DIREITO PENAL DE EMERGÊNCIA COMO MEIO DE POLÍTICA CRIMINAL

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REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.10360216


Amanda Saldanha


RESUMO
O objetivo deste breve estudo é analisar a expansão do Direito Penal, sua consequente maximização e atuação maciça diante do clamor público, observando como decorrência o surgimento de um Direito Penal de emergência. Uma utilização emergencial que está acarretando o afastamento da atuação da esfera penal da ultima ratio para prima ou sola ratio. No primeiro capítulo destacamos a expansão do Direito Penal que tem ocorrido nas últimas décadas, o surgimento do Direito Penal de emergência e a distinção entre características do Direito Penal e o Direito Penal de emergência. Analisando, por conseguinte, as consequências da utilização do Direito Penal de emergência dentro da Política Criminal e apontando sua ineficácia no combate da criminalidade que assola a sociedade, afinal esse direito tem caráter simbólico, ou seja, apenas traz a sensação de segurança e não a efetiva segurança. Concluímos com as duras críticas de estudiosos, que ao longo das últimas décadas têm sugerido soluções para combater o Direito Penal de emergência.  Pois, uma legislação emergencial apenas enfrenta os efeitos da insegurança e não procura se aprofundar nas causas, um lapso que tem como resultado a banalização da última esfera de atuação de controle social.
Palavras-chave: Política Criminal, Direito Penal de emergência, expansão do Direito Penal.
 
1. INTRODUÇÃO
 

Constata-se, na atualidade, uma tendência no Poder Legislativo brasileiro em produzir leis criminais baseadas no clamor social, pois acredita-se ser a única solução para os índices crescentes da criminalidade, acreditando ser a única solução para os índices crescentes da criminalidade. Essa abordagem, denominada de Direito Penal de emergência, tornou-se uma solução emergencial utilizada no combate à insegurança pública, monopolizando o Direito Penal dentro da Política Criminal brasileira em sua função de proteção de direitos.

Justifica-se, portanto o interesse neste breve estudo como um cidadão inserido em uma sociedade que enfrenta desafios significativos relacionados à criminalidade. Observa-se uma instabilidade social que não encontra solução na criação contínua de novas leis e no endurecimento das penas. Torna-se evidente o enfraquecimento da esfera criminal, deixada muitas vezes a atuar isoladamente, enquanto a Política Criminal se esquece de explorar outros mecanismos não penais. O objetivo definido é demonstrar que a proliferação excessiva de leis não está alcançando seu propósito, que é a redução efetiva da criminalidade, servindo, na prática, como uma falsa ilusão para a sociedade.

A proposta deste estudo envolve dois capítulos, visando compreender o surgimento do Direito Penal de emergência e suas possíveis consequências. No primeiro capítulo, busca-se discorrer sobre a expansão das funções do Direito Penal, a consequente perda de suas características e sua utilização equivocada. O segundo capítulo aborda o tema central do estudo: o Direito Penal de emergência como meio de Política Criminal. Nessa análise, é possível identificar seu perigoso efeito simbólico, além de examinar as críticas e considerações tecidas por estudiosos ao longos dos anos.

2. A ATUAL EXPANSÃO DO DIREITO PENAL E O CONSEQUENTE SURGIMENTO DE UM DIREITO PENAL DE EMERGÊNCIA

A legislação inserida em um país é mutável, pois acompanha a evolução social que constantemente traz novos dilemas e conflitos, que na maioria das vezes é levado ao conhecimento do Poder Judiciário, para que esse, se valendo das leis atue de maneira imparcial.

Com o Direito Penal não é diferente, pois novas formas de criminalidade surgem constantemente, contudo, muitas vezes o Poder Legislativo não consegue prever e acompanhar tantas mudanças e acaba por ser submerso diante das reivindicações de uma população que exige medidas efetivas, e é nesse cenário que temos uma expansão do Direito Penal e consequentemente o surgimento de novas formas de legislação, como a legislação emergencial.

2.1 A EXPANSÃO DO DIREITO PENAL

O Direito surgiu dentro da sociedade como um instrumento de controle social apto a criar tendências comportamentais e incutir princípios nos indivíduos, como descreve Danièle Loschak (1983 apud Delmas-Marty, 2004, p.62):

O direito é uma palavra que se impõe como legítima, como verdadeira, muito além do círculo finalmente restrito daqueles para os quais cada uma dessas normas, tomadas isoladamente, pode ser aplicada. Instrumento normativo e prescrito, que estabelece normas e sanciona sua violação, é também discurso, discurso referencial...; ele indica onde está a normalidade, veicula e inculca uma determinada ideia de normalidade; de modo que a regra jurídica, transmutada em padrão, em medida da normalidade, contribui para fazer aceitar como normais alguns comportamentos, ou, ao contrário, a desqualificar outros a partir de então considerados como anormais. À função imperativa da norma jurídica, pela qual ela visa dirigir direta e concretamente os comportamentos, acrescenta-se uma função secundária, simplesmente indicativa na aparência, mas não menos atuante na realidade, pela qual ela impõe sub-repticiamente incitado a reproduzir independentemente de qualquer noção de obrigação jurídica. É esta dupla dimensão do direito, ao mesmo tempo instrumento normativo e discurso descritivo, que lhe confere sua eficácia como fator de uniformização dos comportamentos... e, finalmente, como instância de normalização.

Por meio de um discurso referencial de comportamento, o Direito busca trazer parâmetros sociais e uma sensação de segurança ao legalizar os interesses de toda a coletividade, atendendo, desta forma, necessidades muitas vezes ecoadas pelo clamor público que pede proteção a bens jurídicos de seu interesse. Considerando a relevância de certos bens é nessa seara que entra a esfera penal, em outras palavras, “o Direito Penal é um instrumento qualificado de proteção de bens jurídicos especialmente importantes¹.” (SÁNCHEZ, 2001, p.25, tradução nossa).

É inegável que por meio do Direito Penal pode-se ter uma estabilização social, diante de sua imposição sancionatória que traz um temor aos indivíduos, sendo “um meio violento, mas é ao mesmo tempo um instrumento da liberdade civil. É, por isso, irrenunciável para o convívio dos homens e deve, sem dúvida, ser colocado na corrente, pois não pode se tornar independente.” (HASSEMER, 2003, p.147).

