das práticas criminosas exigem uma resposta jurídica e policial igualmente evoluída e adaptativa.

2.1 Definição e características de organização criminosa

A conceituação de organização criminosa é um tópico debatido e complexo. Diferentes acadêmicos, incluindo sociólogos, cientistas políticos e juristas, têm oferecido várias definições, destacando características que julgam fundamentais para compreender esses grupos criminosos. Uma análise da literatura acadêmica revela que, desde a década de 1990, a criminalidade organizada no Brasil tem sido frequentemente explorada, mas muitas vezes como um tema secundário em estudos focados mais amplamente na violência e, em particular, no tráfico de drogas. Poucos estudos desse período se dedicam exclusivamente às organizações criminosas.

Ao investigar um fenômeno tão complexo como a criminalidade organizada, é crucial reconhecer as limitações das fontes disponíveis, sejam elas dados oficiais, reportagens da imprensa ou estudos acadêmicos anteriores. A natureza secreta e dissimulada da atividade criminosa organizada frequentemente impede o acesso a informações cruciais para entender sua estrutura e operações. Por isso, Camila Dias (2011) enfatiza a responsabilidade do cientista social em analisar os dados cuidadosamente, utilizando uma variedade de técnicas e recursos de pesquisa.

É essencial estabelecer um diálogo com o senso comum para chegar a uma definição mais precisa do que constitui o crime organizado. Mingardi (2007) alerta que nem todas as atividades rotuladas pela imprensa como crime organizado correspondem verdadeiramente a essa categoria. Ele observa que, em muitos casos, até o tráfico de drogas, frequentemente citado como exemplo de crime organizado, pode ser bastante desorganizado, especialmente no comércio varejista de drogas ilícitas. Isso indica que as concepções populares de crime organizado muitas vezes não são baseadas em critérios científicos, mas sim na percepção repetitiva e experiência cotidiana.

Mingardi (2007) critica a percepção popular errônea sobre o crime organizado, propondo que esse entendimento seja reavaliado com rigor científico. Boaventura Sousa Santos sugere que a ciência pós-moderna valoriza o senso comum como uma forma legítima de conhecimento, contrastando com a visão anterior que o desconsiderava completamente. Ele acredita que, embora o senso comum possa ser conservador e até justificar abusos, quando interpretado através de lentes científicas, pode originar uma nova racionalidade (Sousa Santos, 1988).

Essa abordagem é parte de uma "ecologia de saberes", onde o conhecimento é visto como uma rede interconectada e a diversidade epistemológica é valorizada (Sousa Santos, 2009). Este conceito reconhece que além do conhecimento científico, outras formas de saber são válidas e importantes para entender complexidades como as do crime organizado.

A rejeição de que o crime organizado seja um fenômeno significativo continua sendo um problema, tanto nas academias quanto no Estado. Isso foi evidenciado pela resistência a reconhecer a influência de grupos como o PCC em motins prisionais, apesar das evidências claras (Dias, 2011). Esta negação estatal e acadêmica pode ter diminuído a relevância do crime organizado como objeto de pesquisa no Brasil e contribuído para uma resistência oficial em reconhecer sua existência, possivelmente fortalecendo esses grupos criminosos ao invés de enfraquecê-los.

Adicionalmente, existe uma tendência de associar organizações criminosas a crimes específicos como roubo a bancos e tráfico de drogas, com base na ideia de que tais atividades exigem uma estrutura organizacional complexa. No entanto, essa suposição pode ser enganosa, já que nem todas as atividades que parecem ser parte do crime organizado necessitariamente são (Mingardi, 2007).

Essa suposição geral muitas vezes ignora casos em que indivíduos agem de maneira independente ou em conluios eventuais, sem a necessidade de uma estrutura organizada persistente. Assim, ao interpretar o crime organizado, é crucial não simplificar demais os fenômenos ou generalizar a partir de exemplos específicos sem uma análise aprofundada.

