A (SUPER)PRODUÇÃO DE TRANSTORNOS E DEFICIÊNCIA: NARRATIVAS DE PROFISSIONAIS DO ATENDIMENTO EDUCACIONAL ESPECIALIZADO - AEE
PDF: Clique aqui
REGISTRO DOI: 10.5281/zenodo.15468563
Beatriz Marques dos Santos1
Vitória Aparecida Pedroso Alves2
Ana Paula Ribeiro Alves3
RESUMO
Trata-se de um recorte de um estudo em andamento na área da Educação Especial que tem por objetivo conhecer e analisar as percepções de professores atuantes na sala de Atendimento Educacional Especializado (AEE). Quando as matrículas das pessoas com deficiência passaram a ser efetuadas em salas comuns das escolas públicas, houve a necessidade de um apoio que complementasse ou suplementasse o trabalho realizado em sala de aula auxiliando estes alunos a superarem as dificuldades de acordo com as suas especificidades. Neste sentido, o surgimento do Atendimento Educacional Especializado (AEE) foi um importante movimento de suporte ofertado ao público alvo da Educação Especial em parceria com as escolas públicas. No ano de 2014, uma nota técnica foi publicada pelo MEC retirando a exigência do laudo para o ingresso deste público no AEE ressaltando que tal exigência representava uma imposição de barreiras no que tange ao acesso ao sistema de ensino o que o configurava em excludente e discriminatório. A partir de então, constata-se equívocos e encaminhamentos superficiais de crianças para o AEE na busca de justificativas e culpados para o fracasso escolar de crianças com questões sociais, comportamentais e emocionais. Nesta perspectiva, a reflexão deste artigo é de que maneira o discurso sobre as queixas escolares e encaminhamentos para o AEE tem impactado e produzido crianças com transtornos e deficiências? Este artigo se trata de um recorte de uma pesquisa maior em fase de realização.
Palavras-chave: Atendimento Educacional Especializado; Laudos; Educação Especial.
ABSTRACT
This is an excerpt from an ongoing study in the area of Special Education that aims to understand and analyze the perceptions of teachers working in the Specialized Educational Assistance (AEE) classroom. When the enrollment of people with disabilities began to be carried out in regular classrooms in public schools, there was a need for support that would complement or supplement the work carried out in the classroom, helping these students to overcome difficulties according to their specificities. In this sense, the emergence of Specialized Educational Assistance (AEE) was an important support movement offered to the target audience of Special Education in partnership with public schools. In 2014, a technical note was published by the MEC removing the requirement for a report for the admission of this audience to the AEE, emphasizing that such a requirement represented an imposition of barriers regarding access to the education system, which configured it as exclusionary and discriminatory. From then on, mistakes and superficial referrals of children to the Special Education Program were observed in the search for justifications and culprits for the school failure of children with social, behavioral and emotional issues. From this perspective, the reflection of this article is how the discourse on school complaints and referrals to the Special Education Program has impacted and produced children with disorders and disabilities? This article is an excerpt from a larger research project currently underway.
Keywords: Specialized Educational Assistance; Reports; Special Education.
1. Introdução
A partir da década de 1990 a educação brasileira tem sido notada pelo movimento de inclusão de todas as pessoas, independentemente de suas condições biológicas, com a garantia do direito ao acesso, permanência e aprendizagem na instituição de ensino, o que aumentou significativamente o número de matrículas de alunos com deficiência na rede regular de ensino.
Esta iniciativa é resultante da elaboração de Leis e Declarações como a Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), a Declaração de Salamanca (BRASIL, 1994), a Declaração de Jomtien (UNESCO, 1990), a Lei de Diretrizes e Base da Educação Especial na Educação Básica (BRASIL, 2001), a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2008) dentre outras, que garantem o acesso de todos à escolarização básica, o que não significa necessariamente, assegurar as condições ideais para que este público permaneça e progrida em seu desenvolvimento.
As matrículas das pessoas público alvo da Educação Especial (pessoas com Deficiência, Transtornos Globais do Desenvolvimento e Altas Habilidades/Superdotação) passaram a ser efetuadas em salas comuns das escolas públicas, e com isso houve a necessidade de um apoio que complementasse ou suplementasse o trabalho realizado em sala de aula auxiliando estes alunos a superarem as dificuldades de acordo com as suas especificidades. Neste sentido, o surgimento do Atendimento Educacional Especializado (AEE) foi um importante movimento de suporte ofertado ao público alvo da Educação Especial em parceria com as escolas públicas. O Decreto 6.571/2008, na Resolução n.º 4, de 2009 aponta a sua configuração:
Art. 1º: (...) os sistemas de ensino devem matricular os alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação nas classes comuns do ensino regular e no Atendimento Educacional Especializado (AEE), ofertado em salas de recursos multifuncionais ou em centros de Atendimento Educacional Especializado da rede pública ou de instituições comunitárias, confessionais ou filantrópicas.