O Direito Penal é indicado a atuar em problemas sociais que atingem bens jurídicos de relevante valor social, os quais pode-se compreender como aqueles fundamentais ao indivíduo e à sociedade como a vida humana, a integridade física do homem, a honra, o patrimônio, a paz pública e entre outros bens declarados pela Constituição. Caso qualquer um desses bens seja lesionado caberá a legislação restituir sua integridade por meio de proteção legislativa, com a criação de normas incriminatórias, sancionatórias e de outra natureza. (DOTTI, 2018, p.85).

Contudo, toda e qualquer atuação estatal tem limites diante do Estado Democrático de Direito, o qual resguarda proteções fundamentais ao seu povo e impõe parâmetros para a atuação do poder punitivo. Proteção, inclusive, que alcança ao indivíduo que ataca os bens jurídicos alheios, por meio de garantias como um processo justo e com paridade de armas. Nesse sentido Winfried Hassemer (2003, p.147), elucida que: 

o poder do Estado, particularmente no Direito Penal – onde se mostra de modo particularmente nítido – deve se vincular e se conceber, em princípio, pelos direitos do indivíduo: eles o postergam. A partir daí declaram-se, por exemplo, princípios jurídicos- penais como o in dubio pro reo, o direito ao recurso, à defesa, ao silêncio, princípios como o da subsidiariedade ou da proporcionalidade.

O Direito Penal se mostra como uma área complexa, que pune com justiça. Tanto é assim, que a esfera penal não pode ser usada desmedidamente para satisfazer todo e qualquer anseio social, independentemente da relevância do bem jurídico atacado, pois dentro da esfera jurídica cumpre a atuação penal em último caso, por isso é que o legislador trouxe como um dos princípios do Direito Penal o da intervenção mínima ou da ultima ratio, o qual “orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização  de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para prevenção de ataques contra bens jurídicos importantes” (BITENCOURT, 2013, p. 54).

Assim é compreensível a atribuição de caráter fragmentário, uma vez que sua atuação se limita a determinados bens – como dito anteriormente, a bens fundamentais -, ainda nas palavras de Cezar Roberto Bitencourt, ( 2013, p.55) pode-se afirmar que o Direito Criminal “ limita-se a castigar as ações mais graves praticadas contra os bens jurídicos mais importantes, decorrendo daí o seu caráter fragmentário, uma vez que se ocupa somente de uma parte dos bens jurídicos protegidos pela ordem jurídica.”.

Durante muitos anos a intervenção criminal se limitou a uma atuação mínima, diante de uma sociedade segura que nada temia, com cidadãos que dormiam com suas janelas abertas, tinham apenas uma tranca na porta, perambulavam em passeios noturnos em noites de verão, carregavam suas bolsas e carteiras sem preocupações, conheciam e confiavam em seus vizinhos. Entretanto os tempos mudaram e esse cenário utópico ruiu juntamente com a sensação de segurança. E nas últimas décadas somente aumentou esse sentimento, principalmente com a veiculação de notícias chocantes, que passaram a descrever atos humanos bárbaros e impensáveis até aquele momento.

François Ost exemplifica como um desses momentos de inversão de sentimento com o que ocorreu na Bélgica, onde durante dois anos foram encontradas ossadas de crianças assassinas, posteriormente veio-se a descobrir que pertenciam a crianças que eram abusadas sexualmente pelo próprio pai. Um acontecimento que chocou a sociedade da época, pois estavam se deparando com um mau absoluto capaz de provocar o questionamento de o que seria o bem e como esse bem poderia ser restabelecido. (2013, p.378). Pois “voltava a desenhar-se um mundo a preto e branco [...], opondo o puro ao impuro, a inocência ao crime, traduzindo o regresso violento de um recalcamento da norma”. (OST, 2013, p. 379).

E a oposição da inocência ao crime, a volta da ideia do violento se tornou recorrente em uma sociedade midiática, em programas que passaram a alimentar sua audiência expondo situações monstruosas e chocantes, sensibilizando cidadãos que começaram a nutrir um sentimento de insegurança, onde as penas se tornaram irrisórias e insuficientes. Dando início a um maciço clamor por uma atuação mais incisiva e ampla do Direito Penal.

Obrigando-se assim a esfera criminal a assumir novas características, uma postura mais atuante, saindo no modelo clássico em que protegia interesses individuais e assumindo a proteção de interesses coletivos. Além de expandir sua atuação para outras áreas jurídicas que não somente a penal, tem ganhado importância diante de uma sociedade de risco, onde o inimigo pode estar ao seu lado.

Ressalta-se que como a ultima ratio, cumpre ao Direito Penal estar em constante evolução, se amoldando e atendendo os anseios sociais e resguardando os novos bens jurídicos – sejam por uma nova valoração de bens jurídicos preexistentes ou pelo surgimento de novos interesses –, que passam a ter uma acentuada importância perante os indivíduos da sociedade e consequentemente necessitam de uma proteção, a esse surgimento de novos Direitos Jesús-Maria Silva Sanchez atribui o caráter de expansão do Direito Penal. (2001, p.25).²

As mudanças dos paradigmas de comportamento social e o surgimento de novos bens jurídicos aptos a serem valorados penalmente estabelecem a expansão do Direito Penal, que se afasta – segundo Winfried Hassemer – do seu modelo “clássico” para o “moderno”.

No denominado moderno Direito Penal ocorre uma inversão a proteção dos bens jurídicos, que perdem a condição negativa para dar lugar a uma condição positiva, ou seja, o legislador que não tinha a prerrogativa de suscitar a proteção de um bem jurídico passou aqui a pode-lo. A orientação pelas consequências também mudou de paradigma, deixando de ser um pressuposto complementar da legislação para se tornar uma finalidade predominante. (HASSEMER, 2003, p. 149).

Hassemer atribui a modificação, das consequências do Direito Penal de complementares para predominante, as exigências atuais como: no campo da proteção ambiental, em relação a direitos feminista, a regulamentação de direito cibernéticos, entre outros. Direitos que na sua elaboração perdem como foco principal as características de adequação e justiça para se tornarem um instrumento de sensibilização social, com única e exclusiva finalidade de chamar a atenção da população que passa a clamar por uma atuação da esfera penal como forma de solução de problemas sociais de qualquer relevância. (HASSEMER, 2003, p. 149).