A ênfase exagerada da mídia em rotular diversas atividades criminosas como "crime organizado" pode distorcer a percepção pública e acadêmica, levando a uma compreensão menos precisa dessas atividades. Conforme Mingardi (2007) aponta, a mídia frequentemente utiliza o termo "crime organizado" de maneira ampla e imprecisa, o que pode obscurecer as verdadeiras características e a diversidade de operações dentro dessa categoria. Este uso indiscriminado do termo contribui para a confusão e o sensacionalismo, em vez de promover um entendimento claro e baseado em evidências.

É essencial, portanto, que os pesquisadores e as autoridades se engajem em um esforço contínuo para refinar sua compreensão do que constitui verdadeiramente o crime organizado. Isso envolve considerar a complexidade das relações sociais e econômicas que sustentam essas atividades criminosas, e como elas podem variar significativamente de uma região para outra e de um contexto para outro.

Em última análise, uma abordagem mais matizada e baseada em evidências é necessária para desenvolver estratégias eficazes de combate ao crime organizado. Isso não apenas proporcionará uma base mais sólida para a elaboração de políticas públicas e estratégias de segurança, mas também ajudará a sociedade a entender melhor e a responder de maneira mais eficaz aos desafios impostos por esses grupos criminosos. A compreensão e o reconhecimento da diversidade e da complexidade do crime organizado são passos fundamentais para desmantelar as redes criminosas e mitigar seus impactos na sociedade.

3 A LEI Nº 12.850/2013 EM FACE DE LEI Nº 12.694/2012

A Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013, representou uma tentativa do legislador brasileiro de reformular e precisar a definição legal de organização criminosa. O artigo 1º da lei, em especial o parágrafo primeiro, estabelece a seguinte definição:

Art. 1º Esta Lei dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal a ser aplicado nas operações que envolvam organizações criminosas.

§ 1º Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos ou que sejam de caráter transnacional (BRASIL, 2013)

Essa definição amplia a compreensão do que constitui uma organização criminosa, estabelecendo critérios específicos como o número mínimo de pessoas envolvidas, a estrutura organizada com divisão de tarefas e os objetivos das atividades criminosas. Além disso, a lei enfatiza que essas organizações podem buscar vantagens de várias naturezas, não apenas financeiras, e que os crimes praticados devem ser de maior gravidade, refletida nas penas máximas superiores a quatro anos, ou de natureza transnacional, abrangendo operações que ultrapassam as fronteiras nacionais.

Para uma comparação adequada, é relevante mencionar diretamente o texto do artigo 2º da Lei nº 12.694, de 2012.

Art. 2º Para os efeitos desta Lei, considera-se organização criminosa a associação, de 3 (três) ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de crimes cuja pena máxima seja igual ou superior a 4 (quatro) anos ou que sejam de caráter transnacional (BRASIL, 2012)

A primeira diferença entre as legislações mencionadas reside no número mínimo de participantes requerido para a configuração de uma organização criminosa. A lei mais recente exige a associação de "quatro ou mais pessoas", enquanto a legislação anterior considerava suficiente a participação de "três ou mais pessoas". Nucci (2017), argumenta que a definição do número de associados é uma questão de política criminal e pode ser considerada arbitrária, pois, embora não seja o mais comum, é possível que até mesmo duas pessoas se organizem, dividam tarefas e persigam um objetivo ilícito comum.

A segunda distinção significativa diz respeito à terminologia usada para descrever as atividades ilícitas. A nova lei utiliza a expressão “prática de infrações penais”, ampliando assim o escopo para incluir qualquer tipo de infração penal, enquanto a legislação anterior utilizava o termo “mediante a prática de crimes”, que implica uma referência específica a crimes e não contravenções.

De acordo com Nucci (2017), não há contravenções penais com pena máxima superior a quatro anos, o que na prática restringe a aplicação do termo “organização criminosa” aos delitos mais sérios. Ele exemplifica, porém, que organizações criminosas poderiam estar envolvidas com atividades como jogos de azar, que são contravenções, ou furtos simples, cuja pena máxima é de quatro anos, demonstrando que a realidade prática das organizações criminosas pode envolver uma variedade de atividades ilícitas.