Art. 2º: O AEE tem como função complementar ou suplementar a formação do aluno por meio da disponibilização de serviços, recursos de acessibilidade e estratégias que eliminem as barreiras para sua plena participação na sociedade e desenvolvimento de sua aprendizagem (Brasil, 2009).
O AEE, portanto, se configura em importante meio para garantir o desenvolvimento e inclusão de pessoas com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação na rede regular de ensino quando se propõe a eliminar as barreiras existentes neste processo em um trabalho em parceria com o projeto político pedagógico da escola, com o professor da sala comum e a família.
No ano de 2014, uma nota técnica foi publicada pelo MEC retirando a exigência do laudo para o ingresso deste público no AEE ressaltando que tal exigência representava uma imposição de barreiras no que tange ao acesso ao sistema de ensino o que o configurava em excludente e discriminatório. O documento esclarece ainda que a função do AEE é exclusivamente pedagógica e não clínica. Ao não tratar o laudo médico que ateste a condição do aluno como um documento imprescindível, abre-se a possibilidade de usá-lo como documento complementar, se o professor do AEE julgar necessário (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2014).
Esta forma de conceber este público, para além de uma visão exclusivamente clínica da deficiência é corroborada pela perspectiva da Lei Brasileira de Inclusão-LBI, de 2015 (BRASIL, 2015) que também representou um avanço em relação à compreensão da deficiência quando superou a perspectiva médica que considerava apenas os aspectos individuais da pessoa, passando a considerar os aspectos sociais. Isto implica em compreender a forma como a sociedade recebe e reage às especificidades de cada pessoa humana.
2 Atendimento Educacional Especializado para todos: inclusão ou produção de deficiências?
Embora a desobrigatoriedade de um laudo clínico represente um avanço ao considerar a pessoa com deficiência para além da perspectiva restritamente biológica, antes, em suas reais necessidades como um sujeito singular e de direitos, alguns autores têm questionado os aspectos que podem gerar equívocos em relação ao encaminhamento de alunos ao AEE.
Guerra (et al, 2015) analisou e descreveu o conteúdo dos encaminhamentos dos professores das escolas públicas para o AEE. Os autores analisaram 92 encaminhamentos feitos por professores de crianças da Educação Infantil. Os resultados revelaram que a maior parte dos atendimentos realizados pelo AEE destinava-se às crianças que não possuíam diagnóstico de deficiência. Além disso, 69% das queixas referiam-se a problemas restritamente comportamentais (e não de aprendizagem), demonstrando a falta de clareza de para que e para quem se destina o AEE. O estudo também problematizou o fato de professores encaminharem todos os alunos com deficiência ao AEE desconsiderando as especificidades e se realmente seria necessário tal atendimento para aquele sujeito em particular.
Nesta perspectiva, os autores do estudo de Fontenele (et al, 2023) em revisão da literatura sobre a temática, constataram que embora o laudo não seja obrigatório, o encaminhamento dos alunos para o AEE se pauta em práticas pedagógicas que tendem a reproduzir as concepções que associam a deficiência à incapacidade e doença, revelando que a concepção médica em relação à deficiência ainda é dominante na cultura escolar.
Ainda no que se refere às causas apontadas nos encaminhamentos, Asbahr e Lopes, 2006 analisaram influência das concepções tradicionais da Psicologia nas falas de educadores e alunos sobre o fracasso escolar. As autoras contam que no ano de 2001, realizaram entrevistas com professores e alunos de uma escola pública municipal da cidade de São Paulo. Contratadas por uma escola para realizar uma avaliação psicológica com sessenta crianças, de 4º, 5º e 6º anos do ensino fundamental, que não aprendiam a ler e a escrever, os autores julgaram pertinente conhecer as hipóteses desses sujeitos acerca das dificuldades de escolarização de alguns alunos.