Tem-se, com isso, a perda do princípio da subsidiariedade ou ultima ratio que se torna prima ou sola ratio, e consequentemente a perda do valor do Direito Penal, que acaba banalizado diante de uma sociedade que  lhe atribuir a responsabilidade de solucionar todos os problemas. Têm lugar, além disso, as sábias palavras de Winfried Hassemer (2003, p.149):

Em resumo, a “dialética da modernidade” leva a que o Direito Penal se desenvolva como um instrumento de solução dos conflitos sociais, o qual, de acordo com a percepção pública, não se distingue mais, por um lado, pela sua utilidade e, por outro, pela sua gravidade, dos outros instrumentos de solução dos conflitos; o Direito Penal, apesar dos seus instrumentos rigorosos, torna-se um soft law, um meio de manobra social. As expectativas de solução dos problemas, que se dirigem ao Direito Penal, explodem; é visto deste modo, o Direito Penal torna-se, quanto às expectativas, algo “novo”.

A busca por solução aos novos conflitos sociais faz com que a sociedade passe a ansiar por medidas mais “eficazes” ou “definitivas”, com a finalidade de que a paz sociedade e a segurança sejam reestabelecidas. Contudo, essa busca leva de encontro com o Direito Penal – de atuação em ultima ratio – e considerado o meio mais coercitivo de caráter temerário perante os cidadãos. Ou nas celebres palavras de Jesús-Maria Silva Sanchez, “ o Direito Penal ocupa um lugar significativo – se convertendo quase em uma obsessão. Em efeito, em uma sociedade que carece de consenso sobre valores positivos [...]³”. (2001, p. 41-42).

E essa obsessão provoca uma inversão de valores no Direito Penal clássico para o moderno Direito Penal – conforme o entendimento de Winfried Hassemer -, trazendo novas características. O professor alemão menciona que o Direito Penal moderno trouxe novas características como: de setores, instrumentos, funções e problemas.

Vejamos com mais detalhes estas características; setores passam a ser favorecidos no moderno Direito Penal, que centraliza seus debates na parte especial do Código Penal, trazendo a ampliação e a criação de novas cominações legais, sem considerar a possibilidade de revogações. Por sua vez, nos instrumentos observa-se uma mudança de sujeito de proteção, que deixa de ser o indivíduo e torna-se o Estado e as instituições da sociedade, que passa a ter uma regulamentação a bens jurídicos tidos como universais, como: povo, saúde, segurança, etc. (HASSEMER, 2003, p. 151).

Essas características de setores e instrumentos acarretam uma terceira característica a mudança de função que pode ser compreendida nas seguintes palavras:

As novas criminalizações na Parte Especial do Código Penal e no Direito Penal complementar trazem consigo uma ampliação significativa do Direito Penal e já por isso reduzem relativamente o significado do Direito Penal nuclear. O Direito Penal tende muito menos à reação as lesões mais graves ao interesse de liberdade dos cidadãos e tende a se tornar muito mais um instrumento de defesa de política interna. Desse modo, ele desocupa, inclusive, a sua posição no elenco dos âmbitos do Direito e aproxima-se das funções do Direito Civil ou do Direito Administrativo. Com isto relaciona-se a já mencionada tendência de que o legislador penal compreende este instrumento não como ultima, mas como sola ou prima ratio e que, ao contrário, insere aí, prontamente, o princípio da subsidiariedade, com o uso do qual seria possível obter um proveito político. (HASSEMER, 2003, p. 151).

Do até agora exposto pode-se concluir que tem como resultado um desrespeito claro a aplicação das normas penais e uma deturpação de sua finalidade e características. Permitindo o surgimento de um Estado de exceção ou de emergência apto a justificar a utilização de uma legislação penal como sola ou prima ratio. Dando-se prioridade ao interesse do Estado sobre o interesse jurídico como pressuposto informador do direito e processo penal. Transferindo-se a intervenção punitiva, que deixa de ser jurídica para se tornar política. (FERRAJOLI, 2002, p. 650). 

Diante da maciça quantidade de notícias que é jogada todos os dias pelos meios de comunicação trazendo crimes terríveis, é que a sociedade passa a clamar por uma sensação de segurança e soluções urgentes, inclusive, apoiando a ideia de uma legislação mais severa, atendendo a esses anseios é que Poder Legislativo adota medidas emergências, eis que surge Direito Penal de emergência.

2.2 DIREITO PENAL DE EMERGÊNCIA

O Direito Penal de emergência surge no âmbito jurídico como uma ideia legislação apta a combater a crescente criminalidade, por meio de leis que batam de frente com os problemas de inseguranças que permeiam a sociedade, assim o legislador provocado se vê obrigado a  adotar essas medidas emergenciais que acabam por flexibilizar algumas garantias penais e processuais penais, nesse sentido, assevera Alexandre Salim e Marcelo André de Azevedo que “nessa seara vem o Direito Penal de emergência, expressão utilizada para expressar as hipóteses nas quais o Estado utiliza legislação excepcional para limitar ou derrogar garantias penais e processuais penais em busca do controle da alta criminalidade.” (2017, p.36).

Somando a tantos fatores têm-se a utilização da ideia de emergências, a qual atualmente se convencionou em chamar de Direito Penal de emergência, um termo novo para uma ideia antiga.

Pois a utilização de emergências para justificar o poder punitivo do Estado não é novidade, na Idade Média - séculos XI e XII – foi o que embasou a caçada as bruxas na época da Inquisição. Trazendo consigo a ideia de que o mal somente seria extinto por meio de soluções extremas e não convencionais, que a defesa do Estado, e consequentemente dos seus cidadãos, somente seria possível mediante a renúncia de posicionamentos fundamentais de proteção individual. (ZAFFARONI, 1998, p. 617).

Zaffaroni menciona ainda que a primeira lei em caráter de emergência “surgiu de uma emergência conjuntura! Foi a 7.029 de 1910, chamada de “Defesa social”” (1998, p. 613), fruto de ataques anarquistas e a explosão de uma bomba no teatro de Colón em 1910, e uma onda de homicídios e sequestros que assolou Buenos Aires em 1932.