As implicações dessas definições estendem-se ao âmbito da delação premiada, uma vez que a delação, conforme regulada pela legislação brasileira, serve como um mecanismo para obter informações sobre organizações criminosas que de outra forma poderiam permanecer inacessíveis. Nucci (2017) destaca que a natureza das infrações envolvidas - sejam elas crimes com penas máximas superiores a quatro anos ou contravenções - define a gravidade e o escopo das investigações possíveis sob os termos da delação premiada.

Além disso, a característica transnacional das atividades criminosas mencionada nas definições de ambas as leis expande o escopo de cooperação internacional e de execução da justiça além das fronteiras nacionais. Este aspecto é particularmente relevante em um contexto globalizado, onde as redes criminosas frequentemente operam em múltiplos países, complicando assim os esforços de investigação e persecução (Nucci, 2017).

A delação premiada, enquanto ferramenta, tem sido fundamental nas operações de alto perfil como a Operação Lava Jato, em que colaborações de insiders possibilitaram avanços significativos nas investigações de corrupção e lavagem de dinheiro (Brasil, 2013). A eficácia dessa estratégia legal depende crucialmente de um entendimento preciso e coerente das definições legais de crime organizado, como evidenciam os desdobramentos dessas operações.

Portanto, a integração das normativas legais com práticas eficazes de delação premiada não apenas fortalece o combate ao crime organizado, mas também assegura que os direitos fundamentais sejam preservados em meio às complexidades dessas investigações. Como sugerido por Nucci (2017), a precisão nas definições legais e a clareza nos objetivos da política criminal são imperativos para manter o equilíbrio entre a eficácia da justiça criminal e o respeito pelos direitos humanos e liberdades civis.

3.1 Análise A Cerca Das Delações

Muitas cláusulas firmadas em acordos de delação premiada foram não apenas ilegais, mas também claramente inconstitucionais e violadoras de direitos fundamentais e tratados internacionais. Diversas críticas têm sido levantadas por operadores do direito, incluindo ministros, advogados, juízes e acadêmicos, especialmente em relação aos acordos celebrados durante a notória Operação "Lava Jato". Nesta operação, a delação premiada emergiu como instrumento central para direcionar as investigações e a instauração de processos criminais, além de ser vista como um vetor crucial no combate à corrupção e à impunidade.

No entanto, as medidas tomadas contra a corrupção, os desvios de verbas públicas e os crimes de colarinho branco, profundamente enraizados no jogo político e no controle do aparato estatal, devem respeitar os limites e seguir as normas estabelecidas. Estas normas incluem as disposições do Código Penal, do Código de Processo Penal e, mais importante, da Constituição da República Federativa do Brasil, a legislação suprema do Estado Democrático de Direito.

O princípio da presunção de inocência, uma salvaguarda fundamental dos direitos humanos, tem suas raízes no artigo 9º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que foi posteriormente incorporado ao artigo XI da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, e está firmemente estabelecido no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, sendo considerado cláusula pétrea. Este princípio também é reforçado pelo artigo 283 do Código de Processo Penal brasileiro.

Este direito assegura que qualquer pessoa acusada de um crime deve ser considerada inocente até que uma sentença penal condenatória transite em julgado. Este entendimento foi reafirmado recentemente pelo Supremo Tribunal Federal (STF) durante o julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) 43, 44 e 54, onde, por uma decisão apertada de 6 votos a 5, o tribunal decidiu pela constitucionalidade do art. 283 do CPP, proibindo assim a execução provisória da pena.

No entanto, existem disposições nos acordos de delação premiada que parecem contrariar este princípio fundamental, ao estipular a execução da pena imediatamente após a homologação do acordo, antes mesmo da instauração de um processo criminal. Este foi o cenário apresentado na Petição 7.265 do Distrito Federal, onde se solicitava a homologação do acordo de delação premiada de Renato Barbosa Rodrigues Pereira. O processo de admissibilidade do acordo foi supervisionado pelo ministro Ricardo Lewandowski do STF.