Os professores e equipe gestora da escola queriam que a Psicologia dissesse por que o fracasso escolar ocorria. As autoras questionaram os professores sobre as suas hipóteses em relação às queixas apresentadas e as respostas foram relacionadas a aspectos como agressividade; falta de interesse da família; idade mental inferior à cronológica; falta de motivação e interesse por parte da criança; problema neurológico ou fonoaudiológico; aluno fraco, que não acompanha a série; problema mental; falta de oralidade; problema de audição; trauma; vida sofrida; entre outros.
Refletindo criticamente sobre as causas apontadas nas falas dos entrevistados (biológicas, familiares e emocionais) as autoras concluíram que
são eles os portadores de desajustes, desequilíbrios, deficiências mentais, distúrbios emocionais ou neurológicos, agressividade, hiperatividade, apatia, trauma, disfunção cerebral mínima, complexos e tantos outros estigmas. Assim, são os alunos individualmente que não têm capacidade de aprender, são eles os grandes problemas da escola, reduzidos a meros objetos, independentes das dimensões sociais e políticas das instituições escolares, nas sociedades divididas em classes (ASBAHR; LOPES, 2006, p. 60 )
Para Castro e Vilela-Ribeiro (2022) além dos alunos com deficiência, tem aumentado o número de outra classe de crianças encaminhadas: os alunos classificados com transtornos mentais e/ou dificuldades de aprendizagem. As autoras relataram uma frequente produção de laudos psicológicos e/ou psiquiátricos para alunos que (supostamente) apresentavam dificuldades de aprendizagem e que vêm sendo utilizados na educação como justificativa para os problemas de comportamento e aprendizagem sem, no entanto, considerar outros aspectos como os socioeconômicos, pedagógicos e processos de escolarização que implicam na produção do fracasso escolar.
Neste contexto, questionamos se o aumento de crianças com transtornos e de deficiências citado pelas autoras acima pode ter relação com a desobrigação do laudo para acesso ao AEE, que, embora signifique um avanço na maneira de olhar para este público, pode estar oportunizando o encaminhamento indiscriminado de toda criança com questões comportamentais, emocionais e sociais superproduzindo transtornos e deficiências como justificativa para o fracasso escolar.
Para Pletsch (2018), sem desconsiderar o avanço que a Nota Técnica n 4 representa, não cobrar o laudo pode abrir a possibilidade de aumento de indicações artificiais e indiscriminadas ao AEE indicando que, as práticas de identificação dos alunos que precisam deste atendimento ainda revelam “a intenção mais de se atenuar problemas de turmas regulares do que incluir os alunos de fato” (p.1050). Os coordenadores entrevistados no estudo de Pletsch (2018) revelaram que os professores têm indicado quase a metade da turma para o AEE e acreditam que muitos dos alunos são “especiais”. Para a autora, esse tipo de prática, ainda que não intencional, culpabiliza o aluno e exime a escola de sua responsabilidade sobre o fracasso escolar.
É possível constatar que predomina a concepção médica da deficiência nos encaminhamentos. Nesta concepção, a deficiência é caracterizada como um incidente isolado, uma condição analisada a partir da sua origem orgânica e que pode ser considerada transitória ou definitiva. A pessoa com deficiência é entendida como passiva, sendo incompreendida enquanto ser social, fato que implica a reabilitação ou o assistencialismo. Por isso, esse modelo dá ênfase à associação da deficiência a uma doença que precisa ser curada e à compreensão de que o sujeito necessita estar adequado à sociedade para poder regressar à “normalidade”, uma vez que se mantém uma visão restrita à “tragédia pessoal” do indivíduo, o que faz dele o único responsável pela opressão e exclusão social que sofre.
Desta forma, a pessoa com a suposta deficiência/transtorno é aquela que possui uma restrição em suas habilidades e funcionalidades. O atendimento no AEE trouxe a superação de barreiras para a inclusão em sala de aula, no entanto, quando ofertado à crianças que não necessitariam deste serviço, pode estar exercendo o papel oposto: estigmatizar ao invés de incluir.
Neste sentido, a reflexão deste estudo em andamento é de que maneira o discurso sobre as queixas escolares e encaminhamento para o AEE tem impactado e produzido crianças com transtornos e deficiências?
Justificamos a importância de uma análise da temática sob a perspectiva daqueles que vivenciam cotidianamente a chegada de crianças rotuladas, estigmatizadas e encaminhadas equivocadamente a um atendimento do qual não necessitam: professores do AEE. A relevância deste projeto de pesquisa consiste em refletir sobre de que maneira encaminhamentos indiscriminados reverberam na educação, no Atendimento Educacional Especializado e sobretudo, na trajetória de crianças consideradas com deficiências e transtornos.