Já Luigi Ferrajoli identifica o surgimento do Direito Penal de emergência a partir dos anos 70, na Itália, onde o legislador promoveu modificações estruturais provisórias no sistema penal italiano que sofria com o terrorismo e o crime organizado. Uma reação diante das novas formas de criminalidade e a ineficiência da legislação em vigor, que obrigou o governo a realizar mudanças em leis penais já existentes e a criar novos dispositivos. (2002, p.665). 

Legitimando anseios da população, a legislação emergencial não nasce para regulamentar uma situação futura, mas sim uma situação presente e por vezes já considera pretérita, pois já é um problema fático para o Estado. Ressalta-se, contudo, a atenção para não confundir a elaboração desmedida de leis e disposições penais, uma característica da legislação penal contemporânea, com o Direito Penal de emergência, pois conforme o professor Zaffaroni a maximização do Direito Penal traz características diferentes da ideia de legislação emergencial.

A produção maciça de legislação penal é caracterizada pela: a) descodificação é um ideal do que deveria ser a produção legislativa e os códigos, porém não adotado pelos legisladores pós modernos; b) transnacionalização impõe a todos os países a adoção de diretivas transnacionais que divergem da legislação penal ordinária, como no caso de tóxicos, lavagem de dinheiro, etc.; c) frontalismo  condiciona a criação de um modelo econômico globalizador  apto a gerar a desocupação, e consequentemente a expulsão do aparato produtivo e exclusão social, por meio de leis quase impossíveis de serem cumpridas; d) renormalismo ocorre nos casos em que diante de situações até então desconhecidas, obrigam o legislador a criar tipificações penais incomuns e que não resolvem o problema; e) fiscalização é a ideia de adoção de um Direito Penal fiscal apto a auxiliar o Estado na tarefa de arrecadação anual; f) banalização surge com a finalidade de dar ao Direito Penal uma função administrativa dentro de toda e qualquer lei, no qual  impõem a todas as legislações a adoção de algum tipo penal apto a torná-la imponente. (ZAFFARONI, 1998, p. 615 – 616).

Contudo, as únicas características inerentes ao Direito Penal de emergência são: a transnacionalidade, o frontalismo e o renormalismo. Pois a ideia de legislação emergencial não abrange medidas coercitivas aptas a auxiliarem na arrecadação de tributos; tampouco é a ideia de utilização como uma função administrativa. (ZAFFARONI, 1998, p. 617).

O foco do Direito Penal de emergência é atuar em situações extraordinárias que chocam a população, diante de sua gravidade e capacidade de agredir bens jurídicos, que passa a exigir do legislador uma posição imediata e punições severas. Assim sendo, Eugenio Raúl Zaffaroni traz critérios para se compreender o que é uma legislação penal emergencial:

a) se fundamenta em um fato novo, supostamente novo ou extraordinário; b) a opinião pública reclama por uma solução aos problemas gerados por tal fato; c) a lei penal não resolve o problema, porém tem por objeto proporcionar a opinião pública a sensação de que tende a resolve-lo ou a reduzi-lo;  d) adota regras que resultam diferentes das tradicionais no Direito Penal liberal, seja porque o modificam em sua área ou no geral, porque criam um Direito Penal especial ou alteram o Direito Penal geral. (1998, p. 617, tradução nossa).

Tem se, com isso a compreensão do que seria o Direito Penal de emergência, ou seja, ele nasce com a ocorrência de fatos aparentemente novos e/ou extraordinário que abalam a confiança da opinião pública na lei penal vigente que não consegue conter as novas situações, sendo assim adotadas novas medidas que criam, modificam ou ampliam normas já existentes.

Verifica-se assim um aumento nas propostas e votações de legislações que satisfaçam uma sociedade que convive com uma sensação de insegurança. Contudo, a missão de trazer segurança e paz social aos cidadãos que constituem o Estado não é exclusiva do Direito Penal, e sim apenas uma parcela da Política Criminal que deve ser estabelecida pelo Estado e os demais setores da comunidade.

3. DIREITO PENAL DE EMERGÊNCIA COMO MEIO DE POLÍTICA CRIMINAL

A Política Criminal é um meio em que o Estado se valendo de outros ramos como a sociologia, filosofia e criminologia, busca compreender quais normas jurídicas devem ser mantidas, criadas ou revogadas com o propósito de realizar o controle social.

A expressão “política criminal” é usualmente atribuída ao professor alemão Feuerbach, sendo descrito como “ o conjunto dos procedimentos repressivos pelos quais o Estado reage contra o crime.” ( 1803 apud Delmas-Marty, 2004, p.6).  Ainda na linha de pensamento do professor alemão, pode-se dizer que:

[...] a política criminal compreende o conjunto de procedimentos pelos quais o corpo social organiza as respostas ao fenômeno criminal aparecendo, portanto, como teoria e prática das diferentes formas de controle social. É claro que o direito penal continua muito presente, como o núcleo rígido ou o ponto de maior tensão, igualmente de maior visibilidade. Mas as práticas penais não estão sozinhas no campo da política criminal, onde se encontram como que englobadas por outras práticas de controle social: não-penais, não-repressivas e, por vezes, até mesmo não-estatais. (Delmas – Marty, 2004, p. 3 - 4).

Inegável, pois, que a atuação do Direito Penal é de extrema importância dentro da Política Criminal, mas não deve receber sozinho a tarefa de solucionar conflitos de diversificadas espécies. Como defende René Ariel Dotti, o crime deve ser combatido tanto por instâncias formais como materiais. Por instâncias formais deve-se compreender: “a lei, a Polícia, o Ministério Público, o poder Judiciário, as instituições e os estabelecimentos penais.” (2018, p. 85). Já as instâncias materiais são aquelas - definidas por Delmas-Marty como não-penais, não repressivas e não estatais – que fogem da esfera penal como: “a família, a escola, a comunidade (associações, sindicatos) etc.” (DOTTI, 2018, p.85).

Percebe-se assim a função do Direito Penal como ultima ratio, ou seja, quando os meios não-penais falharem em suas atuações e mais nenhuma outra instância possa atuar é que a esfera penal vai entrar em ação. Todavia uma crescente inversão de valores vem adquirindo força dentro dos discursos sociais que inflados pela insegurança exposta pela mídia passa a clamar por uma expansão do Direito Penal e a consequente adoção de um Direito Penal de emergência.