Cláusula 5º (...) Parágrafo único. O COLABORADOR iniciará o cumprimento das penas, na forma acima estipulada, após a homologação judicial desse acordo.

É importante destacar que a homologação do acordo de delação premiada de Renato Barbosa Rodrigues Pereira foi negada devido à presença de diversas cláusulas ilegais incluídas no documento.

Nesse sentido, após realizar um exame perfunctório, de mera delibação, único possível nesta fase embrionária da persecução penal, identifiquei, a partir do confronto mencionado acima, que se mostra inviável homologar o presente acordo tal como entabulado, pelas razões a seguir deduzidas. (STF, 2017, p.20)

Os juristas portugueses J. J. Canotilho e Nuno Brandão, após uma análise minuciosa do pedido de cooperação jurídica internacional enviado pelo Brasil em 2017 no contexto da Operação "Lava Jato", aconselharam a negativa do auxílio. O principal motivo da recomendação contra a cooperação foi a presença de diversas ilegalidades e inconstitucionalidades nos termos dos acordos de delação premiada de Alberto Youssef e Paulo Roberto Costa. Essas falhas, segundo os juristas, comprometiam direitos fundamentais, com especial atenção à lesão ao princípio da presunção de inocência.

Ao avaliar os detalhes dos acordos, especialmente no que tange às imposições de penas e às condições de cumprimento das mesmas, Canotilho e Brandão expressaram preocupações significativas. Eles apontaram que os acordos não só estabeleciam condições prévias de culpabilidade antes de um julgamento justo e conclusivo, mas também potencializavam a execução de penas de forma prematura, o que contrariava diretamente os princípios jurídicos básicos que regem um processo penal justo tanto em Portugal quanto em normativas internacionais.

14.1. Acordos de colaboração premiada dotados de cláusulas estipuladoras de que o cumprimento de pena privativa da liberdade se inicia a partir da assinatura do acordo de colaboração premiada e que “o colaborador cumprirá imediatamente após a assinatura do presente acordo a pena privativa de liberdade em regime fechado”46 são clamorosamente ilegais e inconstitucionais. (...) O pacto de que a pena criminal a aplicar ao réu colaborador deverá iniciar-- se ainda antes de ser proferida a respectiva sentença viola ainda o princípio da presunção de inocência, vertido no art. 5º, LVII, da Constituição Federal: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Estando o princípio constitucionalmente consagrado nestes termos, isto é, com uma amplitude que alcança o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, será constitucionalmente inadmissível uma antecipação processual do cumprimento da pena para um momento em que o réu não foi ainda definitivamente dado como culpado da comissão do crime correspondente (nulla poena sine culpa). (Canotilho e Brandão, 2017, p. 160)

Essas preocupações refletem a tensão entre a busca por eficácia na luta contra a corrupção e a necessidade de proteger os direitos processuais dos acusados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo deste estudo, exploramos as complexidades e os desafios associados ao enfrentamento de organizações criminosas no Brasil, com foco especial nos acordos de delação premiada e na aplicação de tipos penais específicos. A análise dos elementos constitucionais e legais que fundamentam a prática jurídica brasileira revelou tensões significativas entre a necessidade de combater eficazmente o crime organizado e a imperatividade de preservar os direitos fundamentais garantidos pela Constituição.

Observou-se que, enquanto os acordos de delação premiada se apresentam como ferramentas valiosas nas investigações, por vezes estes pactos incorporam cláusulas que podem comprometer princípios jurídicos essenciais, como a presunção de inocência. A decisão do Supremo Tribunal Federal que reitera a inconstitucionalidade da execução provisória da pena reforça a complexidade de equilibrar a eficácia do combate ao crime com a justiça processual.