3. Conclusões
Embora seja este um recorte suscinto do contexto em estudo, já é possível tecer importantes reflexões e questionamentos. O encaminhamento indiscriminado para salas destinadas ao público alvo da Educação Especial como crianças com transtorno de desenvolvimento e deficiências pode estar contribuindo para a propagação de rótulos e estigmas em crianças com problemas comportamentais ou dificuldades comuns de aprendizagem.
Inferimos que os protagonistas das entrevistas revelarão que crianças comumente encaminhadas não necessitariam deste atendimento e não são parte do público alvo da Educação Especial, embora sejam rotulados e estigmatizados como tal. Esperamos ainda, propor uma reflexão transformadora aos participantes, pesquisadores e leitores sobre de que maneira encaminhamentos aligeirados, equivocados, baseados em comportamentos e não em necessidades, podem estigmatizar e marcar trajetórias e histórias de vidas. Em que medida podem estar sendo vítimas e/ou culpabilizadas pelo fracasso escolar? Quais interesses são atendidos com a superprodução de pessoas com deficiências?
Encontrar respostas a tais indagações se faz importante, uma vez que desperta a consciência crítica da realidade investigada e proporciona o enfrentamento do estigma.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ASBAHR, F.S.F.; LOPES, J.S. “A culpa é sua”. Psicologia USP, 17(1), 53-73, 2006.
BRASIL. Decreto n° 6.949 de 25 de agosto de 2009. Promulga a Convenção Internacional sobre os direitos das pessoas com deficiência e seu protocolo facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. In: Pessoa com deficiência: legislação Federal. 1° Edição, Brasília, 2012.
BRASIL. Decreto nº 3.298, de 20 de dezembro 1999. Regulamenta a Lei nº. 7.7853, de 24 de outubro de 1989, dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, consolida as normas de proteção, e dá outras providências.
Diário Oficial da União. Brasília, DF, 21 dez. 1999. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3298.htm>. Acesso em: 01 mar. 2025.
BRASIL. Decreto 5.296, de 2 de dezembro de 2004. Regulamenta as Leis nºs 10.048, de 8 de novembro de 2000, que dá prioridade de atendimento às pessoas que especifica, e 10.098, de 19 de dezembro de 2000, que estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, e dá outras providências.
BRASIL. Lei n° 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 25 jul. 1991. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8213cons.html>. Acesso em: 01 fev. 2025.
BRASIL. Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989. Dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência, sua integração social, sobre a Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência - Corde, institui a tutela jurisdicional de interesses coletivos ou difusos dessas pessoas, disciplina a atuação do Ministério Público, define crimes, e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L7853.htm. Acesso em: 01 de fev. 2025.
Brasil (2009). Resolução CNE/CEB 04 de 02 de outubro de 2009. Diretrizes operacionais para o atendimento educacional especializado na educação básica, modalidade educação especial. Brasília, DF: Ministério da Educação.
BRASIL. Lei 13.146 de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão das Pessoas com Deficiência Intelectual (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial da União, 2015.
CASTRO, A.A.de; VILELA-RIBEIRO, E.B. O estigma presente nos discursos de professores sobre laudos e a relação com as queixas escolares: análise a partir de um contexto neoliberal. Rev. Bras. Psico. e Educ., Araraquara, v. 23, n. 00, e022008, 2022.
FONTENELE, L.Q. Laudo e diagnóstico como dispositivos de (ex)inclusão escolar: uma revisão sistemática. Revista de Psicologia, Fortaleza, v.14, e023009 jan./dez. 2023.
GUERRA, B. T. et al. Análise das queixas da rede municipal encaminhadas para a Educação Especial. Revista Quadrimestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, SP. Volume 19, Número 2, Maio/Agosto de 2015: 321-328.
PLETSCH, M. D.; de PAIVA, C. Por que as escolas continuam “laudando” alunos com deficiência intelectual? Revista Educação Especial, vol. 31, núm. 63, 2018, OutubroDezembro, pp. 1039-1079 Universidade Federal de Santa Maria Brasil, 2018.
UNESCO. Declaração Mundial sobre Educação Para Todos (Conferência de Jomtien). Tailândia: Unesco, 1990. Disponível em: <www.unesco.org.br/publicação/doc-inernacionais>
1 E-mail: [email protected]
2 E-mail: [email protected]
3 E-mail: [email protected]