3.1 ADOÇÃO DO DIREITO PENAL DE EMERGÊNCIA COMO MEIO DE POLÍTICA CRIMINAL

A elaboração exagerada de leis penais como meio de controle social é fragmento de um pensamento que foi observado nos Estado Unidos, na década de 80 com o movimento de Lei e Ordem.

Rogério Greco atribui a propagação do movimento de Lei e Ordem aos reportes, jornalistas e apresentadores que tomaram como sua a função de criticar as leis penais, fazendo a sociedade acreditar que o endurecimento da legislação e a criação de novos tipos criminais, com uma rigidez das penas e o afastamento de garantias processuais, seria capaz de reestabelecer a segurança na sociedade. (2009, p.12).

Esse movimento político-criminal busca focar a atuação do Estado na esfera penal, o afastando da esfera social. Cabendo, assim, ao legislador o dever de promover a criação de leis aptas a proteger  qualquer tipo de bem jurídico atacado por um comportamento anti-social. (GRECO, 2009, p. 14). Em resumo:

[...] o pensamento de Lei e Ordem, o Direito Penal deve preocupar-se com todo e qualquer bem, não importando o seu valor. Deve ser utilizado como prima ratio, e não como ultima ratio da intervenção do Estado perante os cidadãos, cumprindo um papel de cunho eminentemente educador e repressor, não permitindo que as condutas socialmente toleráveis, por menos que sejam, deixem de ser reprimidas.(GRECO, 2009, p.16).

Inegável, pois, que fragmentos do pensamento trazido pelo movimento de Lei e Ordem se propagou entre as diferentes sociedades, criando uma tendência dentro da Política Criminal que passou a buscar o endurecimento das leis se afastando da forma tradicional. Como assevera Winfried Hassemer em relação a esse ponto:

A moderna Política Criminal afasta-se da forma tradicional de cometimento (do crime de lesão ou fraude) e da determinação normal do bem jurídico do Direito Penal tradicional (bem jurídico individual como, por exemplo, a integridade física). Sua forma típica de delito é a do delito de perigo abstrato (por exemplo, a fraude à subvenção), sua determinação normal de bem jurídico é a do bem jurídico universal concebido de forma ampla (como a saúde popular no Direito Penal das Drogas). De acordo com isso, dissolve-se a determinação legal do injusto punível, aumentam e flexibilizam-se as possibilidades de ampliação da lei, diminuem as chances de defesa e também a crítica à ultrapassagem dos limites instituídos pelo legislador. (2013, p. 38).

A ampliação das leis traz consigo uma sensação de segurança, proporcionando a percepção de que a criminalidade está sob o controle do Estado e atribuindo ao legislador a figura de um governante atento aos anseios de seu eleitorado. Ledo engano, pois muitas vezes a intenção da lei não é alcançada e gera problemas que culminam em uma legislação enfraquecida devido a “inflação legislativa (Direito Penal de emergência), criando-se exageradamente figuras penais desnecessárias, ou então com o aumento desproporcional e injustificado das penas para os casos pontuais (hipertrofia do Direito Penal).” (MASSON, 2017, p.11).

Atendendo ao clamor público diante dos novos fatos é que a legislação emergencial surge com uma capa protetiva perante a sociedade que passa a se sentir mais segura com a tipificação de novos crimes e de penas mais severas. Satisfazendo os adeptos de um movimento de Lei e Ordem. Resta evidente que a ideia de emergências pressupõe a prevalência do aspecto político, que atende seus eleitores, sobre o aspecto jurídico, tal como evidência com propriedade Luigi Ferrajoli (2002, p.650):

Esta concessão de emergência outra coisa não é que a ideia do primado da razão do Estado sobre a razão jurídica como critério informador do direito e do processo penal, seja simplesmente em situações excepcionais como aquela criado pelo terrorismo político, ou de outras formas de criminalidade organizada. Ela equivale a um princípio normativo de legitimação da intervenção punitiva: não mais jurídica, mas imediatamente política; não mais subordinada à lei enquanto sistema de vínculos e de garantias, mas à esta supraordenada. Salus rei publica suprema lex. A salvaguarda, ou apenas o bem do Estado, é a norma principal do “direito de emergência” (Grundnorm), a lei suprema que impregna todas as outras, aí compreendidos os princípios gerais, e que legitima a mutação.

Eis que o Direito Penal se torna um instrumento de legitimação do Estado de Direito contemporâneo, que passa a sobrepor as necessidades do Estado e consequentemente as políticas sobre as normas jurídicas, usando somente o Direito para legitimar seus atos e atuação. Pois a atuação política traz “para a massa dos espectadores tanto tranquilização quanto ameaça, mas a política simbólica serve antes à harmonia social, reduzindo tensões e, portanto, desempenhando primariamente uma função de tranquilização.” (EDELMAN , 1967, 22-43, 163 – 165 apud NEVES, 1994, p. 27).

Percebe-se que a criação continua de leis pelo Estado permeia uma sensação de que tudo está bem, de que soluções estão sendo buscadas e que o detentor do jus puniendi está atuando em prol da segurança perdida, mas na maioria das vezes a atuação morre em uma sensação que não encontra eficácia diante dos problemas. A doutrina é unânime ao definir essa atuação ineficaz como algo simbólico.

3.2 ATRIBUIÇÃO DE CARÁTER SIMBÓLICO AO DIREITO PENAL

Simbolicamente a atuação legislativa na criação de leis mais severas diminuiu as tensões sociais, o temor e a sensação de insegurança, que é reiterada diariamente na casa dos cidadãos por meio da mídia sensacionalista, porém ao se revestir apenas desse caráter simbólico que o Direito Penal de emergência traz:

[...] com sua pretensão de dar rápida resposta aos anseios sociais, e, com isso, muitas vezes criminaliza condutas sem qualquer fundamento criminológico e de política criminal, criando a ilusão de que resolverá o problema por meio da utilização da tutela penal. Com efeito, se a criação da lei penal não afeta a realidade, o Direito Penal acaba cumprindo apenas uma função simbólica. (SALIM e AZEVEDO, 2017, p.36).