A negativa de cooperação jurídica internacional por parte de Portugal, baseada em considerações sobre ilegalidades e inconstitucionalidades nos acordos de delação, enfatiza a importância de uma revisão crítica e constante das práticas jurídicas adotadas no Brasil. Essa rejeição sublinha a necessidade de assegurar que as medidas de combate ao crime não apenas se alinhem com os padrões internacionais de direitos humanos, mas também sejam efetivas sem transgredir os direitos fundamentais.

Conclui-se, portanto, que o desafio de combater organizações criminosas no Brasil exige uma abordagem jurídica que não somente responda às demandas de eficácia e eficiência, mas que também respeite e preserve os direitos fundamentais dos cidadãos. As práticas jurídicas devem ser continuamente revisadas e ajustadas para garantir que o equilíbrio entre segurança pública e direitos individuais seja mantido, assegurando assim a integridade do sistema jurídico brasileiro e a confiança da comunidade internacional.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADORNO, Sérgio. Segurança pública e direitos humanos: um estudo sobre a tortura e os desaparecimentos forçados no Brasil. São Paulo: Editora Cortez, 2016.

BASTOS NETO, Paulo. O crime organizado no Brasil: origens, evolução e desafios. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.

BRASIL. Lei nº 12.694, de 24 de julho de 2012. Dispõe sobre o processo e o julgamento colegiado em primeiro grau de jurisdição de crimes praticados por organizações criminosas; altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal, e as Leis nºs 9.503, de 23 de setembro de 1997 - Código de Trânsito Brasileiro, e 10.826, de 22 de dezembro de 2003; e dá outras providências. Diário Oficial da União. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12694.htm. Acesso em: 14 de abril de 2024.

BRASIL. Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013. Define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal; altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); revoga a Lei nº 9.034, de 3 de maio de 1995; e dá outras providências. Diário Oficial da União. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2013/Lei/L12850.htm. Acesso em: 14 de abril de 2024.

BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio. Raízes do Brasil. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2006.

CANOTILHO, J. J.; BRANDÃO, Nuno. Cooperação jurídica internacional em matéria penal: o caso brasileiro da "Operação Lava Jato". Revista Brasileira de Direito Processual Penal, v. 16, n. 1, p. 147-186, 2017.

CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal. São Paulo: Editora Saraiva, 2017.

CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 15ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2017.

DIAS, Camila. Crime organizado e política prisional no Brasil: o caso do PCC. São Paulo: Editora Cortez, 2011.

FACCIOLLI, Danilo. Crime organizado no Brasil: gênese, evolução e perspectivas. São Paulo: Editora Saraiva, 2018.

FAORO, Raimundo. O poder dos coronéis. São Paulo: Editora Record, 2017.

LIMA, Manuel de Oliveira. O drama dos coronéis da Paraíba. João Pessoa: Editora Ativa, 1990.

MINGARDI, Guarino. Crime organizado: os fatos e os mitos. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2007.

MONSMA, Lucília; TRUZZI, Oswaldo; CONCEIÇÃO, Helena. A quadrilha Mangano: imigrantes italianos e crime organizado em São Carlos (1895-1898). São Paulo: Editora Unesp, 2003.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal: Parte Geral. 15ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2018.

PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Editora Brasiliense, 2012.

SANTOS, Boaventura de Sousa. A nova racionalidade: o desafio da ciência pós-moderna. São Paulo: Editora Cortez, 1988.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma sociologia da esperança. São Paulo: Editora Cortez, 2009.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão esquerda: recomeçar a práxis. São Paulo: Editora Cortez, 2015.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobreviver no Brasil: a grande política e o futuro da democracia. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2019.

STF. Petição 7.265 do Distrito Federal. Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Brasília, DF, 15 de março de 2017. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/le/lewandowski-devolve-acordo-delacao.pdf. Acesso em: 14 de abril de 2024.

ZALUAR, Amélia. Uma cidade em chamas: o Rio de Janeiro e a polícia militar. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.


1 Mestrando em Função Social do Direito pela Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo e pesquisador CAPES