Toda legislação produz um caráter simbólico no legislador, que acredita que atendeu ao clamor social, e ao cidadão que acredita estar inserido em uma sociedade segura. Todavia é de difícil conceituação a expressão “simbólico” e “legislação simbólica”, mas pode-se resumir como uma oposição entre realidade e aparência, entre o que foi manifestado e o que não foi, há uma distinção entre os efeitos penais e os reais associando, desta forma, o caráter simbólico a uma mentira ardilosa. (HASSEMER, 1991, p.22).

A ideia de mentira ardilosa pode ser percebida quando a legislação simbólica assume a finalidade de fortalecer a confiança do cidadão no legislador eleito, consequentemente no Estado e no sistema jurídico-político por ele desenvolvido. Entretanto diante das exigências sociais o governante por meio da  “legislação álibi” – termo utilizado por Kindermann – desafoga as pressões e exigências políticas que recaem sobre si, atendendo as reivindicações e expectativas sociais por meio da elaboração de diplomas legislativos que por vezes não tem condição de efetivação. (NEVES, 1994, p. 37). Em outras palavras:

Face à insatisfação popular perante determinados acontecimentos ou à emergência de problemas sociais, exige-se do Estado muito frequentemente uma reação solucionadora imediata. Embora, nesses casos, em regra, a regulamentação normativa muito improvavelmente possa contribuir para a solução dos respectivos problemas, a atitude legiferante serve como álibi do legislador perante a população que exigia uma reação do Estado. (NEVES, 1994, P. 37-38).

Afinal o que importa a curto prazo é a sensação que a lei traz, postergando os seus efeitos para um problema futuro, visto que nas sábias palavras de Hassemer (1991, p.21):

Quanto mais exigentes forem formuladas as teorias preventivas da pena (ressocialização do delinquente, intimidação das pessoas propensas ao crime, reafirmação das normas fundamentais), quanto mais extenso seja seus fins, mais evidente será seu conteúdo simbólico: perseguem, com a ajuda de uma intervenção instrumental do direito penal (de uma maneira consistente com essa prática), transmitir (cognitiva e emotiva) a mensagem de uma vida de fidelidade ao direito.

A ideia de uma difusão simbólica reforça o caráter do moderno Direito Penal, que almeja a satisfação de todas as perturbações sociais por meio de medias penais.

Verifica-se atualmente , em especial no nosso pais, o recorrente equívoco da opinião pública, dos administradores e do legislador que acreditam que a maciça edição de leis penais novas, ou mais severas e mais abrangentes é o caminho para  solucionar o problema da crescente criminalidade “essa concepção radical do Direito Penal é falsa porque o considera como uma espécie de panaceia que logo se revela inútil diante do incremento desconcertante das cifras da estatística criminal, apesar do delírio legiferante de nossos dias.” (TOLEDO, 1994, p.5).

Como exemplo concreto de uma legislação nova, com uma caráter mais severo temos no Brasil a Lei dos crimes hediondos (Lei n° 8.072/90), que foi aprovada em caráter de urgência após noticias que causaram comoção social, como foi o caso de sequestro do empresário Abílio Diniz, em 11 de dezembro de 1989 e em 6 de julho de 1990 do publicitário Roberto Medina. Diante de tais circunstâncias é que  Guilherme de Souza Nucci assevera que “ as leis não são criadas como regra, no Brasil, com amplo estudo prévio e discussão em sociedade e nos meios acadêmicos, resultando, pois em textos sem lógica e assistemáticos. Muito rigorosos, por vezes. Frágeis e liberais em excesso, por outro.” (2014, p. 425).

Pode-se, ainda, citar outros exemplos legislativos como a Lei n° 12.737/2012, popularmente conhecida como “Lei Carolina Dieckmann”, as recentes alterações sofridas pelo Código de Trânsito Brasileiro, que alterou os casos de embriaguez ao volante com a inserção do artigo 516-A no CTB, atráves da Lei n° 13.281/16, e o artigo 302 que foi alterado no mesmo Código, uma normativa que trata das ocorrências de homicidios causados por motoristas embriagados.

Tem-se também as leis de proteção a mulher contra violência doméstica como a Lei n° 11.340 denominada de Lei Maria da Penha e a n° 13.104/2015, Lei do Feminicídio. Contudo, verifica-se por meios de dados estatísticos que a criação e expansão desses tipos penais não foram capazes de coibir a criminalidade. Um exemplo recente é uma pesquisa feita esse ano, em que se constatou o aumentou do feminicídio de 2019 até o primeiro trimestre de 2023, a média de casos foram de 631 para 722, uma visível ausência de respeito a lei.

Eis que podemos concluir, diante desses exemplos que  “ o Direito Penal de emergência e a crescente legislação penal que o acompanha ( e a que se produz fora do seu âmbito) responde a ideologias politicamente antiliberais que vão marcando tendencia e coloca em perigo o Estado de Direito.” (ZAFFARONI, 1998, p. 618, tradução nossa).

É perigoso para a credibilidade do Direito Criminal seu uso abusivo, pois causa uma banalização da única esfera do Direito apta a exercer o jus puniendi, além de mascarar os verdadeiros problemas que assolam a sociedade, tal como evidencia com propriedade Rogério Greco:

[...] a máxima intervenção do Direito Penal, somente nos faz fugir do alvo principal, que são, na verdade, as infrações penais de grande potencial ofensivo, que atingem os bens mais importantes e necessários ao convívio social, [...] um Direito Penal que procura ocupar o papel de educador da sociedade, a fim de encobrir o grave e desastroso defeito do Estado, que não consegue cumprir suas funções sociais, permitindo que, cada dia mais, ocorra um abismo econômico entre as classes sociais, aumentando, assim, o nível de descontentamento e revolta na população mais carente, agravando, consequentemente, o número de infrações penais aparentes, que a seu turno, causam desconforto à comunidade que, por sua vez, começa a clamar por mais justiça. O círculo vicioso não tem fim. (2009, p.17).

Realmente o “círculo vicioso não tem fim”, pois a remediação dos problemas com legislações emergências de efeitos meramente simbólicos não líquida a criminalidade. Por isso, é que Cleber Masson é claro em afirmar que a função simbólica deve ser afastada, pois a curto prazo, até que, o Direito Penal assume tarefas governamentais de natureza educativa e promocionais. Porém, a longo prazo quem sofre é o ordenamento jurídico que tem suas funções instrumentais mediocrizadas. (2017, p. 11).

Então, que surge o questionamento, qual seria a solução mais adequada para se combater o Direito Penal de emergência?

3.3 COMO OS ESTUDIOSOS SE POSICIONAM PERANTE O DIREITO PENAL DE EMERGÊNCIA

Frente ao exposto surgem estudiosos com sugestões de solução para se barrar a crescente legislação criminal de emergência. As propostas vão de uma redução do Direito Penal em sua atuação moderna, com a retomada de sua função em ultima ratio até a legalização de situações que alimentam a criminalidade.

Para o professor alemão Winfried Hassemer a solução está na volta do Direito Penal clássico, ou seja, atentar para uma atuação de proteção a bens jurídicos individuais e a regulamentação de situações graves, em suas sábias palavras:

consiste em que se retire parcialmente a modernidade do Direito Penal. Isto significa, em primeiro lugar, uma redução do Código Penal a um “Direito penal nuclear”, sobre cujos limites deve-se discutir no caso isolado. Certamente pertencem a este Direito Penal todas as lesões aos bens jurídicos individuais clássicos e pertencem a esse, também, os perigos graves e visíveis, como sempre conteve o Código Penal. (2003, p. 155).

O que se defende é uma minimização do Direito Criminal, afastando a  crescente maximização que tem passado a caracterizar a legislação atual. Esse pensamento, também é defendido Luigi Ferrajoli (2005, p. 82-83). Para o jurista italiano o Direito Penal deveria voltar a assumir sua natureza de ultima ratio, sendo a lei dos mais fracos e a que tutela bens fundamentais, pois na sua visão o que se necessita é “mais que políticas penais, políticas sociais; mais que políticas de exclusão, políticas de inclusão”. (2005, p. 81).

Ainda como solução Ferrajoli sugere a legalização dos bens ilícitos, como o mercado de droga, pois segundo o jurista italiano a proibição é um alimento para o mercado ilícito, que aproveitando-se da ilegalidade acaba por permitir que traficantes monopolizem um mercado que depende dos pequenos para distribuição. Diante de tais constatações, eis que ele defende a legalização do uso controlado de entorpecentes, como um meio apto de acabar com essa rede de tráfico que se cria. Outro ponto que ele tece críticas é em relação a liberação do comércio de armas, a qual tem a finalidade de matar, considerando a sua disponibilização a causa principal do aumento de crimes e das guerras. Para tanto, o jurista considera que seria necessário a proibição de todo e qualquer tipo de armamento de fogo, exceto as adotadas pelas polícias. (FERRAJOLI, 2005, p. 84).

Outro ponto que Ferrajoli acha necessário é reforçar o princípio da legalidade, não sendo a reserva de lei, mas sim a reserva do Código Penal :

segundo o qual não poderia se introduzir nenhuma norma em matéria de delitos, penas ou procedimentos penais a não ser através de uma modificação dos códigos correspondentes e aprovada por meio de procedimentos agravados. Não se trataria de uma simples reforma dos códigos. Se trataria mais como uma recodificação de todo o Direito Penal embasado em uma meta-garantia contra o abuso da legislação especial e excepcional. (FERRAJOLI, 2005, p.85, tradução nossa).¹⁰

Percebe-se que tanto para Hassemer quanto Ferrajoli a solução para maximização da legislação criminal, e consequentemente a adoção de leis emergências com aspectos simbólicos, é a minimização da lei. Em outras palavras, seria restituir a esfera penal sua função original de atuação em última situação, resguardando apenas bens fundamentais e protegendo os mais frágeis. Ferrajoli vai além ao sugerir uma reserva ao Código Penal, como único instrumento a regulamentar situações de esfera criminal, afastando assim as leis especial, excepcionais e por extensão as emergenciais.

E há 21 anos o argentino Eugenio Raul Zaffaroni identificava a crescente legislação emergencial, abordando o tema de forma celebre e atual, não deixou de trazer seu posicionamento de como se deveria combater as novas funções atribuídas ao sistema penal. E a solução ele atribui ao poder do discurso que os estudiosos do sistema penal possuem. Tem-se assim, em seu notável discurso:

Ainda que sua dimensão seja aparentemente limitada, por certo que não se trata de um poder menor: sem discurso não se pode exercer o poder. Consequentemente, a conclusão elementar desta equação é que devemos por em jogo nosso poder discursivo contra esta tendência e em defesa do Estado de Direito. Na medida em que a doutrina deslegitime esta tendência e deixe sem discurso ao poder, este devera buscar – com todo o poder irracional – discursos de níveis mais irracionais e, por fim, menos acreditáveis.
 
Nossa tarefa não é outra, nesta hora, que reconstruir doutrinariamente o Direito Penal partindo da premissa de que as primeiras leis a incorporar na nossa construção são as internacionais e as constitucionais, e compreendendo que as mesmas proporcionam a base para uma realização progressiva de seus princípios que estamos encarregados de impulsionar. Em síntese: somente podemos enfrentar o fenômeno que nos ocupa cumprindo com nossas Constituições e com os tratados internacionais. (1998, p. 618, tradução nossa).¹¹

O posicionamento do jurista e magistrado argentino pontua-se como um meio, em outras palavras, um meio para se alcançar o que a posteriori Hassemer e Ferrajoli destacaram como solução.

Nota-se, assim, que para alcançar uma minimização do Direito Penal é necessário que os estudiosos da área exerçam uma função desestimulante da criação de leis emergências.

4. CONCLUSÃO

Observa-se que a utilização do Direito Penal de emergência como meio de Política Criminal é uma tendência nas sociedades atuais. Pois é através da Política Criminal que o Estado atua para combater a criminalidade, entretanto, vem ocorrendo o uso equivocado da esfera criminal, que tem sido utilizada como meio de combate de toda e qualquer situação ilícita, provocando uma maximização do Direito Penal e transferindo sua atuação de ultima ratio para prima ou sola ratio.

Percebe-se, contudo, um equívoco no pensamento social em acreditar que cabe ao Direito Penal solucionar todos os problemas que abalam o sentimento de segurança, pois essa sensação é simbólica, prova disso são os índices de criminalidade que não reduzem diante da criação de novas leis. Apenas, acaba-se criando um ciclo vicioso, onde a maciça criação de legislação foca em combater o efeito, ignorando por completo as causas da criminalidade. E o Direito Penal de emergência nada mais é do que um combate a efeitos.

É perceptível uma banalização da última esfera de controle social, a qual deveria ter única e exclusivamente a função de atuar em situações de relevante valor social. Um equívoco alimentado pela mídia, que clama por uma maximização do Direito Penal, e aceito pela sociedade que lava as mãos e apenas exige uma atuação imediata do Poder Legislativo. Uma prática observada e duramente criticada por estudiosos que temem pelo enfraquecimento do Direito Criminal, e apontam atuações necessárias para uma urgente minimização da utilização dessa esfera penal. 

Afinal, como cidadão inserido em sociedade devemos considerar se queremos que todos os nossos anseios sejam respaldados por uma lei severa, produzindo uma sensação de segurança, ou se o que devemos exigir é a efetiva redução de criminalidade, tendo em mente que  não é  uma tarefa que não cabe única e exclusivamente a esfera penal, mas também depende de atuação de esferas não-penais, afastando, desta forma, a ideia do Direito Penal de emergência.

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¹ El Derecho penal es un instrumento cualificado de protección de bienes jurídicos especialmente importantes (SÁNCHEZ, 2001, p.25).

² El Derecho penal es un instrumento cualificado de protección de bienes jurídicos especialmente importantes. Sentado esto, parece obligado tener en cuenta la posibilidad de que su expansión obedezca, al menos en parte, ya a la aparición de nuevos bienes jurídicos – de nuevos intereses o de nuevas valoraciones de intereses preexistentes -,  ya al aumento de valor experimentado por algunos de los que existían con anterioridad, que podría legitimar su protección a través del Derecho penal. (SÁNCHEZ, 2001, p. 25)

³ El Derecho penal ocupa un lugar significado – se convierta casi en obsesiva. En efecto, en una sociedad en la que carece de consenso sobre valores positivos […]. (SANCHEZ, 2001, p. 41-42).

 Las emergencias no son nuevas en los discursos legitimantes del poder punitivo: por el contrario, éste renace para quedarse durante el resto del milenio y proyectarse al próximo, confiscando a las victimas, en la Edad Media (siglos XI y XII) justamente con una emergencia: el ataque de Satán y las brujas. Las transnacionalizadas tienden a ser males cósmicos que, por ende, requieren soluciones exremas y no convencionales. De allí la Inquisición, que deroga el acusatorio y la legalidad, como principios que se implican recíprocamente. A el se agrega el defensismo ( siempre que se trata de un discurso de defensa), el simplismo conceptual, la renuncia a los planteos fundamentales (ZAFFARONI, 1998, p. 617).

 [...] surgida de una emergencia coyuntura! Fue la 7.029 de 1910, llamada de “Defensa social” (ZAFFARONI, 1998, p. 613).

 a) se funda en un hecho nuevo, pretendidamente nuevo o extraordinario; b) la opinión pública reclama una solución a los problemas generados por tal hecho; c) la ley penal no resuelve el problema, pero tiene por objeto proporcionar a la opinión pública la sensación de que tiende a resolverlo o a reducirlo; d) adopta reglas que resultan diferentes de las tradicionales en el Derecho Penal liberal, sea porque lo modifican en su área o en general, porque crean un Derecho Penal especial o alteran el Derecho Penal general. (ZAFFARONI, 1998, p. 617)

 Não existe um conceito próprio para a expressão “simbólico” muito menos para “legislação simbólica”, mas Hassemer traz que existe um “ acuerdo global respecto de la dirección en la cual se busca el fenómeno de derecho simbolico: se trata de una oposición entre “realidad” y “aparencia”, entre “manifesto” y “ latente”, entre lo “verdadeiramente querido” y lo “ortamente aplicado”; y se trata siempre de los efectos reales de las leyes penales. “Simbólico” se associa com “engano”, tanto em sentido transitivo como reflexivo. (HASSEMER, 1991, p.22).

 Cuanto más exigentes se formulen los fines preventivos de la pena ( resocialización del delincuente; intimidación de la capacidad delictiva; reafirmación de las normas fundamentales), cuanto más extensos sean sus fines, tanto más claramente aparece su contenido simbólico: persiguen, con la ayuda de una intervención instrumental del derecho penal ( en cierto modo acorde con esta práctica), transmitir (cognitiva y emotivamente) el mensaje de una vida de fidelidad al derecho. (HASSEMER, 1991, p.21)

 [...] el Derecho Penal de emergencia y la creciente legislación penal que lo acompaña ( y la que se produce fuera de su ámbito) responde a ideologías políticamente antiliberales que van marcando una tendencia que pone en peligro al Estado de Derecho […]. (ZAFFARONI, 1998, p. 618)

¹⁰ según el cual no podría introducirse ninguna norma en materia de delitos, penas o procedimientos penales si no es través de una modificación de los códigos correspondientes aprobada por médio de procedimentos agravados. No se trataría de una simple reforma de los códigos. Se trataría más bien de una recodificación del entero Derecho penal sobre la base de una meta-garantía contra el abuso de la legislación especial y excepcional. (FERRAJOLI, 2005, p. 85)

¹¹ Aunque su dimensión sea aparentemente limitada, por cierto que no se trata de un poder menor: sin discurso no se puede ejercer el poder. Por consiguiente, la conclusión elemental de esta ecuación es que debemos poner en juego nuestro poder discursivo contra esta tendencia y en defensa del Estado de Derecho. En la medida en que la doctrina deslegitime esta tendencia y deje sin discurso al poder, éste deberá buscar – como todo poder irracional – discursos de nivel más irracionales y, por ende, menos creíbles. Nuestra tarea no es otra, en esta hora, que reconstruir doctrinariamente el Derecho Penal partiendo de la premisa de que las primeras leyes a incorporar en nuestra construcción son las internacionales y las constitucionales, y entendiendo que las mismas proporcionan la base a una realización progresiva de sus principios que estamos encargados de impulsar. En síntesis: sólo podemos enfrentar el fenómeno que nos ocupa cumpliendo con nuestras Constituciones y con los tratados internacionales. (ZAFFARONI, 1998, p. 618).